Autonomia e heteronomia da linguagem: aspectos complementares

July 23, 2017 | Autor: Leonardo Bernardes | Categoria: Wittgenstein, FILOSOFIA DA LINGUAGEM, Lógica
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AUTONOMIA E HETERONOMIA DA LINGUAGEM: ASPECTOS COMPLEMENTARES Leonardo Bernardes1 “Eu não digo: se tais e tais fatos naturais fossem outros, então as pessoas teriam outros conceitos (no sentido de uma hipótese)” Wittgenstein, Investigações Filosóficas, II, xii.

Ao empregar o termo autonomia somos quase naturalmente compelidos a imaginar um conflito entre aquilo que a representa e forças antagônicas empenhadas em combatê-la — o propósito de preservar a linguagem de uma comprometedora dependência do mundo contraposto ao intuito de afirmar uma dependência determinante. A imagem torna-se ainda mais forte se considerarmos os contextos originais onde a expressão foi empregada: contra fatos que pareciam fazer confundir domínios nitidamente díspares e subordinar o sentido de nossas palavras à verdade de proposições empíricas2. Era preciso, primordialmente, fixar distinções fundamentais à filosofia de Wittgenstein. O pensamento de Wittgenstein, no entanto, amadurece de maneira a tornar bem vinda uma dependência que antes parecia produzir efeitos indesejados, em especial, a confusão entre filosofia e ciência. Nosso texto pretende mostrar como o curso das reflexões de Wittgenstein e particularmente sua concepção de filosofia reclamam que a posição aparentemente antagônica, a de que os fatos determinam conceitos, seja combinada e coexista sem

contradição

junto

à

perspectiva

representada

na

autonomia. A excêntrica

complementaridade sugerida reflete o que há de mais original no pensamento de Wittgenstein: um modo singular de enxergar a relação entre fatos e conceitos que apesar de reconhecer aí uma correspondência inseparável não obriga a filosofia a nenhuma tarefa empírica. I É necessário esboçar, prévia e precariamente, uma imagem da autonomia, a fim de que tenhamos algo com que manejar. Grosso modo, a autonomia da linguagem diz respeito a uma compreensão da relação entre linguagem e mundo (linguagem e natureza, etc) que rejeita nexos causais. Trata-se, portanto, de recusar a ideia de que os conceitos fixados na linguagem 1 Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFBA, membro do Grupo de Estudo e Pesquisa Empirismo, Fenomenologia e Gramática. 2 Cf. WITTGENSTEIN, Zettel, § 331.

sejam determinados pelo mundo, pela realidade ou pela natureza. Essa apresentação, superficial, não oferece aos olhos justo o ponto nevrálgico: a reconhecida alegação wittgensteiniana em contrário, a afirmação de que em certo sentido nossos conceitos são de fato determinados pela natureza. Adiante retornaremos ao ponto, por ora basta essa imagem limitada. O que buscamos salientar com essa apresentação provisória é: o núcleo da temática da autonomia está indissociavelmente ligado ao estatuto da relação entre linguagem e mundo. Será este então o nosso ponto de partida. Wittgenstein nos oferece um comentário fértil e instrutivo acerca dessa relação: Se a formação de conceitos pode ser explicada por fatos da natureza, nós não deveríamos nos interessar, não pela gramática, mas por aquilo que natureza é a base da gramática? — Nosso interesse certamente inclui a correspondência entre conceitos e fatos muito gerais da natureza. (Tais fatos quase sempre não nos chamam a atenção por causa de sua generalidade.) Mas nosso interesse não recai sobre aquelas possíveis causas da formação de conceitos. Nós não estamos fazendo ciência natural. Nem história natural — pois nós também podemos inventar uma história natural fictícia para nossos propósitos3.

A passagem destacada não poderia ser mais esclarecedora. Seu poder de esclarecimento reside no fato de que os temas tenham sido apresentados no contexto de um questionamento, na encenação, peculiar à atividade filosófica de Wittgenstein, da posição contrária à sua própria. Assim, o que se oferece de início é a voz que representa as ideias de alguém não satisfeito com a suposta autonomia da linguagem. Sua posição alimenta-se de pontos e observações já considerados em etapas anteriores das Investigações. Se pudéssemos reformular a pergunta inicial, faríamos do seguinte modo: “Você mesmo parece reconhecer a importância de fatos naturais para a formação de conceitos, não parece uma consequência natural que a filosofia, interessada por conceitos, pela gramática, deva estender seu interesse à natureza e aos fatos que servem de suporte à formação conceitual?”. A inegável e reconhecida importância dos fatos naturais é convertida numa alavanca que nos empurra a aceitar a tese contrária à autonomia, a sugestão de que talvez devêssemos também nos interessar por fatos naturais já que, posto que estão na base da nossa gramática, eles exercem uma determinação que resulta na formação dos nossos conceitos. A resposta de Wittgenstein a esse expediente coercivo não consiste num retrocesso, não corresponde à negação da importância atribuída aos fatos naturais, ao contrário, é uma reiteração: “Nosso 3 WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, p. 230. (grifos nossos)

interesse certamente inclui a correspondência entre conceitos e fatos muito gerais da natureza. (Tais fatos quase sempre não nos chamam a atenção por causa de sua generalidade.)” — mas é mais do que isso. Não se segue da importância dos fatos naturais o interesse filosófico por eles: “Mas nosso interesse não recai sobre aquelas possíveis causas da formação de conceitos”. Essa resposta, que parece estarrecer seu adversário, é a oportunidade que se abre para esclarecer o estatuto do que agora ele mesmo designa como a correspondência entre conceitos e fatos muito gerais da natureza. Como podemos reconhecer a importância de algo e, ao mesmo tempo, recusar o interesse filosófico que lhe deveríamos naturalmente dirigir? No parágrafo seguinte a resposta se apresenta: “Eu não digo: se tais e tais fatos naturais fossem outros, então as pessoas teriam outros conceitos (no sentido de uma hipótese)” 4. Aqui, duas coisas estão ditas: primeiro, há sim uma relação entre conceitos e fatos que se mostra de tal modo inegável que se imaginarmos a alteração dos fatos naturais que hoje dão suporte aos nossos conceitos, chegaríamos a constatação consequente de que mudariam também nossos conceitos; segundo, a alteração conceitual inegável que está aí sugerida não é resultado de uma determinação dos fatos, da natureza sobre a linguagem. Está aqui o ponto que escapa aos seus adversários e o aspecto característico da posição wittgensteiniana. Entre o mundo e a linguagem se estabelece uma relação interna, lógica, não causal, não hipotética. A relação entre fatos e conceitos não está no campo das coisas que podem ser negadas — muito menos descobertas. Por acaso o homem simplório que determina o preço de suas mercadorias, carnes, queijos, numa feira livre no interior do país não sabe ou desconhece que a alteração do comportamento dos corpos que ele manipula faria ruir a prática que ele exerce com a mesma naturalidade com que caminha ou mastiga? Os verbos saber e conhecer, aqui, mascaram, dissimulam e desencaminham justo porque fazem parecer que se trata de uma relação causal o que em verdade corresponde a uma nexo lógico. O homem que determina o preço conforme o peso não sabe e nem precisa saber que o jogo de linguagem que emprega perderia o sentido (Witz) caso os corpos perdessem o comportamento regular que hoje ampara as nossas práticas. Não precisa saber significa: o sentido da sua prática não está amparado num conhecimento, em verdades ou necessidades que caberia ao filósofo apontar. Ele age como se não pudesse ser de outro modo, pois aprendeu a jogar o jogo que ora emprega como se não fosse possível que as coisas se 4 WITTGENSTEIN. Philosophical Investigations, II, xii, p. 230.

comportassem de outra maneira. Aliás, quando Wittgenstein sugere que as coisas poderiam ser de outra maneira, como quando considera a possibilidade de um colapso da regularidade da natureza no parágrafo 142 das Investigações, é justamente pra salientar que somente em circunstâncias semelhantes nós notamos a importância dos fatos naturais para a manutenção do sentido das nossas práticas linguísticas. De outra maneira, eles passam desapercebidos por conta da sua generalidade. “Há inúmeras proposições empíricas gerais que nós consideramos como certas” 5, Wittgenstein nos diz. Ao aprendermos a empregar certos jogos, aceitamos sem questionar muitos aspectos neles envolvidos6. Ao aprender a empregar a balança para determinar o preço das mercadorias, o enteado do feirante a que nos referimos aceita também as consequências envolvidas na prática do jogo, isto é, aceita o comportamento regular dos corpos que é um fato geral da natureza internamente ligado ao conceito de pesar e ao jogo de linguagem de determinar o preço conforme o peso. Mas o aceitar implicado na aprendizagem não é um conhecer ou saber. Não só é perfeitamente possível dominar um jogo sem conhecer as vinculações entre os conceitos envolvidos nesse jogo e os fatos naturais que lhes são necessários, como é amplamente provável que não as conheçamos. O indicador de indeterminação inúmeras que aparece no fragmento destacado deixa em aberto o campo das possibilidades — podem ser três ou cinco bilhões o número das proposições empíricas que tomamos como certas ao praticar nossos jogos. Se não se sabe quantas proposições empíricas são tomadas como certas, é porque não precisamos saber para empregar nossa linguagem. Em certo sentido, o espírito do comentário acima se representa no seguinte fragmento do Da certeza: Uma criança aprende que há informantes confiáveis e não confiáveis muito depois de aprender os fatos que lhes são contados. Ela não aprende em absoluto que a montanha existe há muito tempo; isto é, a questão, sobre se é assim, não se coloca (die Frage kommt gar nicht auf). Ela engole, por assim dizer, essa consequência junto com o que ela aprendeu 7.

Podemos nunca chegar a elaborar questões relativas aos fatos necessários à prática da nossa linguagem — como o aprendiz não questiona seu tutor quanto à possibilidade de a fatia de queijo encolher ou aumentar de tamanho, ou se o comportamento dos corpos se manterá estável —, no entanto, isso não impede que desempenhemos com plena maestria as técnicas 5 WITTGENSTEIN, On Certainty, § 273. 6 WITTGENSTEIN, On Certainty, § 160-1. 7 WITTGENSTEIN, On Certainty, § 143.

aprendidas e muito menos anula a ligação interna entre conceitos e fatos que inadvertidamente engolimos. Os fatos naturais que estão em correspondência com os nossos conceitos escapam à nossa visão em razão da sua generalidade. Wittgenstein insiste em apontar essa condição, como, por exemplo, no seguinte fragmento: Aquilo que nós devemos dizer para esclarecer o significado, eu quero dizer a importância de um conceito são com frequência fatos extremamente gerais da natureza. Tais fatos, devido a sua grande generalidade, raras vezes são mencionados8.

Não é preciso notar os fatos muito gerais da natureza e, pela mesma razão, não interessa à filosofia quais sejam eles. Se o sentido dos nossos conceitos não depende do conhecimento de quais sejam as proposições empíricas tomadas como certas, por que a filosofia deveria se ocupar com a natureza, por que deveria investigá-la? É no horizonte dessa recusa radical que aparece a sugestão de uma história natural fictícia. Não interessa à filosofia quais sejam os fatos naturais importantes, pois para ilustrar aquilo que lhe convém podemos mesmo lançar mão de exemplos fictícios, imaginar uma natureza inteiramente diferente da que estamos acostumados — como Wittgenstein faz incontáveis vezes — a fim de fazer ver não a determinação causal dos fatos sobre os conceitos, mas a vinculação lógica entre a natureza e a nossa linguagem. A importância e o confesso interesse pela correspondência entre fatos e conceitos não compele a filosofia a uma investigação empírica, tampouco torna necessário aceitar a ideia de uma determinação causal dos nossos conceitos, conforme consequência que acompanha a frequente confusão entre trabalho científico e atividade filosófica. Nesse ponto fixam-se as bases para que possamos compreender melhor a relação entre os comentários acerca da autonomia e também da heteronomia da linguagem. II Esboçamos provisoriamente uma imagem segundo a qual a autonomia consiste numa compreensão da relação entre linguagem e mundo que recusa a determinação causal da natureza sobre os conceitos. Nossa preocupação em esclarecer aquilo que Wittgenstein designa como a correspondência entre fatos e conceitos se explica no interesse de criar o 8 WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 143.

contexto para que possamos aprofundar e dar consequências a essa compreensão da autonomia. Nesse propósito, cabe anotar que talvez a mais precisa formulação do que está em jogo nas passagens referidas à autonomia encontre-se em Zettel: Somos tentados (versucht) a justificar as regras da gramática por meio de sentenças como “Mas há realmente quatro cores primárias”. E contra a possibilidade dessa justificação, construída segundo o modelo de justificação de uma sentença através da referência (Hinweise) a sua verificação, que se dirige a expressão (das Wort) de que as regras gramaticais são arbitrárias 9.

As regras da gramática não se justificam por meio da experiência. Do ponto de vista genético é essa a preocupação que dá suporte ao uso da expressão arbitrário10. As expressões arbitrário, arbitrariedade (assim como autônomo e autonomia) designam a pretensão de afastar do quadro de interesses filosóficos o tentador projeto de buscar no mundo aquilo que verifica — e que justifica — as regras que empregamos. Porque se definem assim as preocupações representadas na expressão autonomia da gramática, parece-nos adequado e profilático reforçar o interesse pelas questões aí envolvidas, mesmo considerando as mudanças que a noção de gramática sofrerá desde a fase intermediária até os períodos posteriores da reflexão de Wittgenstein e até em vista da ausência dos termos e expressões correlatos à autonomia. A preocupação encarnada na autonomia reflete, em verdade, um traço do pensamento de Wittgenstein que pode ser identificado em qualquer período do seu trabalho intelectual. A saber, a autonomia reflete a necessidade de distinguir ciência e filosofia. Ora, não é uma confusão entre esses dois pontos que parece representada na insinuação de que talvez devêssemos investigar a natureza que está na base da gramática, conforme o fragmento destacado acima? Não é uma confusão dessa natureza que compele os filósofos a buscar respostas empíricas para problemas conceituais? Problemas dessa natureza não estão bem ilustrados no Da Certeza ou nas Observações sobre a filosofia da psicologia? A relevância da noção de autonomia para a fase madura do pensamento de Wittgenstein está indicada numa 9 “Man ist versucht, Regeln der Grammatik durch Sätze zu rechtfertigen von der Art “Aber es gibt doch wirklich vier primäre Farben”. Und gegen die Möglichkeit dieser Rechtfertigung, die nach dem Modell der Rechtfertigung eines Satzes duch den Hinweis aus seine Verifikation gebaut ist, richtet sich das Wort, das die Regeln der Grammatik willkürlich sind.” WITTGENSTEIN, Zettel, § 331. 10 Convém registrar que não fazemos nenhuma distinção significativa entre autonomia e arbitrariedade. Contudo, reconhecendo a relação etimológica da palavra willkürlich, com as palavras vontade (Will) e escolha, eleição (kuren), preferimos adotar a expressão autonomia a fim de evitar uma ênfase excessiva que pode inspirar o emprego da palavra arbitrariedade.

razão simples, já expressa no período intermediário e no trecho acima recortado: porque ela nos protege da tentação (Versuchung) de recorrer a expedientes científicos para resolver problemas conceituais. Localizamos no parágrafo 497 das Investigações filosóficas uma oportunidade de desenvolver o esclarecimento que propomos. Lá encontra-se a seguinte observação: “Se alguém diz: ‘Se nossa linguagem não tivesse essa gramática, ela não poderia expressar esses fatos’ — deveria ser perguntado o que ‘poderia’ significa aqui”. Não se tem a impressão de que os fatos possuem uma função especial? Como se, sendo estes os fatos, devêssemos buscar uma gramática que pudesse expressá-los. Se os fatos tivessem esse estatuto pareceria justo que pudéssemos falar em determinação da natureza sobre a linguagem e que a filosofia devesse se ocupar de uma investigação preocupada em distinguir os fatos importantes para nossa gramática. Mas o sentido da observação é exatamente o contrário. Wittgenstein quer não justificar a confusão que lança a filosofia à cata de fatos naturais, mas apontar o sem sentido que dá suporte à busca por fatos capazes de determinar (justificar) os nossos conceitos. A importância que se concede aos fatos não é relativa à sua função especial de justificação ou determinação. A ideia de que certos fatos só podem ser expressos por uma determinada gramática reflete uma compreensão oposta àquela representada na autonomia, pois nessa maneira de tratar a relação entre mundo e linguagem a natureza funciona como dado original e imutável, corte suprema à qual se apela para dissolver dúvidas acerca de quais conceitos são legítimos e apropriados. Nesse sentido, teríamos que consultar a natureza a fim de avaliar se nossos conceitos são ou não apropriados, prestam-se ou não à tarefa de expressar seus fatos. É a ilusão que se representa em imagens semelhantes um dos mais notórios alvos da autonomia e Wittgenstein parece ciente desses descaminhos quando diz: “Acredita-se constantemente seguir em direção à natureza, e vai-se apenas ao longo da forma através da qual nós a contemplamos”11. À procura da justificação para o uso dos conceitos da nossa linguagem, o filósofo que, enfeitiçado por confusões, vai ao mundo em busca da natureza das coisas — prova cabal de que os conceitos devem ser esses e não outros — encontra tão somente a forma através da qual as contemplamos. Uma investigação que se dirigisse à natureza almejando distinguir em meio à sua multiplicidade os fatos determinantes para a formação da nossa rede conceitual 11 WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 114.

não lograria descobrir nada que já não fosse, em certo sentido, bem conhecido. E com poderia ser de outra maneira? Talvez a pergunta adequada fosse: que tipo de resposta buscam aqueles que querem encontrar no mundo a justificação para os nossos conceitos, o que desejam encontrar? A resposta é simples: necessidades naturais. A ânsia por fatos mascara a crença de que eles trazem consigo uma espécie de necessidade natural que nos compele a adotar certos conceitos. Nesse cenário, consequentemente, a autonomia está abolida, pois há uma rígida determinação entre fatos e conceitos que não deixa espaço para qualquer mudança, a menos, claro, que surjam novos fatos. Mas a esse respeito Wittgenstein alerta: “o único correlato na linguagem a uma necessidade natural (Naturnotwendigkeit) é uma regra arbitrária”12. O filósofo que pretende encontrar na linguagem os traços de uma necessidade natural vê suas pretensões implodidas pela simples sugestão de que uma tal necessidade está correlacionada a regras arbitrárias. Se regras arbitrárias substituem na linguagem o lugar que antes se pensava reservado à expressão de necessidades naturais, não há mais contexto para investigações interessadas em descobrir os fatos importantes para a linguagem, pois quaisquer que sejam eles, o vínculo entre fatos e conceitos não terá natureza causal, mas lógica. Uma vez que os fatos não determinam causalmente quais sejam os nossos conceitos, não impõem sobre a linguagem a marca indelével de uma necessidade que lhes é própria, não é de qualquer interesse filosófico o projeto de investigar os fatos importantes para linguagem. Tendo em vista essas observações é preciso salientar que não há qualquer incompatibilidade entre o reconhecimento da importância de fatos naturais para a determinação do sentido de nossas expressões linguísticas e o desinteresse filosófico pela natureza e fatos naturais. É isso o que se esclarece por meio do entendimento do estatuto da correspondência entre fatos e conceitos e, sem isso, se explica o ímpeto equivocado que parece nos convocar a seguir da importância dos fatos até uma investigação (empírica) sobre eles. A busca por necessidades naturais acaba por inverter a maneira como Wittgenstein entende o funcionamento da linguagem. Nesse esquema contrário ao seu as necessidades espelhadas na linguagem dão lugar à normatividade linguística. Em certo sentido, a normatividade da linguagem se resolve nesse espelhamento de uma ordem natural subjacente, ordem tributária da natureza. Por essa razão é preciso investigá-la a fim de decidir 12 WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, §372.

pela maneira apropriada de expressar seus fatos, legitimar ou justificar nossos conceitos. Nesse propósito, somos inevitavelmente conduzidos a uma dieta unilateral que nos engessa a conceitos justificados pelos fatos aos quais se ligam. Sendo estes os fatos — e não outros —, os conceitos por consequência sofrem da mesma rigidez e falta de plasticidade que os fatos aos quais estão subordinados. A atividade filosófica de Wittgenstein, ao contrário, se caracteriza pela importância central que investe ao trabalho imaginativo e ficcional que nos leva a considerar outros conceitos. O interesse essencial do exercício imaginativo é fazer entender a correspondência entre fatos e conceitos, afastando dietas unilaterais. Podemos, a título de ilustração, identificar dois modos de realização desse entendimento: primeiro, apontando de que maneira fatos novos (ou o colapso dos fatos naturais ora importantes) poderiam dar lugar a novos conceitos; segundo, indicando que os mesmos fatos poderiam ser organizados conforme uma outra rede de conceitos — a depender da forma de vida e mesmo da educação a qual se vinculam os usuários de uma linguagem13. Essas questões são profícuas e não é ocasião para analisá-las em detalhe, aqui queremos tão somente sugerir que a atividade filosófica de Wittgenstein se organiza em franca oposição ao espírito representado na busca por necessidades naturais. Wittgenstein quer a todo instante nos levar a ver a necessidade brotando, não dos fatos aos quais se ligam nossos conceitos, mas da própria normatividade linguística. As ficções das quais Wittgenstein se vale ajudam a fazer entender aquilo que designamos como um ponto cardinal para a compreensão da autonomia: a distinção entre filosofia e ciência. Quer quando sugere situações nas quais a regularidade natural dos fatos está ausente14, quer quando menciona a possibilidade de se servir, para os interesses filosóficos, de uma história natural fictícia, Wittgenstein está, direta ou indiretamente, advogando em favor da distinção. A autonomia funciona como freio às ambições de quem, visando encontrar justificação para os conceitos aplicados em nossa linguagem, pretende buscar fora do domínio conceitual elementos decisivos para determinação conceitual. A distinção entre filosofia e ciência é tão radical que, para propósitos filosóficos, podemos mesmo fantasiar uma natureza completamente diferente da nossa. A suposição de que linhas, gravetos, dedos e outras coisas podem aparecer e desaparecer sem razões aparentes cria uma zona de desconforto para a ciência. Esse exemplo ficcional extremo não é parte de nenhum 13 Ich will sagen: eine ganz andere Erziehung als die unsere könnte auch die Grundlage ganz anderer Begriffe sein. WITTGENSTEIN, Zettel, § 388. 14 Cf. WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 142.

Gedankenexperiment que pudesse ser igualmente empregado pela ciência. Antes, é uma imagem que, a despeito de qualquer verossimilhança, tem profundo poder esclarecedor sobre a maneira como o comportamento regular da natureza condiciona nossas práticas linguísticas as mais triviais15, isto é, como a constância de certos fatos garante o sentido (o uso) de nossos conceitos. Nada de novo se descobre por meio dos expedientes ficcionais, pois a filosofia não pretende revelar nada de novo. “Se alguém tentar estabelecer teses em filosofia, não seria possível debatê-las, pois todos estariam de acordo com elas” 16. A autonomia, explicitada nos exemplos ficcionais, mantém os filósofos focados em um problema elementar: o enfeitiçamento que nos leva a abstrair palavras e expressões dos seus usos cotidianos. A pretensão de buscar no mundo as respostas para os problemas filosóficos degenera até mesmo a compreensão do que seja um problema filosófico, na medida em que caracteriza o malentendido (Mißverständnis) que o engendra como reflexo da ausência de algo a ser descoberto, desvendado, enquanto Wittgenstein considera que as questões filosóficas não podem ser resolvidas por meio de novas informações, mas somente mediante a reorganização daquilo que há muito conhecemos17. A autonomia relaciona-se a elementos axiais do pensamento de Wittgenstein: sua própria concepção de filosofia e de problemas filosóficos. Sua extensão não pode ser dispensada sem que se arrisque danos permanentes ao que há de mais fecundo nas ideias do filósofo, sem que se comprometa toda a engenharia do seu pensamento. III Pareceria então que as coisas estão bem resolvidas, uma vez que a autonomia, entendida como preocupação contínua em proteger a filosofia do ímpeto empiricista, tem lugar privilegiado na obra de Wittgenstein. Seria assim caso algumas observações importantes não carregassem um conteúdo aparentemente conflitante à tese de que a filosofia não deveria se interessar por fatos naturais, pela natureza. Nas Investigações Filosóficas encontramos uma passagem que dá ocasião às nossas primeiras observações a esse respeito: 15 WITTGENSTEIN, Remarks on the foundations of mathematics, § 37. 16 WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 128. 17 WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 109.

“(...) Portanto, depende inteiramente da nossa gramática o que é (logicamente) dito como possível e o que não é — nomeadamente, o que ela autoriza?” — Mas isso é arbitrário! — É arbitrário? — Não é com toda formação em forma de proposição (satzartigen Bildung) que nós sabemos o que fazer, nem toda técnica tem um emprego em nossa vida, e quando em filosofia nós somos tentados a contar algumas coisas completamente inúteis como proposições, isso acontece porque frequentemente nós não consideramos sua aplicação o suficiente18.

Aqui, parece esboçado um limite para a arbitrariedade. “Nem toda técnica tem um emprego em nossa vida”, Wittgenstein escreve. No mundo onde gravetos, dedos, linhas e outras coisas aparecessem e desaparecessem sem óbvias razões, técnicas simples como a contagem perderiam o sentido, o uso. O sentido e o uso possível de certas proposições parecem depender de algo além da nossa simples decisão, extrapolam o limite do puramente arbitrário19. A linguagem não funciona no vácuo, não se organiza em regime de liberdade irrestrita. Nos textos do período intermediário estão registradas também as mais claras referências a isso que chamaremos de heteronomia, este aparente limite que se interpõe ao que parecia ser o caráter absoluto da arbitrariedade. Vejamos duas dessas ocasiões. Em Zettel, Wittgenstein comenta: “Então tem esse sistema [de cores] algo de arbitrário? Sim e não. Ele está relacionado à arbitrariedade e à não-arbitrariedade”20, no Big Typescript: “As regras da gramática são num mesmo sentido arbitrárias e não arbitrárias, como a escolha de uma unidade de medida”21. Nas Investigações, algo seguramente relacionado ao tema é dito usando a mesma imagem das unidades de medida: A linguagem é um instrumento. Seus conceitos são instrumentos. Pode-se pensar que não faz grande diferença que conceitos nós empregamos. Porquanto possamos, afinal de contas, fazer física com medidas como pé e polegada, como com metro e centímetro; a diferença é apenas uma questão de conveniência. Mas mesmo isso não é verdade, se, por exemplo, cálculos em um sistema de medida requerem mais tempo e esforço do que podemos dispender22.

Essa imagem parece-nos um bom princípio, pois ao destacar a relação entre a opção por uma unidade de medida e aspectos relativos à escolha — mais tempo ou esforço que cada 18 WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 520. 19 Compreendendo a expressão arbitrário nessa acepção ampla que admite ênfases contras as quais a heteronomia será o remédio. 20 WITTGENSTEIN, Zettel, § 358. (Entre colchetes, nosso registro) 21 WITTGENSTEIN, The Big Typescript, p. 186. 22 WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 569.

uma delas exige, a depender da circunstância — podemos indicar a relação entre arbitrariedade e não-arbitrariedade, autonomia e heteronomia. A ideia de que os conceitos da linguagem são como ferramentas também é de grande valia, pois podemos perfeitamente imaginar circunstâncias nas quais certas ferramentas são mais apropriadas que outras. Para fincar uma haste firme no solo uma marreta é preferível a um martelo, mas para fixar um prego na parede, um martelo parece mais apropriado. O mesmo com as unidades de medida: para mensurar distâncias cósmicas, o emprego do padrão ano-luz torna mais simples e operável a lida com informações que, convertidas em outras unidades, se transformariam em colossos que se deixam manipular somente a custo de tempo e esforço redobrados. A analogia que essas imagens estabelecem com conceitos quer enfatizar o fato de que a aparente “liberdade” que a noção de autonomia representa não é irrestrita, mas está condicionada a fatores que a limitam, ao tempo em que condicionam ou, por que não, determinam a significação conceitual. Entretanto, aqui, liberdade e determinação não se opõem e, segundo nosso juízo, esse consiste num dos maiores trunfos de Wittgenstein. Antes de explicar como isso se dá, vejamos, nas Investigações, o que significa dizer que há algo de determinação na relação entre fatos e conceitos. Uma coisa é descrever métodos de medição, outra coisa é obter e afirmar resultados de medição. Mas o que nós chamamos “medir” é também determinado por uma certa constância no resultado das medições23.

A adversativa que se segue à distinção é o que nos interessa, ela sugere um tom conciliador aí onde somos quase naturalmente compelidos a notar uma contradição. Uma coisa é descrever métodos de medição, outra é aplicá-los e obter resultados a partir deles, e, no entanto, mesmo que cada uma dessas etapas seja distinta, ainda sim, a mensuração, isto é, o sentido da nossa prática de medir, depende de que os resultados da sua aplicação mantenham-se constantes. Pela mesma razão que a técnica de contagem depende, como dissemos anteriormente, de que os objetos do mundo (gravetos, dedos, linhas, sementes etc.) não desapareçam sem razões claras. Pela mesma razão o sentido da prática ordinária de determinar o peso depende da estabilidade dos corpos — caso uma fatia de queijo se expandisse ou encolhesse quando disposta sobre uma balança, sem razões claras, o jogo de determinar o peso perderia o sentido. Imaginemos que entre o corte do vidraceiro e a instalação de uma peça na janela de uma casa em construção o pedaço de vidro se expandisse 23 WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 242 (grifo nosso).

arbitrariamente. Todo o jogo de medição, determinação de dimensões, travado entre o mestre de obras que encomendou a peça e o vidraceiro, responsável por confeccioná-la, teria sido arruinado. E se a instabilidade persistisse, a ruína seria definitiva, o que significa dizer que a prática de medir conforme nós conhecemos perderia o sentido — o uso. O sentido dessa determinação aponta mais um vez para o aspecto que julgamos o mais importante no esclarecimento da autonomia: o estatuto da correspondência entre fatos e conceitos. O que está aí sugerido não é uma determinação de tipo causal, mas uma determinação que reflete o vínculo lógico estabelecido entre conceitos e fatos. O nexo entre o conceito de medir e a estabilidade (regularidade) de certos fatos muito gerais da natureza. O perigo reside sempre na possibilidade de considerar a relação interna como uma espécie de determinação que não deixe espaço a outros vínculos, como se os fatos nos constrangessem a aceitar os conceitos que estão ora ligados a eles. Já é possível entrever os contornos do que designamos heteronomia (nãoarbitrariedade). E se não apresentamos previamente qualquer esboço pelo qual pudéssemos agarrá-la foi para que ficasse mais vívido, agora, um aspecto sumamente importante. Para nossos propósitos, consideramos a autonomia como um remédio contra o ímpeto a buscar justificação para os nossos conceitos. Naturalmente, a heteronomia deveria possuir o sentido inverso, ou seja, deveria consistir na admissão de que, ao menos em certo sentido, nossos conceitos são justificados pela natureza. Ora, se admitíssemos esse tipo de representação conservaríamos ainda o problema, isto é, a relação entre conceitos e fatos seria algo hipotética — lembremos o que Wittgenstein nos diz: não é no sentido de uma hipótese que ele afirma que, se os fatos mudassem, mudariam também nossos conceitos. Em todas as ocasiões que Wittgenstein admite e sublinha os, por assim dizer, limites da arbitrariedade gramatical, ele não o faz no intuito de confessar que em certo sentido nossos conceitos são justificados pela natureza. É preciso agora reiterar uma sutil mas decisiva diferença: admitir a importância de fatos para a constituição do sentido dos nossos conceitos não implica em reconhecer uma espécie de justificação entre eles. “Justificação consiste em apelar para alguma coisa independente”24, Wittgenstein enfatiza. É essa independência que está em causa na autonomia, pois ela confere à relação entre fatos e conceitos um estatuto meramente hipotético. Por meio da ênfase no caráter lógico da correspondência entre fatos e conceitos a autonomia assevera que as duas partes estão de tal modo ligadas que não há 24 WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 265.

espaço para qualquer dúvida — lembremos: se quiséssemos produzir teses em filosofia, não seria possível debatê-las, pois todos estaríamos de acordo. Ou ainda: O que nós fornecemos são na verdade observações sobre a história natural do homem; não são curiosidades, mas constatações das quais ninguém duvidou, e que escaparam à observação apenas porque estão sempre diante dos nossos olhos25.

Se carecêssemos de justificação seria como se instalássemos a dúvida lá onde ela foi excluída. Seria como se, de repente, o homem simplório que até então empregava diariamente sua balança de contrapesos passasse a refletir e mesmo duvidar da estabilidade dos corpos postos sobre ela. Não há justificação, pois não há dúvida. Não há dúvida pois nem mesmo atinamos para os aspectos que a filosofia destaca; os fatos muito gerais da natureza que, estando na base da gramática e sendo tão importante para a constituição do sentido dos nossos conceitos são, ainda assim, quase imperceptíveis. A heteronomia, portanto, não pode ser a face negativa da autonomia, não é uma concessão à ideia de que pode haver algum tipo de justificação conceitual. Ela consiste numa estratégia para deter avanços ilegítimos que podem ser alimentados pela forte ênfase na autonomia. Se o alcance dessa ideia nos leva à extrema possibilidade de poder usar uma história natural fictícia para fins terapêuticos, parece que estamos a um passo de aceitar um transcendentalismo tão nocivo à concepção de filosofia de Wittgenstein quanto o ímpeto cientificista e empirista contra a qual a autonomia se dirige. O transcendentalismo é um ramo degenerado do mesmo tronco: a correspondência entre fatos e conceitos. Enquanto, por um lado, a correspondência parece determinada por uma necessidade natural, presente nos fatos do mundo, e que avança sobre a linguagem, por outro, regras e conceitos arbitrariamente forjados aderem ao mundo, à natureza. O propósito a que se dirige a heteronomia é, como já antecipamos, balizar os efeitos da autonomia ou, de outro modo, ajudar a moldar o entendimento do que significa a correspondência entre fatos e conceitos. De certo modo o que está dito nos comentários a esse respeito é: nossos conceitos são arbitrários, mas não no sentido de que poderíamos forjá-los aleatoriamente, com independência de como seja o mundo ao qual irão se projetar (em verdade, o mundo ao qual estão indissociavelmente combinados), com independência dos fatos da nossa história natural. O mais difícil consiste sempre em fazer entender que a dependência que está aqui sugerida não ameaça a autonomia. 25 WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 415. (grifo nosso)

No final da página 230, que reconhecemos como extremamente profícua, há um trecho ilustrativo no qual se lê: Compare um conceito com um estilo de pintura: então é mesmo nosso estilo de pintura arbitrário? Podemos escolher um à vontade (Belieben)? (por exemplo, o dos egípcios) Ou trata-se aí apenas do bonito e do feio 26?

A heteronomia é o obstáculo que se ergue à frente do nosso impulso a considerar os conceitos como expressões dessa escolha irrestrita, conveniente, caprichosa — livre. Aproveitando a comparação entre conceitos e estilos de pintura diríamos que por certo um estilo de pintura não é o produto de um ambiente histórico, pois se o afirmássemos estaríamos como que negando a autonomia e atestando uma espécie de determinação causal que se nos impõe. Mas também um estilo de pintura não é algo que possamos escolher à vontade e isso se esclarece se recordarmos a referência à escolha de uma unidade de medida. Embora possamos fazer física com unidades como pés e polegadas, nos lembra Wittgenstein, não é uma simples questão de conveniência a opção por uma unidade de medida, posto que cada uma delas irá impor — ou não — um certo regime de trabalho, uma determinada duração para o desempenho de uma tarefa. A mera escolha de uma unidade de medida nos diz algo sobre o mundo (e sobre nós mesmos27), sobre os elementos aos quais será aplicada; a linguagem não é arbitrária no sentido de caprichosa, irrestrita e independente dos fatos a que está correspondida, correlacionada. Embora descrever métodos de medição seja algo distinto de obter e afirmar resultados de medição, não apenas as proposições que nos informam os resultados de medição dizem algo sobre a natureza — também a descrição dos métodos de medição nos diz algo sobre o mundo no qual a medição se aplica28. Se conceitos são como ferramentas, a escolha de um martelo nos diz algo sobre o objeto ao qual ele será aplicado. A escolha de um bisturi, sendo preterida uma faca convencional, sugere que se requer precisão, um gume sensível. Na maior parte dos casos parece um despropósito usar um bisturi na cozinha. E desse modo, a técnica de uso de uma palavra nos dá uma ideia das verdades muito gerais sobre o mundo no qual ela é usada; de verdades que são de fato tão gerais que não chamam a atenção das pessoas (e eu lamento 26 WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, II, xii, p. 230. (grifo nosso) 27 Algo estreitamente ligado a esse comentário está expresso na seguinte observação: “ O que as pessoas aceitam como justificação — mostra como elas vivem e pensam”. WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 325. 28 WITTGENSTEIN, MS 166, p. 6ss.

dizer, dos filósofos também)29.

O emprego de uma palavra, de um conceito, revela as convicções e crenças que operam para garantir seu sentido. O conceito de medir supõe a regularidade e estabilidade dos corpos, mas a relação do usuário de uma linguagem com essa verdade ou fato da natureza, como já dissemos, não é uma relação epistêmica, mas pragmática. E isso se mostra justo no fato de não notarmos tais verdades. Para notá-las é preciso fazer como Wittgenstein, sugerir ou imaginar um colapso que realce aquilo que, diante dos nossos olhos, escapava à nossa visão em função da sua simplicidade e trivialidade: os aspectos mais importantes das coisas, os verdadeiros fundamentos da nossa pesquisa30. IV Algumas questões decisivas foram se acumulando ao longo da elaboração do texto, questões agudas que tocam pontos difíceis mas essenciais ao entendimento do foco da autonomia (e heteronomia). A primeira delas é: como é possível que o reconhecimento da importância de fatos naturais conviva sem contradição junto à tenaz negativa em admitir qualquer interesse filosófico pela natureza e pelo domínio empírico? A segunda tem a seguinte forma: se a autonomia caracteriza a recusa em aceitar a coerção de fatos sobre conceitos, como é possível que, paralelamente, aceitemos que a constância dos resultados das aplicações conceituais também determine o significado dos nossos conceitos? As dificuldades inspiradas pelas duas questões, cujas respostas avançamos nas seções anteriores, apontam simultaneamente para a correspondência entre fatos e conceitos. É esse ponto também a chave para entender a complementaridade entre autonomia e heteronomia. A natureza importa porque seus fatos estão internamente ligados aos nossos conceitos, mas os fatos naturais não tornam verdadeiras, mas significativas as regras da linguagem. Na ausência de certos fatos, falta também o sentido natural que emprestaríamos a determinadas práticas. A recusa em admitir como hipótese a observação de que a mudança que poderia resultar da alteração dos fatos da natureza daria lugar a outros conceitos tem como propósito negar o caráter causal a tal consequência e indicar sua natureza (lógica). Se não nos 29 Ibidem. (grifo nosso) 30 “Die fur uns wichtigsten Aspekte der Dinge sind durch ihre Einfachheit und Alltäglichkeit verborgen. (…) Die eigentlichen Grundlagen seiner Forschung fallen dem Menschen gar nicht auf.” WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 129.

interessam quais sejam os fatos naturais correlacionados aos nossos conceitos é por que, mesmo sendo importantes, não importa identificá-los. Sua importância é relativa àquilo que concerne a heteronomia: à afirmação do nexo indissociável entre mundo e linguagem. Nada mais. A importância da natureza não nos compele a identificar os fatos naturais, pois no extrato elementar em que figuram, explicações, dúvidas e justificações não tem lugar. Recordemos: “O que nós fornecemos são na verdade observações sobre a história natural do homem; não são curiosidades, mas constatações das quais ninguém duvidou”. Os fatos naturais que compõe a moldura (Gerüst) que envolve os conceitos não estão expostos à dúvida. A imunidade à dúvida, bem como o desinteresse que a filosofia lhes endereça, diz respeito a uma mesma particularidade dos fatos, sua função. Lá onde parece imprescindível explicar e justificar, deveríamos abrir mão de tais propósitos a fim de contemplar a função que cabe aos fatos no funcionamento da linguagem. A explicação e expedientes empíricos correlatos obstruem a visão perspícua que poderia auxiliar na solução de problemas filosóficos. Wittgenstein comenta: “Nosso erro é buscar uma explicação lá onde nós deveríamos ver os fatos como ‘proto fenômenos’. Isto é, lá onde deveríamos dizer: esse jogo de linguagem é jogado”31. Assim, substitui-se uma explicação por uma descrição, conforme recomenda o próprio Wittgenstein32. Mediante descrição podemos por fim enxergar o modo como a linguagem funciona, entender o papel que cabe aos fatos naturais e, principalmente, por que Wittgenstein os designa como proto fenômenos (Urphänomene). Empregando imagens podemos ilustrar a diferença que agora importa: uma fatia de queijo disposta sobre uma balança cujo peso é determinado em 300g é um fato; um fato resultante da aplicação de jogos e técnicas de determinação de peso a partir de unidades de medida — o peso da fatia de queijo assim obtido é uma informação sobre o mundo, se quisermos, uma verdade. A estabilidade dos corpos que torna prático ou não prático (unpraktisch) um jogo como o da determinação do peso de fatias de queijo é também um fato, mas é preciso enxergar o que lhe distingue para não incorrer no erro contra o qual a autonomia nos protege. A estabilidade dos corpos, como um fato natural ao qual conceitos os mais triviais se ligam internamente, é um proto fenômeno. No primeiro caso, trata-se de uma aplicação do sentido, no segundo, de uma determinação do sentido. Os fatos que concorrem para determinação do sentido, para constituição do ambiente que torna possível colher 31 WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 654. 32 “Toda explicação deve desaparecer, e ser substituída apenas por descrição.” Cf. WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 654.

informações sobre o mundo, não estão expostos aos mesmos riscos que os fatos que eles possibilitam, por essa razão Wittgenstein os designa como proto fenômenos. Eles tem função especial, organizadora, um papel peculiar no nosso sistema de proposições empíricas e nós os empregamos sem testes e experimentos adicionais33. Todo esforço para recusar mesmos os resíduos de qualquer causalidade parece posto em questão quando se reconhece que, em certo sentido, a natureza também determina nossos conceitos. Como é possível que semelhante espécie de determinação não arruíne as observações anteriores e anule a autonomia? A determinação que insiste em aparecer nos comentários de Wittgenstein são ocasiões para defender os interesses da heteronomia, isto é, não oportunidades para militar em favor da justificação conceitual que contraria o espírito da autonomia, sua suposta antípoda, mas chances para ratificar a relação indissociável entre mundo e linguagem — para recusar o transcendentalismo frequente e equivocadamente associado à autonomia. A tensão, portanto, é ilusória. Não há um risco real, pois as posições não se contrariam, não se opõem — mas se complementam no interesse da preservação de aspectos elementares do pensamento de Wittgenstein. De um lado há uma concepção de filosofia e de problemas filosóficos ameaçada pelo propósito de empregar expedientes científicos que fariam confundir as fronteiras entre filosofia e ciência, os limites entre o objetivo e o conceitual. Do outro, o risco de tornar o remédio contra a dificuldade anterior um fator degenerante, de transformar as negativas à inclinação a buscar respostas no mundo o indicativo de um divórcio indesejado entre a linguagem e a natureza. Apesar do aparente conflito, autonomia e heteronomia operam harmonicamente, preservando, cada uma à sua maneira, pontos axiais da filosofia de Wittgenstein. Se as dificuldades que apresentamos são verdadeiras, se é persistente o pendor a procurar respostas empíricas para problemas filosóficos, então o papel da autonomia é central para a manutenção da concepção de filosofia de Wittgenstein. Ao mesmo tempo, se é real a ameaça de confundir a autonomia com uma doutrina que professa a primazia das regras e da engrenagem sintática, de tal modo que as respostas aos problemas filosóficos poderiam ser dadas de uma vez por todas e independente de toda experiência futura 34, uma vez que funcionam em separado da impureza e contingência dos conteúdos que organizam, então a heteronomia é decisiva para resguardar a singularidade e, por que não, o gênio manifesto nas respostas wittgensteinianas. 33 WITTGENSTEIN, On Certainty, § 136. 34 WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, § 92.

Articular os dois núcleos de problemas não é uma tarefa simples, pois bem poderíamos afirmar que sólidas linhas de pensamento parecem trilhar os caminhos recusados (Wittgenstein recusa simultaneamente tanto o ímpeto cientificista alvejado pela autonomia quanto o espírito transcendental refreado pela heteronomia). Mas não é possível fazer justiça ao alcance do pensamento de Wittgenstein sem o esforço de tentar entender essa articulação singular, articulação cuja aparência conflitiva apenas reaviva a dimensão da sua originalidade. É preciso compreender que a lógica da nossa linguagem só pode ser um meio transitável quando aderida ao atrito das coisas áridas e rugosas do mundo, mas que essa ligação inevitável não compromete o caráter distintivo da concepção de filosofia de Wittgenstein — não fere a autonomia da linguagem.

Referências bibliográficas WITTGENSTEIN, Ludwig. On Certainty. Nova York: Harper Torchbooks, 1972. ______. Philosophical Investigations. Oxford: Basil Blackwell, 1953. ______. Remarks on the foundations of mathematics. Oxford: Basil Blackwell, 1978. ______. The Big Typescript. Oxford: Blackwell Publishing, 2005. ______. Zettel. Berkeley: University of California Press, 1976.

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