Autonomia em Movimento. Tese de Doutorado. 2016

May 23, 2017 | Autor: Humberto Meza | Categoria: Social Movements, Political Parties, Political Science, Feminism, Nicaragua
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA

HUMBERTO MARIO MEZA

Autonomia em movimento Análise da trajetória das relações do movimento de mulheres com os partidos políticos na Nicarágua pós-revolucionária

CAMPINAS 2015

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES, 5816/10-6

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

M579a

Meza, Humberto Mario, 1976MezAutonomia em movimento : análise da trajetória das relações do movimento de mulheres com os partidos políticos na Nicarágua pósrevolucionária / Humberto Mario Meza. – Campinas, SP : [s.n.], 2015. MezOrientador: Luciana Ferreira Tatagiba. MezTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Mez1. Mulheres na política - Nicarágua. 2. Partidos políticos - Nicarágua. 3. Sandinismo. I. Tatagiba, Luciana Ferreira,1971-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Autonomy in movement Palavras-chave em inglês: Women in politics - Nicaragua Political parties - Nicaragua Sandinism Área de concentração: Ciência Política Titulação: Doutor em Ciência Política Banca examinadora: Luciana Ferreira Tatagiba [Orientador] Gisela Zaremberg Ana Mercedes Sarria Icaza Valeriano Mendes Ferreira Costa Oswaldo Martins Estanislau do Amaral Data de defesa: 23-10-2015 Programa de Pós-Graduação: Ciência Política

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFÍA E CIÊNCIAS HUMANAS

A comissão julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública, realizada em 23 de Outubro de 2015, considerou o candidato Humberto Mario Meza, aprovado:

Prof(a). Dra. Luciana Ferreira Tatagiba IFCH/UNICAMP

Prof(a). Dra. Gisela Zaremberg FLACSO – México

Prof(a). Dra. Ana Mercedes Sarria Icaza UFRGS

Prof. Dr. Valeriano Mendes Ferreira Costa IFCH/UNICAMP

Prof. Dr. Oswaldo Martins Estanislau do Amaral IFCH/UNICAMP

A ata de defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

A Thelma Meza Porque tu energía todavía sigue tan infinitamente presente

AGRADECIMENTOS O primeiro “culpado” desta aventura toda é Hugo Lorenzetti, meu amigo diplomata, quem durante os anos servindo na embaixada brasileira na Nicarágua me convenceu da ideia de realizar um estudo que pudesse compreender os fenômenos políticos que estavam acontecendo neste país centro-americano em 2007. Desde então, e ao longo dos últimos quatro anos, muitas pessoas se comprometeram com o desenvolvimento desta pesquisa para que pudesse chegar ao fim. Um deles é, sem dúvida, meu amigo Gabriel Feltran, professor da UFSCar, cuja confiança no meu trabalho como pesquisador permitiu-me chegar até a Dra. Luciana Tatagiba, quem muito rapidamente se colocou como uma parceira profissional e competente no desempenho da orientação de doutorado pelo qual sou altamente grato. Seus estímulos intelectuais e impulsos metodológicos marcam as discussões presentes nesta pesquisa. Sou igualmente grato ao meu amigo jornalista Alberto Gonçalves, porque desde minha chegada ao Brasil se colocou a disposição para me auxiliar nas questões mais básicas para um estrangeiro se situar na academia brasileira, desde apoio com a moradia até os contatos mais importantes para um conforto ao longo dos anos. Sem esse pontapé fraterno, a adaptação não teria sido tão prazerosa. Este andar pelo mundo acadêmico foi adocicado por grandes amizades que merecem um lugar destacado nesta recontagem carinhosa. Sou muito grato a Erick Busato, Lea Tsold, Anderson, Fernando, Dani, Cristina, Ricardo, Daniela, Bernardo, Luciana, Felipe, Sabrina, Rosário, Arelys, Caryl, Oscar e Angélica pela enorme solidariedade mostrada nesses anos todos e o carinho ainda presente. Sou igualmente grato à minha mãe, Glória, minhas irmãs Davyana e Gaby e minha tia Cristina, que souberam compreender a distância e perdoar as ausências impostas pela dedicação exclusiva a este doutorado, assim como as alegrias mostradas por cada reencontro suscitado a cada imersão no campo. O mesmo carinho e ajuda foi também recebido dos meus colegas de Doutorado. Sou eternamente grato ao conjunto de colegas de pesquisadores do NEPAC/IFCH, cuja marca e pensamento perpassam estas páginas. Colegas altamente competentes como Ana Claudia Teixeira, Thiago Trindade, Karin Blikstad, Carol Ferro, Kellen Gutierres, Rony Coelho e

Adriana Pismel acompanharam de perto muitas das minhas questões e souberam dividir preocupações e desafios que conduziram à conclusão deste trabalho. Preciso também agradecer a grandes pesquisadores e professores com os que interagi em diversos momentos e contribuíram em afinar todos os debates aqui presentes. Sou muito grato às professoras Millie Thayer e Sonia Alvarez da Amherst University, cujas experiências de pesquisas sobre o feminismo latino-americano e particularmente da Nicarágua foram fundamentais para a compreensão do vasto campo adotado. Tive grande sorte em compartilhar muitas semanas de debate com a Dra. Hilary Wainwright, pesquisadora sênior da University of Bradford, e de quem sou altamente grato por me fazer ver a dimensão processual da autonomia que tava testemunhando ao longo do meu trabalho. A mesma fortuna me trouxeram os encontros com as professoras Flavia Freidenberg, da Universidad de Salamanca e Gisela Zaremberg da FLACSO - México, por me introduziram no debate sobre os partidos políticos e avançar no debate relacional que caracteriza esta pesquisa. Sou também grato aos professores “de casa” por terem me auxiliado nas questões metodológicas chaves para o desenvolvimento deste trabalho. Agradeço assim à Dra. Evelina Dagnino por ter lido e debatido uma das seções que compõem este trabalho; ao Dr. Valeriano Costa por ter acompanhado uma boa parte deste processo, desde a qualificação até a defesa final com contribuições altamente instigantes relacionadas com a estrutura do texto; e ao Dr. Oswaldo Amaral por compartilhar o debate desde o campo de análise dos partidos políticos. Nada deste trabalho intelectual teria sido possível sem a aceitação e dedicação das ativistas nicaraguenses que apostaram por ele. Agradeço Sofia Montenegro, Azahalea Solís e Violeta Delgado, do Movimento Autônomo de Mulheres (MAM), Maria Teresa Blandón, do Movimento Feminsta (MF), Sandra Ramos, do Movimento María Elena Cuadra (MEC), Sara Enriquez e Haydee Castillo, ex militantes do MAM Nacional; Ana Quiroz, da Campanha 28 de Setembro; Luza Marina Torres, da Rede de Mulheres contra a Violência (RMCV); Maria Teresa Fernandez, da Coordenadora de Mulheres Rurais (CMR) e a pesquisadora Ana Criquillon pela confiança depositada no meu trabalho e toda a informação disponibilizada. Sou igualmente grato à presidenta nacional do partido Movimento de Renovação Sandinista (MRS) Ana Margarita Vijil, à ex- guerrilheira Dora María Tellez (hoje líder do partido) e o deputado Enrique Sáenz, por terem me permitido acessar à documentação partidária, assistir alguns debates internos e obter seus próprios depoimentos ao redor da experiência de relação com o movimento feministas.

E por fim, mas não por isso menos importante, sou muito grato ao Programa de Estudante Convênio de Pós-Graduação (PEC-PG) da agência CAPES, pelo apoio financeiro durante os quatro anos de doutorado. A bolsa concedida foi importante para a dedicação exclusiva ao Programa de Pós-Graduação, e para o desenvolvimento adequado desta pesquisa.

RESUMO A presente pesquisa visa investigar as relações políticas costuradas pelo movimento de mulheres da Nicarágua com os partidos políticos representativos da esquerda, após a chegada da Frente Sandinista (FSLN) ao governo nacional em 2007. Durante os anos que a FSLN se manteve fora do poder – entre o fim da revolução popular em 1990 até a volta de Daniel Ortega na Presidência do país em janeiro de 2007 – as mudanças que o partido traçou para se desempenhar como a maior oposição do país se caracterizaram, entre outros fenômenos, pela separação das “organizações de massas”. Tal distanciamento envolveu as organizações de mulheres que durante aqueles anos executaram uma diversidade de estratégias para marcar a sua “autonomia” em relação à FSLN, em particular, e face o estado e o sistema de partidos políticos em geral. No entanto, durante a campanha eleitoral de 2006 marcada por uma disputa entre as duas tendências da esquerda (a FSLN e o Movimento da Renovação Sandinista, MRS, que surgira nos anos 90s como uma dissidência da FSLN) o Movimento Autônomo de Mulheres (MAM), a maior rede feminista do país se envolveu no pleito como o aliado estratégico do MRS para enfrentar os embates que marcaram o tom da campanha ao redor do aborto, entre outras estratégias de influência. A despeito da criminalização do “aborto terapêutico” que resultou do processo eleitoral, a aliança do MAM com o MRS reinstalou uma discussão que tem sido cara para o movimento de mulheres desde o fim da revolução: a questão da autonomia face os partidos políticos. Para dar conta das características que contornam esse debate nos dias de hoje, essa pesquisa analisará os impactos da relação entre o movimento de mulheres e os partidos políticos durante o primeiro mandato de Ortega (2007 – 2011), mas com um olhar atento à trajetória do movimento para entender como essas relações foram se construindo no processo político desde o fim da ditadura. A nossa operação empírica estará caracterizada pela análise do que chamo “momentos de inflexão” que se vivenciaram entre 1990 – 2007 e como tais momentos foram redefinindo as formas de relação entre o movimento com os partidos e a questão da autonomia imbuída nelas. Em termos teóricos, desenvolveremos um diálogo com as abordagens analíticas contemporâneas que explicam a ação coletiva a partir das suas dimensões relacionais. Palavras chaves: Movimento de mulheres, partidos políticos, Nicarágua, Sandinismo

ABSTRACT This research aims to analyze the political relations constructed by Nicaragua´s Women Movements with the Leftists political parties after the return to power of the FSLN (Frente Sandinista) to the national government in 2007. During the years that the FSLN was out of power, between the end of the Sandinista Revolution in 1990 until Daniel Ortega´s return to the presidency in January of 2007, the changes that the party went through in order to function as the largest opposition group of the country were characterized by the systematic break-off of many “mass organizations”, among other phenomena. The distancing of close ties involved especially the women´s organization that during those years executed a series of strategies to gain “autonomy” in relation to the FSLN, but also towards the State and the political party system in general. However, during the 2006 presidential elections, the political campaigns where branded by a dispute between to left tending parties the FSLN and the MRS (Sandinista Renovation Movement for its Spanish initials, an FSLN dissident movement that split from the party during the 1990s), the country´s largest feminist network, the MAM (Autonomous Women’s Movement) was involved in the campaign through a strategic alliance with the MRS in order to stand against some of the political attacks that marked the campaigns tone in regards to abortion rights and other influential strategies. With respect to the criminalization of “therapeutic abortions” in Nicaragua following the electoral process that brought the FSLN back to power, the alliance between MAM and MRS brought back an issue that has plagued feminist movements in Nicaragua since the end of the Revolution: the matter of autonomy from the political parties. In order to characterize this current debate, this research will attempt to analyze the impacts of the relationship between the women`s movement and the political parties during Ortega´s second term (2007-2011), but from a perspective that takes into consideration the movements trajectory in order to understand how exactly those relations were constructed in the political process since the end of the Somoza dictatorship. Our empirical operation is characterized by what we call “moments of inflexion” that were experienced between 1990 – 2007 and how such moments redefined the ways in which the women’s movement and political parties related to one another and the question of autonomy embedded in these relations. In theoretical terms, a dialogue had to be created between contemporary analytical approaches that explain the collective actions of the movements from the perspective of their relations with the political system.

LISTA DE SIGLAS UTILIZADAS ALBA – Alianza Bolivariana para los Pueblo de nuestra América ALN – Alianza Liberal Nicaragüense AMNLAE – Asociación de Mujeres Nicaragüenses Luisa Amanda Espinoza AMPRONAC – Asociación de Mujeres ante la Problemática Nacional APN – Alianza Patriótica Nicaragüense AS – Asamblea Sandinista ATC – Asociación de Trabajadores del Campo CDM – Consejos de Desarrollo Municipal CINCO – Centro de Investigación para la Comunicación CMR – Coordinadora de Mujeres Rurales CNA – Cruzada Nacional de Alfabetización CNF – Comité Nacional Feminista CPC – Consejos del Poder Ciudadano CONPES – Consejo de Planificación Económico Social CST – Central Sandinista de Trabajadores DDHH – Derechos Humanos DN – Dirección Nacional FAO – Frente Amplio Opositor FMLN – Frente Martí de Liberación Nacional FSLN – Frente Sandinista de Liberación Nacional FUNDEMUNI – Fundación para el Desarrollo de la Mujer y Niñez GN – Guardia Nacional GPP – Tendência Guerra Popular Prolongada MAM – Movimiento Autónomo de Mujeres MAS – Movimiento al Socialismo MEC – Movimiento de Mujeres María Elena Cuadra MFN – Movimiento Feminista Nicaragüense MIFAM – Ministerio de la Familia MPU – Movimiento Pueblo Unido MRS – Movimiento de Renovación Sandinista

MVR – Movimiento V República OEA – Organización de Estados Americanos PCN – Partido Conservador Nicaragüense PIE – Partido de la Izquierda Erótica PLI – Partido Liberal Independiente PLC – Partido Liberal Constitucionalista PS – Partido Socialista PT – Partido dos Trabalhadores RDEM – Red de Derechos Económicos de las Mujeres RE – Red de Educación no Sexista RMCV – Red de Mujeres Contra la Violencia RMN – Red de Mujeres del Norte RS – Red Salud TP – Tendencia Proletaria TT – Tendência tercerista UCD – Unión Ciudadana por la Democracia UED – Unidas en la Diversidad UNO- Unión Nacional Opositora

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 15 1.

Caracterização geral da pesquisa e argumentos centrais........................................................... 23

2.

Caracterização da metodologia de pesquisa e os seus desafios ................................................ 30 a.

Processo histórico e mecanismos causais como método de análise..................................... 30

b.

O valor e o desafio da trajetória dos atores como ferramenta analítica .............................. 36

c.

Critérios de seleção e o nosso encontro com o campo ......................................................... 39

3.

Caracterização da pesquisa de campo ....................................................................................... 43

4.

Caracterização das atoras .......................................................................................................... 47

5.

Estrutura da tese ........................................................................................................................ 52

Cap. 1. Movimento de mulheres da Nicarágua e as relações políticas em contexto ...................... 55 1.1.

De volta ao poder: O retorno da FSLN ao Executivo e as alterações das relações políticas 57

a.

“O aborto é feio” .................................................................................................................. 58

b.

A posse de Ortega e os primeiros anos de tensão política ................................................... 64

1.2.

Ocupando o partido político para o ativismo movimentalista............................................... 70

1.2.1.

Da criação do MAM: Estrutura e Estratégia como base para a aliança com o partido ………………………………………………………………………………………………………………………………...73

1.2.2.

Da aliança “entre pares”, o repertório organizacional e a questão da autonomia..... 80

1.2.3. Alterando as estruturas internas: O caso da “Rede de Mulheres do MRS” e das fraturas do MAM........................................................................................................................... 82 1.2.4.

Estimulando novos arranjos organizativos: O caso da UCD ....................................... 89

1.3. Impactando o estado: O terceiro ator na roda ............................................................................ 92 1.4. O caráter polissêmico da Autonomia ....................................................................................... 100 Cap. 2. Ganhos e desafios da abordagem relacional: Autonomia e identidade como categorias chave do movimento de mulheres .................................................................................................... 107 2.1. Desafios da abordagem relacional: A recolocação de “autonomia” e “identidade coletiva” como categorias chave .................................................................................................................... 112 2.1.1. Do conceito de sociedade civil às abordagens interacionais ........................................... 112 2.1.2. A recolocação de duas categorias chaves: Autonomia e Identidade ................................ 117 2.2. A relação na literatura de partidos políticos: Descobrindo a sub-cultura partidária ................ 128 2.3. Autonomia e identidade: Duas categorias centrais na literatura feminista .............................. 134 2.3.1. A formação da identidade como um processo contencioso .............................................. 139 Cap. 3. As mulheres na revolução: De guerrilheiras às “ativistas autônomas” .......................... 145 3.1. Da formação da FSLN e as mulheres na luta da insurreição popular contra Somoza ............. 149 3.2. Do nascimento de AMPRONAC e os primeiro conflitos de classe ......................................... 155

3.3. AMNLAE vs Sindicatos. Espraiando um feminismo fora dos contornos da rede única ......... 160 3.4. Das maiores tensões com a FSLN e “aventura” do PIE........................................................... 165 Cap. 4. Gênero e Neoliberalismo. O momento da incisão vital e o sandinismo fraturado ......... 171 4.1. Das primeiras redes até os conflitos no CNF ........................................................................... 176 4.2. O fim da convivência: FSLN fraturado e o nascimento do MRS ............................................ 181 4.3. ¿Qué tenemos que ver nosotras con eso? O caso Zoilámerica como um divisor de águas ..... 185 Cap. 5. Detectando a zona de intersecção: Proposta de um modelo analítico ............................. 189 5.1. As interseções na trajetória: os encontros constantes entre partido e movimento ................... 193 5.2. Colocando em pé o modelo analítico da zona de intersecção .................................................. 195 5.3. Algumas considerações analíticas............................................................................................ 200 Conclusões Preliminares .................................................................................................................. 203 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ............................................................................................ 209 ANEXO 1. .......................................................................................................................................... 217 ANEXO 2. .......................................................................................................................................... 219 ANEXO 3. .......................................................................................................................................... 221

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“Hubo un debate bárbaro sobre qué es el movimiento social y qué es el partido político, y qué implicaciones iba a tener el juntarnos en esa alianza con el MRS. Para mí, ese debate tenía que ver con el estado de las apuestas estratégicas y políticas del feminismo en Nicaragua. Sin embargo, para nosotras era algo más trascendente, no eran cosas coyunturales (…) y ahí surgen bastantes contradicciones porque sentíamos que muchas de nosotras ya habíamos logrado tomar suficiente distancia para tener un criterio independiente. Es que distanciarse del FSLN no ha sido fácil para nadie. Para mí fue como un parto de alto riesgo obstétrico, fue un dolor salvaje. Yo vomité el día que Zoilamérica tuvo que hacer pública su acusación [contra Daniel Ortega por violación] (…) y ahora, que durante los últimos años, el orteguismo haya hecho lo que hizo para desarticular al MRS, en vez de humillarnos, nos da el indicador de crudeza de lo que es capaz el sistema montado. Eso no niega que nosotras probablemente no estuviéramos bien preparadas, porque estamos en nivel exploratorio. No sabemos qué hubiera pasado si el MRS hubiera llegado al poder, casi avizoro que hubiéramos tenido que volvernos a separar, pero claro, siempre estamos viviendo con esa tensión” 1.

INTRODUÇÃO

A primeira imagem que tenho da revolução sandinista é minha avó batendo panelas nas ruas do meu bairro de infância. Durante vários dias por semana ela, junto com algumas vizinhas, começava o dia fazendo um barulho metálico com tampas de panelas e copos de ferro, mas não em forma de protesto contra a ditadura, e sim em comemoração e boas-vindas aos jovens que poucos meses antes tinham se engajado na luta da guerrilha para derrubar a ditadura de Anastácio Somoza. Nascida num pequeno povoado rural no ocidente do país e sem nunca poder terminar a escola fundamental, minha avó fez de tudo para que eu, com apenas quatro anos de idade, entendesse o que tava acontecendo. Talvez por isso aproveitasse uma recente reforma na casa materna onde cresci para gravar no cimento fresco a histórica data que estava se forjando de maneira épica pelos jovens das nossas cidades: 19 de julho de 1979. Apesar de que ninguém da família se envolveu na luta armada dos anos 70 contra a ditadura, cresci entendendo, aos poucos, os sentidos coletivos daqueles tempos. Um ano depois de ver os jovens desfilarem pela minha rua com rostos de triunfo, após meses de intensa luta armada e anos de repressão brutal, vi minha mãe partir junto a 60 mil jovens, docentes e profissionais de diversas áreas, (CARDENAL, 2012) em direção de povoados rurais para alfabetizar 2 1

Haydee Castillo, líder feminista da organização FUNDEMUNI, da região das Segovias, 226 kms ao norte de Manágua, próximo à fronteira com Honduras 2 A Cruzada Nacional de Alfabetização (CNA) foi a primeira grande empreitada que o governo sandinista implementou nos primeiros meses do período revolucionário. Superada a luta armada, a nova administração organizou jovens estudantes, professores da rede pública e diversos profissionais em brigadas e esquadras “de luta contra a ignorância”, com o objetivo de alfabetizar famílias rurais e de diversos setores populares. A CNA

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camponeses e moradores de vilas empobrecidas herdadas por 43 anos de ditadura somozista. À minha mãe, seguiu minha tia mais velha, que desde 1985 assumiu a responsabilidade da Associação Nacional de Docentes onde militava, de fundar escolas de ensino básico em vários municípios do centro e sudeste do país. Aqueles anelos coletivos não são os únicos protagonistas das minhas memórias de infância. Cursava a quinta série na escola, quando tive consciência de uma iminente invasão militar promovida pelos Estados Unidos. Naqueles anos, Washington, sob a administração de Ronald Reagan (1980 – 1989) já tinha incorporado à Nicarágua na sua escalada de luta contra os projetos socialistas na América Latina, inscrita nos confrontos internacionais da guerra fria. Era comum parar as aulas da nossa escola ao rufar do pássaro negro, o famoso avião espião americano que todos os dias rompia a barreira do som, ameaçando com uma possível – e em ocasiões esperada – incursão militar. Depois da mãe e tia, os próximos parentes a viajarem ao interior da Nicarágua foram meus primos e tios, todos às frentes de guerra consolidados no país a partir de 1984. Desde os primeiros anos após o triunfo revolucionário, o governo sandinista começava a enfrentar a ameaça armada que representava “os contras”, um grupo de insurgência, principalmente rural que manteve o confronto armado contra a FSLN, graças ao impulso financeiro de Washington. Os contras foi uma aglutinação de mais de quatro frentes de guerrilha que restaram da antiga Guarda Nacional (o braço repressivo da ditadura somozista), integrada inicialmente por entre 8,000 – 10,000 militantes, mas que foi aumentando assim que a condução do governo sandinista criava novos conflitos. O triunfo eleitoral da FSLN em 1984 (as primeiras eleições após a derrubada da ditadura), associado ao descontentamento de setores rurais e indígenas que tiveram muitas expectativas frustradas, incrementou a intervenção de Washington que conseguiu duplicar o número de militantes listados na contrarrevolução. Já em 1987 todas as tendências dos contras se unificaram e conseguiram reunir até 22,000 integrantes. Diante desse cenário, o recrutamento de jovens, a maioria dos casos menores de 20 anos – como meus primos – para as frentes de guerra era uma atividade obrigatória. A sociedade ganhou em 1981 a distinção Nadezhda Krúpskaya, outorgada pela UNESCO e o reconhecimento direto do educador Paulo Freire, por ter reduzido o analfabetismo de 54% a 13%. A convivência de jovens das elites urbanas com famílias rurais instaurou uma nova onda de relações de solidariedade nacional, mas também foi o primeiro experimento dos conflitos armados entre o estado sandinista e “la contra”. O balanço final foi de 56 mortos, dos quais sete assassinados pelos primeiros grupos dos contra- revolução (CARDENAL, 2012: 366 367). O conflito entre o estado revolucionário e la contra será relatado mais à frente.

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nicaraguense viveu nos anos 80 sob um conflito civil pós-ditadura, que acabou com a vida de 30 mil 864 pessoas, somadas aos 50 mil assassinados durante a insurreição e luta contra a ditadura somozista (WALKER, 1997). Mas a experiência do conflito civil daqueles anos não era uma exclusividade da Nicarágua. El Salvador estava administrado por um estado altamente repressor, sob a justificativa de exterminar a guerrilheira Frente Farabundo Martí de Libertação (FMLN), enquanto a Guatemala sofria a repressão de um estado militar que perseguiu, torturou e massacrou principalmente populações indígenas, com o argumento de serem aliados da guerrilha, deixando um legado de 200 mil mortos e mais de um milhão de pessoas deslocadas. Tantos atritos simultâneos deram impulso para o presidente da Costa Rica, Oscar Arias (ao tomar posse em 1986) convocar os presidentes dos três países para iniciar um processo de negociação regional que acabasse com os conflitos domésticos, principalmente na Nicarágua, face à ameaça de uma intervenção militar dos Estados Unidos. O pontapé inicial foi dado em agosto de 1987 na Guatemala, quando todos os mandatários subscreveram o acordo de Esquipulas II que constituiu o maior pacto de entendimento regional que a América Central experimentara na segunda metade do século XX 3. A partir das negociações regionais, reforçadas com uma declaração nacional de cessar-fogo com a contrarrevolução, o governo da FSLN convocou novas eleições presidenciais em fevereiro de 1990, nas quais foi estrondosamente derrotado por uma coalizão de partidos de oposição liderada por Violeta Chamorro (1990 – 1996). Assim, a minha adolescência iniciou com uma sensação de perda absoluta. Primos, mãe e tia retornaram a casa experimentando a amarga percepção de que todos os anseios por uma coletividade justa foram abruptamente frustrados em menos de 24 horas por causa de um conflito insustentável. O fim do período revolucionário teve impactos individuais –e evidentemente sociais – altamente sensíveis. Para a maioria dos sandinistas, principalmente os engajados nos mais variados coletivos promovidos pela FSLN, implicou a perda de vínculos que ancorava sua própria humanidade aos objetivos de vida social. Minha tia, por exemplo, resolveu abandonar mais de 20 anos de carreira docente para assumir empregos de pequeno porte em empresas privadas à beira da falência. Para os mais críticos à revolução (como boa parte da minha 3

O Acordo de Esquipulas orientou um novo tipo de relações políticas na região, e em termos concretos determinou o fim de apoio externo a grupos armados (em clara alusão ao apoio de Washington aos contras da Nicarágua) a eliminação de projetos domésticos de instabilidade e o chamamento a novas eleições nos três países.

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família também) foi o motivo de grande felicidade pelo convencimento de que finalmente viveríamos numa democracia plena que lhe rendessem melhores oportunidades de vida. A minha experiência familiar está longe de ser emblemática das diversas transformações políticas que a Nicarágua viveu ao longo de mais de duas décadas, mas pode ser altamente sintomática de como estas mudanças impactaram nas relações mais próximas entre todas as pessoas. Uma clara evidência de um país altamente polarizado. A perda da revolução teve também consequências para o modelo de sociedade que começara a ser construído nos anos 90. O governo administrado por Chamorro conjugava os desejos por um novo entendimento e reconciliação (após mais de dez anos de conflito) via canais democráticos com um retrocesso em direitos sociais representado na extinção de redes públicas de bem-estar que garantiam acesso pleno a saúde e educação. As carências sociais cresceram durante os três governos pós-revolucionários. A prioridade que a administração Chamorro conferiu à estabilidade macroeconômica – sacrificada em nome da guerra dos anos 80 – encolheu os investimentos públicos e contraiu o estado, ao expulsar 300 mil servidores públicos dos postos de trabalho, praticamente 25% da burocracia estatal (Bab, 2012). Tal cenário se manteve com as renovações dos contratos de empréstimos e fluxos de capital com o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), ao longo das duas administrações liberais posteriores (Arnoldo Aleman, 1997 – 2001 e Enrique Bolaños, 2002 – 2006). Isso tudo contribuiu com a desmontagem, alta dispersão e duplicação de programas sociais que deixaram os índices de pobreza em 48,3% em 2005, e de pobreza extrema (fundamentalmente rural) em 17,2% (Spalding, 2012). Talvez seja por isso que quando a FSLN ganhou as eleições presidenciais de 2006 e Daniel Ortega tomou novamente posse como Presidente da Nicarágua em janeiro de 2007, as expectativas por políticas redistributivas e justiça sociais tenham dominado as pautas dos movimentos populares durante os primeiros seis meses do governo sandinista, mas essas demandas enfrentaram o dilema de conviver com as tensões e embates políticos que caracterizaram boa parte das reformas do sistema participativo executadas por Ortega durante os primeiros 180 dias de governo. É no lastro dessas mudanças e seus impactos políticos onde nossa pesquisa está inscrita. A partir desta tese queremos dialogar com as transformações que vieram após o retorno da FSLN ao poder da Nicarágua no período 2007 – 2011, cujas mudanças estão caracterizadas por um novo tipo de relações políticas entre movimentos sociais – estado – partidos políticos.

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Nesse sentido, queremos concretamente analisar as relações que o movimento nicaraguense de mulheres experimentou com o sistema de partidos políticos no bojo do mandato de Ortega, mais particularmente a aliança que uma das redes do movimento, o Movimento Autônomo de Mulheres (MAM), começou executar com o Movimento de Renovação Sandinista (MRS), partido que surgira na esteira da crise que sofreu a FSLN na primeira metade dos anos 90s, como consequência da derrota eleitoral de fevereiro 1990. Por que a questão dos movimentos sociais surge como inquietação acadêmica nesse contexto específico? A retomada do poder por parte da FSLN em 2006 suscitou perguntas sobre a relação que o novo governo instauraria com os movimentos sociais, particularmente as organizações de massas com as quais o partido tinha construído um vínculo de controle e coordenação no contexto do primeiro governo sandinista dos anos 80. Com a derrota eleitoral de 1990 esse vínculo foi, no mínimo, se enfraquecendo em nome das exigências impostas pela transição democrática. Afastado do Poder Executivo, a FSLN devia consolidar suas estratégias partidárias de oposição e aprender a conquistar a Presidência pela via eleitoral, enquanto os movimentos e as organizações de massas deviam garantir a própria subsistência sem o “paternalismo sandinista” de outrora. Em março de 2008, a organização de cooperação internacional pela qual eu trabalhava 4 promoveu um debate com líderes de sindicatos e cooperativas rurais da Nicarágua para abordar essa questão. Na ocasião, Sinforiano Cáceres, líder de uma das maiores federações nacionais de cooperativas sintetizou o momento como de “emancipação dos movimentos sociais nicaraguenses”. Na sua metáfora, “os filhos” cresceram e já adultos voltam se reencontrar com o pai quando este alcança o poder em 2006, mas sendo todos (movimentos e organizações de massas) suficientemente adultos e, portanto, capazes de exercer uma relação com autonomia, entendida como a faculdade de formularem suas próprias pautas na relação com o estado. Uma diferença significativa em relação à experiência anterior, onde a FSLN definia a agenda organizativa. Tratava-se de mostrar, então, que tipo de tecido social foi se construído ao longo dos 16 anos (Prado, 2007), período em que “pai e filhos” andaram caminhos diferentes desde o fim da revolução. Por que o movimento de mulheres? As primeiras tensões que caracterizaram o governo de Ortega desde os primeiros meses de 2007 foram marcadas pelos embates com as 4

Oxfam International, uma rede de organizações europeias e norte-americanas que financiam organizações latino-americanas e redes de ativistas.

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organizações de mulheres, particularmente as feministas. Mas estes atritos não surgiram no contexto do novo governo sandinista. De fato eles remetem às tensões que as feministas – todas militantes da FSLN – foram vivenciando ao longo dos anos 90, mais concretamente a partir da crise que o sandinismo viveu caracterizada na disputa interna que originou o MRS. Uma série de eventos que analisaremos ao longo desta tese, foram aumentando o controle absoluto de Ortega sobre o partido, ao tempo que afastaram as feministas das decisões partidárias. O ápice desta ruptura se deu em 1998, quando Ortega foi acusado de estupro pela enteada, Zoilamérica Narvaez, e se consolidou quando o MAM resolveu se aliar oficialmente ao MRS na esteira da campanha eleitoral de 2006 que permitiu a volta da FSLN ao poder. Vale só considerar que a relação dos movimentos sociais e organizações de massas com os partidos sandinistas não é uma experiência inédita na trajetória política nicaraguense. Pelo contrario, o próprio surgimento do sandinismo como movimento guerrilheiro nos anos 60 – no contexto de luta contra a ditadura somozista – deu impulso para o ativismo de diversos tipos de organizações, incluindo as mulheres. O que distinguiu a relação do MAM com o MRS em 2006 foi o fato da aliança se constituir sobre um acordo escrito, estipulando funções claras para partido e movimento numa espécie de contrato que mereceu inclusive reconhecimento notarial. Dessa forma, a aliança MAM- MRS instaurou um tenso debate (e também rupturas) no interior do movimento feminista em torno da autonomia, ao mesmo tempo em que deu o estímulo para uma rica discussão sobre interações, fronteiras e arranjos organizativos que sugiram desta relação. Resulta então compreensível que o movimento de mulheres da Nicarágua tenha sido objeto de diversos estudos, particularmente no tocante à participação que tiveram primeiro na revolução popular, e anos depois, no processo de transição democrática 5 segundo constatado por Chinchilla (1994): The case of Nicaragua is important to a discussion of women and democratic transitions because of the unique type of democratic transitions that Nicaragua has undergone and the 5

As produções bibliográficas que tratam sobre a participação das mulheres nicaraguenses ao longo do processo político aqui mencionado são inúmeras, mas para efeitos de consulta, podemos listar aquelas obras mais representativas que usamos para esta pesquisa. Para entender o engajamento revolucionário desde a guerrilha até o próprio estado revolucionário dos anos 80 recomendamos Marega (1982), Randall (1986), Murguialday (1990), Chinchilla (1994), Molyneaux (2001) e Zimmermann (2006). Para entender a relação do movimento de mulheres com o cenário pós- revolução podemos revisar Jaquette (1994), Kampwirth (1998), Montenegro (1997), Luciak (2001) e Bab (2012). E finalmente para conhecer das análises que falam sobre as mulheres e a volta de Ortega ao poder recomendamos Kampwirth (2008), Chaguaceda (2011) e Kampwirth (2012). Para a trajetória do movimento em geral podemos ler Palazon (2007) Cuadra e Jimenez (2010) e novamente Montenegro et all (1997)

21 unprecedented role women have played in them. An examination of this case allows us to explore important issues in the relationship between feminism, political parties, revolution and democracy (1994: p. 178)

Por que fiz disto um investimento pessoal de pesquisa? Meu estímulo não surgiu do mundo acadêmico, e sim do cruzamento de experiências pessoais com o campo de atuação profissional onde estive antes do doutorado. Vivi a revolução sandinista desde minha infância e ela terminou quando entrei na adolescência. A vida adulta foi marcada por uma série de perdas de referenciais políticos, da ausência de projetos em comum e da carência dos anelos coletivos que caracterizou a juventude dos anos 70s, oferecendo um impulso na derrubada da ditadura somozista. Já em 2006 iniciei minha atuação dentro da Oxfam na Nicarágua, como coordenador de um projeto de cooperação em Advocacy para movimentos sociais, incluindo parcerias com movimento de mulheres e ONGs locais. O objetivo era auxiliá-las no desenvolvimento de estratégias de influência nas políticas públicas em interação com o estado. Mas em 2007 os parceiros começaram a experimentar dificuldades em influenciar o estado por causa do controle que a FSLN começava exercer na implementação das políticas públicas, demandando-nos maiores reflexões sobre as interações políticas que estávamos começando a experimentar no país. É claro que centrar esse debate no movimento de mulheres, sendo eu homem que não tem uma atuação reconhecida no campo feminista, acarretou alguns desafios no processo de pesquisa de campo. Em janeiro de 2014, por exemplo, quando já estava por encerrar minha ultima imersão no campo, fiquei sabendo que todas as organizações de mulheres do país iriam realizar uma assembleia de três dias com a intenção de formular estratégias conjuntas para enfrentar as emendas que o Executivo fez, via Decreto de Regulamentação à Lei 779 (lei que criminaliza os femicídios e a violência contra as mulheres) 6. Uma das pautas desta assembleia era avaliar os impactos da aliança com o MRS e até que ponto essa aliança conduziu para relações do movimento feminista com os partidos liberais, da direita elitista e

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O Poder Executivo não conseguiu os votos no Congresso para reformar a lei, de modo que Ortega aproveitou a faculdade de regulamentação que tem para modificar alguns trechos da lei via decreto de regulamentação, o que provocou fortes protestos das feministas. Concretamente o decreto de regulamentação só considera feminicídios quando a mulher é assassinada por seu par sentimental, excluindo as diversas formas de violência que a própria lei estipula. Segundo as feministas, com isso o estado pretende alterar os indicadores de “redução” dos feminicídios no país. Como veremos mais adiante, a própria aprovação da lei radicalizou o país por completo ao longo de 2012 - 2013

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como ela poderia contribuir para enfrentar os retrocessos da resposta oficial aos casos de violência contra as mulheres. Consegui negociar com a cúpula do MAM para assistir à assembleia, mas uma semana antes do evento reprovaram minha participação por ser homem (já tinham enfrentado um intenso debate interno depois que uma das ONGs locais de mulheres convidou duas transexuais ao encontro). Contudo, reafirmando a confiança em mim como pesquisador, me facultaram amplo acesso aos relatórios finais e abertura para a realização de entrevistas. Ainda que este episódio não tenha comprometido os resultados da pesquisa, ele é emblemático dos dilemas essencialistas que enfrenta o feminismo nicaraguense. É compreensível ainda existirem receios não apenas por causa do machismo capilarizado nas relações sociais mais próximas que naturaliza a violência contra as mulheres, mas também pelo fato de que as reivindicações feministas terem sido vistas como fatores de distração das questões “mais urgentes”, como a “união da classe oprimida” que a revolução sandinista privilegiava sobre qualquer outra demanda 7. Talvez seja por isso que questões como a relação das feministas com os atores políticos mais tradicionais (vide partidos, e mais ainda os representantes da direita mais elitista) causam fortes embates internos e, em muitos casos, fragmentações que alteram constantemente o arranjo organizativo do feminismo nicaraguense. Por essa razão esta tese não pode dispensar a análise sobre a trajetória destas “atoras” e do histórico político nacional 8 para a compreensão de um contexto histórico específico. Interessa-nos explicar o sentido da relação que o movimento de mulheres (particularmente as feministas) costurou com o sistema de partidos políticos, a partir da aliança MAM-MRS no contexto do primeiro mandato de Ortega (2007 – 2011) pós – governos liberais. A importância de recuperar o histórico se justifica porque consideramos que a relação construída resulta de um conhecimento prévio entre atores (partido e movimento já se conhecem, existe uma confiança construída e em nome dela se aliam). Mas essa aliança, uma

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Durante a pesquisa de campo conseguimos entender os conflitos que as feministas enfrentavam nos anos 80s dentro das organizações de massas (particularmente sindicatos) onde elas militavam. Essa questão será abordada mais pra frente quando analisemos a interação das mulheres com o processo revolucionário de 1980 – 1990 8 Ao longo deste texto utilizaremos o termo de “atoras” para substituir o de “atrizes” ao nos referirmos às militantes do movimento. Essa substituição foi uma sugestão da Dra. Sonia Alvarez (Amherst University) durante a banca de qualificação, com a intenção de marcar o caráter político das ativistas, distante do referencial artístico do termo “atriz”.

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vez constituída, recoloca em jogo um tema central para as ativistas: a autonomia do movimento pensada a partir da relação com os partidos políticos. Trata-se de uma questão da prática política com profundas implicações teóricas. Os sentidos e dilemas envolvidos no debate sobre a autonomia dos movimentos na relação com os partidos constitui o cerne desta tese. Nossa questão central de pesquisa gira em torno de entender quais são os sentidos da autonomia com os quais o movimento feminista opera ao se relacionar com os sistemas de partidos políticos na Nicarágua contemporânea. Para elaborar esse diagnóstico, analisaremos a categoria da autonomia desde sua dimensão histórica (construída ao longo do tempo), assim como desde suas caracterizações estratégicas (como ela opera para a relação) e de identidade (distinguindo as atoras movimentalistas). Nas páginas a seguir explicaremos melhor essas nossas apostas, os argumentos (empíricos e teóricos) que lhe servem de sustentação, o percurso metodológico escolhido na tentativa de dar conta do nosso interesse de pesquisa e qual a natureza do contexto onde realizamos nossa pesquisa de campo. Em síntese, trata-se de fazer agora uma caracterização mais geral da pesquisa que confira sentido à estrutura e à narrativa do texto e explicite onde queremos chegar. 1. Caracterização geral da pesquisa e argumentos centrais

Esta tese trata da relação entre o movimento de mulheres da Nicarágua e o sistema de partidos políticos, a partir da aliança que um setor do movimento feminista (o MAM) costurou com o partido político MRS, na esteira das eleições presidenciais de 2006. O MRS é um partido que surgira da crise organizativa do sandinismo entre 1994 – 1995, causada pela disputa interna da FSLN após a derrota eleitoral de 1990 que marcou o fim do período revolucionário. Nosso objetivo central é compreender a reconfiguração da autonomia no contexto destas interações entre movimentos sociais e partidos. Embora a aliança MAM – MRS fosse subscrita para operar em tempo de campanha eleitoral, o acordo responde a anos de debate e reacomodo organizativo que o movimento feminista sofreu entre 1997 – 2005. Finalizando os anos 90, o feminismo nicaraguense viu fracassar seu empenho por criar uma rede única que abrangesse todas as expressões feministas, conduzindo a um amplo debate nacional entre todas as organizações que, entre 2002 – 2004, resolveram

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criar uma nova estrutura que erradicasse a filiação compulsória e a representação por entidades dentro da rede. Essa nova estrutura estaria integrada por ativistas feministas, desde sua condição individual (para evitar a interferência de interesses de organização dentro da rede), mas a partir de uma compreensão unificada sobre a conjuntura política que orientasse as estratégias do movimento para contribuir com o fortalecimento democrático. Assim, durante dois anos contínuos, as feministas instauraram mesas de diálogo e muita reflexão interna que conduziu para a determinação de que toda contribuição com o fortalecimento democrático passaria por influenciarem no sistema de partidos políticos, aproveitando a iminente cojuntura eleitoral de 2006 e as possibilidades de aliança com um dos partidos mais representativos da esquerda nacional, MRS. Como uma das ativistas confirmou para nossa pesquisa de campo, tratava-se por apostar numa aliança conjuntural, mas sob a orientação estratégica que transbordasse a própria aliança. Isto é, montar no cavalo do MRS para entrar nas instituições do sistema político e transformar os partidos e o estado, em termos de gênero, políticas de igualdade e justiça social. O acordo foi assinado dois meses antes do início da campanha eleitoral de 2006, com reconhecimento notarial e durante um ato público em que participou o próprio candidato presidencial pelo MRS, Herty Lewites. O documento da aliança está composto por cinco cláusulas que estabelecem funções para o movimento, sintetizadas em fiscalizar o partido no período de campanha e assessorar os deputados eleitos, enquanto para o partido as exigências resumiram-se em incorporar em transformar cinco demandas do movimento em políticas públicas, caso fosse obter o poder num eventual triunfo. Como veremos mais à frente nesta tese, a condução desse acordo trouxe à tona enormes tensões e alteração estrutural para o movimento e o partido, sem contar que a derrota eleitoral do MRS conduziu para uma modificação da aliança, sem anulá-la. Isso, é claro, nos demanda um olhar para as dimensões estruturais dos atores, mas também de onde provêm e, por tanto, sua respectiva trajetória temporal. Nossa análise de pesquisa está determinada pelo recorte temporal de 2007 – 2011, cujo período corresponde ao primeiro mandato de Daniel Ortega, da FSLN. Como já dito, para compreender este período resgata-se a trajetória do movimento e sua interação com o próprio processo político nacional. Pretende-

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se analisar o percurso das relações do movimento com o sandinismo desde a segunda metade dos anos de 1970, quando se fortaleceu a insurreição guerrilheira que conseguiu a derrocada da ditadura, até a primeira metade dos anos 2000, caracterizados por um aprofundamento do modelo neoliberal da administração pública. Cabe esclarecer que não se trata de abordar inteiramente o histórico dos trinta anos do movimento de mulheres nem a trajetória de formação do feminismo no país, mas de explicar as características – e implicações de – ao menos quatro momentos de inflexão do processo político para as relações que o movimento foi experimentando com os partidos, particularmente os sandinistas (FSLN e MRS). Estamos recorrendo à análise do processo histórico porque nesse processo reside uma boa parte das explicações sobre as estratégias de alianças e transações que o movimento executa nos dias de hoje. Todavia, partimos da compreensão de que essa relação não apenas inscreve-se no histórico dos atores, ela tem uma funcionalidade no contexto sob análise. O movimento de mulheres se alia aos partidos para enfrentar os embates que surgem desde o estado, desde que a FSLN alcançou o triunfo eleitoral usando como bandeira a criminalização do aborto terapêutico, a partir de uma inusitada aliança com a hierarquia da Igreja Católica, durante a campanha eleitoral de 2006. Esta tese defende três argumentos centrais. O primeiro argumento é que a aliança entre movimento de mulheres com o partido é mais uma forma de ativismo que o movimento operacionaliza na atual conjuntura política. Essa afirmação parece ser óbvia, mas tal obviedade dilui-se ao analisar os modelos analíticos que por anos guiaram as explicações dos movimentos sociais como atores externos às instituições políticas, compreensões altamente influenciadas pela Teoria dos Novos Movimentos Sociais (DALTON e KUECHLER, 1990; TARROW, 1990) e pela elaboração fixa e pré-fabricada da autonomia destes atores, como uma categoria dada externamente (HELLMAN, 1992; GOLDSTONE, 2003). O que exatamente significa entender a interação com o partido desde a chave do ativismo? Primeiro, que essa relação é uma estratégia movimentalista que visa alcançar mudanças tanto no interior do estado como, naturalmente, dos próprios partidos. Assim, os ativistas chegam a executar ações multi-localizadas, isto é, nos lugares institucionais a partir de recursos que introduzem no judiciário, influenciando no Legislativo ou mesmo ocupando espaços na burocracia do estado; ao mesmo tempo em que continuam executando estratégias contenciosas expressadas em bloqueios de vias públicas, interrupções do trânsito em estradas,

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ocupações de edifícios públicos, e mais recentemente, em uma espécie de “ciber-ativismo”, nas redes sociais ou via “abaixo assinados” em plataformas virtuais. No tocante aos partidos políticos esse ativismo seria observado simultaneamente em dois lugares inexoravelmente vinculados: Ativismo com os partidos políticos e ativismo dentro dos partidos. Se tais formas de ativismo acontecem de forma simultânea e estão atreladas, qual é, então, a distinção entre elas? Talvez possamos captar sua distinção se observamos como elas operam na prática: Poderíamos considerar que se trata de um ativismo com os partidos quando as relações se caracterizam pela colaboração, seja no recrutamento de base eleitoral ao certificar apoio aos partidos em momentos de campanha, ou bem através de funções de assessorias a deputados eleitos. Essa colaboração existiria igualmente na formulação conjunta de planos de ações, pronunciamentos públicos e assinatura conjunta de posicionamentos políticos. Durante a campanha de 2006 na Nicarágua, por exemplo, o movimento de mulheres praticou parte desse repertório ativista, depois que o MRS foi, na época, o único partido em campanha que rejeitou as reformas que criminalizaram o aborto terapêutico. Isso facilitou que ambos os atores elaborassem estratégias e posicionamento conjuntos, ao mesmo tempo em que a questão do aborto dominou a campanha dos outros partidos (incluindo a FSLN), que atacavam particularmente a aliança MAM-MRS 9. Já o ativismo dentro dos partidos tem caracterizações e contornos claramente distintos. Ele é organizacionalmente localizado no interior das estruturas partidárias e se materializa em planos de formação que os ativistas direcionam para militantes e lideranças dos partidos em questões vinculados com a agenda do movimento, ou em ações que visem alterar as próprias estruturas partidárias (criação de novas “burocracias partidárias” como secretarias ou conselhos internos, por exemplo). A aliança entre MAM e MRS (como analisaremos no Capítulo 1 desta tese) gerou, entre outras consequências, uma diversidade de arranjos organizativos que alteraram a própria estrutura partidária, via formação de uma nova instância conhecida como Rede de Mulheres do MRS, ou na formulação de ciclos de formação em gênero que o movimento direcionou aos 9

Durante o momento mais acirrado da campanha, os partidos – com exceção do MRS- adotaram o bordão “o aborto é feio” em clara alusão ao candidato presidencial que o MRS postulou nas ultimas semanas do pleito, após o falecimento de Herty Lewites, o principal candidato do partido. Detalhes desse episódio serão analisados no primeiro capítulo desta tese.

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militantes partidários, com ênfase nos deputados eleitos. No capítulo que analisamos a característica da aliança poderemos ver como ambos os efeitos foram resultados da interação. Um segundo componente que queremos destacar sobre essa relação como tipo de ativismo, é que ela preserva o caráter de agência do movimento social. Isto significa que nenhum dos atores exerce uma relação de autoridade sobre o outro, eliminando as possibilidades de mera cooptação por parte do partido político sobre o movimento social. Caracterizando os dois tipos de ativismo, podemos entender que as relações construídas podem ter natureza diversa, indo desde a colaboração, coordenação de ações, formação em temas específicos, até interpenetração ou mesmo (dependo da conjuntura) interdependência. É claro que, sendo relações plurais e de caráter diverso, cabe nelas também o caráter conflituoso, quando ambos os atores mostram oposições em questões sensíveis ou surgem tensões na execução das estratégias movimentalistas. O segundo argumento da nossa pesquisa é que a partir da interação, a autonomia adquire uma múltipla dimensionalidade. O que pretendemos explicar aqui? Primeiro, as ativistas incursionam na relação com os atores do sistema político, adotando a autonomia como categoria auto-referenciada, com o que garantem um elemento essencial da sua identidade que se constrói na distância com os atores do sistema político, mas em interação com eles. Tentando ser mais claros, a autonomia aparece como categoria totalmente nativa (as próprias atoras se qualificam de autônomas), mas desde um lugar que lhes permite administrar os riscos das interações. Essa é a dimensão cognitiva que dá a elas a possibilidade de se “situarem” na relação. Dominar o espaço de origem (na arena societal) podem reter as chances de elaborar cálculos, remanejar as distâncias com os outros e se prepararem para as experiências conjuntas. Mas isto nos coloca, como pesquisadores, um desafio conceitual. Se a autonomia perde a característica fixa e normativa, pré-elaborada e exógena; como poderemos então conceituá-la se parte da própria cognição das atoras? Medir uma categoria que não tem materialidade (não existe uma autonomia com braços e pernas andando pelos corredores) e sim uma natureza abstrata e sensorial nos exige elaborar critérios passíveis de constatação e aberto a ser explicado por tipologias. Assim como a autonomia é entendida a partir da sua dimensão cognitiva, a relação também permite compreendê-la a partir da sua dimensão estratégica. Afirmar que a autonomia tem

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uma dimensão estratégica significa entender que as atoras a utilizam para formular seus repertórios de ação, a partir dos quais costuram as relações com as instituições do sistema político. As ativistas vão ativando e desativando - ao tempo que também nomeiam - os diversos “tipos de autonomia” que interferem na interação. Dessa maneira podemos encontrar categorias como “autonomia organizacional”, que dá ao movimento o espaço para se distinguirem das instituições políticas chamando a atenção para arranjos organizativos distintos; a “autonomia ideológica” que reporta ao espaço desde onde as atoras do movimento elaboram os enquadramentos do mundo para legitimar as demandas; e a “autonomia política” com a qual o movimento define suas pautas, elabora os cálculos e faz apostas quantos aos resultados de suas ações. Um terceiro desdobramento a partir do qual propomos observar a autonomia é a ideia de “autonomia como processo”. Afastar a noção de uma categoria fixa e predeterminada, implica adotar o entendimento da sua dimensão processual e elástica. Em outras palavras, as atoras vão modificando ao longo do tempo as suas próprias concepções sobre autonomia, a importância estratégica dela e o tipo de autonomia que é posta em ação em determinados momentos. Como é de se esperar, esta dimensão processual vai depender muito do avanço e desdobramento da conjuntura que enquadra a interação. As ativistas do movimento vão manipulando as variantes da autonomia em resposta às oportunidades e constrangimentos do contexto político, de modo que essa autonomia, como identidade e estratégia, tem também uma natureza gelatinosa que assume os mais variados sentidos dependendo do momento, razão pela qual precisamos prestar maior atenção à trajetória como recurso e como método de análise, o que determina nosso argumento seguinte. Nosso terceiro argumento é que o enquadramento conjuntural e o processo histórico da democratização formatam a relação entre os atores. Como temos tentado explicar aqui, as interações entre o movimento social e o partido político são moldadas por conjunturas concretas que determinam a natureza e alcance dessa relação. No caso em análise, o movimento de mulheres se alia com o MRS, em parte, para enfrentar os embates que viriam do estado a partir da chegada da FSLN ao governo nacional. Assumir que existe uma interferência do enquadramento contextual na caracterização da relação entre os atores significa, então, ampliar o foco da nossa análise para interpretar os constrangimentos conjunturais – e as oportunidades – que são percebidos por eles para entrar na aliança.

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A interação entre eles está também determinada por um conhecimento prévio e pelas perspectivas que os atores projetam dessa relação. Em outras palavras, as atoras do movimento conhecem os militantes do partido político com que se relacionam a partir de uma história prévia – algumas vezes, como veremos nesta pesquisa, têm a mesma trajetória – mas costuram essa relação não apenas por causa desse histórico, e sim também na base da expectativa sobre o alcance e resultados que essa relação pode gerar. Tal encontro entre a trajetória dos atores, os constrangimentos do presente e a projeção acerca dos resultados futuros da interação, nos impõe a necessidade de explicitar as reconfigurações do processo político ao longo da trajetória para diagnosticar os desafios e oportunidades do presente que constrangem a relação construída por eles. Nesta tese, a interação entre o movimento de mulheres com o MRS não só considera esse histórico. Também – e fundamentalmente – toma como referência chave o contexto de mudanças políticas que a Nicarágua enfrenta desde que a FSLN assumiu o controle do estado, cuja reconfiguração vai ao encontro das transformações recentes em diversos contextos latino-americanos, marcadas por estados que adotam uma agenda “de esquerda”. Ao falar de “agenda de esquerda” não nos referimos a estados que executam políticas transgressoras em questões de gênero, agenda econômica ou transferências de renda para romper radicalmente com as práticas de concentração e acumulação de capital, características dos estados predecessores. A mudança está determinada, de fato, por outros fatores. Trata-se de estados que se distinguem por integrar ativistas de certas organizações da sociedade civil em instâncias da burocracia oficial, por mudar as relações com os atores sociais e por privilegiar os sistemas participativos e a incorporação de setores populares- tradicionalmente marginalizados das decisões políticas – nesses sistemas. Embora a participação política seja uma questão central assumida por esses estados, não significa que eles consolidem as instâncias participativas para a inclusão dos diversos interesses societais. A depender dos contextos (e no caso nicaraguense isso é muito evidente) o estado transforma o sistema participativo com o objetivo de incrementar o controle do partido oficial nesse sistema. Dessa maneira, as instâncias participativas chegam a assumir – também, mas não só – uma função eleitoral e de legitimação das políticas de estado, particularmente aquelas orientadas

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para responder às demandas dos setores populares, fazendo com que esse campo seja um elemento central de disputa entre o estado e uma parte das instituições sociais. Assim como a participação política se transforma em um elemento central de disputa entre a sociedade o estado, a orientação das políticas e programas para setores populares é outra distinção importante. Políticas de transferência de renda, a partir de bolsas alimentação, auxílios para moradia e educação familiar fazem parte do repertório de programas de estado, substituindo dessa forma uma série de projetos e serviços que algumas ONGs executavam em áreas concentradas de população de baixa renda. Seja pela disputa com o estado ou pela colaboração com o partido, podemos notar que em qualquer caso existe uma interação entre o processo histórico, o presente representado na nova conjuntura e a perspectiva do futuro imediato. Tanto o estado como os partidos se transformam em aliados de um amplo espectro de movimentos sociais, sintetizando assim um passado que outorga a confiança para os ativistas do movimento interagirem (os atores já se conhecem), um presente que estipula as oportunidades e dificuldades para a participação (os atores se aliam para entrar nas disputas) e um futuro bem próximo que outorga o espaço para as projeções (os atores esperam algo dessa relação). Analisar a interação política com esses registros implica assumir uma gama de desafios metodológicos, marcados fundamentalmente pelos riscos (mas também as vantagens que ganhamos) de abordar trajetórias, ao mesmo tempo em que analisamos a relação sem categorias preconcebidas. Nas páginas a seguir, analisaremos esse desafio metodológico e como está sendo enfrentado nessa tese. 2. Caracterização da metodologia de pesquisa e os seus desafios a. Processo histórico e mecanismos causais como método de análise

Esta é uma pesquisa qualitativa, de natureza explicativa, que adota o histórico do processo político e a trajetória dos atores como recursos analíticos para compreender as relações no tempo presente. Como estamos compreendendo ambos os termos? Para explicá-los melhor, queremos lançar mão da analogia com uma montagem de uma cena de teatro. No palco teatral contamos com dois recursos fundamentais que são atores e cenário. O cenário é a estrutura que situa a cena, localiza os atores e dá sentido aos recursos coreográficos operacionalizados naquele instante. Já os atores executam as performances características do seu personagem, mobilizam suas respectivas falas e transitam entre as diversas cenas que compõem a peça ao todo.

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Dessa maneira, o processo histórico é a estrutura (o cenário) que dá sentido às trajetórias dos atores ao longo do percurso, mas isso nos exige definir nossa compreensão ao redor dessa trajetória. Para efeitos desta tese, entendemos trajetória como a biografia dos atores desde que estes entram em cena pública. Não estamos interessados aqui pela biografia particular marcada pelas relações familiares e pelos assuntos do mundo privado, mas pelo percurso desses atores a partir do engajamento nas questões públicas marcadas pelo histórico da democratização. Estamos convencidos de que ao longo da sua trajetória, os atores foram circulando por diversos espaços organizacionais, constrangidos pelas mudanças da conjuntura, e dentro desses espaços forjaram as relações e determinaram a aliança que começaram a experimentar em 2006. O foco projetado no processo histórico e na trajetória dos atores dialoga inteiramente com o avanço do método de análise histórico na Ciência Política contemporânea, da mesma forma que lida com os riscos metodológicos já identificados por outras experiências de pesquisa (KAY, 2005; FALLETI, 2006). Como os estudiosos do método já mostraram (BENNET e ELMAN, 2006; FALLETI, 2006; PIERSON e SCKOCPOL, 2008; LEWIS, 2008; COLLIER, 2011), nas ciências sociais a história importa (HOCHMAN, 2007) para explicar fenômenos políticos complexos, mas por trás dessa simples afirmação existe um repertório de disputas metodológicas, múltiplos olhares e desafios para os pesquisadores que precisamos revisitar. Levar a sério o percurso histórico como método de pesquisa implica lidar com um debate que combina as escolhas dos indivíduos com o percurso histórico e os constrangimentos institucionais. Vejamos as nuances dessa discussão metodológica, começando por questionar a afirmação. A história importa, mas de que maneira? Que tipo de história? Pierson e Sckocpol (2008) enfrentaram essas questões a partir de uma exaustiva revisão das diversas abordagens de pesquisas pautadas pelo Institucionalismo Histórico, constatando que a maior contribuição do método foi encontrar relações causais para além de duas variáveis. Em outras palavras, embora o método esteja inspirado pela procura de um mecanismo de causa-efeito, o fato de estender o tempo e ver um processo de vários anos não só nos oferece maiores dados empíricos, mas também uma espécie de tela onde podemos encontrar contingências dos fenômenos, sequência de eventos não lineares e variações dos resultados (2008, p.12-13). Por essa razão, a história deve ser analisada como processo e “não como ilustração” (PIERSON, 2008). Um dos perigos de perceber a história como uma sequência linear de

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eventos que são reforçados ao longo do tempo, é que nos restringiríamos a uma descrição que em si constitui uma simples narrativa contínua (HOCHMAN, 2007). Dessa forma perderíamos a variedade de mecanismos presentes ao longo do processo, que vão desde esquemas de retroalimentação a dinâmicas contingenciais presentes no percurso. Devemos ver não apenas uma sequência cronológica (apesar de termos uma noção da história como uma sequência de eventos), mas ficar atentos a um processo onde esses eventos não são facilmente realocáveis e podem interferir-se mutuamente. A compreensão de mecanismos de mutua interferência reconhece-se nos estudos orientados pela path dependence 10 como método que permite explicar o surgimento de fenômenos sociais e políticos de longo alcance (PIERSON, 2000, KAY, 2005; PIERSON e SCKOCPOL, 2008). Não menosprezando os embates surgidos entre os pesquisadores sobre os múltiplos conceitos associados, e baseados no que essas discussões têm em comum, podemos entender a path dependence como um modelo de análise que coloca em interação timing e sequência como fatores explicativos das transformações políticas. Um evento importante (big event) ao longo da trajetória gera resultados que, seguindo um mecanismo de reforços e repetições (COLLIER e COLLIER, 1991) se institucionaliza. Atendendo a esse mecanismo, este evento de conjuntura crítica tem a capacidade de obter retornos crescentes, um tipo de retroalimentação positiva (grifos meus) que permite que a mudança perdure no tempo, de modo que os atores percebam que teriam que pagar um alto custo se essa transformação se revertesse (PIERSON, 2000; BENNETT e ELMAN, 2006; KAY, 2005, HALL e TAYLOR, 2003). Partindo desta noção, temos que concordar com Pierson (2000) que os argumentos baseados na path dependence nos ajudam a explicar como eventos da conjuntura prévia geram um tipo específico de resultados, mediados pelo mecanismo de retroalimentação que permite a consolidação da mudança. Entendendo esse mecanismo, podemos considerar que não apenas eventos importantes geram mudanças, mas também eventos que acontecem no momento certo, mesmo não sendo big events, podem criar resultados de longo alcance (BENNET e ELMAN, 2006). 10

A trajetória dependente tem suscitado numerosos debates dentro da área, não apenas pela multiplicidade de conceitos associados como pelo seu uso nas análises da formação de políticas públicas. Tendo seu traço de origem na economia, a path dependence foi importada aos diversos sub-campos das ciências sociais, com implicações para a pesquisas empíricas. Para entender o debate sobre o curso da path dependence neste campo, recomenda-se Bennett e Elman, 2006; Kay, 2005 e Pierson and Sckocpol, 2008

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Este framework analítico orientou um conjunto de pesquisas que explicam diversos fenômenos da vida política como transições democráticas (YASHAR, 2007), formações do welfare state (STEINMO, 2008) e até mesmo o surgimento de revoluções em perspectiva comparada (GOODWIN, 2001). Por conta do avanço dessa rica agenda, algumas debilidades do método começam a ser apontadas. Dentre as principais críticas está o nível de determinismo que a path dependence infere para a vida política (THELEN, 1992), fazendo acreditar que uma vez que se desencadeia a mudança inicial, provinda inclusive da escolha dos atores, as transformações subsequentes acontecem mecanicamente. Assim, o mecanicismo que a path dependende geraria, não só considera que os atores são altamente racionais na hora de fazer as escolhas e enfrentar a mudança, mas também os resultados contingentes escapam da análise. A questão é que na vida política os resultados imprevistos da ação acontecem com tanta frequência, que ganham um status de regularidade na formação de novos eventos. Nesse ponto, Pierson e Sckocpol (2008) oferecem um argumento central: mesmo que os atores ajam em prol da mudança, é claro que eles operam num cenário de incertezas e, portanto, pode ser previsível que cometam erros (2008, p. 21, grifo meu). Se as consequências eventuais são mais regulares do que o esperado, o desafio não está apenas em identificar a cadeia de eventos que geraram tal contingência, mas de reconhecer o fator externo envolvido. Aqui nos deparamos com mais um desafio metodológico: as consequências não esperadas estão fora do campo de pesquisa, desde que ela não aparece situada no momento inicial (SCKOCPOL, 2008), mas a consciência do inesperado nos demanda depositar um foco de análise nos fatores exógenos (BENNET e ELMAN 2006) que interferem na trajetória: “(...) contingency implies that the causal story is influenced by a random or unaccounted factor. There needs to be some contingent element that intervenes in the causal narrative: one or more of the factors that influences the direction of events needs to be random or (by some readings) exogenous to the main theory of interest. In most accounts, the path that results must be not only contingent, but also highly contingent. It may be one among many possible outcomes or an unlikely or inefficient outcome compared to one or more alternative paths” (2006, p. 252)

Esta compreensão vai ao encontro de uma terceira crítica que os autores fazem da path dependence: Ela dá conta da estabilidade mais do que da própria mudança em si (KAY,

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2005). O fato do Institucionalismo Histórico se preocupar mais com a institucionalização das mudanças ao longo do tempo faz com que as análises decorrentes do método criem uma dicotomia entre mudança e estabilidade como ocorrendo em velocidades diferenciadas. A questão da estabilidade como separada da mudança ganha destaque nas críticas de Kay (2005), desde que a path dependence se preocupa com os mecanismos de retorno positivo, criando uma clara distância entre o evento e a transformação gerada por esse evento ao longo do tempo. Assim, não só a mudança fica sujeita a um recurso temporário, como a própria política presente é entendida como um eco do passado (2005, p. 566). Dessa maneira, maiores frameworks analíticos e explicações teóricas precisam ser elaboradas. Apesar dos questionamentos, acreditamos que o método da trajetória dependente tem força para diagnosticar a operação dos mecanismos (sejam contingentes ou esperados) na formação dos fenômenos políticos, mas ele não é o suficientemente forte como para se erigir numa categoria teórica capaz de dar conta da complexidade dos fenômenos da vida política. A path dependence não oferece explicações universais – até porque diversas transformações dependem de arranjos particulares, de mecanismos formatados pelas conjunturas onde tais mudanças acontecem, etc (TILLY, 2001) –, mas nos ajuda a formular questões situadas no decorrer do tempo que justificam nossa análise. O avanço deste debate ao redor do processo histórico tornou a aplicação do método ainda mais complexa, trazendo importantes implicações para os pesquisadores que adotam o método histórico associado aos mecanismos causais 11. Se as mudanças não são explicadas por fatores universais (não existe um único modelo explicativos dos processos de democratização, por exemplo), resta ao pesquisador entender – e caracterizar – os fatores concretos do percurso que deem conta de explicar o fenômeno político, enfrentando uma série de desafios metodológicos. O primeiro desses desafios está em saber selecionar – e justificar adequadamente – o inicio e o fim do percurso histórico sob análise. Ao apostarmos por um extenso percurso, resulta complicado definir “a causa original” (Sotomayor, 2008), embora tenhamos certa ideia de “onde termina” a extensa cadeia de mecanismos causais. Em outras palavras, se partirmos da ideia de que o fenômeno político que queremos explicar é o efeito de uma série de eventoscausa, não só nos deparamos com o desafio de saber onde parar nossa regressão (afinal toda

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Só para termos uma referência, o próprio conceito de “mecanismos causais” é objeto de múltiplos olhares e já conta com um aproximado de vinte e quatro definições na literatura (MAHONEY, 2001 apud FALLETI, 2006)

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causa teve uma causa), mas também de elaborar uma hipótese-efeito que justifique o uso do método 12. A complexidade está, então, em poder amarrar adequadamente a nossa expectativa de pesquisa (o desenho) com o percurso histórico que desvendamos na pesquisa de campo, mas aqui encontramos um risco central: A discricionariedade que o pesquisador possui na seleção da causa original, da trajetória percorrida e do ponto de chegada, assim como da identificação de quais seriam os eventos chave que determinaram o fenômeno político que estamos analisando. Perante esses riscos, a literatura (FALLETI, 2006; PIERSON e SCKOCPOL, 2008; SOTOMAYOR, 2008; COLLIER, 2011) coincide num ponto só. O pesquisador deve explicitar e justificar suas escolhas de forma transparente. A nossa seleção sobre o ponto de partida, a trajetória e os eventos do percurso selecionado vai depender, em grande medida, do conhecimento que reunimos sobre o caso – e o campo – em questão, como Falleti (2006) bem argumenta: “This is not a simple task: it requires a precise conceptualization of the types of events that are constitutive of the process as well as those that are not – even if they pertain to related, albeit different, processes. Therefore, an explicit theory underpinning our process of interest as well as a profound familiarity with our cases are both necessary” (2006: pp 6)

Assim como esta tese enfrenta o desafio de adotar a abordagem do processo histórico, nos defrontamos também com uma segunda complexidade já anunciada no começo desta subseção metodológica 13, que consiste em incorporar à análise a biografia das atoras. Nas páginas a seguir vamos a entender qual a caracterização desse desafio – e o que também temos a ganhar com ele - para avançar na caracterização do trabalho desenvolvido no campo.

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Temos desenvolvido este debate baseados no recurso da path dependence proposta pelas análises do Institucionalismo Histórico, mas não queremos obviar como o avanço do método gerou também a ferramenta metodológica do Process Tracing, proposta por Collier (2011) para o teste de hipóteses ao longo do tempo. Para efeitos da nossa pesquisa, o Process Tracing não agrega maiores contribuições às que já discutimos aqui ao redor do Institucionalismo Histórico, até porque a nossa hipótese não tem só um foco temporal. Ela também se desagrega em querer explicar fenômenos da conjuntura presente. 13 Um terceiro desafio metodológico que esta tese assume está ao redor de adotar o foco relacional para compreender as estratégias do movimento feminista nicaraguense. Incursionaremos nesse debate no Capítulo 3 desta tese, onde tentaremos mobilizar nossas categorias teóricas de análise.

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b. O valor e o desafio da trajetória dos atores como ferramenta analítica

Como temos mencionado até aqui, esta tese se propõe investigar – no percurso da transição democrática nicaraguense, associado à trajetória das ativistas – a relação que o movimento de mulheres do país começou a instaurar com os partidos políticos, a partir da aliança MAMMRS subscrita em junho de 2006. Nosso investimento nas trajetórias individuais, assim como no processo político, reconhece a existência de alguns dilemas já apontados pela literatura (GREEN, 2000), que considera que o método oscila entre os ricos por uma excessiva ideologização da análise e as potencialidades por relacionar estrutura e agência. Apesar dos riscos, o balanço bibliográfico (LEWIS, 2008a) sugere que existem maiores razões para confiar nas fortalezas do método. Usando as histórias de vida como método para analisar os “cruzamentos através das fronteiras” de profissionais do terceiro setor para as burocracias de estado, Lewis (2008b) comprovou que as histórias individuais não se limitam apenas a uma vida específica (a vida de alguém), mas ajuda a explicar como as experiências individuais se vinculam com a formação de uma identidade política. Em outras palavras, uma história particular que ajuda a explicar como as pessoas “interagem com a totalidade” (2008b: 127) que compõe a estrutura do processo histórico. Ao mesmo tempo em que as trajetórias nos ajudam a “humanizar” as pesquisas, o método tem a potencialidade de evitar uma sobregeneralização dos processos políticos, a partir de uma ampla e detalhada descrição. Assim, obteríamos a capacidade de preservar o caráter de agência que os atores possuem sem desvincular nosso foco na interferência das estruturas. Uma operação metodológica que na visão de Lewis (2008a) resume-se na capacidade de nos distanciarmos do discurso dominante: “Following from this emphasis on the agency of social actor, the life-history method can also therefore give voice to marginalized sections of the community, such as subaltern classes, women or people with disabilities in a way that ‘gives history back to people in their own words’ potentially rescuing it from dominant discourses (THOMPSON, 1988: pp 265 apud LEWIS, 2008a: pp 562)

Contudo, as vantagens apontadas acarretam também uma série de desafios condizentes com uso dos históricos de vida como ferramenta chave para a análise.

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Mesmo admitindo que as ciências sociais tenham privilegiado as análises estruturais em detrimento das singularidades humanas, Delcont (2004) concorda que esta perspectiva traz uma série de complicações metodológicas que exigem ao pesquisador assumir reiteradamente escolhas bem justificadas. O histórico dos indivíduos como recurso de análise depende de uma série de condições, tais como a memória dos atores, a linguagem, a decisão de espaços temporais. Elementos que precisam ser justificados por critérios específicos. Na sua análise: “(...) os critérios são deriváveis de razões fundantes que delimitam o escopo da abordagem, bem como orientam, por exigência de lógica interna, não somente o estilo da análise, mas também o seu resultado” (2004: 287) Mas a questão é que as histórias de vida não apenas dependem da linguagem ou da memória dos atores. Elas também suscitam o interesse do pesquisador por reescrever essa história, como consequência de um interesse particular, uma relação prévia ou conhecimento compartilhado com os sujeitos e sua trajetória. Nessa reescrita, o pesquisador tem o poder de decidir os critérios sobre os elementos “que contam e os que não interessam”, de modo que a relação entre o pesquisador e o sujeito se transforma numa espécie de mediação na recontagem da narrativa histórica. Daqui surge um segundo desafio que é o da “contaminação” das informações. As narrativas envolvem uma espécie de reflexões sobre histórias vividas, isto é, os atores revivem a sua trajetória a partir das próprias interpretações, portanto impõe-se o risco da subjetividade e da ideologização que questionam os críticos do método (GREEN, 2000). Como é possível prever, tais interpretações não apenas refletem as ideologias dos atores, elas também são passiveis de uma nova interpretação do pesquisador ao ponto de assumir o risco de afetar os critérios para a análise e os resultados previstos. Contudo, a contaminação e a mediação ideologizada que, segundo os críticos do método podem caracterizar a relação entre o pesquisador e os atores da pesquisa 14 são possíveis de contornar a depender da transparência dos critérios de escolha que o pesquisador determinar de forma justificada. É a resposta aos questionamentos que Lewis infere da análise de Godfrey & Richardson (2004) na sua revisão do método, ao formular a necessidade de uma “transparente racionalidade” do pesquisador que evitaria a excessiva ênfase na “agência dos 14

Lewis também sugere que existem outras dificuldades do método, decorrentes da mediação e da contaminação. Ambos os fatores podem gerar generalizações das interpretações e demandam muitos recursos do pesquisador, além do tempo das organizações, planejamento, transcrições e interpretações das entrevistas. Para esse debate ver também Musson (1998)

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atores sociais” (2008:562) sem perder as riquezas que as trajetórias trazem para o nosso entendimento 15. Trata-se, a final de contas, de encontrar a “distância” objetiva (mas não neutral) entre pesquisador e os atores sujeitos da pesquisa, um desafio que para Green (2000) está presente no caso dos analistas que também participam do ativismo que está sob análise. Desde a perspectiva de historiador, Green é convencido do poder da “historicidade” do movimento, desde que ela não seja asséptica com relação às dinâmicas de relações de poder envolvidas no objeto da pesquisa: “Activist intellectuals need to be “critical of power structures that inhibit popular participation in political life (including the power structures of popular parties and movements)”. We need to work at “a certain difficult distance” from our movements, says Walzer, but still keep faith with the hopes of popular struggle, outlasting the defeats while, at the same time, sustaining “a form of criticism internal to, relevant to, and loyal to democratic politics”. These are good words of advice for those of us who have chosen to join with social movements as active participants and as critical intellectuals” (2000: pp. 4 – 5)

Todas essas “dicas metodológicas” nos conduzem a prestar maior atenção aos instrumentos de pesquisa mais adequados para captar os elementos das realidades sem nos limitarmos ao universo de interpretação dos atores entrevistados. De fato, dependerá desses instrumentos, associados a uma profunda pesquisa empírica com amplo conhecimento do campo, corroborando dados, encontrando as contradições e ampliando as fundações teórico – metodológicas a razão que nos permitirá justificar nossos critérios de escolhas e, por tanto, os resultados das análises (DeCOLT, 2004). Totalmente cientes de tamanho desafio e considerando as saídas já apontadas pelos autores, nessa pesquisa associaremos o curso do processo político às biografias das ativistas e alguns militantes partidários, para explicar as relações do tempo presente. Para reforçar tal operação metodológica, neste trabalho adotamos alguns critérios de escolhas que vinculam trajetórias individuais com as mudanças mais radicais do contexto político ao longo do tempo.

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O método é rico na medida em que coloca potencialidades para uma “etnografia política”, facilita aprofundar a pesquisa a través de um recorte histórico não como uma fotografia do passado, mas como a causa para a “sincronia” do presente que diagnostique a agência dos atores. O método também humaniza mais ainda as pesquisas em ciências sociais e permite um diálogo com as abordagens teóricas sobre a interação de “Agência – Estrutura” (Emirbayer e Mische, 1998) desde uma perspectiva de temporalidade. Para mais detalhes desse debate ver Green (2000); Lewis (2008) e Del Cont (2004)

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Nossa postura será aprofundarmos na descrição do campo, analisar as percepções e vivencias dos atores envolvidos tanto nas mudanças do contexto quanto nas suas estratégias relacionais, que por sua vez justifiquem nossos critérios de seleção. Na seção a seguir explicitaremos melhor tais critérios, para depois explicar como aplicamos estas escolhas no processo de pesquisa de campo desenvolvido entre 2012 – 2014, podendo caracterizar assim o cenários das atoras em questão. c. Critérios de seleção e o nosso encontro com o campo

Como já mencionamos anteriormente, este trabalho tentará dar conta de um histórico de relações, construído ao longo dos últimos 30 anos do processo político nicaraguense. Tamanho percurso resulta praticamente impossível de abraçar em uma tese de doutorado, por tanto resolvemos selecionar o que chamamos de “momentos de inflexão” nessa conjuntura para capturar em cada período particular, as diversidades de relações existentes. A escolha sobre esses momentos de inflexão requer, como sabemos, critérios de seleção que nos permitam entender os sentidos mais importante do histórico, partindo desde os períodos mais intensos da luta guerrilheira e os primeiros anos da revolução sandinista até os anos em que a FSLN retoma o poder do estado a partir das estratégias eleitorais, fato que, acreditamos, justifica parcialmente as relações que analisaremos nesta pesquisa. Tais critérios de seleção sobre os momentos de inflexão caracterizam-se, então, por: - Momentos concretos de impacto não só para o contexto político nacional, mas também para os arranjos organizativos do movimento. Quer dizer, estamos atentos aos momentos em que o movimento de mulheres atravessou mudanças na sua organização interna, nas relações com as organizações de origem e nas relações com outras organizações do movimento (surgimento de redes, criação de outras formas organizacionais, divisões internas do movimento, conflito com organizações, etc) - Momentos da conjuntura em que a agenda do movimento marcou conflitos do debate nacional. Estamos nos referindo, por exemplo, aos momentos em que questões como aborto, casos emblemáticos de estupro e violência de gênero, legislações relacionadas com equidade de gênero, etc, formaram parte do debate político, demandaram posturas do estado e do sistema de partidos, etc

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- Conjuntura e mudanças do contexto que afetaram a biografia individual das ativistas. Isto envolve, por exemplo, engajamento individual na luta guerrilheira ou ações contra a ditadura, processos de perseguição do estado, demandas judiciais, expulsões da militância partidária, eleições de cargos públicos, etc - Momentos da diacronia do passado que ainda hoje impactam na sincronia do presente. Isto é, decisões, arranjos, rupturas, acontecimentos disruptivos do passado que ajudam a explicar decisões e estratégias características das relações entre o movimento e os partidos nos dias de hoje. Atendendo a esses critérios de escolha, decidimos selecionar até cinco “momentos de inflexão” que foram definindo, ao longo do processo democrático nicaraguense, não apenas as estratégias de relações entre os partidos e o movimento de mulheres, mas fatores que impactaram nos arranjos organizacionais do movimento ou motivaram uma interação, seja de conflito ou de colaboração, entre ambos os atores. Cabe mencionar que se bem vamos focar nossas análises nesses cinco instantes da conjuntura selecionada, não quer dizer que deixaremos por fora outros momentos do contexto ao longo das nossas interpretações. Por exemplo, o processo de luta mais forte do movimento guerrilheiro contra a ditadura entre 1976 – 1979 16 é fundamental para compreender os primeiros momentos do engajamento do ativismo feminista dentro do sandinismo, porém, não iremos nos focar nele porque, até então, a FSLN não existia como partido (eram os anos do movimento guerrilheiro na clandestinidade), mas ajuda a explicar fatores dos arranjos organizacionais dentro do partido, nos dias de hoje. Dessa forma, nossos cinco momentos de inflexão onde estamos focando uma boa parte da análise são: 16

A rigor, a ditadura somozista surge em 1936, dois anos depois que Anastásio Somoza, sendo chefe do Exercito, monta uma cilada para atrair ao General dissidente Augusto C. Sandino até Manágua e ordena a sua execução. Com Sandino assassinado, Somoza dá um golpe de estado no Presidente Juan B. Sacasa (1933 – 1936), e monta um regime de repressão militar que se manteve até por duas gerações da sua família. Somoza é assassinado em 1956 por um jornalista durante uma festa de gala em León, a principal cidade de região ocidental do país, assim seu filho, Luis Somoza assume o controle do Estado, implementando um estado de sítio, e aumentando a repressão contra estudantes e profissionais acadêmicos. Nos anos 60s surgem as primeiras colunas de resistência guerrilheira e clandestina (FSLN), depositárias dos ideais de Sandino. Contudo, a FSLN só ganhou notoriedade mundial em dezembro de 1974 quando sequestra o embaixador dos Estados Unidos e funcionários do governo durante uma festa de natal na casa de um dos ministros do Somoza (filho) num bairro nobre de Manágua. A partir daí as revoltas incrementaram em intensidade até a revolução popular de 1979 após o último ditador Somoza e toda a sua família fugirem aos Estados Unidos. A ditadura da Nicarágua foi uma das mais longas (durou 43 anos) e repressivas da América Latina. Para mais detalhes sobre a época ditatorial, a luta guerrilheira dos anos 60 – 70 e a revolução sandinista ver Marega (1982), Goodwin (2001), Zimmerman (2006) e Puig and Close (2012).

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1976 – 1987: Esta tem sido talvez a fase de transformação política mais estudada do histórico de conflitos recentes na Nicarágua. Representa o período mais intenso da luta guerrilheira e da conseguinte revolução popular que derrubou a ditadura somozista e chamou a atenção mundial no meio do contexto da guerra fria. Diversas pesquisas apontam para um engajamento intenso de mulheres organizadas na luta guerrilheira, de entre 25 – 30 % 17, motivando uma alta participação das mulheres na formação do estado revolucionário dos anos 80. A organização chave das mulheres no período da luta insurrecional foi a Asociación de Mujeres ante la Problemática Nacional (AMPRONAC), considerada “a gênese” do movimento feminista contemporâneo. Contudo, a FSLN, já com o poder do estado e no meio de um contexto político altamente complexo, desintegra AMPRONAC e exerce um controle absoluto sobre as organizações de massa, o que incluiu organizações de mulheres a través de uma única associação conhecida como Asociación de Mujeres Nicaraguenses Luisa Amanda Espinoza (AMNLAE). Apesar da sujeição de AMNLAE ao controle do partido “vanguarda”, o período revolucionário dos anos 80 é reconhecido pela sua alta importância para a participação significativa das mulheres nos programas do novo governo, um fator talvez explicado pela “expulsão” dos homens à frente de guerra que consumiu o país entre 1985 – 1988. Foi assim o período de transformação da guerrilha em partido político e da expansão de um nascente feminismo no país. 1988 – 1992: Esse período despontou com a aprovação da nova Constituição onde as mulheres tiveram uma participação fundamental, instaurando assim um debate no interior da FSLN sobre o papel da mulher na revolução. O teor da Assembleia Sandinista (o maior órgão deliberativo do partido na época) em 1988 foi marcado pela questão da autonomia que começara a ser discutida entre certas organizações locais de mulheres. Esse processo coincidiu com o fim do conflito de guerra civil que o país começara experimentar desde 1980 com o incremento da contrarrevolução. O governo da Costa Rica, com o apoio da OEA, motivou a alcançar um acordo de paz regional (assim como a Nicarágua; El Salvador e a Guatemala experimentavam também um conflito armado) que conduziu à convocatória de novas eleições nacionais onde a FSLN perdeu o poder, conduzindo ao fim do período revolucionário. Com a FSLN sem o controle do estado e a transição de um contexto revolucionário para a “democracia formal”, as organizações de mulheres começaram a se colocar questões relacionadas com a autonomia face o partido e o estado. Em 1991 as 17

Todas as pesquisas que analisam a participação das mulheres na luta guerrilheira nicaraguense durante o final dos anos 70s, remetem a Molyneaux (1986) e coincidem no mesmo dado quantitativo. Para implicações sobre esse engajamento, ver também Luciak (2001) e Bab (2012)

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organizações feministas realizaram o “festival do 52%”, evento que melhor sintetizou esse momento de debate da autonomia. Esse contexto foi também determinante para a criação das redes de organizações feministas como um tipo de arranjo organizativo do movimento. 1994 – 1996: Período caracterizado pela maior crise interna da FSLN desde a oposição. O debate que iniciara em 1990 sobre as razões do fim da revolução e como a FSLN poderia retomar o poder gerou duas tendências do partido, praticamente irreconciliáveis, ao ponto de motivar uma dissidência que motivou a formação de um novo partido, o Movimento de Renovação Sandinista (MRS). Se bem esse é um momento que explica uma crise partidária, também desvenda uma crise entre as militantes das organizações de mulheres. Até então, elas tinham ficado fora do conflito entre as duas tendências sandinistas, mas com a ruptura partidária, os dirigentes exigiram aos seus próprios militantes (muitos deles, líderes do movimento de mulheres) “se definirem”. Durante o campo, por exemplo, encontrei que os dirigentes intermédios da FSLN interpretavam que as estratégias de formação de lideranças feministas dentro das organizações de massas (principalmente sindicatos) eram percebidas como um e questionamento sobre a liderança tradicional da FSLN. Com essa “paranoia do conflito”, algumas líderes foram expulsas do partido, quando não perseguidas judicialmente. Por exemplo, uma das entrevistadas contou que teve de ficar foragida durante um ano porque a FSLN a acusou judicialmente de ter roubado imobiliária e papelaria de uma das organizações sindicais filiada à FSLN onde ela trabalhava. Na entrevista ela contou que essa foi uma reação contra o processo que levava adiante para fortalecer a Secretaria da Mulher dentro da organização sindical. Essas líderes feministas questionavam, de fato, as lideranças tradicionais e se via, por tanto, como uma “tomada de posição” a favor do MRS. 1998 – 2001: Os anos em que uma série de eventos definiu o revés institucional que impacta ainda hoje, na infraestrutura participativa do país. Em março de 1998 a enteada de Ortega, Zoilamérica Narvaez, o acusa de estupro desde que ela tinha 15 anos. O processo na justiça abalou por completo o partido e compeliu o estado a assumir uma posição. A Internacional Socialista exigiu satisfações à FSLN (Ortega era o principal líder da FSLN no Congresso) e o processo na justiça começou a andar. Mas em outubro de 1998 uma boa parte da região da America Central, particularmente a Nicarágua e Honduras sofreram intensamente com a devastação provocada pelo furacão Mitch, o mais destrutivo fenômeno natural em dois séculos, provocando uma solidariedade internacional poucas vezes vista. O então presidente Arnoldo Alemán (1996 – 2001) desviou grande parte da ajuda gerada pela tragédia e Ortega encontrou nisto uma oportunidade de negociar o seu processo, esquecendo o processo de

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corrupção que a FSLN levaria adiante contra Alemán, em troca de ser eximido de enfrentar o processo por estupro na justiça. O caso Zoilamérica é um “divisor de águas” para o movimento de mulheres. Todas as organizações resolveram apoiar à enteada de Ortega, decisão com a qual sofreram dissidências de ativistas, conflitos internos e um distanciamento vital do partido. Durante a pesquisa de campo, várias das entrevistadas coincidiram em chamar esse momento de “incisão vital”, isto é, o corte que ainda tinha de ser feito com o partido naquele instante. Nas entrevistas se falou muito de pressões sobre as lideranças do movimento, chantagem e até ameaças de morte. 2006 – 2007. É o ano das eleições presidências em que Ortega, pela FSLN, conquista a Presidência depois de três tentativas (1990, 1996 e 2001), mas que é caracterizado como o instante mais tenso no conflito entre o estado e o movimento de mulheres. Foi o ano em que o MAM decidiu abertamente a aliança com o MRS, cujo candidato a presidente, Herty Lewites, morreu durante a campanha eleitoral, e o processo em que o aborto terapéutico, que era legalizado desde começos do século XX, foi criminalizado a través de uma emenda no Código Penal facilitada por uma inédita aliança entre a FSLN e a hierarquia católica. Trata-se do momento chave que inspira a nossa análise, cuja conjuntura suscitou a alteração das relações que esta tese pretende diagnosticar. 3. Caracterização da pesquisa de campo

Ao longo do Doutorado fiz um total de quatro imersões ao campo em momentos distintos (Dezembro 2011, Outubro 2012, Abril 2013 e Janeiro de 2014) com a intenção de capturar o andamento da relação entre o movimento e o sistema de partidos nos anos posteriores ao início da aliança entre o MAM e o MRS. Dessa forma, consegui integrar diversas abordagens, entre coleta de depoimentos pessoais e entrevistas chaves, leituras e análises de publicações do movimento, participação em encontro e acesso a produções audiovisuais elaboradas pelas distintas organizações feministas. Os primeiros contatos formais de pesquisa começaram em dezembro de 2011. Naquele momento consegui fazer um primeiro mapeamento da estrutura do movimento, e realizei algumas conversas informais que me permitiram detectar o avanço das relações, tanto entre as organizações do movimento com o partido, quanto entre as próprias organizações do movimento e alguns outros atores aliados (outras ONGs, academia, etc).

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Durante o pré-campo também consegui constatar um erro do meu suposto inicial de que a revolução popular deu origem ao movimento de mulheres. Na verdade, o período de latência (MELUCCI, 2010) corresponde aos quatro anos prévios à revolução, quando uma das tendências da guerrilha incita a formar AMPRONAC com a intenção de que implementasse estratégias de auxilio humanitário aos presos políticos. Uma boa parte da literatura (RANDALL, 1986; MURGUIALDAY, 1990; BAB, 2012) coincide em que AMPRONAC foi a gênese da organização feminista que se desenvolveu anos depois, a través de AMNLAE durante o período revolucionário, e principalmente através das feministas dentro das organizações de massas. Nessa fase da pesquisa tive também acesso à documentação chave do – e sobre – o movimento de mulheres da Nicarágua. Essa minha primeira imersão no campo coincidiu com o lançamento de uma sistematização que diversas organizações do movimento realizaram sobre os 30 anos do feminismo nicaraguense, cujo trabalho foi decisivo para a seleção dos momentos de inflexão descritos anteriormente. Durante a segunda ida ao campo, em outubro de 2012, consegui realizar as primeiras entrevistas com as ativistas do movimento e membros dos partidos políticos, assim como fiz uma primeira aproximação frustrada a funcionários do estado. De fato, este é um dos maiores problemas que esta tese enfrenta. Desde que Ortega assumiu a Presidência, aumentaram as dificuldades para acessar a informação provinda da FSLN ou dos seus próprios militantes. Os contatos entre líderes da FSLN e até funcionários públicos com jornalistas, pesquisadores nacionais e estrangeiros, e outros acadêmicos passam pela vistoria de Rosario Murillo, esposa de Ortega, e raramente são autorizados. Entre 2012 e 2013 remitimos três ofícios para uma das deputadas da FSLN com a intenção de obter informação oficial dos representantes do partido, mas foi tudo em vão. Diante dessa dificuldade, a estratégia mais segura foi entrevistar ativistas feministas que tivessem uma relação mais próxima com a FSLN, para obter a visão que o partido, no estado, tem hoje do movimento de mulheres. Apesar disso tudo, nessa segunda fase do campo fiz uma coleta completa de materiais do movimento, assisti a uma reunião de avaliação sobre os primeiros anos da aliança MAM-MRS e fiz os primeiros contatos com os pesquisadores da área. Na terceira imersão, em abril 2013, avancei com entrevistas a ativistas de organizações aliadas do movimento, líderes locais e regionais de organizações de origem e coordenadoras

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de redes, assim como pude acompanhar o processo de planejamento de uma campanha das organizações pela implementação da Lei 779 (lei que criminaliza a violência contra as mulheres). Nesse período também apliquei questionários nas secretarias da mulher de dois partidos políticos (MRS e PLI), na procura por entender como essa relação tinha impactado nas dinâmicas internas dos partidos. Esse processo se complementou com encontros informais com deputadas e ativistas do partido, particularmente MRS. Nessa terceira imersão foi, de novo, sumamente difícil obter informações, ou pelo menos entrevistar militantes da FSLN ou funcionários do governo. Na quarta e última visita ao campo, entre janeiro – fevereiro de 2014, conseguimos nos aproximar mais ainda das organizações de origem do movimento, a maioria de procedência local em três regiões do interior do país. Isso nos permitiu compreender os impactos que a relação com o partido teve nos territórios, entre os quais – segundo conseguimos registrar – um deles foi de alterações nas configurações organizacionais, via novas redes, outras alianças ou até mesmo novas frações internas. Foi durante essa quarta visita que aconteceu o encontro nacional de todas as organizações feministas na cidade de Matagalpa (região norte), onde uma das pautas iria ser o balanço de sete anos de relações entre o MAM e o MRS. O encontro era, de fato, importante em si, pois representou uma espécie de superação de algumas tensões internas que as organizações experimentaram desde a assinatura do acordo entre o movimento e o partido. Como expliquei no começo deste texto, não pude participar do encontro devido a minha identidade masculina, mas as lideranças do MAM compartilharam depois a resolução e documentos conexos para aprofundar a qualidade do debate aqui exposto. Ao total fiz 20 entrevistas em campo, incluindo ativistas, deputadas e pesquisadores feministas no país, das quais podemos contar três integrantes da Coordenadoria Política do MAM, uma ativista dissidente do MAM e presidente de uma ONG que integra o Movimiento feminista, encontros com a Coordenadora Nacional da Red de Mujeres contra la Violência, a diretora de uma organização vinculada com a defesa dos direitos de mulheres operárias e trabalhadoras domésticas, conhecida como Movimiento de Mujeres“María Elena Cuadra” (MEC), uma das fundadoras do AMPRONAC durante 1977, uma entrevista com a representante da Coordinadora de Mulheres Rurais, uma militante de um dos mais importante coletivos de mulheres de Matagalpa (cidade localizada na região norte do país), outra líder do movimento na região das Segóvias (duas províncias ao nordeste do país,

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próximo da fronteira com Honduras), e a diretora de uma ONG vinculada à Red Salud que surgira nos anos 90 durante o período da formação das redes. Ao mesmo tempo consegui ter encontros com três deputados do MRS, dos quais duas mulheres (uma delas a emblemática guerrilheira Dora Maria Tellez), e obtive um encontro com a presidenta nacional do partido, assim como pude fazer uma entrevista de profundidade a Ana Criquillon, uma pesquisadora feminista francesa radicada na Nicarágua desde finais dos anos de 1970, e quem inspirou uma série de estudos feministas sobre o país para um público majoritariamente externo. A seleção destes atores obedece a que eles participaram da aliança, continuam enfrentando as tensões e os impactos da parceria entre partido e movimento, enquanto outros (particularmente os atores locais nas cidades de Léon, no ocidente do país; Matagalpa, na região norte e Ocotal, no nordeste) experimentam mudanças na relação entre as organizações de base com o núcleo do movimento (localizado na capital, Manágua). O encontro com os atores locais e com a liderança do movimento em Manágua nos permitiu elaborar conexões das compreensões entre as estruturas de base e a estrutura central, podendo observar – e compreender – os impactos da aliança nos múltiplos níveis do movimento. A escolha sobre a liderança e congressistas do partido, MRS, responde a esse mesmo critério. Foram os membros da estrutura central do partido (Diretório Nacional e candidatos) os que assinaram a aliança e alteraram suas próprias estruturas para interagir com o movimento. Ambos os atores têm também traçado uma trajetória em comum, desejando um histórico que nos permite ver as variações da relação ao longo do tempo. O trabalho de campo também incorporou um levantamento bibliográfico de pesquisas sobre o movimento de mulheres da Nicarágua, a maioria delas focada no período revolucionário e nos primeiros anos dos 90, que é quando o país decreta o fim do conflito civil e o início das administrações neoliberais 18. Para acompanhar esse curso em relação com o campo, elaborei uma linha do tempo que colocasse em perspectiva as principais alterações conjunturais que o país foi experimentando desde os primeiros anos da revolução sandinista até o tempo 18

De fato, as pesquisas sobre a Nicarágua, em geral, estão bastante restritas ao período sandinista dos anos 80s e as análises sobre o fim da revolução nos 90s. Entre finais dos anos 90s até 2006 o país adoeceu de um enorme vazio de pesquisas e análises em torno ao percurso neoliberal. Com o retorno da FSLN ao poder em 2007, são publicados diversos artigos científicos que tentam caracterizar esse momento “da esquerda” no país, partindo das suas relações regionais no marco da ALBA. Na nossa visão, por isso cabe destaque o livro coletânea e de percurso histórico recentemente elaborado por Puig, Close and McConell (2012).- The Sandinistas and Nicaragua Since 1979

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presente. Ter feito esse exercício enquanto realizava uma boa parte das entrevistas de campo foi essencial para a seleção dos momentos de inflexão mencionados no começo deste texto, reforçando nosso empenho ao redor da análise da trajetória, e ao mesmo tempo permite observar as transformações organizativas que o movimento de mulheres foi experimentando, segundo as alterações do próprio contexto. A linha do tempo mencionada, assim como o resto de documentos características da aliança (o acordo escrito, o primeiro relatório do partido, etc) fazem parte do conjunto de Anexos incorporados a esta tese. 4. Caracterização das atoras

As repetidas tentativas das organizações de mulheres por criarem uma rede única feminista não só têm conduzido a disputas internas, muitas vezes expressões de conflitos pessoais entre as ativistas, mas também geraram ao longo dos últimos vinte anos uma pluralidade de formas organizativas altamente complexas e difíceis de explicar a partir de quadros simples. Nos dias de hoje, o movimento de mulheres da Nicarágua está caracterizado por uma multiplicidade de redes, estrutura de coordenadorias, ONGs feministas, várias destas organizações localizadas localmente em pequenas cidades do interior, e ativistas que desde a sua individualidade, isto é, sem militância em organização alguma, integram o espectro do movimento de mulheres na sua acepção mais ampla. Assim podemos então detectar que as mulheres se articulam nacionalmente em torno de quatro grandes redes e uma ONG de alcance nacional. Já localmente, isto é nas distintas províncias (ou departamentos) e municípios do interior, constituem mais de 350 organizações articuladas em redes regionais e diversos coletivos, das quais destacam Red de Mujeres del Norte (aglutina as organizações de mulheres dos maiores departamentos do norte como Matagalpa, Jinotega e Esteli, entre 130 e 160 kms ao nordeste de Manágua), Red de Mujeres de Occidente (aglutina organizações dos departamentos de León e Chinandega, entre 90 e 167 kms ao ocidente de Manágua) e redes de mulheres da região atlântica, no caribe do país. Já dentro de cada província (ou departamento) destacam coletivos com uma forte organização e de peso no contexto nacional, particularmente os Colectivo de Mujeres de Matagalpa, Colectivo de Mujeres de Léon e Colectivo de Mujeres de Masaya (apenas a uma distância de 27 kms ao sul da capital). A maioria destes coletivos de mulheres surgiu durante os últimos

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anos do período revolucionário, entre 1988 – 1990, gerando as primeiras tensões por representação entre as feministas e a Frente Sandinista (FSLN). Como veremos mais adiante na tese, esses formatos organizativos foram se alterando ao longo de tempo. Após o fim da revolução sandinista, as mulheres investiram seus esforços organizativos em gerar redes de acordo com o conteúdo das estratégias do movimento, mas já entre 1990 – 2005 muitas dessas redes foram se transformando em ONGs, novas articulações foram surgindo, outras foram desarticuladas; isso tudo segundo o peso da conjuntura em particular. Se pudéssemos “fotografar” o que as feministas nicaraguenses chamam de movimento amplo de mulheres, ele poderia ter uma composição similar a isto:

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MAM (Movimiento Autônomo de Mujeres) Integrado por 267 ativistas feministas cadastradas de forma individual

MAM Saudável (Trata-se de uma rede de ativistas do MAM nos territórios, a maioria expulsa do MAM nacional por questionar o andamento da aliança com o MRS)

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MFN (Movimiento Feminista de Nicarágua) Nascida da dissidência do MAM por conta do conflito ao redor da aliança MAM - MRS

RMCV (Red de Mujeres contra la Violencia)

Nível Nacional

Reminiscente das redes temáticas surgidas entre 1990 – 1992

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MEC (Movimiento Maria Elena Cuadra) Tem funcionamento de ONG, mas com uma base nacional de mulheres operárias e trabalhadoras domésticas.

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CMR (Coordinadora de Mujeres Rurales) Integrada por um aproximado de 120 organizações rurais e Cooperativas agrárias de mulheres camponesas

Como mencionamos anteriormente, já no nível local existem redes regionais conformadas por coletivos, das quais destacam:

Nível Local

Red de Mujeres del Norte Aqui participam diversas organizações das províncias de Matagalpa, Esteli e Jinotega, dos quais sobressaem: - Colectivo de Mujeres de Matagalpa - Grupo Venância - Fundación Entre Mujeres de Esteli Diversos coletivos de mulheres em outras províncias, dos quais destacam: - Colectivo de Mujeres de Masaya - Grupo Feminista de León - Movimiento de Mujeres Segovianas - Espacio Feminista de Esquipulas - FUNDEMUNI

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Como explicar cada um desses espaços para a compreensão geral do movimento no país? Vejamos: A criação do MAM entre 2004 e 2005 refletiu os interesses das feministas por criarem a rede única de mulheres que elas ansiavam desde a primeira metade dos anos 90. Contudo, a vontade da rede única gerou uma série de tensões, particularmente pelo caráter compulsório que tal rede teria. Na tentativa de superar esse tipo de tensões, as feministas resolveram que o MAM fosse apenas integrado por feministas de forma individual e não por organizações. Isto se explica pelo acordo de preservar o livre arbítrio para as mulheres decidirem o próprio espaço em qual militar, e permitir, ao mesmo tempo, que as ativistas do MAM pudessem se incorporar em outras redes nas quais incrementar a sua influência. Hoje o MAM está integrado por 267 ativistas individuais, a maioria delas militante de outros espaços nacionais e redes territoriais. Se as feministas do MAM conseguiram reduzir as tensões com um modelo de militância individual para participar da rede, os conflitos surgiram pelo curso que tomou a aliança com o MRS pelo manejo político da Coordenadoria Política Nacional do MAM. Apesar de sentirem simpatia pelo MRS, muitas ativistas não esconderam os constrangimentos motivados pela pressão que as líderes nacionais colocaram para efetivar a aliança com o partido político durante a própria campanha eleitoral. Esses questionamentos foram interpretados pelas integrantes da Coordenadoria Política como um atraso para o andamento da decisão tomada pela assembleia nacional do MAM, situação que levou à expulsão de 12 ativistas logo no primeiro ano. Esse primeiro racha gerou a formação do Movimiento Feminista da Nicarágua, conformado por ativistas e organizações feministas que privilegiam a questão da autonomia do movimento por cima das relações com os atores políticos institucionais. Contrário ao MAM, dentro do Movimento Feminista pode se sentir uma forte influência das ONGs, tendo maior peso uma das ONGs tradicionais de feministas com um forte alcance na América Central, conhecida como La Corriente e diversos coletivos locais, como as feministas do ocidente do país. Além dessas duas redes, encontramos outro ator com um forte peso nos debates nacionais sobre feminismo e violência de gênero. Trata-se da Red de Mujeres contra la Violencia (RMCV), uma estrutura composta por mais de 130 organizações e grupos de mulheres com presença na maioria das principais cidades do país. Dentro da RMCV milita quase a maioria das ativistas do MAM, ao ponto que tem tido episódios de conflito por conta da pressão que

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ocasionalmente o MAM exerce dentro da rede. A RMCV surgiu nos primeiros anos da década dos 90, no seio dos debates nacionais sobre autonomia e arranjos organizativos que vieram após o fim da revolução sandinista. Assim como a RMCV, foram criadas outras três redes, mas que – com exceção da Red Salud – não conseguiram manter a permanência e foram sofrendo uma gradual desintegração de organizações e ativistas. Dentro desse panorama todo do movimento, podemos também situar ao Movimiento de Mujeres María Elena Cuadra (MEC), que surgira entre 1995 – 1996, quando os sindicatos filiados à FSLN sofreram o impacto das disputas políticas travadas pelas duas tendências do sandinismo, gerando a expulsão de quase todos os quadros de funcionárias das Secretarias da Mulher que foram formadas no final dos anos 80, dentro das organizações sindicais sandinistas. Isto fez com que o MEC se especializasse em acompanhar a luta das mulheres operárias na Zona Franca da indústria têxtil que pipocou no país nos anos 90, assim como o direito de trabalhadoras domésticas, e mais recentemente, em 2012 teve um papel fundamental, e não por isso menos polêmico, na aprovação da Lei 779 que criminaliza a violência contra as mulheres e os feminicídios. No âmbito nacional podemos também mencionar a Coordinadora de Mujeres Rurales (CMR). A CMR é composta por 120 cooperativas rurais e três organizações comunitárias que surgiram dos modelos de economia solidária e cooperativismo que caracterizaram as políticas econômicas do período revolucionário dos anos 80s. Por essa razão, a CMR é fortemente vinculada às estruturas organizativas da FSLN, e consegue reunir até 10,600 mulheres rurais provindas de dez dos dezesseis departamentos que conformam a Nicarágua. Além dessas cinco estruturas nacionais podemos encontrar redes e organizações feministas em diversas regiões e cidades menores do país, das quais podemos ressaltar a Red de Mujeres del Norte (RMN) com uma forte presença de organizações na cidade de Matagalpa (125 km ao nordeste de Manágua) onde existe uma forte experiência dos coletivos de mulheres, os primeiros grupos autônomos da FSLN que surgiram no final dos anos 80, com maior realce do Grupo Venância e do Colectivo de Mujeres de Matagalpa. Igual destaque merecem coletivos similares nas cidades de Masaya (a 27 km de Manágua no sudoeste) e na cidade de León (antiga capital da Nicarágua e localizada a 90 km ao nordeste de Manágua), cujos grupos e organizações de mulheres também fazem parte do nosso campo.

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Com tanta diversidade de organizações e estruturas nas quais militam as mulheres, nos resultava inquietante entender como as organizações e ativistas conseguem garantir a coordenação para as mobilizações, e como nelas se dá o peso da localidade (se essa mobilização tem de acontecer em Manágua ou nas outras cidades). Como explica Geni Gomez, ativista do Grupo Venância, de Matagalpa, durante os últimos cinco anos tem se perdido a centralidade em torno das convocatórias e agora essas não apenas são descentralizadas, mas também dependem dos cálculos exigidos pela conjuntura: “(...) Hay convocatorias que han salido de la RMCV, hay momentos que ha convocado el MAM, hay momentos que convoca el Movimiento Feminista. No viene siempre de una sola dirección. Depende. Pero eso es de ahora, de los últimos cuatro o cinco años (…) Esto no quiere decir que todas las redes tengan el mismo peso. La RMCV es la referencia en el tema de la violencia, pero no quiere decir que las otras no tengan autoridad en el tema. Igual se han convocado acciones desde las organizaciones territoriales porque se está en ese debate de que Managua no es Nicaragua, que nuestra articulación se vea así pero es un debate no resuelto porque una acción nacional no significa una acción en un solo lugar o una acción sólo en Managua. Entonces, a veces vemos que amerita o una presencia en Managua, porque ahí están las representaciones del poder, pero a veces las simultaneas pueden que tengan más peso. Es decir, no es nada resuelto. Depende siempre de los cálculos.”

Essa pluralidade de arranjos organizacionais de certa forma também justifica que exploremos a trajetória do movimento de mulheres. Isso nos ajudará a explicar como, depois que AMNLAE perdera a centralidade de organização única de mulheres, os modelos organizativos foram se alterando constantemente, dependendo da influência do sistema de partidos políticos, e em outros momentos, por causa das disputas internas entre as próprias ativistas. Atendendo ao peso desse percurso histórico, esta tese está estruturada em seções que vão combinando o percurso histórico do processo democrático nacional com as biografias das ativistas e as alterações dos arranjos organizativos que o movimento de mulheres foi gerando ao longo desses anos, facilitando-nos compreender os fatores que conduziram as relações que o movimento experimenta com os partidos políticos e as consequências de tal interação. A seguir, explicaremos como estamos organizando a explanação e qual o caminho que, acreditamos, nos permitirá extrair conclusões mais afinadas para a compreensão das dinâmicas relacionais que expliquem o ativismo contemporâneo.

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5. Estrutura da tese

Esta tese compõe-se de cinco capítulos, começando por analisar a realidade atual de relações entre o movimento de mulheres com o sistema de partidos no contexto da administração sandinista (2007 – 2011). Na sequência, queremos percorrer as trajetórias das ativistas e o processo histórico da democratização nicaraguense, com a intenção de encontrar categorias explicativas da autonomia do ativismo feminista “em relação” com os partidos políticos. No primeiro capítulo pretendemos explicitar a realidade escolhida para análise e o recorte feito do campo. Nosso enquadramento de pesquisa incorpora o período de 2007 – 2011, que abarca o primeiro período do mandato de Daniel Ortega (FSLN) na Nicarágua, desde o fim do período revolucionário sandinista (1979 – 1990). A volta de Ortega ao Executivo se caracterizou por reformas profundas ao sistema participativo, acirrando o conflito que já a FSLN vinha arrastando com algumas organizações, particularmente organizações feministas. Isto gerou uma relação tensa entre o estado e o movimento de mulheres que criou relações com partidos de oposição para enfrentar os embates oficiais. Trata-se de um capítulo descritivo do campo, apresentação dos atores e da relação especifica (do movimento e o partido) que tentamos analisar e como ela impacta de certa forma no estado. No segundo capítulo queremos explorar o tratamento que a bibliografia dos movimentos sociais, e particularmente do movimento de mulheres na América Latina, tem feito ao redor das instituições políticas, particularmente partidos políticos. Ao tempo que pretendemos retratar os traços dessa produção teórica, queremos extrair contribuições desse debate para a análise da categoria de “autonomia” a partir das interações dos movimentos socais com os partidos políticos. Nosso argumento central desse debate é que a literatura feminista que trata das relações políticas do movimento de mulheres pode outorgar subsídios fundamentais para a o debate relacional, desvendando categorias chaves como “ativismo” e “autonomia” em relação. Já a partir do terceiro capítulo vamos analisar o campo ao longo de três fases. Nesta primeira fase iremos nos reportar até os primeiros anos da luta guerrilheira contra a ditadura de Anastásio Somoza e o começo do envolvimento das mulheres nela, que tipo de relação elas costuraram com a FSLN ainda sendo um movimento guerrilheiro. Veremos o papel que AMPRONAC, como sendo a primeira organização de mulheres nesse período, desempenhou

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no bojo da luta contra a ditadura e contribuiu com as condições que levaram até a revolução popular de 1979. Nesse mesmo capítulo analisaremos com maior ênfase, o período entre 1980 – 1989, fortemente caracterizado pelo avanço do estado revolucionário-socialista, representado no controle estado sobre as organizações de massas e a transformação de AMPRONAC em AMNLAE como a organização única feminista. Retrata o período em que começa revigorar o feminismo no país e o primeiro momento que começa se falar de autonomia do movimento de mulheres. Vale a pena resgatar a história do PIE (Partido de la Izquierda Erótica) que pretendia ser um partido único de mulheres, separado da FSLN No quarto capítulo entramos na terceira fase da trajetória que estamos analisando. Aqui vamos abordar o encontro do país com o cenário liberal de reformas estruturais, esquemas de representação formal democrática, eleições e o pipocar de redes e ONGs do movimento de mulheres. É o período em que também a FSLN experimenta sua maior crise e a ruptura interna, representada na formação de um novo partido, o MRS, por conta das disputas que caracterizaram as estratégias do partido desde a oposição após a derrota eleitoral de 1990 e quais os impactos dessa disputa para o movimento. Analisaremos alguns momentos altamente contenciosos que marcaram a separação total das feministas da FSLN. Alguns casos merecem maiores destaque, entre eles a acusação contra Daniel Ortega por estupro em 1998 e as negociações que a FSLN fez com o maior partido liberal daquele momento para salvar Ortega do processo na justiça, conduzindo em 2000 ao pacto que permitiu a partilha das instituições do estado entre ambos os partidos políticos. No quinto capítulo voltaremos ao ponto central da pesquisa que já explicitamos no começo. Nele vamos a abordar, desde uma perspectiva totalmente analítica, os impactos da mudança no estado da Nicarágua e o acordo entre as organizações do movimento feminista com os partidos políticos, com um olhar atento na trajetória relatada para a discussão da autonomia. É onde analisaremos os contornos da autonomia em relação entre os atores em jogo, movimento, partidos tanto em oposição, como o próprio partido no estado a partir da reconfiguração vivenciada no país desde 2007.

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Cap. 1. Movimento de mulheres da Nicarágua e as relações políticas em contexto

Neste capítulo pretendemos apresentar – e explicar – a relação instaurada entre movimento feminista e o sistema de partidos políticos da Nicarágua no contexto mais recente. O objetivo deste texto é caracterizar o entorno e compreender os fatores que motivaram a relação posta em análise, quais as apostas dos atores, os efeitos da aliança e o vínculo dessa interação com o contexto específico. O contexto onde tal relação acontece corresponde aos anos do primeiro mandato do presidente Daniel Ortega (2007 – 2011) da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), 16 anos após o fim da revolução popular iniciada em julho de 1979. Ortega retomou o poder depois de três administrações liberais consecutivas que, entre 1990 – 2006, desmontaram a maioria dos programas sociais e transferências de renda para setores vulneráveis, legando cifras de pobreza acima do 40% e de desemprego superiores ao 60% (SPALDING, 2012). Talvez tenha sido por isso que o triunfo da FSLN em novembro de 2006 gerou expectativas nos movimentos populares e setores marginalizados quanto à criação de políticas públicas e programas que superassem as carências sociais 19, anelos presentes no DNA sandinista. Mas, como afirmamos brevemente na introdução da tese, esses anseios não foram correspondidos no novo mandato da FSLN. Mais à frente, neste capítulo, analisaremos como as reformas do sistema participativo implementadas pela nova administração orteguista geraram diversos atritos com um amplo espectro de associações, particularmente organizações feministas. Ao concluir o primeiro ano de mandato, Ortega já havia instaurado uma frente de conflito com as organizações de mulheres, ao abrir um processo penal da Procuradoria Geral contra nove líderes feministas (a maioria delas do Movimento Autônomo de Mulheres, MAM) pelas estratégias de luta do movimento para descriminalizar o aborto terapêutico. Um conflito que ficou ainda mais

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Durante a primeira semana do mandato de Ortega, um dos principais jornais do país elaborou uma sondagem entre nicaraguenses migrantes na Costa Rica que confirmaram as esperanças de voltar ao país a depender da melhora nas oportunidades de emprego, moradia, saúde e educação que surgiriam com o novo governo. O retorno da FSLN ao Poder Executivo estimulou as expectativas de aproximadamente 5 milhões de nicaraguenses em condições de pobreza (http://archivo.elnuevodiario.com.ni/nacional/200094-exodo-esperanzaganas-retornar/). Em 2012, a cifra de migração nicaraguense à vizinha Costa Rica foi de 480 mil 123, segundo dados do serviço jesuíta de migrantes da Universidade Centro-Americana (UCA): http://www.uca.edu.ni/sjm/index.htm

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intenso ainda quando, no último trimestre de 2008, orientou a interdição policial do escritório central do MAM. Para entender o impacto dessa complexa conjuntura para o movimento de mulheres e para o vínculo que estabeleceram com os partidos políticos (especificamente com o Movimento de Renovação Sandinista, MRS), este capítulo está dividido em quatro subseções. Na primeira detalharemos as características do entorno que permitiu a volta da FSLN ao Poder Executivo da Nicarágua, desde a campanha eleitoral de 2006 até os primeiros quatro anos do governo Ortega. Nela tentaremos explicar como os meses de campanha foram essenciais para costurar a relação MAM- MRS que, de certa forma, estimulou uma relação mais ampla do movimento de mulheres com o sistema de partidos políticos, e qual o percurso dessa relação (e as dinâmicas embutidas nela) ao longo dos primeiros quatro anos de governo sandinista. Na sequência, analisaremos as características da relação entre o movimento de mulheres e o partido político (MRS) em concreto. Buscaremos compreender a aposta a partir da qual partido e movimento se “aventuraram” na relação, quais foram as principais consequências para os atores e para o entorno organizativo onde eles agem, isto é, para o conjunto de organizações e suas estratégias participativas, e para o próprio sistema de partidos políticos. Na terceira seção queremos compreender como essa relação impactou no estado. Não se trata apenas de trazer o “terceiro ator” na roda do debate, mas de mostrar que assim como essa relação teve consequências para os próprios atores envolvidos, também teve a capacidade de impactar no entorno político, interagindo com o estado, apesar dos atritos com as instituições oficiais. Focaremos essa parte da análise em dois casos concretos: a aprovação da lei que criminaliza a violência contra as mulheres, e a criação de uma normativa (também em forma de lei) que obriga os partidos políticos adotarem uma regra de cotas de paridade de gênero de 50% em todas as listas de candidaturas para eleição popular. A primeira foi iniciativa de uma das organizações do movimento e revelou uma interação intensa entre organizações feministas, deputados da bancada de direita e da FSLN e o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto a segunda (conhecida como lei 50-50) surgiu do próprio Executivo e dispensou qualquer processo de consulta com as organizações feministas. Concluiremos este capítulo tentando encontrar pistas para a compreensão da categoria de autonomia desde o ponto de vista empírico. Não apenas adotamos a ideia de que a autonomia aparece pautada pela tensão que esta relação impõe, mas assumimos – e de certa forma fomos observando isso no campo – que as ativistas do movimento elaboram constantemente sua

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própria noção de autonomia, fazendo com que seja garantidora da relação, e ao mesmo tempo uma categoria completamente nativa e, claro está, passível de explicação teórica. 1.1.De volta ao poder: O retorno da FSLN ao Executivo e as alterações das relações políticas

O pleito presidencial de 2006 marcou um momento de inflexão importante para o percurso da transição democrática que a Nicaragua iniciara após o fim do conflito civil dos anos 1980. Por um lado, o contexto eleitoral oferecia as condições para a vitória eleitoral da FSLN (os partidos liberais que reuniam a principal oposição a Ortega desde 1996 concorreram totalmente divididos, rompendo um hegemônico bloco eleitoral), mas também o próprio Ortega disputava com o MRS (partido que surgiu do racha interno da FSLN entre 1994 – 1995) os votos da base sandinista. Em outras palavras, tratou-se de um processo que escapou da tradicional disputa bipartidária da FSLN (com a candidatura de Ortega) vs o Partido Liberal Constitucionalista (PLC) 20. Por outro lado, os resultados da votação que permitiram a FSLN assumir o controle do Poder Executivo em janeiro de 2007, impactou também na geopolítica regional da America Central. Com Ortega no poder, a Nicarágua começou formar parte da Aliança Bolivariana das Américas (ALBA), projeto de integração regional liderado pelo falecido presidente venezuelano Hugo Chávez, influenciando indiretamente os demais países da região 21. A conquista eleitoral da FSLN inscreve-se na expansão de governos provindos de movimentos sociais ou de partidos de esquerdas, cujas transformações caracterizaram uma boa parte dos contextos da América Latina desde a primeira metade dos anos 2000. Contudo, a experiência sandinista distingue-se dos “pares” latino-americanos por dois fatores substanciais. O primeiro é que, distintamente do PT no Brasil, o MAS na Bolívia e até mesmo do “Movimento V República” na Venezuela, a FSLN já tinha experimentado o comando do Poder Executivo nos anos 1980, produto da revolução popular de 1979. A 20

O PLC surgiu de um grupo de militantes liberais que durante os anos 1970 rompeu com o liberalismo da ditadura somozista (o extinto Partido Liberal Nacionalista de Somoza). Durante os anos 1980, o partido foi afetado com a prisão de Arnoldo Alemán, o maior dirigente do PLC que declarou oposição à revolução sandinista. Após as eleições de 1990, Alemán obteve a Prefeitura de Manágua, posição desde a qual consegue levar o PLC à Presidência nas eleições de 1996, instaurando assim a disputa pelo poder com a FSLN ao longo dos dez anos seguintes. 21 Como referência podemos citar o golpe de estado militar de junho de 2009 contra o presidente da Honduras, Mel Zelaya, como reação dos militares à iniciativa do mandatário para associar o país à ALBA, ou da crise que enfrentou o então presidente da Guatemala, Álvaro Colom (2008 – 2012) por ter projetos financiados com a cooperação venezuelana e que lhe custou a derrota eleitoral em 2012.

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segunda diferença é que a experiência movimentalista da FSLN é mais antiga do que a maioria dos seus similares da esquerda latino-americana (com exceção do socialismo cubano). O movimento sandinista foi fundado em 1961, no exílio, por três membros dissidentes do Partido Socialista (PS) e do Partido Conservador da Nicarágua (PCN) – principais adversários de Somoza – evidentemente inspirados na revolução cubana, e com a intenção declarada de criar um movimento depositário dos ideais do Gral. Augusto C. Sandino, assassinado em 1934 (PUIG, 2012) 22. Além de ressaltar as diferenças com uma boa parte da esquerda latino-americana, as eleições de 2006 também mostraram um sandinismo altamente transformado. Por causa da ferrenha disputa de base eleitoral que a FSLN travou contra o MRS, Ortega implementou uma estratégia de campanha que bloqueasse a tradicional oposição da igreja católica e dos setores mais conservadores. Assim, instaurou uma inédita aliança com a hierarquia da Igreja Católica, comprometendo os votos da FSLN no Congresso para criminalizar o “aborto terapêutico”, isto é, o aborto permitido por razões da saúde da mulher, que já estava legalizado no país desde 1893 23. A questão do aborto não só acirrou a campanha eleitoral, como colocou o próprio movimento feminista no centro do conflito. O MAM já tinha assinado a aliança política com o MRS quando iniciou o pleito, situação que não apenas impactou na dinâmica da campanha como deixou fortes consequências para o movimento feminista. Nas páginas a seguir analisaremos essa dinâmica e o peso das pautas feministas no processo eleitoral. a. “O aborto é feio”

No pleito presidencial de 2006, a campanha de Daniel Ortega (FSLN) se baseou num discurso – e numa prática – totalmente distante do histórico de conflitos e de embates com a elite tradicionalista que caracterizara à Frente Sandinista de outrora. A primeira diferença 22

No terceiro capítulo desta tese, quando analisemos em detalhe a formação do movimento guerrilheiro e a participação das mulheres nele, aprofundaremos no contexto do início da ditadura somozista que seguiu ao assassinato de Sandino, no meio de uma conjuntura marcada pela crise política que o país experimentara entre 1934 – 1936. 23 A rigor esse tipo de aborto era permitido por uma série de restrições e condicionantes, tais como a avaliação de três médicos e o consentimento do marido. Essa disposição ficou estabelecida no próprio Código Penal durante a revolução liberal (1893 – 1909) que marcou os primeiros anos do século XX na Nicarágua e determinou a separação da igreja dos assuntos do Estado. A revolução liberal comandada pelo General José Santos Zelaya acabou por causa do “descontentamento” de Washington atiçado pela oposição conservadora, (no meio das tradicionais disputas entre conservadores e liberais que distinguiram a formação do Estado na América Latina) e gerando as condições para a ocupação militar dos EUA sobre o país que iniciou em 1910. Uma passagem breve sobre esse período pode ser encontrada em Puig, (2012, pp. 1-18) e Marega (1982).

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estava no próprio visual. O candidato sandinista abandonou o tradicional “vermelho e preto” 24

para incorporar uma cor rosa altamente chamativa em todos os materiais de campanha. O

tradicional uniforme militar dos anos 1980 e a forte aparência com a qual comandou o partido na oposição entre 1990 e 2006 foram substituídos por uma sóbria combinação de camisa branca e jeans claros que vestiu ao longo de todos os meses de campanha. O discurso anti-imperialista e de combate direto ao catolicismo tradicional – de alguma forma presente nas eleições de 1990, 1996 e 2001 – cederam espaço para uma retórica de “reconciliação, paz e união” ao som de uma adaptação bem particular do “Give peace a chance” de John Lennnon, que servira como trilha sonora para a coalizão eleitoral que instaurou com parte dos seus adversários históricos. O candidato à vice-presidente na chapa sandinista

foi

Jaime

Morales

Carazo,

um

reconhecido

dirigente

do

grupo

contrarrevolucionário que combatera o governo sandinista ao longo dos anos 1980 (KAMPWIRTH, 2008 p. 124). A Igreja Católica foi outro ator chave na estratégia de aliança eleitoral costurada pela FSLN. O arcebispo de Manágua, Cardeal Miguel Obando, que depois de exercer uma ferrenha oposição ao governo revolucionário da década de 1980 e ainda fazer uma explícita campanha contra Ortega em plena homilia dominical durante as eleições de 1996; reapareceu em 2006 não apenas apoiando a chapa Ortega – Morales como se envolvendo nas principais ações de “batismo cristão” do candidato sandinista. A mais emblemática delas foi a consagração eclesiástica – oferecida pelo próprio Obando na Catedral Metropolitana – do matrimônio entre Ortega e Rosário Murillo, a companheira de vida do candidato sandinista desde finais dos anos 70 25. Isso tudo pareceu justificar os temores que as organizações feministas já tinham declarado, caso Ortega ganhasse a disputa eleitoral. Desde 2005, todas as organizações do movimento de mulheres mantinham uma assembleia permanente para refletir sobre as implicações que o

24

O vermelho e preto são as cores da bandeira histórica da FSLN desde os primórdios do movimento guerrilheiro criado em 1961. 25 Além de companheira de Ortega, Rosário foi a coordenadora da campanha eleitoral da FSLN e acompanhou o candidato em todos os comícios ao longo do país, ainda mais vezes que o próprio Morales. Durante os meses de campanha, ela foi a única pessoa do partido que declarou publicamente a posição partidária ao redor do aborto terapêutico, durante uma entrevista de rádio, reproduzida na análise de Kampwirth (2008), na que declara: “Precisaly because we have faith, because we are believers, because we love God above all things...For those reasons we also defend, and we agree completely with the Church and the churches that abortion is something that affects women fundamentally, because we never get over the pain and the trauma that an abortion leave us…and this pain is something that we don’t want for anyone…The (Sandinista) Front says “Not to abortion, yes to life” (2008, p. 124- 125)

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pleito de 2006 teria para o ativismo feminista. No marco desse debate, as ativistas consideraram que a ascensão de um partido “fundamentalista e neoliberal, capaz de se fazer passar por esquerda” (CHAGUACEDA, 2011, p. 51) teria impactos na regressão de direitos (particularmente no tocante ao aborto). Durante a pesquisa de campo, uma das ativistas do movimento 26, líder de organizações feministas na região das Segovias (província do noroeste do país, a 226 km de Manágua), detalhou a percepção que o movimento já tinha construído ao redor do contexto prévio às eleições, durante as assembleias permanentes que, entre outras coisas, pretendiam consolidar a posição política do MAM no cenário nacional: “Salió un análisis de contexto que hicimos y me tocó a mí exponerlo (frente) al movimiento y en donde empezábamos a ver con muchísima claridad, ya en 2005, de todo lo que se nos avecinaba. Entonces nosotras comenzamos a ver todo lo que pasaba dentro del FSLN posterior a la denuncia de Zoilamérica 27. Empezaron a arreciar contra nosotras de manera apabullante y eso nos hizo vislumbrar lo que pasaría si el FSLN llegaba al poder. Empezamos a ver toda la cercanía de la familia Ortega con la jerarquía católica. Empezamos a ver como desarrollaban la cercanía con los evangélicos. Es decir, había una serie de señales que nos hacían ver que si esto era gobernando desde abajo 28 (grifo nosso), ya llegando al poder nos dejaba en una situación de vulnerabilidad, pues iba a ser peor. Pero nuestro análisis no era sólo viendo al partido, pues sabemos que el FSLN no podía haber llegado a hacer todo lo que ha hecho sin un PLC 29, sin la Iglesia Católica y sin el gran capital. Es decir, todo ese tejido que hace un sistema que no es más que la expresión del patriarcado de Nicaragua” (H. Castillo, entrevista realizada em janeiro de 2014)

Tal entendimento serviu de alicerce para a aliança que em junho de 2006 o MAM subscrevera oficialmente com o MRS. A aliança foi um ponto sensível para a campanha eleitoral, desde que o acordo do movimento serviu também de plataforma de apoio à postulação de Herty Lewites como candidato presidencial do MRS. Lewites era um dos quadros mais importantes da FSLN durante os anos 1980, mas com a crise do sandinismo em 1995, começou a experimentar diversos embates com o estilo de liderança tradicional que representava Ortega na elite da FSLN. Em 2005, já no fim do mandato como Prefeito de

26

Haydée Castillo, feminista líder do MAM na região das Segovias e uma das expulsas pela Coordenadoria Nacional do MAM por questionar o andamento da aliança com o MRS, episódio que veremos mais à frente. 27 O caso de estupro pelo qual Ortega foi denunciado e que abordaremos no capítulo 4 desta tese 28 Refere-se à famosa frase emitida por Ortega em fevereiro de 1990, ao admitir a derrota eleitoral para Violeta Chamorro, na qual garantira que a proximidade da FSLN com os movimentos sociais, permitiria ao sandinismo “governar desde baixo” compensando a perda do período revolucionário. 29 Partido Liberal Constitucionalista, da direita tradicional do país.

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Manágua – eleito (em 2000) sob a legenda de uma associação de subscrição popular 30 Lewites demanda do FSLN eleições internas primárias nas quais ele pudesse concorrer como pré-candidato para o pleito presidencial de 2006. Em resposta, Ortega pressionou por uma modificação estatutária do partido, a partir da qual eliminou as eleições primárias como mecanismo para a nomeação do candidato presidencial. Em lugar de primárias, conseguiu que fosse a Assembleia Sandinista – uma estrutura de representantes da base partidária por províncias – que decidisse por votação unanime a candidatura presidencial. A medida só poderia favorecer Ortega, desde que a tendência que ele representava no seio do conflito dos anos 90 controlava praticamente todas as cadeiras da Assembleia Sandinista (BALDIZON, 2004). Tal decisão, interpretada por vários líderes partidários como um “sequestro do sandinismo pelo orteguismo”, gerou o nascimento de uma nova facção depositária da tendência que em 1995 gerou o MRS. A facção, conhecida como “Movimento de Resgate ao Sandinismo”, tendo a reconhecida ex guerrilheira Mónica Baltodano e o próprio Lewites como as figuras chaves, abandonou a FSLN e decidiu negociar uma coalizão de associações, ONGs e partidos para disputar – com a legenda do MRS – as eleições de 2006 tendo a Lewites como candidato presidencial. Assim surgiu a “Coalizão Herty 2006” (LACOMBE, 2010). A aliança do MRS com o MAM inscreve-se nesse contexto. As feministas apostavam na “Coalizão Herty 2006”, sob a expectativa de que um eventual triunfo eleitoral de Lewites permitiria o fortalecimento de uma “nova esquerda”, mais próxima de reformas substancias em termos de direitos sexuais e abertura democrática, e distante das práticas autoritárias que invadiram à FSLN. Como uma das líderes nacionais do MAM 31 nos informou, tratava-se de uma “estratégia de defesa do movimento feminista”, baseada em três princípios: “sostener la existencia del movimiento autónomo, contribuir a desarrollar una sociedad civil fuerte y autónoma y a la construcción de una nueva izquierda en el país (grifo nosso)” Todavia, alguns acontecimentos chaves confluíram ao longo dos quatro meses de campanha frustrando, praticamente, todas as expectativas do movimento feminista. Por um lado, a proposta de emenda para criminalizar o aborto terapêutico no seio das reformas do Código

30

As associações de subscrição popular foram figuras permitidas pela Lei Eleitoral como grupos de cidadãos com faculdades para postular candidatos nas eleições municipais, sem passar pelos partidos políticos. Essa figura foi eliminada em 2001, produto do pacto entre Ortega e o ex presidente Aleman (2001 – 2006) 31 Sofia Montenegro, da Coordenadoria Nacional do MAM em entrevista realizada em Dezembro de 2011

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Penal no Congresso Nacional 32 gerou desafios ao movimento feminista ao redor de uma estratégia articulada de defesa. Particularmente as ONGs que integram o movimento (especificamente as organizações localizadas em Manágua, com ênfase na organização Puntos de Encuentro) insistiram em que a defesa do aborto terapêutico devia ser feita a partir de “ações lúdicas” (festivais, apresentações artísticas a favor da saúde das mulheres, etc.) que não confrontassem abertamente as posturas tradicionais e fundamentalistas. Já as feministas que militam “individualmente” no movimento (particularmente a cúpula do MAM e algumas líderes locais) pressionavam por uma estratégia de confrontação aberta e altamente radical. Em contraposição, os setores mais conservadores e antifeministas apareceram “unidos e sofisticados” (KAMPWIRTH, 2008, p. 128), combinando ações de lobby e pressão de rua a favor das reformas. Os fortes vínculos com o estado (muitos deles através de relações pessoais com os ministros da Família, da Saúde, e até da pasta de Educação) contribuíram com o fortalecimento de grupos como a Associação Pró-Vida e a Aliança Evangélica. O embate entre o feminismo e o espectro conservador ao redor do aborto dominou por inteiro a campanha eleitoral, tendo como ápice, a passeata que a Associação Pró-Vida em conjunto com a hierarquia católica e a Aliança Evangélica realizou em Outubro de 2006, reunindo 200,000 pessoas nas ruas a favor da criminalização do aborto terapêutico. Com exceção do MRS, todos os partidos políticos apoiaram a emenda, mas isso não gerou complicações para este partido em particular. De fato, as dificuldades chegaram por outros motivos. O candidato Lewites morreu de infarto quatro meses antes do dia das votações, obrigando o MRS a rever sua coalizão, suas alianças e até, é claro, quem substituiria o candidato na corrida pela Presidência. O falecimento de Lewites não abalou a aliança com o MAM, mas a decisão da coalizão eleitoral de postular Edmundo Jarquin, (o candidato a vice-presidente na chapa eleitoral) 32

Segundo nos contou uma ativista do MAM, as reformas ao Código Penal com relação ao aborto terapêutico vinham acontecendo desde 2005 quando o Legislativo estava fazendo as consultas com representantes dos partidos políticos, organizações feministas e Igreja Católica. O acordo alcançado, até com a igreja, estava ao redor das condicionantes para o aborto terapêutico, porém enfrentavam um impasse: A lei já permitia este tipo de aborto em caso de estupros, e riscos à saúde da mãe (com o consentimento médico e do marido), mas a igreja não estava aceitando que se incluísse a malformação do feto como condicionante de aborto. Perante esse impasse, a FSLN ofereceu diretamente os votos para criminalizar de uma vez a figura do aborto terapêutico e esquecer o debate sobre as condicionantes. A decisão foi vendida para militantes sandinistas, inclusive para deputadas da FSLN que tiveram de votar pela reforma, como uma estratégia para evitar que a Igreja Católica atrapalhasse a campanha eleitoral de Ortega, e que a reforma seria revertida, uma vez a FSLN ganhasse as eleições, coisa que, de fato, não aconteceu. Curiosamente, a iniciativa de criminalização foi apresentada pelo então presidente Enrique Bolaños, um idoso ultraconservador que governou o país entre 2001 – 2006. Para mais detalhes vide “Votos Vergonzantes” In: http://impreso.elnuevodiario.com.ni/2006/10/27/nacionales/32372

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como candidato presidencial, radicalizou o pleito, fragilizando mais ainda o movimento feminista. Vejamos. Edmundo Jarquin era, até o começo da campanha, um burocrata do Banco Mundial que residia na Espanha, desconhecido na Nicarágua e com pouco carisma (que Lewites possuía) para atrair a base eleitoral tradicional da FSLN. Perante tal dificuldade, os marqueteiros do MRS tiveram uma sacada que popularizaria Jarquin de imediato. Exploraram a aparência física do candidato e o apresentaram como “o candidato mais feio” da disputa eleitoral. Com isso, a coalizão do MRS gerou o lema de campanha “o feio que quer uma Nicarágua linda”, mas tal marca foi adotada pelos setores conservadores no meio do embate pelo aborto para atacar o candidato do MRS. Jarquin não só manteve a aliança com o MAM, como declarou seu apoio ao aborto terapêutico 33, contra as emendas ao Código Penal. Como consequência, a Associação Pró-Vida e o resto de partidos emplacaram o lema de “o aborto é feio”, chamando claramente a votar contra Jarquin e pressionando o Congresso para aprovar as reformas antes do dia das votações. Assim, na última semana de outubro, o Legislativo criminalizou o aborto terapêutico com a maioria dos votos da FSLN e o PLC. Dias depois (começando novembro), Ortega obteve a vitória eleitoral com o 38% dos votos, enquanto Jarquin não obteve o apoio de mais de 5% do eleitorado nacional. Como

o

estudo

Kampwirth

(2008)

comprova, eleitoral

de

a de

disputa 2006

na

Nicarágua se caracterizou por um revigoramento das pautas

conservadoras

e

antifeministas, associado a uma clara transformação da FSLN, que abandonara a retórica

transgressora

e

Passeata das feministas em 2006 contra a criminalização do aborto terapêutico (Foto: El Nuevo Diario)

progressista em nome da 33

A declaração do candidato apareceu em imprensa nacional, poucos dias antes da marcha da Associação PróVida, Aliança Evangélica e Conferência de Bispos da Nicarágua. Para detalhes, recomenda-se: http://www.laprensa.com.ni/2006/08/11/politica/1275932-jarquin-a-favor-de-aborto-terapeutico

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reconciliação e o legado revolucionário em troca da aliança com o catolicismo tradicional (p. 123). Mas existe pouca evidência de que essa estratégia tenha tido um impacto direto no resultado eleitoral da FSLN. Como anos depois, Kampwirth (2012) analisou: “(...) the FSLN won without growing, that is, it won with the votes of its traditionally loyal voters and few others, and the FSLN would have lost had the right not been divided in two. “Ortega won this time with 38 percent of the votes”. In the three previous elections he obtained similar or greater percentages: in 1990 against Doña Violeta Chamorro, 41 percent; in 1996 against Arnoldo Alemán, 38 percent; and in 2001, against Enrique Bolaños, 42 percent” (Envío apud Kampwirth, 2012: p. 206)

Quais são as consequências dessa configuração eleitoral para o tipo de governo que Ortega instaurou entre 2007 – 2011 (durante seu primeiro mandato)? Como isto impactou na relação que as feministas teriam com o estado, administrado pela FSLN e qual o curso da aliança entre o movimento de mulheres e o MRS nesse novo contexto? Desvendaremos ambas questões na seção à seguir. b. A posse de Ortega e os primeiros anos de tensão política

Embora Ortega tenha reconquistado o poder em 2006 com menos dos 40% do eleitorado nacional, o estilo de governo durante o primeiro mandato, iniciado em janeiro de 2007, foi carente de sutilezas na procura de negociação e consenso (PUIG, 2008). Antes pelo contrário. Ao longo dos primeiros cem dias de administração, o Executivo emitiu dois decretos para alterar o sistema de participação política, esvaziando os conselhos de participação, já existentes, de ONGs e associações comunitárias que vinham experimentando relações com o estado no lastro do processo de descentralização municipal iniciado desde finais dos anos 1990 (PRADO, 2007). As primeiras eleições municipais diretas aconteceram no período de 1990 – 1996, no bojo do processo eleitoral que determinou o fim do período revolucionário. Contudo, os municípios viveram o processo com certa instabilidade, já que as eleições diretas só eram para eleger os vereadores, de modo que a competência para eleição dos prefeitos ficava restrita à Câmara Municipal. Com a intenção de interferir no processo de descentralização, o Poder Executivo – sob a administração da presidente Violeta Chamorro (1990 – 1996) – criou os Conselhos de Desenvolvimento Municipal (CDM) como espaços tripartites de gestão entre governo nacional, governos municipais e associações comunitárias (STUART, 2009). Tais espaços,

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contudo, foram instituídos nas dinâmicas municipais como arenas de debate da gestão local, ao mesmo tempo em que as reformas constitucionais que aconteceram em 1995 estimularam mais ainda as experiências de descentralização, ao ampliar os mecanismos de eleição direta na escolha de prefeitos, através de sufrágios separados da eleição presidencial (2009: p. 21). A emenda serviu de impulso para a aprovação, em 1997, da lei de Municípios que reconheceu os CDM como instâncias de deliberação da política pública local, cujos formatos contribuíram mais tarde para a discussão (entre 1999 e 2000) e aprovação da Política Nacional de Participação Cidadã, instaurando o formato de CDM nos níveis provinciais (Consejo de Desarrollo Departamental, CDD) e nacional (Conselho Nacional de Planejamento Econômico-Social, CONPES)

34

. A literatura sobre o funcionamento dos

conselhos entre 2000 e 2005 (PRADO, 2008) enfatizou o caráter deliberativo e de consulta, onde as ONGs e o estado tinham maior peso, em contraposição ao pouco espaço dado às organizações comunitárias e de base. Tal diagnóstico serviu de justificativa para que em 2007, já na Presidência, Ortega determinasse que os conselhos deviam ser alterados, com o objetivo de outorgar maior destaque às associações comunitárias e reforçar mecanismos de participação direta que incidissem – sem instâncias de intermediação, vide ONGs – sobre prefeitos e vereadores. Mas longe de fortalecer o circuito CDM-CDD-CONPES, a nova administração sandinista (2007-2011) optou por deslegitimar tais espaços. Os CDM foram substituídos na prática por um novo sistema participativo que facilitou maior controle da FSLN, e sustentado em um discurso de democracia direta (ZAREMBERG, 2013). A reforma careceu de definições claras e gerou críticas da oposição e de diversas ONGs, de que a FSLN estaria gestando espaços de controle sobre os adversários políticos. Se bem nunca existiu um documento oficial que desvendasse o modelo de democracia direta pensado pela FSLN, um dos responsáveis de articular o modelo dentro do Poder Executivo 35, ofereceu ideias sobre a visão organizativa que o Executivo tinha imaginado para o novo contexto: “(…) la promoción de formas de organización popular, bajo una modalidad que es el modelo de Poder Ciudadano, (para que) la gente pueda tener capacidad de decisión desde la unidad más micro, hasta los procesos locales y los procesos nacionales. A eso es a lo que le estamos llamando democracia directa: a una especie de “congresos” del pueblo. Que esos congresos 34

Com a aprovação da Política Nacional de Participação, criam-se novos conselhos setoriais (adjuntos aos CDM) que começaram a operar vinculados às áreas de assistência social, meio-ambiente e rural. Com os anos, a experiência de conselhos se ampliou para as áreas de saúde, educação e orçamentos públicos (Stuart, 2009: p. 22-23). 35 Rodolfo Delgado, assessor de assuntos estratégicos da Presidência da República

66 del pueblo puedan tener articulación y vínculos permanentes con el andamiaje institucional […] También es buscar como modificar un poco lo que ha sido la costumbre de la ejecución de la gestión pública […](a través de) una triple alianza entre gobierno central, gobierno local, y poder ciudadano” (Delgado apud Cruz, 2009).

O primeiro impacto dessa mudança institucional se expressou num conflito de poderes, depois que Ortega emitira um decreto criando o Conselho de Comunicação e Cidadania (CCC), coordenado por sua esposa, Rosário Murillo, com as atribuições de fiscalizar o funcionamento dos ministérios de estado e organizar a formação dos conselhos de participação cidadã em todos os níveis 36. Após meses de confronto institucional, que deixou como resultado a instauração do CCC, o Executivo conseguiu criar um espaço de segundo escalão, o Gabinete do Poder Cidadão (GPC), uma estrutura composta por diversas Secretarias do Poder Executivo. Esse GPC coordena os Conselhos de Participação Cidadã (CPC), instâncias que aglutinam diversos cidadãos (a maioria militantes da FSLN) que elaboram demandas diretas aos governos municipais, sem a intermediação de entidades organizativas, particularmente ONGs. Cada CPC (nos diversos municípios e províncias) é coordenado por um Secretario Político da FSLN, e responde diretamente ao Executivo, alinhando as demandas dos cidadãos aos interesses do partido, “em auxílio ao Presidente da República”. O sistema todo é coordenado por Murillo, a partir do CCC (PRADO, 2008; STUART, 2009 e ZAREMBERG, 2013). A nova engrenagem organizacional gerou tensões com toda a estrutura participativa dos CDM e deu origem à desconfiança da oposição e de diversas ONGs pela alta centralização partidária. Mas a partir das análises de Cruz (2009) e Stuart (2009), infere-se que a centralização partidária não estava nos cálculos iniciais do Executivo. Segundo depoimentos de militantes sandinistas e membros dos CPC distritais, recolhidos no trabalho de campo de Cruz (2009, p. 9 - 10), a orientação do Executivo era que os CPC tinham de ser constituídos na base da maior pluralidade partidária possível, incorporando fundamentalmente associações comunitárias que tinham pouca presença nos CDM e também militantes da oposição. De acordo com os estudos citados, a pluralidade no recrutamento se deparou com dois percalços. Por um lado, a oposição orientou sua militância a não integrar os novos conselhos 36

A criação do Conselho foi rejeitada pelo Congresso, sob argumento de que o Executivo estaria reformando, de fato, a Lei de Competências e organização do Poder Executivo. Assim, os deputados aprovaram uma reforma à referida lei que limitou as competências do presidente na criação de estruturas adjuntas ao Poder Executivo. Em resposta, Ortega apresentou um recurso no Supremo Tribunal da Justiça, a partir do qual, meses depois, conseguiu criar o sistema de conselhos e Gabinete do Poder Cidadão. Para detalhes, vide Ortega Hegg (2008), Stuart (2009) e Cruz (2009).

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participativos por considerar que tais espaços só teriam disponibilidade de trabalhar com prefeitos da FSLN, e por outro, a própria experiência participativa e de organização que as bases sandinistas foram adquirindo com o tempo, estimulavam que fossem os primeiros a se incorporar aos CPC. Já Prado (2009) e Cruz (2009) apontam um terceiro empecilho para a inclusão, e é o simples fato de que a convocatória era feita só por militantes da FSLN 37. Como resultado, os 272 integrantes do GPC no nível nacional são todos militantes da FSLN, permitindo que a coordenação das relações de todos os CPC com os prefeitos fossem alinhadas aos interesses do partido sandinista. Tamanho controle instaurou novas tensões na relação que algumas organizações (muitas delas integrantes dos antigos CDM 38) construíram com o estado. O diagnóstico que Ortega Hegg (2008) elaborou para entender o impacto desta alteração participativa nas relações do estado com as organizações da sociedade civil, confirmou que a lógica oficial era obstaculizar a participação de organizações e movimentos com os quais a FSLN desenvolvera uma relação de confronto ao longo dos anos de 1990 e primeira metade dos anos de 2000. Era de se esperar que a participação destas organizações fosse interpretada desde uma perspectiva de “oposição partidária”: “(...) la primera explicación del conflicto en las relaciones gobierno-sociedad civil en la que coinciden todos los funcionarios del gobierno es que la contradicción es política. De forma explícita se dice que algunos notables y líderes de las OSC asumen claras posiciones políticas contra el FSLN, escudándose en las ONGs. Al respecto, algunos funcionarios van más allá señalando que la confrontación es sólo con los líderes que asumen posiciones de partido político, usurpando el rol de intermediación de los partidos. Uno de ellos fue muy taxativo: la política es un campo exclusivo de los partidos políticos. Al respecto se precisa que los discursos que entran en conflicto con el gobierno son los discursos políticos y las críticas “envenenadas” contra el gobierno del FSLN (…) Según funcionarios de gobierno, en ese enfrentamiento político las ONGs y OSC no son complementarias al gobierno sino competidoras en clientela y discurso” (2008: 17 – 18)

A desqualificação seletiva das ONG por parte do estado era, majoritariamente, uma alusão às redes de organizações feministas. Essa lógica ficou mais evidente quando em dezembro de 2007 o Ministério Público abriu um processo penal contra nove líderes feministas (todas integrantes da Rede de Mulheres Contra a Violência, RMCV, duas das quais são também 37

Os primeiros surveys elaborados em 2008 estimaram que 81% dos integrantes dos CPC em todos os municípios declaravam-se militantes da FSLN. Teve até casos de conselhos em alguns municípios que foram inicialmente integrados inteiramente por famílias sandinistas. Segundo a normativa, cada CPC é composto por até 150 pessoas, dos quais 16 são eleitas coordenadores para cada política setorial designada (desde Saúde, Educação, Meio Ambiente, Direito da Mulher, etc). Esses 16 coordenadores formam parte da estrutura nacional que reúne 272 representantes, que junto a secretários da Presidência da República nessas 16 áreas (todos coordenados por Murillo) compõem o Gabinete do Poder Cidadão, GPC (Stuart, 2009; Bay, 2010). 38 O estudo de Cruz (2009) concluiu que, na prática, os CPC não substituíram inteiramente os CDM. Dependendo do município e da prática política local, alguns CPC oscilaram entre a complementaridade e a competição entre os CPC e os CDM (2009: pp. 12 – 15).

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ativistas do MAM), acusadas de “apologia ao delito de aborto e encobrimento de estupro”, por um lado sob argumento de que estariam incitando ao delito de aborto com a realização de diversos atos de pressão pública para descriminalizar o “aborto terapêutico”, mas associado ao antigo caso de estupro que abalou a opinião pública nacional em Outubro de 2002 39. Até hoje não existe sentença definitiva deste caso, fazendo com que o processo penal paire como ameaça contra as líderes do movimento, reforçado por um segundo processo administrativo que veio à tona em 2008. Em setembro daquele ano, o Ministério Público emitiu uma ordem de interdição policial ao escritório central do MAM, e mais duas ONGs aliadas do movimento, aduzindo corrupção administrativa através de projetos de cooperação que as líderes do MAM recebiam de uma coalizão de organizações internacionais. Este processo foi encerrado em janeiro de 2009 por falta de provas, mas a interdição policial não só danificou as estruturas físicas da sede do movimento, como ocasionou perda de papelaria e equipamentos, além da suspensão dos projetos de cooperação. Ambos os episódios aprofundaram mais

ainda

os

desafios

que

o

movimento tinha de enfrentar para garantir coesão interna. As nove líderes

feministas

acusadas

penalmente pelas demandas a favor do aborto terapêutico, não tiveram a capacidade Interdição policial da sede central do MAM. Azahalea Solís na foto (Foto: Arquivo MAM)

de

enfrentar

conjuntamente a acusação penal. Em lugar disso, cada uma contratou

advogados particulares e assumiu estratégias de defesa separadamente, sofrendo maior exposição dos rachas internos perante a opinião pública. Tal processo, associado à invasão 39

O apelo ao caso de estupro, associado ao debate pelo aborto, remete a um episodio vivenciado em 2002- 2003 quando “Rosita”, uma menina de nove anos, filha caçula de imigrantes nicaraguenses na Costa Rica, engravidou produto de um estupro nas plantações de cana onde a sua família trabalhava durante o período de coleta. O caso complicou as relações bilaterais, já gastadas, entre ambos os países e gerou uma polêmica nacional entre todos os setores que debatiam se a menina devia ou não abortar. Depois de uma profunda exposição pública, as organizações da Rede de Mulheres contra a Violência, RMCV, conseguiram ajuda para que, em total sigilo, um grupo de médicos atendesse o aborto sem informar à mídia. O estado acusou às nove feministas da RMCV de terem sequestrado a menina e conduziram o caso penalmente. Para o movimento de mulheres, este caso representa uma retaliação da FSLN pelo apoio que a RMCV deu à Zoilamérica pela acusação que em 1998 fez contra Ortega por estupro. Para detalhes, vide http://www.elnuevodiario.com.ni/opinion/2599

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policial em 2008 ao escritório do MAM, radicalizou mais ainda os embates das feministas contra o estado, usando a aliança com os partidos de oposição (particularmente o MRS) como trincheira fundamental do conflito. Essa radicalização, de certa forma, conspirou para fraturar mais ainda o movimento, segundo o que podemos inferir do depoimento de Maria Teresa Blandón, líder da rede Movimento Feminista, o espaço que surgiu do primeiro conflito interno do MAM, ocasionado pela aliança com o MRS (que discutirei na seção a seguir). Na sua fala, a aliança com os partidos ocasionou que o feminismo nicaraguense compactuasse com representantes da elite tradicionalista e dos partidos de direita, aprofundando mais ainda as tensões internas: “(Durante a invasão policial)… nos solidarizamos con el MAM, sin embargo, ahí tuvimos una dificultad, porque por un lado teníamos claro que eso era un atropello, pero por el otro ya teníamos ciertas críticas importantes al MAM por su estrategia de oposición al gobierno de las manos de partidos políticos, incluyendo partidos de derecha. Es decir, para nosotras, y aunque esta siga siendo una cuestión controversial porque el MAM no acepta estas críticas, pero para nosotras, el MAM en su legítimo derecho de oponerse al gobierno de Ortega emitió señales que lo hacían parecer un movimiento de derecha. Y esto para nosotras es algo problemático porque aunque nosotras sabíamos que el FSLN ya no era un partido de izquierda, el feminismo nicaragüense nunca ha sido un feminismo de derecha. Siempre ha sido un feminismo que a la par de denunciar las desigualdades, la violencia, la discriminación hacia las mujeres; también se ha opuesto a estructuras capitalistas, neo- liberal, conservadoras, pegadas a la iglesia, etc”.

Com isto, constatamos duas questões altamente importantes relacionadas com os impactos da aliança do MAM com o MRS para enfrentar os embates das reformas participativas. O acordo com o partido não só motivou tensões internas, expulsões e divisões do movimento (como veremos na seção a seguir). Ele também conduziu o MAM a interagir com todo o sistema de partidos políticos, ao ponto que foi se incorporando a coligações de partidos de direita opositores ao novo governo sandinista. Não podemos afirmar que este seja um resultado contingente das estratégias de aliança que o MAM foi desenhando ao longo de 2005 – 2006. Afinal –como explicaremos mais à frente nesta tese – o movimento feminista já tinha experimentado previamente (entre 2000 e 2001) primeiras aproximações com o sistema de partidos (particularmente de direita), fazendo com que o enfrentamento ao governo de Ortega no período 2007 - 2011 fosse, de fato, entendido pelo estado como uma estratégia da oposição, porém surgida desde o movimento. É ao menos o que podemos deduzir a partir da fala de Sara Enríquez, uma das líderes feministas da cidade de Leon (situada a 93 kms ao nordeste de Manágua), que (assim como

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María Teresa Blandón) foi também expulsa do MAM no seio das primeiras tensões que surgiram após os primeiros anos da aliança com o MRS. Ao falar do primeiro período de Ortega no poder (2007 – 2011), Enriquez o interpreta como: “Fue una demostración de fuerza entre el movimiento feminista y el FSLN y con el sistema patriarcal. Para mí se demostró que la verdadera oposición fuimos nosotras, las que decimos las verdades que ellos no querían oír, y por eso fuimos castigadas. El trabajo internacional que se hizo fue fenomenal, una solidaridad latinoamericana que le hizo recordar al Señor Ortega su delito y lo obligó ausentarse de varias tomas de posesión”

Mas quais são os impactos que a aliança entre o feminismo e o MRS gerou, tanto para as dinâmicas estruturais do movimento como do partido, e para o ativismo das organizações feministas ao longo do período 2007 -2011? Trataremos desse ponto na seção a seguir. 1.2.Ocupando o partido político para o ativismo movimentalista

A Coordenadoria Política do MAM subscreveu a aliança com o MRS em junho de 2006 – poucas semanas antes de iniciar a campanha eleitoral – com o objetivo de influenciar o partido político para aproveitar as posições que ele ocuparia no estado, e mais ainda se fosse eleito no Executivo, com o fim de que as normativas parlamentares, programas e políticas públicas incorporassem garantias dos direitos das mulheres. Tal aposta não surgiu no vazio. Desde 2004- 2005, um importante espectro de organizações feministas da Nicarágua começou a discutir as implicações políticas das eleições de 2006, processo que teve a particularidade (diferentemente das eleições de 1990, 1996 e 2001) de apresentar em disputa dois projetos de esquerda, surgidos no lastro da crise da FSLN entre 1990 -1995. No pleito, Ortega não apenas enfrentava o liberalismo tradicional (já dividido entre dois partidos com projetos diferentes, os quais PLC e ALN) contra quem disputara as eleições desde 1990, mas também competia contra seus antigos companheiros de luta guerrilheira e projeto revolucionário dos anos 1980, comprometidos agora com a candidatura de Lewites (MRS). Para as feministas, tal cenário oferecia oportunidades para reverter o quadro de obstáculos que o feminismo vinha enfrentando, desde o fim da revolução em 1990 e ao longo do período neoliberal que se instaurou entre 1990 – 2006. Mas, como Sofia Montenegro, uma das integrantes da Coordenadoria Política do MAM relatou para esta pesquisa, tal oportunidade não estava representada numa volta da FSLN ao poder, mas pelo contrario:

71 “Hicimos un análisis de escenarios sobre la regresión autoritaria en el país, a partir del pacto 40 y la preparación del FSLN para la toma del poder de vuelta (…)Bueno, efectivamente teníamos que estar preparadas para el peor escenario y eso nos llevó a decir que a nosotras solas nos lleva el diablo y por eso la decisión fue decidir apoyar a una alternativa que no fuera el FSLN y entre eso encontramos tres cosas que necesitábamos para una estrategia de defensa: sostener la existencia del movimiento autónomo, contribuir a desarrollar una sociedad civil fuerte y autónoma y contribuir a la construcción de una nueva izquierda. Eso para nosotras era lo más estratégico para el movimiento y para la Democracia”.

Tem duas questões instigantes que podemos extrair da fala de Montenegro, para além do fato que a aliança com o partido MRS instaura-se como uma estratégia

sensível

do

movimento. Uma delas tem a ver com a percepção das feministas ao redor do triunfo eleitoral de Ortega, como sendo “o pior dos cenários”

para

o

contexto

nicaraguense, mais ainda do que

Subscrição da aliança MAM – MRS (Sofia Montenegro assina junto ao falecido candidato, Herty Lewites, sua chapa partidária Edmundo Jarquin e a ex-guerrilheira, Dora María Téllez, no extremo direito) Foto: Arquivo MRS

uma reeleição dos partidos liberais. Isto, é claro, reporta-se aos anos de conflito que as feministas têm vivido com a FSLN desde os anos 1990 e começo dos 2000, mas também fala ao redor da mutação que a Frente Sandinista – e particularmente Ortega – teve ao longo desses anos. Durante a pesquisa de campo realizada por Lacombe (2010), vários dos depoimentos das ativistas do MAM desvendaram o porquê, mesmo com as posturas fundamentalistas, machistas e retrogradas dos principais partidos liberais (PLC e ALN), o retorno de Ortega ao

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Em 1998, apenas dois anos depois da segunda derrota eleitoral e sendo, na época, o maior líder da oposição sandinista no Congresso, Ortega foi acusado de estupro pela enteada, Zoilamérica Narvaez, num episodio que gerou uma profunda crise partidária e dividiu abruptamente o movimento feminista. Para bloquear o andamento do processo na justiça, Ortega negociou uma série de emendas à Constituição e à Lei Eleitoral com o então presidente liberal Arnoldo Alemán (1996 – 2001) e em troca não levaria adiante as acusações de corrupção que a FSLN iniciara contra o mandatário pelo desvio da ajuda internacional que respondeu à devastação provocada pelo furacão Mitch, o maior fenômeno natural que arrasou uma boa parte da América Central nos últimos meses de 1998. Alemán obtivera, automaticamente, um assento no Legislativo uma vez concluísse o seu mandato e Ortega conseguira reduzir a percentagem de votos estabelecidos na Constituição para declarar o triunfo eleitoral em primeiro turno. Tal negociação que, entre outras emendas estabeleceu empecilhos para partidos pequenos participarem nas disputas eleitorais foi conhecida como “o pacto FSLN-PLC” (Baldizón, 2004)

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poder teria piores implicações para o ativismo feminista. Dois deles nos parecem bastante esclarecedores: “Para mí el punto más conflictivo desde un punto de vista ético, es que ganara Daniel Ortega habiendo sido públicamente acusado de abuso sexual. Esto desde el punto de vista feminista, es más que una bofetada. Una bofetada de la sociedad a las demandas de las mujeres. Pero puedo entender perfectamente que Daniel Ortega triunfara, frente a las barbaridades que representan tres períodos de gobiernos de derecha, y frente a una población crecientemente empobrecida. Sobre todo porque la gente cree que Daniel Ortega va a tratar de relanzar al Frente Sandinista con una gestión que en alguna medida reivindique algunas necesidades urgentes de la gente más empobrecida. Aunque Ortega ganó con un porcentaje minoritario, entiendo que mucha gente, incluso la que no votó por él, esté esperanzada con un triunfo del FSLN”. [Feminista E 18.11.06 In: Lacombe (2010, p. 29)]

“Yo creo que lo que se habló con el peor escenario, no es solamente Daniel [Ortega] sino el pacto en la Asamblea. Yo creo que el peor escenario era Daniel Ortega en el poder, y el pacto vigente en la Asamblea. Ahora el pacto. Yo tengo claro que el pacto es ALN, FSLN, PLC. Dicen en la ALN... que estaban en contra del pacto, pero el pacto va mucho más allá que un pacto entre Alemán y Ortega, es un pacto político-económico, todo lo que permite la globalización de una forma u otra. Pero yo sí me sentía una necesidad de hacer todo lo que podía para romper el pacto en la Asamblea. Porque es peligroso para las mujeres, incluyendo a la ALN. Al fin y al cabo ALN es igual para nosotras: son las mismas alianzas con las iglesias. Ahora: peor escenario Daniel como presidente. ¿Cuál es el miedo que yo tengo para este país? El miedo que tengo es: que la forma en que Daniel Ortega es capaz de combinar el discurso populista de izquierda con elementos de reconciliación con la ultra-derecha. Me parece que es una forma similar en términos de cultura política al surgimiento del fascismo en Europa. En un momento de crisis, prestaron de la izquierda y de la derecha para establecer una plataforma en base sobre todo de poder de caudillos y de pragmatismo político”. [Feminista G 18.01.07 In: Lacombe (2010, p. 30)]

Ainda resta um segundo elemento que nos parece central sobre as motivações do acordo entre MAM - MRS. Por que apostar em um partido político em momentos de campanha, focando assim as estratégias na eleição presidencial em si? Acreditamos que uma resposta seja que a interação com o sistema de partidos políticos não é, em absoluto, uma completa novidade para o feminismo nicaraguense. Como veremos na seção a seguir, ao longo dos anos de vida das organizações feministas, a interferência no sistema partidário tem sido uma prática constante do movimento de mulheres. Se por um lado a militância dentro da FSLN durante os anos 1980 estimulou – mesmo que com grandes empecilhos – o ativismo feminista, depois que o período revolucionário chegou ao fim, o feminismo continuou interagindo com os atores partidários para afetar contundentemente os processos eleitorais. Essa prática, hoje, já foi apreendida pelas organizações e ficou institucionalizada a partir do acordo entre MAM e MRS.

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Analisaremos esse ponto na seção a seguir, debruçando-nos sobre um argumento central: o movimento feminista apreendeu a interagir com os partidos políticos ao longo dos últimos vinte anos, e para isso, desenvolveu arranjos organizativos que permitissem implementar essa interação, resguardando sua capacidade de agência e reconfigurando a autonomia. Com isso, estrutura e estratégia surgem como duas dimensões que convergem para desenvolver esta interação, mas ao mesmo tempo suscitam tensões internas e conflitos que vão alterando o arranjo organizativo do movimento. A seguir, explicaremos como ambas as dimensões, de fato, operam no caso escolhido.

1.2.1. Da criação do MAM: Estrutura e Estratégia como base para a aliança com o partido

A aposta das feministas pelo MRS não apenas respondeu aos cálculos eleitorais de 2006. De certa forma, também se reconhece no processo de formação do próprio MAM, que acontecera dois anos antes do pleito, e configura-se como ecos da disputa das duas tendências da FSLN que, em 1995, originou o MRS. Vejamos. Entre 2003 – 2004 duas das maiores estruturas de organizações feministas (Redes de Mulheres Contra a Violência, RMCV e Comitê Nacional Feminista, CNF 41) enfrentavam duros embates com o estado, por causa da condução das políticas sexuais e reprodutivas durante a administração do Presidente Enrique Bolaños (2002 – 2006), do Partido Liberal Independente (PLI), dissidência do PLC. Já o “caso Rosita” (a menina estuprada mencionada anteriormente) tinha instaurado um duro conflito da RMCV com o Ministério da Família (MIFAM), devido a que o MIFAM fez de tudo para reter a criança “em resguardo” e assim evitar que as líderes da RMCV pudessem transferi-la para um dos albergues administrados por projetos da RMCV. No final, as ativistas conseguiram, com a ajuda da mãe e em total sigilo, levar “Rosita” numa clínica privada para efetuar o aborto, mantendo a identidade dos médicos em segredo 42.

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Entre 1995 – 2004, a CNF e a RMCV foram as duas estruturas nacionais mais importantes do movimento feminista. Ambas foram criadas no auge da formação de redes que sucedeu à “declaratória de autonomia” que o movimento de mulheres fez entre 1991 – 1992, para publicizar sua separação da FSLN e do estado neoliberal instaurado após o fim da revolução. Da formação das redes e do debate sobre formas organizativas durante o período liberal, daremos conta no capítulo 4 desta tese. 42 O caso Rosita na Nicarágua não foi só um símbolo nacional da luta do movimento de mulheres pela legalização do aborto, como chamou a atenção do feminismo latino-americano sobre a aliança dos estados neoliberais com posições fundamentalistas, representadas na hierarquia católica e evangélica para regredir em

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A este controverso episódio 43, acrescentaram-se, na época, mais dois conflitos entre o estado e as feministas. A aprovação da lei de igualdade de oportunidades de gênero estava sendo frequentemente adiada no Congresso, ao mesmo tempo em que o Ministério da Educação começou incorporar nas escolas uma cartilha para a formação em sexualidade, totalmente orientada por fundamentos religiosos. Para enfrentar esse contexto, a CNF convoca, ao longo de 2004, uma série de encontros que, com o tempo, adquirem o status de “mesa de concertação” cujo grande objetivo era realizar quatro grandes fóruns nacionais, que aconteceram entre 2004 – 2006. Já no IV fórum, realizado em fevereiro de 2006, ambas as redes (RMCV e CNF) tinham acordado que a “mesa de concertação” devia progredir para uma “coordenadoria” do feminismo nacional, estruturando o que as próprias feministas começavam a chamar de “movimento autônomo”. Esse momento chegou a ser considerado como uma fase de “refundação do movimento feminista autônomo”, posto que além de investir numa rede única de coordenação (bastante alinhada com o modelo de coordenação única, hierárquica e formal que está no ADN da CNF), começavam a ser incorporadas demandas ao redor de uma mudança de sistema, democracia e reforma do estado. Mas como o estudo de Lacombe (2010) confirmou, foram diversos eventos, paralelos à formação da “coordenadoria” do nascente “movimento autônomo”, que influenciaram no formato e nas estratégias dessa nova estrutura. Entre 2005 – 2006, várias feministas integrantes de CNF já começavam a participar de ações públicas contra o pacto FSLN – PLC, e em cada evento elaboravam demandas para derrubar o pacto bipartidário aproveitando as eleições de novembro de 2006. Vale só acrescentar que já uma boa parte das ativistas da CNF tinha testado se aliar (sem sucesso) a uma espécie de coalizão de terceira via que disputaria das eleições de 2001, mostrando que estas interações com os partidos políticos não eram, ao todo, uma grande novidade para o movimento. A aposta no espectro partidário, e mais ainda a ênfase por derrubar o pacto FSLN – PLC a partir das eleições permeou uma boa parte do “Documento Político” (2006) que, finalmente direitos sexuais na região. Como exemplo, podemos considerar o artigo, publicado na época, em Página 12 da Argentina: http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/las12/13-546-2003-03-06.html 43

Este caso reviveu em 2008 quando se soube de mais uma gravidez de “Rosita”, produto de outro estupro, só que dessa vez terminou em parto. A diferença não foi só que a criança não foi submetida a um aborto, mas que a mídia ficou sabendo que o verdadeiro estuprador era o próprio padrasto. A revitimização de “Rosita” desmoralizou por completo a RMCV e foi agilmente aproveitada pelo estado para deslegitimar a demanda das feministas a favor da legalização do aborto

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em fevereiro de 2006, é lançado para consolidar a “refundação do movimento autônomo”, e que serviu de base para a criação do MAM. De fato, a própria criação do MAM (e no referido Documento Político que sustenta a fundação da nova estrutura) conduziu a reforçar a aposta das feministas - da elite do CNF – ao redor da competição eleitoral, tendo como objetivo central derrubar o pacto “liberal-sandinista” como primeiro estágio para garantir que um novo governo – resultante do pleito – pudesse ceder às demandas do movimento. Maria Teresa Blandón, quem investira no processo de formação do MAM, e um ano depois foi expulsa da nova estrutura que ajudara a gestar por questionar o manejo da aliança com o MRS, explica assim esse momento: “En el 2005 surge como debate la creación del MAM. El MAM plantea que hay que prepararse para evitar que Alemán44 y Ortega ganen las elecciones, que había que trabajar por otra alternativa y evidentemente esa alternativa la vemos en el MRS. Más o menos había coincidencias porque a esas alturas no había nadie en el MAM que estuviera a favor de Ortega, ni menos a favor de Alemán. Entonces el tema era ¿cómo le hacemos para no comprometer la autonomía del recién creado MAM, donde estábamos todas? El CNF fue una fuerza importantísima que empujó al MAM, pero ya para esa época no era sólo el CNF presente. Era el CNF, la RMCV, la red de mujeres de Matagalpa, de Condega. Se pensaba como un movimiento amplio y que funcionara como una plataforma nacional. Es decir, lo mismo que quisimos hacer en el 92 y no pudimos, fue lo que sí fuimos a hacer en el 2005, una plataforma nacional”

Ao longo do citado “Documento Político” (2006) da refundação do movimento – e criação do MAM – podemos notar que as feministas definem o MAM como um “movimento social” e um “movimento político” (pp. 14, 15, 29 e 30), que focará sua atuação no âmbito público ao redor de quatro eixos fundamentais, os quais, “Democracia paritária como sistema político a partir de abertura e redemocratização do sistema, estabelecimento de um estado de direito moderno e laico, identificação das mulheres como sujeito político e agente econômico e, finalmente, a construção de um movimento social feminista como sujeito e ator político coletivo, autônomo de partidos políticos (grifo nosso) e de grupo de interesses econômicos, religiosos e sociais partidários” (2006: pp. 27 – 28). Para atuar sobre essas questões, o MAM devia operar com uma estrutura claramente definida. Considerando isso, define-se que a nova “plataforma nacional” estaria composta por militantes feministas a título individual (e não em representação de organizações), reunidas em torno de uma estrutura hierárquica, comandada por uma Coordenadoria Política que 44

O ex-presidente Arnoldo Alemán (1996 – 2001) não estava participando diretamente das eleições, mas tinha declarado o apoio ao candidato José Rizo (PLC), quem garantiria os interesses do pacto com a FSLN desde o estado

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responde às diretrizes emanadas da Assembleia Geral. Como consequência, o MAM é compreendido como um movimento com “estruturas formais” e hierárquicas, superando “as estruturas informais e implícitas que reduzem a transparência na tomada de decisões” (p. 30). A lógica de uma estrutura “hierárquica, formal” e “eficiente” na tomada de decisões, era não só que as militantes do MAM deviam demandar das líderes uma prática altamente responsiva, mas que o MAM devia se instituir como uma plataforma homogênea e a maior representante do feminismo nicaraguense, visão que reedificou as tensões que existiram no seio do CNF por causa de questões estruturais e de representação política. Em outras palavras, estratégia (visando à consolidação democrática, participando das eleições presidenciais) e estrutura (a rede única do feminismo nacional) apareceram como os dispositivos mais importantes com o que o movimento feminista começa operar para interagir com os partidos políticos, considerando que tal estratégia é executada no momento sensível do curso político (eleições nacionais) acarretando riscos para a noção de autonomia que o MAM começa instituir face às instituições do sistema político. Para Lacombe (2010), estes dispositivos aparecem sendo interpretados como, além de ferramentas chaves para a aliança com o partido político, a principal causa do resurgimento de velhos conflitos internos. Na visão de uma boa parte das ativistas do nascente MAM, a decisão de uma estrutura homogênea é residual das práticas autoritárias que experimentara a militância da FSLN ao longo dos anos 1980. Dois depoimentos reproduzidos por Lacombe (2010) desvendam a caracterização desse conflito: “Esto que pasó es expresión de la crisis de crecimiento en el movimiento. No es casual que se expresen estas tendencias a la homogenización, a crear estructuras únicas, a excluir a las que tienen visiones diferentes. Estas tendencias conviven con esta otra tendencia a seguir ampliando espacios de convocatoria. Yo en esta ruptura veo una crisis de crecimiento, en donde en mi opinión hay compañeras que se han quedado atrapadas en los miedos del pasado. Y que piensan que el logro de nuestras metas como movimiento, depende más de una estructura sólida, que de una ampliación de conciencia de derechos y de formas múltiples de participación. Ellas creen en una estructura sólida e intelectualmente preparada, para conducir a las otras. Esto tiene una cierta reminiscencia de vanguardismo” (grifo nosso). [Feminista E 18.11.06 In: Lacombe (2010: p. 26)]

E mais do que isso. Se por um lado a estrutura única e homogênea reanimou as tensões já arrastadas do CNF, a estratégia de aliança com o partido (não a aliança em si, mas a condução dessa aliança) era também motivo de imposições por parte da Coordenadoria Política do MAM que associou o respaldo à aliança MAM-MRS com uma identidade efetivamente “feminista”. Em outras palavras, a luta contra o pacto FSLN – PLC, inscrita no

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apoio eleitoral ao MRS no pleito de 2006, aparecia aqui como uma certificação de uma “identidade feminista”. Mais uma vez, queremos lançar mão dos depoimentos reproduzidos por Lacombe (2010) para ilustrar esta afirmação: “Todo el invento del “feministometro” aquí en Nicaragua vino del CNF. Que vos no llegabas a ser feminista si ellas no te daban el certificado o sea… muy enjuiciadoras… (…) Esta estructura organizativa que están impulsando en el MAM viene de allí, son gemelos.(…) Esta forma de acción viene de una cultura política totalmente patriarcal, autoritaria, intolerante. Si así se deben resolver los problemas… ¡yo he visto un montón de exclusiones del Frente (Sandinista)! (…) Que lo hagan [la alianza con el MRS] a mi me parece fantástico, yo no me apunto, pero respeto esta estrategia, pero que no traten de obligar a otras expresiones del movimiento… no sé, que no denigren las otras expresiones del movimiento por el hecho de que no están con ellas en la misma barca”.[Feminista F RMCV 16.01.07 In: Lacombe (2010: p.26)]

Em quase todas as entrevistas podemos reconhecer que o arranjo organizativo que o MAM foi desenvolvendo – pretendendo-se abarcador do feminismo nicaraguense – é depositário da herança organizativa e vertical que tem prevalecido na FSLN, mas também esse arranjo é pertinente – e em vezes necessário – para enfrentar os embates que vêm da Frente Sandinista. Ao mesmo tempo, tal estrutura lhes permitira elaborar acordos com o sistema de partidos, mas não dispensava as tensões internas, cuja consequência (expulsões e imposições) interroga sobre a qualidade de representação dentro do movimento (Chaguaceda, 2011). Ana Criquillon, feminista de origem francesa e uma das maiores pesquisadoras do feminismo nicaraguense, avalia que a interpretação da realidade que marcou a origem do MAM conduzira automaticamente a uma grande fragmentação do movimento, colocando a autonomia no centro das tensões: “Para mí el MAM está constituido por un problema de nacimiento que tenía un análisis que me parecía fenomenal, recuerdo el discurso de Sofia y comencé a percibir ese problema. Por más que compartamos el análisis, el movimiento no debía partir de ese vínculo partidario porque se pierde la autonomía. Recuerdo que cuando me hablaron del Movimiento Autónomo de Mujeres, con mayúsculas, yo decía que son tan autónomas como lo era AMNLAE y tal vez no sea justo decirlo porque debo reconocer que el MRS nunca ha tenido con el MAM el mismo estilo de relaciones que tenía el FSLN con AMNLAE, no. Es una relación mucho más respetuosa, pero lo que ha pasado es que las mujeres que no quieren estar metidas en el rollo partidario, por las razones que fueren, eran metidas a la fuerza en donde las discusiones ya estaban coloradas por esa perspectiva. Entonces la posibilidad de juntarnos, aunque sea en una lucha temporal o concreta, no existía. O estabas adentro o no y para mí cuando en un movimiento social comenzás a colocar el que está adentro y el que está afuera, ya hay un problema porque la idea no es ésa. La idea es partir de donde está la gente jalar, y no decir que de aquí para allá ya no podes estar. Eso de diferenciar nosotras de las otras no era la idea, y de nuevo aparecen las divisiones de estrategias”.

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As tensões por causa da imposição de um tipo de estrutura bastante próximo da estrutura partidária foi claramente admitido por um estudo de alcance regional 45 que, em 2010, respondia à demanda de trocar experiências e aprendizados de mobilização em três países da América Central, focado, para o caso nicaraguense, na experiência mobilizatória do feminismo nacional. No estudo, as autoras explicam esta questão estrutural, a partir dos seguintes termos: “A pesar de las diferencias del movimiento respecto a otras organizaciones políticas y de los esfuerzos por construir una nueva forma de hacer política, es indudable que todos los grupos todavía adolecen de prácticas y estilos de trabajo heredados del vínculo con las estructuras partidarias durante la época de la revolución sandinista. Pero además, porque el movimiento y sus líderes están inmersos en la cultura política prevaleciente en el país” (Cuadra e Jimenez, 2010: p. 64)

Até aqui podemos elaborar algumas inferências importante sobre o processo de formação do MAM e a subsequente aliança com o partido MRS. Uma delas é que a criação do MAM foi um momento de inflexão para o feminismo nicaraguense não apenas porque aprofundava uma das apostas organizativas mais importantes – criar uma rede única – (depositária de experiências de militância aprendidas na FSLN durante os anos 1980), mas porque de certa forma também qualificava um dos interesses estratégicos centrais do movimento feminista, de apontar ao sistema político na sua dimensão mais ampla, pela reforma do estado, democratização e modernização dos partidos políticos. Essas também podiam ser pautas “legitimamente feministas” e seria necessária uma estratégia de aliança com os partidos políticos (neste caso, um “partido confiável”), para concretizá-la. A questão é que os dissensos ocasionados por tal estratégia apareceram e continuam marcando a militância feminista nos dias de hoje. Uma das entrevistas que realizamos durante nossa pesquisa de campo nos revelou que, além do desconforto ao redor da estrutura, outro elemento central do conflito foi o “fator tempo” que a Coordenadoria Política do MAM usou para subscrever a aliança sem antes ter esgotado o debate no seio da Assembleia Geral: “(…) ahí se da una ruptura porque por un lado hay quienes presionan por cerrar el acuerdo (con el MRS) porque pasa el tiempo y el plazo (electoral) es ya y presionan muchísimo. Y hay otras que tienen una posición de que la prioridad no es tomar las decisiones por las elecciones, sino que hay que construir primero ese consenso dentro del movimiento y es ahí donde se da la primera ruptura porque el grupo decide que las que están “atrasando” esa alianza deben de salir (ser expulsas) del MAM. Es una decisión muy jodida con unas consecuencias bastante catastróficas que todavía las podemos sentir” (Entrevista a Geni 45

Cuadra e Jimenez (2010). – El movimiento de Mujeres y la lucha por sus derechos: Movimientos Sociales y Ciudadanía en Centroamérica. 1ª ed. Managua, CINCO

79 Gomez, militante de base no território, líder do Grupo Venância, na cidade de Matagalpa, localizada a 128 kms ao nordeste de Manágua)

A pressa motivada pelo calendário eleitoral estava relacionada, como era de se esperar, com a definição da lista de candidaturas a deputados, de se o MAM devia (ou não) participar de tal composição de listas e sob quais condições. Em definitivo, esse último ponto foi o mais tenso do conflito interno, como podemos perceber do depoimento (mais uma vez) de Blandón obtido durante nossa pesquisa de campo: “(…) el punto de debate era cómo negociar con el MRS sin poner en riesgo la autonomía del movimiento y como negociar las candidaturas. Yo planteaba porqué no mejor, si cada quien quiere participar de la alianza, que lo haga a título personal. Cada una puede tener su simpatía, pero yo me sentía mal de colocar a todo el movimiento en ese lugar. Yo decía que no, pero las compañeras planteaban porqué no hacerlo, si al final de cuentas era una apuesta política de todo el movimiento, posición que prevaleció. Ya en algunos momentos comienzan a aparecer algunas compañeras suscribiendo (públicamente) la alianza con el MRS como MAM. Esto, para las que todavía estábamos debatiendo eso, fue letal. Y más aun, las compañeras se van a negociar con Luis Carrión (MRS) algunas candidaturas, sin que antes haya pasado por una completa negociación dentro del MAM. Entonces, es donde aparecen Azahalea, Violeta y Reina como candidatas del MRS por el MAM. Esta fue la gota que derramó el vaso. Nosotras protestamos enfáticamente por el acto público que no había sido totalmente consensuado en el MAM, que estaba en debate en el movimiento y más aún por las candidaturas que no habían sido decididas en el MAM. Porque si iban como MAM, pensábamos que a nosotras nos tocaba decidir quiénes serian nuestras candidatas. Entonces estas tres candidaturas aparecen como impuestas y violatorias al propio mecanismo que habíamos decidido dentro del propio movimiento. A lo mejor lo discutieron en ausencia nuestra, pero eso nunca lo supimos. Tenían la mayoría, pero nunca nos dijeron como fue ese debate” (grifo nosso).

Como resultado destes questionamentos, a Coordenadoria Política expulsou 12 militantes (entre elas Blandón) do MAM durante os primeiros meses da campanha eleitoral, trazendo consequências estruturais para o conjunto de organizações do movimento feminista. Já em 2008 surgiu uma nova onda de expulsões, só que nesse último caso, as feministas decidiram continuar militando dentro do MAM, mesmo sem a “certificação” da Coordenadoria Política. Mas aliança com o partido não teve só impactos para o interior do movimento. Na subseção a seguir vamos analisar como o acordo com o MRS gerou impactos para os próprios atores (impactos de mão dupla que alteraram estruturalmente partido e movimento) e para outros que estavam fora da aliança, afetando diversos espaços do cenário político e interagindo com o avanço do contexto entre 2007 - 2011.

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1.2.2. Da aliança “entre pares”, o repertório organizacional e a questão da autonomia

A aliança entre o movimento feminista e o MRS ficou representada numa espécie de contrato, com reconhecimento notarial, e assinado por representantes de cada um dos atores em um ato público celebrado em 15 de junho de 2006. O evento teve a presença central do candidato Herty Lewites e, ao menos para o MRS, era um ato chave de presença pública durante os meses prévios ao início da campanha eleitoral. O documento subscrito por Sofia

Montenegro,

em

representação

da

Coordenadoria

Política

do

MAM, e Luis Carrión, em nome do Diretório do MRS, está

composto

por

uma

pequena exposição de motivos e

cinco

determinam

cláusulas o

alcance

que e

características da aliança. Em Ato público da aliança. Juanita Jimenez (MAM) mostra o acordo assinado. Junto ela (extremo esq) Luis Carrión (MRS), Sofia Montenegro (MAM) e o candidato falecido Herty Lewites. (Foto: Arquivo MRS)

termos de motivação, o MAM considera que as eleições de

2006 desempenhavam uma função estratégica para superar – de forma pacífica – a crise do modelo econômico, do sistema político cada vez mais fechado, e “da captura do estado pelo bipartidarismo caudilhista”. Em segundo lugar, o movimento destaca o alcance de “novas forças políticas” (em clara referência às coalizões do MRS e ALN) à competição eleitoral presidencial como um possível signo do “início da abertura democrática” que o país precisa, e finalmente, o fato de poder contar com um programa eleitoral que correspondesse com “as necessidades e aspirações das mulheres nicaraguenses”. Mais ainda, o documento reafirma: “Que la Alianza MRS representa para el MAM una verdadera alternativa de cambio y de salida para la presente crisis que vive el país, cuyos postulados programáticos coinciden con las demandas democráticas planteadas por el MAM” (Acuerdo Político entre el MAM y la Alianza MRS, 2006)

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Já para o MRS, este acordo veio ao encontro com o objetivo partidário de “se aliar a movimentos sociais, indivíduos e forças políticas” que assumissem o compromisso de romper com o pacto FSLN- PLC e estabelecer uma nova ordem institucional. Chama a atenção, nesse quesito, o interesse do partido em se aliar com organizações da sociedade civil e movimentos sociais. Por exemplo, nos estatutos do MRS aparece um capítulo completo 46 que trata das relações com as organizações da sociedade civil, entendidas sob a lógica de preservar a autonomia das organizações face o estado e “sem fins eleitorais”. Quanto ao funcionamento da aliança, o documento estabelece funções para ambos os atores. Do lado do MRS pesa a obrigação de incorporar no programa de campanha eleitoral – e de governo, no caso de um eventual triunfo – uma agenda de cinco compromissos formulados pelo MAM para a consolidação democrática. Para o movimento, os deveres se resumem em quatro funções: assessorar a equipe de campanha, auditar o manejo dos fundos da campanha, apoiar os candidatos e candidatas do partido e assessorar a bancada da coalizão no Legislativo. Apesar da especificidade do acordo, a condução da aliança gerou dificuldades para ambos os atores, não só porque o MRS não obteve o triunfo eleitoral, mas por questões inerentes ao partido e ao movimento. Poucas semanas depois da subscrição do acordo, as três dirigentes do MAM (Azahalea Solis, Violeta Delgado e Reyna Rodriguez) que assumiram as candidaturas para deputação nacional não colocaram essa decisão na pauta de debate da Assembleia Geral do movimento, enquanto o MRS teve que anular a regra interna de cota de gênero por desavenças com seus aliados partidários no seio da coalizão. As candidaturas de Solis, Delgado e Rodriguez ocasionaram muitas tensões organizativas, particularmente dentro da RMCV. Assim como a maioria das ativistas do MAM; Delgado e Rodriguez eram também integrantes da estrutura da RMCV (já pertenciam à Rede desde antes da formação do MAM), questão que ocasionou atritos com as ativistas da RMCV que eram militantes da FSLN. Essas ativistas com dupla militância (da FSLN e da RMCV) interpretaram a estratégia do MAM – associada às candidaturas de Delgado e Rodriguez – como “formas de cooptação da RMCV por parte da Coordenadoria Política do MAM”. Durante nossa terceira imersão ao campo conseguimos conversar com Violeta Delgado, e entre outras questões vinculadas com sua trajetória militante (que abordaremos no quarto 46

http://partidomrs.org/index.php/partido-mrs/estatutos

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capítulo), ela revelou que as candidaturas surgiram com a pretensão de qualificar a aliança com o MRS: “Realmente el MAM hizo su reflexión didáctica, no es que hayan decidido un pacto en el aire. Hicieron el proceso de discusión, constituyeron la plataforma, dijeron lo que querían, etc. Entonces surgí de candidata porque el MRS había designado un cupo de una propietaria y suplente para el MAM a partir de la alianza que habían firmado. Entonces el MAM decidió que para hacerlo más efectiva la alianza se necesitaba tener rostro, independientemente de que quedáramos o no, esa alianza se requería de rostros y apellidos y así salimos (candidatas) la Azahalea y yo”.

Passado o pleito, nenhuma das candidatas foi eleita deputada, posto que o desastroso resultado eleitoral para o MRS (5% dos votos) o deixou com apenas três cadeiras no Congresso (as candidatas do MAM estavam colocadas a partir da sexta posição na lista), mas isso não abalou a aliança. Ao longo dos últimos anos, MAM e MRS têm aprofundado a parceria, impactando arranjos organizativos no entorno, alterando algumas dinâmicas participativas e impactando de diversas formas no estado. A seguir, analisaremos como essa relação deixou impactos de mão dupla, isto é, impactaram na mesma medida partido e movimento, na sua dimensão estrutural (interna) e nos arranjos organizativos dos atores com que ambos (MRS e MAM) se relacionam. Em outras palavras, o acordo do partido e movimento suscitou um tipo de repertório organizacional que se evidenciou dentro das estruturas do MAM e MRS, ao mesmo tempo em que estimulava a formação de novas redes e dinâmicas participativas no contexto nacional. Analisaremos ambas as dimensões a seguir. 1.2.3. Alterando as estruturas internas: O caso da “Rede de Mulheres do MRS” e das fraturas do MAM

Como dissemos anteriormente, as eleições presidenciais de 2006 deixaram o MRS em uma posição desfavorável para influenciar a aprovação de leis no Congresso (apenas três deputados), o que levou o movimento a rever suas apostas: tratava-se, antes de mais nada, de avançar com a aliança. Nessa reformulação, as feministas consideraram que não fazia sentido “apenas” influenciar o partido no Congresso, sem que estivesse preparado em questões de equidade de gênero. Com essa intenção desenharam cursos de formação em gênero que as feministas do movimento ministrariam aos militantes do partido e deputados eleitos do MRS.

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As sessões de formação começaram a ser formuladas em 2010 de forma conjunta entre as ativistas do movimento e algumas mulheres dirigentes do MRS. O trabalho de coordenação avançou ao ponto das mulheres do partido considerarem que nenhuma das estratégias surgidas da coordenação com o MAM poderia ser implementada, ao menos que contassem com uma estrutura capaz de levar esse projeto adiante. Foi com essa lógica que as mulheres do partido criaram a Rede de Mulheres do MRS, uma nova estrutura partidária com direito a ocupar uma cadeira no Diretório Nacional, e ter representantes nos diversos diretórios municipais do MRS. A rede foi oficialmente constituída em 2011, cujo primeiro objetivo explícito

nos

estatutos

constitutivos

se

propõe,

literalmente,

“ser

reconhecida

institucionalmente (no partido) e entre as organizações de mulheres”. Em outras palavras, assumir a função de elo entre partido e movimento, podendo assim desempenhar os processos de formação que, segundo temos registro, começaram em 2013. O relatório mais recente (2013) que a rede elaborou para o Diretório Nacional, considera que um dos maiores resultados da Rede de Mulheres do MRS em 2012 foi ter participado “das atividades das organizações de mulheres”, destacando a participação das militantes do partido nas marchas feministas pela descriminalização do aborto terapêutico, passeatas contra a impunidade ao redor dos femicídios, episódios de estupros que não foram punidos, e diversas atividades comemorativas de datas emblemáticas como 08 de março, 10 de Dezembro (Dia Internacional dos Direitos Humanos) e 28 de Setembro (Data comemorativa da campanha pela legalização do aborto). Um segundo impacto da rede tem sido a modificação da correlação de percentagem de mulheres dentro das estruturas do partido. De acordo com os relatórios internos do MRS, a Rede de Mulheres ocupa hoje cadeiras nos diretórios partidários em diversos níveis. Por exemplo, o Diretório Nacional está composto hoje em dia por 44% de mulheres e tem uma representante da Rede de Mulheres. A mesma correlação existe no Comitê Executivo Nacional e em praticamente todos os 78 diretórios municipais (onde a média de mulheres é de 40%) sem contar que a presidente do partido é uma mulher. Essa composição também se repete em outras instâncias mais técnicas, como por exemplo, o Comitê de Organização, Comitê de Comunicação e Comitê de formação política e o Tribunal de Estatutos Internos, cujas estruturas são presididas por mulheres. O funcionamento da Rede de Mulheres do MRS também ajudou a preparar o partido para as disputas eleitorais seguintes, incrementando a participação das mulheres nas primárias

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internas. Durante as eleições presidenciais de 2011, por exemplo, a Rede estimulou as militantes a realizarem campanha interna, a partir de cursos de formação em oratória, imagem, domínio de mídia, etc. O objetivo era que durante as eleições internas, as mulheres pudessem liderar as listas de pré-candidatos a deputados regionais para o pleito presidencial de novembro de 2011, retomando assim a importância da regra de cota de gênero que estava praticamente suspensa desde as presidenciais de 2006 47. Como resultado, as mulheres militantes do partido dominaram a lista de pré – candidaturas em seis províncias, enquanto em outras 15 ocuparam posições de destaque. Mas todo esse otimismo diluiu-se na hora que o MRS devia negociar a lista de candidaturas com seus pares partidários. Acontece que para esta eleição, o MRS não estava mais participando com bandeira própria (perdeu a legenda em 2008 por pressões da FSLN no Conselho Eleitoral 48), e decidiu assistir ao pleito dentro de uma coalizão de partidos de direita (Aliança PLI), que postulou o empresário radial Fabio Gadea como candidato presidencial, numa tentativa frustrada de evitar a reeleição de Ortega. A lista de pré – candidaturas foi negociada no marco dessa aliança, eliminando de entrada a maioria das mulheres do MRS na lista final de candidaturas inscritas como Aliança PLI. Isso não apenas gerou profundas frustrações na Rede de Mulheres do MRS, como despertou algumas tensões internas dentro do partido. O próprio relatório interno da rede revela claramente esse desconforto: “A pesar de los logros en el Consejo, tras finalizar el complejo proceso de negociación con la Alianza PLI, varias de nuestras candidatas no lograron quedar en puestos ganadores. Sumado a esto el Orteguismo se encargó de atacar directamente a algunas, el caso de Ana Margarita Vijil (atual presidente do MRS), quien fue inhibida ilegalmente de participar como candidata (a deputada)” (Relatório Interno Rede de Mulheres do MRS 2013). 47

A regra de cota de gênero existe no MRS desde a fundação em 1995, mas durante as eleições de 2006 decidiram suprimir este ponto da normativa. A candidatura de Lewites atraiu um bom numero de partidos, obrigando o MRS a negociar uma coligação partidária. O partido sozinho cumpria com a normativa de gênero (um mínimo de 30% de mulheres na lista de candidaturas), mas no bojo da coligação, essa percentagem caía a menos de 10%, de modo que o MRS não encontrou outra saída que eliminar tal exigência para evitar punição do Conselho Eleitoral (entidade do estado que regula as eleições), segundo nos contou o deputado Enrique Sáenz (MRS) e quem, na época, era presidente do partido. A criação da Rede de Mulheres do MRS estimulou o partido a retomar essa normativa interna, que depois foi reforçada por uma lei aprovada no Legislativo (conhecida como lei 50-50), obrigando todos os partidos a compor suas listas de candidaturas com um 50% de mulheres. Mais adiante, neste mesmo capítulo abordaremos o contexto que permitiu a aprovação da “lei 50-50”. 48 O Conselho Eleitoral cancelou a legenda do partido, usando razões administrativas, com a intenção de que o MRS não participasse mais de processos eleitorais. A medida motivou uma greve de fome da ex-comandante guerrilheira, Dora María Tellez, lendária combatente contra a ditadura somozista entre 1976 – 1979, e que rompeu com a FSLN em 1995. O protesto de Tellez motivou o surgimento de novos grupos juvenis que incrementaram sua aliança com o movimento feminista. Já sem legenda, o MRS afiançou as relações com os movimentos sociais e, para isso, o MAM foi fundamental para o partido ganhar ancoragem social nos territórios.

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Não apenas as dinâmicas partidárias obstaculizaram a estratégia da Rede para ampliar a participação das mulheres nos processos eleitorais. Edipcia Dubon, uma das três deputadas eleitas do MRS dentro da Aliança PLI para o mandato 2012 – 2016 revelou para nossa pesquisa, como certos códigos locais em municípios do interior motivaram a preferência por terem candidatos homens como representantes, conspirando contra as possibilidades de melhorar a representação das mulheres nos cargos de eleição popular. “Las mujeres hicimos toda una fuerte campaña electoral con videos, pancartas, web, radios, etc, mientras los hombres sólo hacían un trabajo de pasar papeles y de poco esfuerzo. Esto hizo que las mujeres ganáramos las primeras listas en por lo menos tres municipios, pero una vez que vamos a la negociación de la alianza con el PLI y presentamos la lista en los municipios, nos piden que cedamos los espacios para los líderes locales de los otros partidos, es decir personas y candidatos que ya eran conocidos en esos municipios, o bien lideres nuestros en otras circunscripciones. Esto nos frustró demasiado, inclusive hasta perdimos compañeras en algunas circunscripciones porque aunque hicimos un gran trabajo interno, nos enfrentábamos al problema de los liderazgos locales y de las negociaciones con los otros aliados”

Até aqui podemos fazer algumas primeiras deduções analíticas ao redor dos fenômenos surgidos neste caso. Primeiro, a aliança entre o movimento feminista e o partido político suscitou alterações estruturais dentro do partido, ao ponto de criar uma nova instância partidária que conecta as apostas do movimento com as estratégias do partido para momentos essenciais do contexto como, por exemplo, as eleições. A própria estrutura criada dentro do MRS determinou que um resultado exitoso da Rede de Mulheres é que opera como elo entre o partido e o movimento feminista, fazendo com que as militantes do MRS (integrantes da rede) não só participam das formações conjuntas que ministram as ativistas do MAM, como também de passeatas, ocupações de vias públicas e outras ações que convoca o movimento. Mas o fato dessa estrutura existir dentro do espaço partidário faz com que fique sujeita às barganhas e outras negociações que o partido executa em função dos momentos eleitorais. Dessa forma, a mudança estrutural que o partido vai experimentando entra em tensão com a conjuntura (as mulheres estão no Diretório, mas não conseguem ser candidatas na mesma proporção), gera conflitos internos (o fato de não serem candidatas devido à negociação com a Aliança PLI fez com que elas abandonem a militância do partido) e lidam com desafios do contexto político (mesmo sendo candidatas em algumas circunscrições foram vítimas de algumas práticas fraudulentas do Conselho Eleitoral, devido ao controle institucional que exerce a FSLN).

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A despeito desses impactos não calculados, a mera existência da rede continua sendo percebida pelo movimento como um dos melhores resultados da aliança com o MRS. É o que podemos entender da declaração que Sofia Montenegro (da Coordenadoria Política do MAM) nos fez ao redor desta experiência estrutural: “Nosotras no jugamos al papel de sustituir al partido, sino que lo que hay es una alianza, una colaboración de un lado y del otro, de apoyo mutuo y de unidad en la acción para hacer algunas cosas (…) hicimos una evaluación de la alianza hace un par de meses y llegamos a la conclusión que ha sido mutuamente enriquecedora. El MRS se vuelve más feminista, le metimos una cuña, le estamos “chancomiendo” 49 los sesos a sus mujeres, ya tienen una red, nos consultan los temas para la bancada con lo que tiene que ver con el cuerpo, esas cosas la hacen en consulta con el movimiento. Nos consultan el Código de Familia, la Ley de Violencia contra las mujeres (…) ese vínculo ha sido muy fructífero. Ellos lo valoran altamente, tanto que hasta nos han invitado a ser observadores de sus reuniones de Junta Directiva, y ahí estoy designada yo…voy una vez al mes”

Como dissemos anteriormente, as mudanças resultantes desta aliança têm característica de mão dupla. Isto é, partido e movimento foram igualmente afetados e, portanto, assim como o MRS experimentou reformas estruturais produto do encontro, o MAM também viveu alterações internas a raiz da aliança. Os questionamentos que diversas ativistas do MAM fizeram à Coordenadoria Política do movimento por conta da condução da aliança, e principalmente, pelas candidaturas citadas anteriormente, gerou a primeira onda de expulsões que jogou por terra a antiga aspiração das feministas por contar com uma estrutura única e homogênea do feminismo nacional. As primeiras 12 expulsas do movimento em 2006 criaram uma nova rede, o Movimento Feminista, que – diferente do MAM – reúne ativistas que participam em outras organizações e mantém uma autonomia declarada dos partidos políticos. Na literatura (LACOMBE, 2010; CHAGUACEDA, 2011) o surgimento do Movimento Feminista é compreendido como a velha expressão da disputa interna que a CNF enfrentara entre 2001 – 2005 por questões organizativas. Naquele período, depois que a CNF teve uma espécie de reativação em 1998 50, conviveram duas tendências que pregavam modelos organizativos distintos. A elite da CNF pressionava por uma organização hierárquica e altamente estruturada, enquanto a outra tendência reunida no “Foro Maternidade, Sexualidade e Direitos”, pregava por um modelo horizontal provindo da experiência de organização em redes que o feminismo exercitara no começo dos 90. 49 50

Expressão que em espanhol indica “mastigar levemente, deglutir, remastigar, etc” Abordaremos esse episódio no capítulo IV desta tese

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Ambas as tendências, em coordenação com a RMCV, se uniram em 2005 para fundar o MAM, mas ao questionar o andamento da aliança com o MRS, a Coordenadoria Política do MAM resolveu pela expulsão das primeiras doze ativistas. Praticamente todas as expulsas em 2006, através de uma assembleia ordinária na qual 46 ativistas do MAM votaram pela exclusão, integravam o “Foro Maternidade, Sexualidade e Direitos”, de modo que a decisão reatualizou o conflito que vinha se arrastando desde o CNF (Lacombe, 2010), onde as duas maiores representantes (Sofia Montenegro, da elite do MAM e Maria Teresa Blandón, do “Foro Maternidade”) mediam força constantemente 51. A dura decisão gerou uma profunda crise no feminismo nicaraguense (a até alguns atritos pessoais), ao ponto que o MAM fracassou em se erigir como a rede única do feminismo nacional. Mas os constantes embates com o estado orteguista empurraram todas as organizações do movimento, hoje em dia oficialmente separadas, a se juntarem em ações e momentos concretos e emblemáticos. De acordo com o podemos extrair da entrevista com Maria Teresa Blandón, a coordenação das organizações feministas em eventos concretos, e fora do alcance de um guarda-chuva organizacional, tem contribuído até na superação dos próprios conflitos pessoais. “(…) ese mismo hecho generó una ola interna de malestares junto a los resultados desastrosos de las elecciones. Todo eso dio al traste con el MAM en esta figura de ser una plataforma nacional del feminismo nicaragüense. Se convirtió entonces en un espacio más pequeño, ya redefinido. Las disidentes y otros grupos nos convocamos en otro espacio al que le llamamos Movimiento Feminista, donde actualmente hay 20 organizaciones, muchas de ellas organizaciones de jóvenes y otras donde habíamos estado en el MAM y antes en el CNF. La RMCV de alguna manera recompuso su posición interna que se descolocó después de esa experiencia y el MAM que ya quedó como otro espacio más del movimiento. (…) el MAM pasó a ser una expresión más pequeña, sin esta pretensión de representación nacional. Y ya después de muchos ires y venires, muchos dimes y diretes, muchas tensiones, muchos conflictos personales; lentamente la realidad del gobierno de Ortega y todo lo que eso trajo aparejado en términos de hostilidades, retrocesos y tensiones, nos ha ido obligando a volvernos a acercar, a volver a dialogar, pero ya desde otro lugar y no desde una plataforma común, sino desde el lugar de donde cada espacio viene, coloca su perspectiva, nos ponemos de acuerdo en desarrollar cosas conjuntas según las circunstancias. Y en esas cosas es que está ahora el movimiento”. 51

As ativistas que foram expulsas porque “não tinham a mesma concepção do movimento”, segundo a justificativa oficial, (e que também integravam o “Foro Maternidade...”) são Maria Teresa Blandón, Marta María Blandón, Dorotea Wilson, Magaly Quintana, Luz Marina Torres, Eva Sanquy e Sylvia Torres Na carta de expulsão, reproduzida no estudo de Lacombe (2010) argumenta-se literalmente: “Según nos consta a todas, el discurso y las actuaciones del Foro han establecido la evidencia siguiente: El Foro tiene otra concepción del movimiento. No comparte la propuesta política del MAM, ni su análisis político, ni su estrategia organizacional (…) Todo indica que el Foro tiene otros intereses, otras estrategias y otras alianzas, lo que crea un conflicto de intereses con el MAM” (Carta de expulsão, apud Lacombe, 2010, p. 22)

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Embora as diversas organizações do movimento sejam hoje capazes de implementar ações conjuntas para a mobilização, as primeiras fraturas experimentadas no MAM em 2006 teve consequências anos mais tarde. Em 2008, novos questionamentos que surgiram por causa do “flerte do MAM” com coalizões partidárias (do espectro liberal), que vieram a reboque do MRS, gerou uma nova onda de expulsões, só que nessa ocasião as excluídas não procuraram uma alternativa organizativa aparte. Estas “novas expulsas” mantiveram a identificação com o MAM, mesmo que em contradição com a liderança nacional, e para marcar tal separação distinguiram essa nova vertente como um “MAM saudável”. Haydee Castillo, coordenadora do MAM na região norte do país, e oficialmente expulsa nessa “segunda onda” revela que existe uma dura crítica à liderança nacional, embora desde dentro do movimento, isto é, desde as organizações de origem nos territórios: “Esa segunda expulsión le abrió una nueva vertiente al MAM: Un MAM saludable, porque comenzamos a ver aquí actitudes de autoritarismo, de verticalismo e imposición porque decíamos que no nos íbamos a alinear con el MRS por un cambio de personas en el poder, sino porque queríamos un cambio en el sistema y la forma de hacer política (…) empezamos a ver que algunas de esas prácticas viajes estaban aquí porque nos querían imponer cosas, porque nos quieren ver como súbditas, porque nos llegaban a golpear la mesa. Eso es lo que nos diferencia de las MAM nacional”

As transformações estruturais que observamos em ambos os atores, e as características dessas mudanças nos levam a afirmar que a parceria do movimento com os atores da cena partidária tem deixado consequências ambivalentes para o feminismo nacional. Por um lado, o MRS ofereceu as feministas um espaço institucionalizado para o ativismo, desde que elas ficaram fora dos conselhos participativos instaurados pelo governo Ortega. Mas, por outro lado, é uma fonte de tensões, especialmente para a base feminista que considerou que a aliança com o MRS se presta a interesses que não correspondem com os anseios do movimento ao redor da ampliação de direitos das mulheres. O constante envolvimento das líderes do MAM em diversos comícios de campanha, primeiro com o MRS, e já nos anos mais recentes com coligação da Aliança PLI e outros partidos do espectro liberal, impõe resultados contingentes da aliança política e reforça mais os questionamentos de várias ativistas que continuam considerando que o acordo MAM- MRS não se concretizou no fortalecimento do ativismo feminista. Algumas posturas de líderes feministas marginalizadas do MAM sugerem que o acordo serviu apenas a uma atuação do movimento em momentos de campanha eleitoral, mas pouco tem contribuído para a

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instauração de uma agenda “efetivamente feminista” no sistema de partidos políticos e no estado. Esses questionamentos não são reconhecidos pelo MRS. Durante nossa ultima imersão ao campo, conseguimos interrogar Dora María Tellez, uma das mais notáveis ex – guerrilheira e líder de alto prestigio entre a militância do MRS (particularmente após a greve de fome que manteve durante um mês em 2008, após o cancelamento da legenda do partido), sobre a visão que o MRS tem ao redor da aliança. Ela admite que ainda exista receio sobre se o MRS “domina” na relação, mas atribui tal percepção à visão que algumas organizações e movimentos criaram ao redor da política institucional a raiz do distanciamento da FSLN. “Todavía hay gente que tiene suspicacias en relación a si el MRS da órdenes o no las da. Porque, lo que pasa es que dentro de los movimientos sociales que se fueron independizando del FSLN, la tendencia fue de separación completa del vínculo con los partidos. Digamos que se dio una reacción de un extremo a otro, de la dependencia a un alejamiento de la acción política como tal y se concentraron en una acción de influencia en las políticas públicas (…) la relación con el MAM tiene esos fundamentos, y yo creo que ha evolucionado bien en todo este periodo. No ha sido un proceso difícil, ha sido más bien fluido. No hemos tenido resistencia, más bien hemos tenido bastante apertura de que el MAM participe de los debates estratégicos del partido. Entonces, ¿cuál ha sido la influencia del MAM? Nosotros iniciamos hace dos años un proceso de relevo generacional que llevó a un grupo de jóvenes a puestos nacionales del partido. Y muchos de esos jóvenes son mujeres, y ellas han estado impulsando junto con el MAM, dentro del partido, a la Red de Mujeres del MRS. Tal vez esta sea la estructura más fuerte que el partido tiene. La Red de Mujeres del MRS junto al MAM, han iniciado un proceso de formación a las mujeres del partido y esto yo creo que es una ganancia bien alta que tiene el MRS ahora porque esto ha desatado procesos de formación a las mujeres para que puedan actuar dentro del partido, digamos que es un proceso de fortalecimiento del liderazgo femenino, y por otro lado, han logrado volcar a las mujeres del MRS en todos los temas de respaldo a las plataformas de lucha del movimiento de mujeres. Creo que ha sido mutuamente enriquecedor, no veo resistencias”.

Como dissemos anteriormente, o impacto na estrutura dos atores gerado pela aliança entre o partido e movimento não foi o único fenômeno observado. Além de alterar suas próprias estruturas, a interação do MAM com o MRS motivou o surgimentos de outros arranjos organizativos do entorno, não apenas alargando as fronteiras da aliança, mas fazendo com que ela interaja com a conjuntura política que serve de cenário. Veremos esse ponto a seguir. 1.2.4. Estimulando novos arranjos organizativos: O caso da UCD

Ao perder a legenda, prévio às eleições municipais de 2008, o MRS começou experimentar maior proximidade com movimentos sociais e organizações populares no interior do país. De

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fato, a própria decisão do Conselho Eleitoral motivou diversos eventos de mobilização e passeatas nas maiores cidades. Não que os manifestantes expressassem simpatia eleitoral pelo MRS (o resultado eleitoral de 2006 foi bastante claro ao respeito), mas começava se espalhar no país o temor que o Conselho Eleitoral cedesse a todas as pressões da FSLN, inclusive para realizar eleições fraudulentas 52. O fato do MRS não participar mais de processos eleitorais com legenda própria, não obstaculizou que o resto dos processos estruturais do partido (como substituição do diretório nacional e/ou a composição de diretórios municipais) continuasse funcionando. Aqui é onde a Coordenadoria Política do MAM desempenhou funções fundamentais para a reorganização interna do partido. Foi neste contexto onde se gerou uma nova estrutura de mobilização: A Unión Ciudadana por la Democracia (UCD). Esta nova associação surgiu do descontentamento de um espectro maior de organizações e intelectuais contra a degradação institucional do Conselho Eleitoral, contra as reformas dos novos modelos participativos concentradas na institucionalização dos CPC, e mais particularmente em rechaço aos embates do estado representados na acusação penal das nove líderes feministas promovida pelo Ministério Público em Dezembro de 2007 e a interdição policial do MAM em 2008. A UCD não é nenhuma coalizão de partidos políticos, mas uma rede multi-setorial que pressiona por reformas eleitorais para erradicar o controle da FSLN sobre as instituições do estado. No bojo dessa nova estrutura surgira uma situação bastante curiosa quando as organizações, graças à influência do MAM dentro da UCD, convidaram o deputado Enrique Sáenz (MRS) – quem naquele momento desempenhava a função de presidente do partido – para integrar essa nova rede, pela compreensão de que já o MRS não funcionaria mais como 52

Por causa do ambiente tenso, as eleições municipais de 2008 registraram semanas de intensa violência e acusações da oposição de que a FSLN tinha liderado eleições fraudulentas em vários municípios com alta tradição liberal, para poder mostrar à sua militância que tinha conquistado quase 110 prefeituras, das 153 que compõem à Nicarágua. Já em 2010, Ortega apresentou um recurso contra a Constituição (que proíbe a reeleição contínua), obtendo uma sentença favorável de uma das salas do Supremo Tribunal de Justiça (Corte Suprema da Justiça, CSJ) em apenas 24 horas, decretando que o artigo da Constituição era inconstitucional. Com tal sentença, Ortega postulou sua candidatura nas eleições presidenciais de 2011, aumentando mais ainda os protestos da oposição e acusações desconfiadas de observadores eleitorais internacionais. Em 2012, o presidente conseguiu uma reforma constitucional no Congresso para eliminar a proibição da reeleição e outorgar reconhecimento constitucional aos CPC. Hoje em dia, o Conselho Eleitoral é uma das instituições mais desprestigiadas do país e a oposição começa formular a possibilidade de não participar mais destes processos. Para compreender esta situação, vide: VIGIL, 2011.- Nicarágua: Eleições fraudulentas e uma ditadura institucional: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6538:submanchete2111 11&catid=30:america-latina-&Itemid=187

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um partido que concorre em eleições, cuja nova condição o aproximava mais dos movimentos sociais. Na nossa segunda visita ao campo, conseguimos conversar com Sáenz ao respeito, e eis aqui parte do relato: “Por alguna razón resuelven que las representaciones en la UCD sean personales y no institucionales, y por eso me invitan a formar parte de la UCD, siendo yo MRS. Entonces aquí se genera una dinámica inusual en la que un presidente de un partido (en este caso, yo del MRS) es miembro de una organización de la sociedad civil. Y ahí se da otro tipo de enlace porque está el MAM presente (…) Entonces ahí encontramos, por así decirlo, otro eslabón de actuación conjunta en donde tiene mucha importancia las relaciones informales. Las principales movilizaciones de esa época las organizó la UCD, teniendo como uno de sus pilares la relación del MAM con el MRS. Pero nosotros como MAM-MRS nos continuábamos reuniendo aparte. De hecho, la Alianza Patriótica que luego se integró a la Alianza PLI 53 fue resultado de este proceso. Y eso explica, por ejemplo, que Azahalea Solís, miembro del MAM, pero como representante de la UCD sea miembro del Consejo Político de la Alianza PLI. No sé cómo pasó y aún me lo pregunto, ¿cómo estas organizaciones que eran tan reacias a los partidos políticos hayan permitido que un partido político estuviera dentro de sus estructuras?”

O fato de existir uma relação prévia e informal entre eles ajudou a minimizar os custos de transações presentes em toda relação política. Mas o conhecimento prévio que os atores já possuíam estimulou, em grande medida, esse novo ativismo. No caso, a UCD foi a protagonista de muitas mobilizações entre 2010 – 2012, mas ela tinha como motivação fundamental a coordenação prévia constituída na aliança entre MAM e MRS. Uma segunda caracterização deste arranjo está no trânsito que os atores experimentam, configurando uma espécie de mimetismo entre partido e movimento. A UCD se constituiu em um espaço onde as ativistas feministas, particularmente Azahalea Solis (da Coordenadoria Política do MAM) assumem a liderança. Por essa razão, quando a UCD decide integrar uma coordenação entre redes que apoiam a candidatura presidencial do empresário Fabio Gadea (dentro da Aliança PLI), Solís aparece como a representante da UCD na rede apoiadora do partido e assume a candidatura a deputada nacional pelo próprio PLI. Assim, a líder feminista conseguira circular entre a coordenadoria nacional do movimento, a rede multi-setorial e no espectro partidário de forma simultânea, tornando mais porosas as fronteiras entre cada espaço.

53

A “Aliança PLI” é uma coalizão que incorporou o MRS e todas as organizações que estavam dentro da UCD como apoiadores da candidatura de Fábio Gadea, empresário de rádio e o maior aliado do ex- banqueiro Eduardo Montealegre, dissidente do PLC e que disputara a eleição presidencial de 2006 sob a legenda da Aliança ALN. Sem o MRS e o PLC absolutamente enfraquecido, a aliança PLI era a única coalizão que participou das eleições presidenciais de 2011 com o fracassado objetivo de evitar a reeleição de Ortega, cujo novo mandato vai de 2012 – 2017

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Esse tipo de interação não só apareceu no marco da Aliança PLI. A recomposição que o MRS teve de fazer para se incorporar à aliança com o partido liberal demandou uma reestruturação interna, em cujo processo a Coordenadoria Política do MAM foi essencial. Mais uma vez o depoimento do deputado Enrique Sáenz nos ajuda a ilustrar esse ponto: “En las elecciones internas del MRS, donde nosotros elegimos nuestros propios candidatos y representantes ante el PLI, invitamos a una persona de fuera del MRS que hiciera una especie de Presidente de Tribunal Electoral ad hoc que es para hacer el conteo y esas cosas (..) Según los estatutos (del MRS), hay un órgano que es el que se encarga de elegir a esos cargos. Para asegurar transparencia y parcialidad, el tribunal nuestro designa a alguien de fuera del partido para que conduzca el proceso. Entonces, ¿quién administró ese proceso? Fue Azahalea. Nosotros como grupo parlamentario nos reunimos todos los lunes y ella es invitada a asistir a las reuniones del grupo parlamentario, ya sea por sus habilidades legales, por su capacidad constitucional o porque es simplemente del MAM. Para la cuestión de los estatutos, la Red de Mujeres del MRS incorporaron a las mujeres del MAM para reformar los estatutos del MRS. ¿Eso está en el acuerdo suscrito con el MAM? No, pero el proceso ha venido profundizando formas no escritas”.

Os trânsitos que as ativistas do MAM vão experimentando dentro das estruturas do partido e o arranjo organizativo que criaram no entorno teve a pretensão de impactar no estado. O incremento dos protestos da UCD entre 2010 – 2012 foram respondidos por um pacote de normativas promovidas pelo Executivo, orientadas a garantir de forma compulsória a equidade de gênero nas instituições do sistema político. Essa medida, junto a um conjunto de normativas e decretos provindos do Executivo revelou que a interação do MAM e MRS não apenas tinha impactos no entorno das organizações, como também conseguia atingir o próprio estado. Esta constatação matiza a noção de que a relação entre as organizações feministas e o estado tem sido apenas caracterizada pelo conflito gerado nos embates com o governo orteguista. A aprovação de uma série de emendas mostrou um tipo de reação do estado às pressões do feminismo, representada em dois instrumentos que resultam chaves para nosso interesse: a apresentação e aprovação da lei 50 – 50 e a aprovação da lei que criminaliza a violência contra as mulheres e os femicídios. Na seção a seguir analisaremos os fenômenos ao redor da aprovação de ambos os instrumentos, trazendo o terceiro ator, o estado, nessa roda. 1.3. Impactando o estado: O terceiro ator na roda

As constantes mobilizações da UCD entre 2010 - 2012 contra as irregularidades eleitorais, o controle da FSLN sobre os conselhos participativos e as pressões do estado contra as organizações feministas fizeram com que o estado reagisse não apenas incrementando os

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embates, mas assumindo uma pauta que respondesse oficialmente, e de forma parcial, às exigências das organizações feministas. Em outras palavras, o estado teve a capacidade de conjugar as hostilidades contra o movimento com a criação de programas e políticas que visassem instaurar uma pauta feminista no nível oficial. Foi nesse contexto que surgiram programas como “usura-zero”, caracterizado por transferir fundos de crédito para mulheres dos setores populares com a finalidade de gerarem pequenos empreendimentos, ou bem, a criação de um fundo de terras para mulheres rurais, cuja demanda era formulada por diversas cooperativas de mulheres rurais desde o período da campanha eleitoral de 2006. A ênfase de Ortega na agenda social ficou evidenciada nos programas de transferências de renda, assistência às classes populares e gratuidade dos serviços

públicos,

fundamentalmente

saúde e educação. O mais emblemático de todos os programas de estado foi o Fome

Zero,

uma

adaptação

do

homônimo brasileiro que, para o caso Comício da FSLN durante a campanha eleitoral de 2011 que permitiu a reeleição de Daniel Ortega na Presidência para o mandato 2012 - 2017 (Foto: Arquivo 19 Digital/Visión

nicaraguense,

caracteriza-se

pelo

pagamento de um bônus alimentar para

famílias chefiadas por mulheres rurais e outras ações destinadas à erradicação da subnutrição infantil. Inicialmente, o Programa Fome Zero tinha se colocado a meta atingir 75 mil famílias rurais, mas algumas cifras, tanto orçamentárias quanto de beneficiários, têm se modificado ao longo dos últimos cinco anos 54.

54

A avaliação de Larracoechea (2014), ao redor da incorporação do enfoque de gênero no Programa Fome Zero, mostra resultados um pouco contraditórios com relação à meta proposta inicialmente de “empoderar” às mulheres beneficiárias. Por um lado, o pagamento do bônus alimentar melhorou a auto-estima das mulheres, incrementou o poder de decisão delas no casal e aumentou a renda das famílias. Mas a ausência de planos de acesso das mulheres à terra, o baixo incentivo da associatividade e a reprodução do foco “familista” (a mulher administra o bônus porque a ela cabe a função de “cuidar” do núcleo familiar) contribuíram muito pouco com o papel político da mulher rural. Embora durante os primeiros dois anos, o Programa conseguira incrementar o numero de beneficiários em até 100,000; já nos últimos cinco anos a mídia tem noticiado sobre um corte orçamentário gradual de um 10% anual, impactando na redução de técnicos para a assessoria que, supunha-se, iria ser direcionada às mulheres (na maioria uma redução de quase um 90% de técnicos) e um escasso monitoramento sobre a implementação local (“Hambre Cero en Crisis” In: http://www.confidencial.com.ni/articulo/20204/hambre-cero-en-crisis)

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Já em relação com as pautas feministas, o pacote de leis promovidas pelo Executivo continua sendo altamente ambíguo (LARRACOECHEA, 2014). Depois de confirmar que não iria reverter a criminalização do aborto terapêutico 55 (apesar das promessas ao seu eleitorado em 2006) o estado sob o comando da FSLN, começou a promover (após a reeleição de Ortega em 2011) uma série de medidas orientadas a melhorar a representação política das mulheres nas instâncias do estado. Assim foram aprovadas, com impulso do Executivo, leis como a Lei de Paternidade Responsável, Lei de Igualdade de Oportunidades, reformas à Lei de Municípios para incorporar a quota de 50% para mulheres na lista de candidaturas (a lei 50 – 50) e a Lei que criminaliza a violência contra as mulheres e os femicídios (lei 779). Para nossa análise, dois desses instrumentos e o processo para sua respectiva aprovação são os que mais nos interessam: a “Lei 50 – 50” e a Lei que pune a violência contra as mulheres e os femicídios, Lei 779. Após meses de mobilizações e ocupações de ruas ao longo de 2011, o Executivo (já em março de

2012)

introduziu

de

emergência no Legislativo uma proposta para reformar a Lei de Municípios, estabelecendo que todos os partidos políticos e coalizões

de

partidos

que

Passeata das organizações feministas em defesa da Lei 779 (Foto: Arquivo MAM)

participassem nas eleições para prefeitos (que aconteceria em novembro de 2012) deviam apresentar candidaturas de homens e mulheres na mesma proporção em todas as posições, desde prefeitos até vereadores. Isto é, onde o candidato a Prefeito fosse um homem, a candidata para ocupar a Vice - Prefeitura devia ser uma mulher e vice-versa. A emenda ficou conhecida como a lei 50 – 50 e conseguiu uma aprovação majoritária no Legislativo logo no 08 de março de 2012. Nenhuma das ativistas do MAM, nem da RMCV questionaram a reforma e, pelo contrário, exercitaram uma pressão sobre os partidos aliados

55

Com isso, a Nicarágua é o terceiro país da América Latina que criminaliza o aborto em todas as formas e o sexto no mundo (Larraocoechea, 2014: p.5). A medida tem provocado uma falta de atenção adequada aos mais de 2,900 casos de violência sexual ao longo dos últimos sete anos desde que aborto foi criminalizado (http://cafeconvoz.org/el-aborto-terapeutico-a-siete-anos-de-su-penalizacion/#.Um71Qzi474w.facebook)

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(no caso do MAM no seio da Aliança PLI) para que os partidos cumprissem com a normativa durante os processos burocráticos de inscrição de candidatos 56. A maioria dos partidos – incluindo a FSLN – enfrentou grandes dificuldades para cumprir a normativa. Em muitos casos, as listas de candidaturas eram formuladas com uma paridade de gênero em 50 – 50, por exigência da lei, mas isso não garantia – é claro – que os resultados das votações mantivessem essa proporção. Por um lado (como foi o caso do MRS explicado anteriormente) as candidatas não eram eleitas por causa de um machismo prevalecente nos municípios, enquanto em outros casos, as candidaturas de alguns partidos não eram eleitas em função das irregularidades do Conselho Eleitoral por outorgar a maior vantagem possível à FSLN. Em outras palavras, a lei teve o alcance para determinar a lista de candidaturas de forma compulsória, mas por óbvias razões não pode decidir pela composição do estado, posteriormente a cada eleição. Todas essas medidas outorgaram à Nicaragua o destacado lugar de ser o primeiro país da América Latina em garantir a equidade de gênero na composição do estado, de acordo com o mais recente relatório do Forum Econômico Global 57. Afinal, não só o Executivo protagonizou a emenda para garantir equidade de gênero nos partidos políticos, mas também implementou transformações em quase todas as entidades do setor público que estão orientadas à equidade. Também em 2012, por ordem de Rosário Murillo, foram criadas Secretárias da Mulher em todos os ministérios do estado, enquanto o Legislativo Nacional está composto por um 40.2% de mulheres 58. Com tal institucionalidade, em pouco tempo a Nicarágua alcançou os níveis dos países nórdicos em termos de equidade de gênero, mas na visão da oposição existem outros tipos de razões (não apenas as respostas às demandas das organizações feministas) para que o estado alcançasse esse status. Durante uma das nossas visitas de campo, abordamos essa questão com o deputado Enrique Sáenz (MRS) que fora presidente do partido entre 2007 – 2012, e considera que a resposta do

56

Durante um encontro informal na sede do MAM, Azahalea Solis, da Coordenadoria Política, comentou que a lei 50-50 representa um sinal de avanço em termos de equidade, ao outorgar uma ferramenta de pressão sobre os partidos políticos para futuras campanhas eleitorais 57 http://www3.weforum.org/docs/WEF_GenderGap_Report_2013.pdf 58 A principal crítica da literatura (LACOMBE, 2010; LARRACOECHEA, 2014) ao redor de toda essa institucionalização é que ela não conta com recursos suficientes para funcionar. Não existe orçamento para as Secretarias da Mulher nos ministérios, por exemplo, e a própria Lei de Paternidade Responsável registra problemas de implementação.

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estado era também entendida como parte da mesma disputa que o estado maninha com as organizações feministas: “Yo creo que de alguna manera, esta relación que ha establecido el MRS con las organizaciones sociales (…) ha llevado a que Ortega lea a todas las asociaciones independientes con el mismo lente, como si fueran apéndices del MRS, a pesar de la autonomía que mantienen y todo eso. Claro, a nadie se le ocurriría pensar siquiera en subordinar al MAM en sus decisiones, pero yo no tengo duda de que todos los ataques del Estado en contra de las mujeres son por la vinculación con el MRS, un castigo por considerar que nos daban el apoyo (…) pero después viene todo este tema de las leyes progresistas. Una explicación de todo esto es porque existe presión internacional. Nosotros hemos participado de la Internacional Socialista (IS) y parte de lo que ha hecho el orteguismo para componer sus relaciones con la izquierda latinoamericana ha sido tomar estos temas para mostrarse como un partido progresista abierto a las corrientes dominantes de la izquierda internacional y de paso quitar banderas al movimiento feminista. Al menos lo de la IS me consta. El FSLN estaba ya en la antesala de la expulsión y ellos se vieron obligados a presentar un conjunto de iniciativas y algunas mujeres latinoamericanas se quedaron sorprendidas de no saber cómo interpretar estos cambios”

O processo de aprovação da Lei 779 (que criminaliza os femicídios) resulta ser altamente instigante para analisar a rica interação entre movimento-partido- estado. A referida lei foi aprovada pelo Congresso dois meses antes da emenda 50 – 50, mas o processo de aprovação (e a subsequente implementação) desvendou uma complexa interação dos três atores em jogo, sem contar a forte polêmica nacional instaurada. Vejamos. A iniciativa surgiu de Sandra Ramos 59, reconhecida feminista e coordenadora do Movimento Maria Elena Cuadra (MEC), organização que surgira na primeira metade dos 1990 e caracteriza-se por desempenhar estratégias de defesa dos direitos das mulheres operárias da Zona Franca e trabalhadoras domésticas. O MEC é altamente reconhecido por ter criado a primeira Agenda Econômica das Mulheres na América Central e por realizar diversos estudos que determinam o peso do trabalho das mulheres para o PIB nacional. Em 2011, Ramos estimulou uma aliança do MEC com mais 21 organizações de mulheres em diversas províncias do país para que redigissem conjuntamente, uma iniciativa de lei que punisse os femicídios e todas as formas de violência contra as mulheres, não apenas no âmbito doméstico, mas também laboral e público. Previamente ela tinha negociado de maneira informal com o deputado liberal Wilfredo Navarro (PLC), que a aliança de 59

A experiência de militância de Ramos vem da época em que participou da criação e funcionamento da Secretaria da Mulher na ATC, a maior associação sindical do período revolucionário As Secretarias da Mulher dentro dos sindicatos (e das diversas instâncias do estado) eram os espaços mais importantes para expandir as demandas feministas no governo sandinista, principalmente pela sujeição da AMNLAE à ordem da FSLN nesse particular. No terceiro capítulo desta tese analisaremos essa questão.

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organizações apresentaria a ele o projeto e ele o introduziria para debate nas comissões respectivas e lideraria toda a discussão até a aprovação em plenário. O debate nas comissões foi rico como extenuante. A rede instaurada pelo MEC empreendeu uma forte campanha pela aprovação da lei, invadiram as comissões de cartas exigindo um amplo debate e levaram depoimentos de mulheres sobreviventes de violência para incorporar as visões das vítimas no documento. Mas como Ramos nos contou para esta pesquisa, no momento que a comissão introduziu a proposta no plenário, mudaram alguns procedimentos. Nesta fase, a FSLN tentou monopolizar o debate e o Executivo pediu à Presidente do Supremo Tribunal que apresentasse um segundo projeto. Afinal, o presidente do Legislativo condicionou a aprovação da lei a que ambos os projetos fossem fundidos para incorporar a visão do judiciário. Após esse breve impasse, a lei foi aprovada em janeiro de 2012, mas a implementação – que iniciara em junho do mesmo ano – gerou maior polêmica ainda 60. Em menos de um mês, a lei teve de enfrentar não menos de cinco recursos por inconstitucionalidade por parte de associações de advogados, enquanto a Presidente do Supremo Tribunal, Alba Luz Ramos revelava que um grupo de magistrados pretendia anular a lei por completo a partir de uma nova sentença. Isso tudo criou um novo conflito no seio das organizações feministas. A cúpula do MAM questionou o MEC – e particularmente a Sandra Ramos – por ter assumido o protagonismo da proposta de lei e do debate, sem negociar a plataforma com todo o movimento feminista na sua dimensão mais ampla, e principalmente sem levar em consideração à RMCV por ser “o maior referente nacional” na luta contra os femicídios 61. Em resposta ao questionamentos, Ramos considerou que o mais importante é que o país contasse com a lei aprovada, sem interessar o protagonismo. Apesar da polêmica, todas as organizações do movimento, tanto as ONG locais quanto as principais redes nacionais (Movimento Feminista, MAM, RMCV e MEC) se uniram para

60

61

http://www.elnuevodiario.com.ni/politica/280857-polemica-ley-contra-violencia-a-mujeres

Em diversos encontros informais que tive com Sofia Montenegro (MAM) ao longo da minha pesquisa de campo, ela argumentava que essa falta de negociação prévia cedeu o espaço para a intromissão de última hora da FSLN a través do Judiciário, e um resultado altamente controvertido que depois o movimento teve que administrar unido na hora da implementação.

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realizar uma campanha que obstaculizasse, em primeiro lugar, a derrogação da lei e, depois, salvar sua implementação sem reforma alguma. Passado seis meses de embates, o Executivo emitiu um decreto para regulamentar a implementação da lei, a partir do qual terminou reformando alguns elementos essenciais. Por exemplo, via regulamentação, determinou-se que só pode se considerar femicídio quando os crimes provem do cônjuge ou namorado. E mais ainda, para os casos de violência doméstica, o estado criou Conselhos da Família, no seio dos CPC, que deverão fazer o papel de mediação para evitar que os casos progridam em denúncias na justiça 62. Na percepção do movimento feminista, a medida do Executivo não respondeu só à necessidade de abafar a polêmica e salvar a lei, mas também faz parte de uma estratégia do estado para mostrar que existe, oficialmente, uma redução nos índices de femicídios no país e desmontar todas as cifras que o movimento emite anualmente, produto de um monitoramento nacional 63. A despeito do curso que a lei 779 tomou a partir de 2013 com o novo decreto, e a dificuldade que os partidos políticos têm para aplicar a emenda lei 50-50 nas estratégias eleitorais, acreditamos que os fenômenos políticos suscitados por ambos os instrumentos ilustram uma intensa interação entre movimento-partido-estado e ajudam a explicar as consequências de tal interação. O estado não só reagiu aos embates que a aliança MAM- MRS foi gerando a partir da onda de mobilizações que aconteceram entre 2010 – 2012. Ele também instaurou uma agenda de estado altamente focada em questões de gênero que, ao mesmo tempo em que consegue atender as demandas do movimento, tem a potencialidade de restar forças às pressões das organizações feministas. 62

Para compreender o impacto das mediações que o estado instaurou compulsoriamente e todo o debate gerado ao redor da modificação da lei, via decreto de regulamentação, recomenda-se: http://blogs.20minutos.es/mas-dela-mitad/2013/10/08/mediacion-solucion-paraquien/?fb_action_ids=10202153855350435&fb_action_types=og.likes&fb_source=other_multiline&action_obj ect_map=%7B%2210202153855350435%22%3A222293161263939%7D&action_type_map=%7B%22102021 53855350435%22%3A%22og.likes%22%7D&action_ref_map=%5B%5D 63

A divulgação das cifras é também um lugar de disputas entre as organizações feministas e o estado. Segundo o monitoramento realizado pelo capítulo nicaraguense de Católicas pelo Direito a Decidir, no primeiro ano da implementação da lei 779, a justiça já tinha recebido 33 mil 535 denúncias por violência, o que significa que uma mulher sofre de violência a cada 20 minutos no país. Já em 2014, ano em que a Lei foi reformada via Decreto do Executivo, após a primeira emenda que sofrera em 2013, as organizações contabilizaram 71 feminicídios contrastando com os 32 casos registrados oficialmente nesse ano, sob a nova compreensão do estado (de reconhecer o femicidio apenas quando existe uma relação afetiva envolvida). No primeiro trimestre de 2015, as organizações já contavam 14 mulheres assassinadas. Para conhecer o monitoramento, vide: http://catolicasporelderechoadecidir.org.ni/index.php/femicidios

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Porém isso não significou que o estado tenha comprado o pacote inteiro da agenda feminista. Já se passaram seis anos sem reverter a criminalização do aborto terapêutico, apesar dos mais de 40 recursos que existem no Supremo Tribunal para que a reforma seja revertida. Ainda não existe sentença para o processo na justiça que iniciara em Dezembro de 2007 contra as nove líderes feministas e a maioria da documentação que fora retida durante a interdição policial no escritório central do MAM em 2008 continua extraviada. Para a dinâmica interna do movimento, o cenário é ainda mais complexo. O MAM fracassou na tentativa de se consolidar como a plataforma única do feminismo nacional, e as estratégias políticas de aliança partidária (particularmente com o MRS, mas também no marco da Aliança PLI) fragmentaram mais ainda as outras organizações, como o Movimento Feminista, fazendo com que as organizações locais obtenham agora uma nova centralidade. Com relação a esse último ponto, a fala da pesquisadora feminista Ana Criquillon resulta ilustrativa: “El MAM se dividió a lo interno y está muy débil, no tiene la misma presencia política que cuando apareció. Algunas personas de dentro del MAM sí que tienen un peso político fundamental, son feministas históricas, etc. Pero es ellas por ellas. El MAM no está sonando tanto, el Movimiento Feminista también se dividió adentro, hay conflictos que a veces llegan a ser hasta personales. No hay ninguna agrupación dominante del movimiento de mujeres y entonces sigue habiendo como polos de liderazgos feministas y no sólo en Managua, también desde las regiones que ahora entran a jugar un papel fundamental. Están los colectivos locales y la red de Matagalpa y del norte que son muy fuertes, además de la red de León. En fin, de repente ves que hay polos más dispersos”

O caso analisado neste capítulo (da aliança com o MRS em si, como ela se caracteriza, os impactos estruturais e do entorno político gerado e a interação com o estado) ilumina a inquietação central da nossa tese: A questão da autonomia ganha destaque e ela deve ser compreendida no meio da relação. O desafio de desenvolver esse debate em termos teóricos será abordado no capítulo a seguir, mas acreditamos que vale a pena encerrar essa parte do texto trazendo algumas das próprias considerações que surgem no campo. Partimos da compreensão de que a Autonomia não apenas funciona como categoria teórica. Ela tem também uma dimensão nativa, altamente polissêmica e é fundamental compreender essa perspectiva antes de instaurar um diálogo com a literatura específica. Trataremos disto a seguir.

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1.4. O caráter polissêmico da Autonomia

A primeira vez que o movimento de mulheres da Nicarágua decretou sua autonomia – com todas as letras – face o estado e os partidos políticos foi num contexto político altamente complexo. Era o ano 1991 e o país enfrentava uma confluência de processos desafiadores para o modelo de sociedade, e de estado, que seguiria ao fim da revolução sandinista: elementos como a democratização formal instaurada, o processo de pacificação após anos de conflito e uma mudança radical de sistema socialista para uma economia de livre mercado, entre alguns conflitos de convivência ainda ressabiados dos anos de guerra, truncaram a transição democrática e igualitária pela qual a sociedade nicaraguense apostara ao derrubar a ditadura somozista em 1979 (Cuadra, 2010). Para uma boa parte do ativismo feminista, a volta ao projeto democrático parecia ser uma aposta essencial. Só que qualquer contribuição para a retomada do ideário democrático imbuído na revolução passava, primeiro, por um afastamento da FSLN – após anos de sujeição de AMNLAE ao partido sandinista nos anos 80 – e, segundo, por declarar uma independência do estado instaurado nos anos 90 que – como era de se prever – seria hostil às conquistas alcançadas pelo feminismo (não sem dificuldades) durante o período revolucionário. Assim, em maio de 1992 as organizações de mulheres emitiram sua primeira proclama de autonomia, acompanhada de uma reorganização do movimento refletida na criação de redes temáticas com formas horizontais e reticulares de organização, provocando tensões com o modelo de estrutura que se ensaiara na CNF e se consolidaria, anos depois, na criação do MAM. Tal declaração de autonomia refletiu, em boa medida, debates que aconteciam quase de forma silenciosa no interior de AMNLAE. O modelo organizativo – independente de AMNLAE – que as feministas começavam exigir nos últimos anos do período revolucionário não gerava a simpatia do comando sandinista, mas quando a FSLN perdeu o controle do estado – e também uma boa parte do monopólio sobre as organizações de massas – a declaração de autonomia que o feminismo expressou publicamente foi, antes de tudo, a autonomia face à própria FSLN.

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É o que podemos deduzir do depoimento de Maria Teresa Blandón (Movimiento Feminista) quem na época tinha elaborado os primeiros diagnósticos ao redor dos modelos organizativos que o feminismo começava a discutir: “(Esa Autonomía) tenía dos dimensiones: Una era la política, es decir que nadie nos dijera cuáles son los temas que debíamos priorizar, porque eso era un dolor de cabeza con el FSLN. Cada vez que el FSLN nos decía que la violencia machista no era la prioridad, que la prioridad era la guerra. Cada vez que nos decían que el aborto es una cuestión que sólo la reclaman las mujeres de clase media, que estos temas de la sexualidad no son temas de la mujer trabajadora. Cada vez que nos decían eso, era un golpe duro porque esos temas a nosotras realmente nos importaban. Entonces, la Autonomía para nosotras era poder decir cuales los temas que le importaban a la mujer sin que nadie nos censurara. Esa era la dimensión política, de mostrar que nosotras tenemos derecho a decir cuáles son los temas que más nos preocupan y qué queremos colocar en la agenda pública. La segunda dimensión era organizativa. No queríamos que nos dijeran quiénes son las líderes, quiénes las representantes, quienes tienen que estar en qué y cuándo. Eso lo queríamos decidir nosotras: Sobre qué trabajar y cómo hacerlo. Como elegir a nuestras representantes. Era emancipatorio, claro, estábamos en pañales en cuanto a las reflexiones feministas, pero teníamos claro que el FSLN nos había puesto una censura muy grande y queríamos romper ese cerco de censura y cooptación. Estábamos aliviadas. Había una parte nuestra muy triste, lamentando las pérdidas de las elecciones y teníamos algo de miedo de cómo iban a ser las cosas con un gobierno de derecha; pero por otro lado, estábamos celebrando la posibilidad de que el FSLN no pudiera seguir ejerciendo poder de veto sobre este movimiento” (grifo nosso).

Ao longo dos anos 90 e a primeira metade dos 2000, a separação do feminismo com relação à FSLN foi se reforçando mais ainda. Episódios como a acusação contra Ortega por estupro e o subsequente pacto FSLN – PLC começavam a demandar posições políticas claras de parte das feministas, provocando decantações e rupturas definitivas que instauraram, na visão das ativistas, uma terceira dimensão da autonomia: a defensiva. Usando o conceito de Vargas (2008) ao redor da “autonomia defensiva”, o estudo de Cuadra (2010) situa tal categoria desde uma dimensão de externalidade dos atores partidários. Assim a autonomia instaurada ao longo desses anos, é entendida pelas ativistas como “una autonomía que intentaba preservar a los grupos de las influencias partidarias y estatales, pero sobre todo que buscaba como construir un discurso y una posición propia, fuera de la manipulación política que intentaban los actores interesados del sistema político” (2010: p. 19). grifo nosso Por essa razão resulta altamente interessante que, após anos de uma externalidade declarada, a aliança que essas ativistas (já no MAM) subscrevem com o MRS, seja entendida como o

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“amadurecimento e consolidação” da autonomia (2010: p. 27) do movimento. Claro, a aliança com o MRS tinha como base todo um debate estratégico que o movimento fez ao longo de dois anos, responde a cálculos e estratégias elaboradas (que inclusive criaram o próprio MAM) e foram incorporadas em um documento programático de cinco pontos que tem a intenção de preservar a vocação autônoma do feminismo. Afinal, como Sofia Montenegro (da Coordenadoria Política do MAM) nos disse durante a pesquisa de campo, a própria formalidade do acordo com o MRS responde à “desconfiança” herdada sobre os partidos políticos – mesmo o MRS sendo um “partido confiável” – e se corresponde também com a necessidade do movimento negociar sobre uma base de acordos programáticos: “Nosotras les dijimos (al MRS) que le damos el apoyo y vamos con ustedes, pero queremos una cosa formal, porque a nadie le vamos a dar un cheque en blanco”

Ambos os episódios (a primeira declaração de autonomia entre 1991 – 1992 e, depois, o surgimento do MAM e a posterior aliança com o MRS em 2006) se erigem como os momentos de inflexão chaves para compreender os diversos sentidos que a autonomia vai adquirindo com relação a um ator em concreto que, neste caso, é a FSLN. Sobre este ponto, uma das conclusões do estudo de Lacombe (2010) nos parece altamente ilustrativa. Ela destaca que existe uma associação entre a ideia da “autonomia” como sinônimo da dissidência da FSLN e o revigoramento do “movimento autônomo”

64

como

uma palavra de ordem de todas as organizações feministas, fazendo com que toda essa construção impacte na visão que hoje as ativistas têm sobre essa autonomia. Assim: “(…) haciendo esto, revelaron toda la fragilidad del concepto de autonomía, y también toda su polisemia. Se (re) descubrió de esta forma que la noción de autonomía hacia «los partidos» - principio reivindicado en programas y estatutos de mucho grupos – tan importante para la construcción y la definición del feminismo nicaragüense de la segunda ola, había sobre todo significado para casi todas, autonomía hacia “un” partido, el FSLN. El plural había eufemizado el objeto principal de distanciamiento, en realidad el único partido que resultó ser para la inmensa mayoría de las feministas, a la vez lugar de participación, y lugar de contestación interna. Entendimos también en el 2006, que este distanciamiento - separación no había significado lo mismo para todas. Para algunas, por ejemplo para las del MF, la autonomía ha significado una distinción entre el trabajo militante feminista y las simpatías personales o partidarias. Pero para otras, como las activistas afiliadas al MAM, la autonomía ha llegado a significar una ruptura individual y colectiva con un partido político que había dejado de ser considerado por ellas como “revolucionario”, y que ubican actualmente respaldando un proyecto contrario a los principios democráticos”. (2010: p. 35) 64

Reforçando assim a criação do MAM a partir de todo esse legado associado entre autonomia, separação da FSLN e uma organização altamente estruturada.

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O que podemos extrair dessa construção para nosso entendimento da autonomia, desde o ponto de vista empírico? Primeiro, a autonomia aqui tem uma função estratégica. As “atoras” do movimento usam essa categoria para mostrar um distanciamento do sistema de partidos e do estado, sem declarar uma ruptura completa. O distanciamento lhes confere o espaço necessário para realizarem seus cálculos, definir seus repertórios e planejar futuras alianças, fazendo com que possam costurar relações com as instituições do sistema político, uma vez que definem previamente as pautas para a interação. Por ser estratégica, a autonomia é completamente moldável. Ela vai adquirindo diversas dimensões (organizacional, política, ideológica, defensiva, etc) em função dos cálculos e ações planejadas. Tal caráter polivalente – e polissêmico – é, por tanto, objeto de disputas. O feminismo quase de forma unânime reivindica o caráter (e existência) de um movimento autônomo ao ponto de criar uma plataforma (que se pretende única) com tal identidade, mas as formas de exercitar essa autonomia produzem tensões. Para uma boa parte das ativistas, a autonomia exige uma separação absoluta do estado e dos partidos políticos (em plural, não só da FSLN em particular), rejeitando ações conjuntas e até mesmo possibilidades de diálogo com tais atores 65. Para outras, é precisamente a capacidade de diálogo e negociação com esses atores o que dá os sinais de amadurecimento e consolidação da autonomia. Afinal, como Santamaria deduz da análise de Clara Murguialday – quando a feminista e pesquisadora espanhola acompanhou a primeira declaratória de autonomia do movimento em 1992 – en todo caso la autonomía es un “concepto relacional” y es en las relaciones sociales donde (se pueden) empezar a hacer propuestas” 66. Ao ser passível de interpretações e conflitos, com um caráter estratégico, a autonomia assume uma dimensão processual. Ela é, de fato, a expressão de processos. As atoras vão nomeando 65

Durante um dos nossos encontros com Maria Teresa Blandón (MF), ela nos disse literalmente: “El MAM dice que nosotras tenemos una autonomía pro-activa y dialogante. Creo que el movimiento feminista está colocado en otro lugar. En esto de lo que algunas feministas del MAM llamarían autonomía defensiva. Queremos ser autónomas y ni siquiera, escúchame bien, ni siquiera empezar un diálogo con los partidos políticos. Estamos en un estado de negación de su papel. Sabemos que existen, que están ahí, que ganan elecciones, que deciden sobre las leyes, etc, pero pensamos que la posibilidad de que dialoguen con los movimientos sociales y particularmente con las feministas es difícil, son condiciones que no están dadas, no vemos posibilidades de diálogo” 66

Murguialday, Clara (coord.), Seminario resultado del Encuentro “Relaciones Internas en el Movimiento de Mujeres”, realizado dia 02 e 03 de outubro de 1992 em Matagalpa, Nicarágua, (en prensa) In: Santamaria, Gema (sem data).- Alianza y Autonomia. Las estrategias políticas del movimiento de mujeres en Nicaragua. Documento Eletrônico

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os diversos tipos de autonomia gerados, porque elas estão imersas num processo político concreto, seja de separação do partido FSLN (autonomia organizacional e política), seja para dialogar com o estado (autonomia defensiva) ou bem para negociar com outros atores da cena partidária (autonomia dialogante). Cada categoria se reconhece em um processo em concreto e as atoras vão construindo essas diversas categorias no decorrer da ação. E é aqui onde nos deparamos, por fim, com uma autonomia conjunturalmente situada. Ela se configura em processos de contextos específicos que geram as oportunidades e os desafios para as estratégias do movimento – incluindo as estratégias relacionais – fazendo com que tal autonomia distinga-se por ser uma construção coletiva e em dependência do que as atoras pretendam obter naquele momento específico. Em outras palavras, a autonomia é processual, estratégica e responde a contextos específicos oferecendo as possibilidades para o movimento interagir com as instituições do sistema político, administrando – não sem tensões – os riscos ocasionados por tal interação. Podemos reconhecer essas dimensões, a partir do depoimento de Sandra Ramos (MEC) quando consultada sobre a visão da autonomia que o feminismo nicaraguense foi elaborando ao longo desses anos todos: “Es que el movimiento de mujeres es como un vaivén de olas. Existen momentos en que el pico de la ola está alto, en otras el movimiento se retrae, pero luego vuelve a subir. Entonces, ese fluir nos da la riqueza de decidir cuando estamos dentro y cuando estamos fuera. Y es en el centro de ese flujo donde yo veo la Autonomía. Entonces, la Autonomía es ese instrumento que nos permite definir cuando estamos en la ola alta y cuando estamos en retracción. Entonces no podemos partir de un criterio rígido, sino más bien elástico. Ella es la que me permite tener las relaciones, saber hacer las alianzas y saber estar fuera en el momento necesario”.

Sobre o diálogo que possamos desenvolver, a partir deste caso, com a produção bibliográfica que analisa o ativismo desde um foco relacional e como tal debate se reconhece nos estudos sobre feminismo e política, serão elementos que trataremos no próximo capítulo, na busca de categorias teóricas que nos ajudem a dar conta do fenômeno aqui analisado. ********* Nossa pretensão com este capítulo foi a de caracterizar e explicar os diversos fenômenos suscitados pela aliança política entre MAM – MRS no cenário político da Nicarágua contemporânea. Tentamos demonstrar que o acordo entre o movimento feminista e o partido político em questão fez parte de uma estratégia movimentalista para enfrentar os embates que

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as organizações de mulheres já temiam perante um governo comandado por Daniel Ortega (FSLN). Argumentamos que tal aliança registrou impactos de mão dupla. O movimento foi afetado na sua estrutura interna ao interagir com o partido político, mas o MRS também viu suas estruturas organizativas alteradas a partir do encontro com o MAM. É nesse contexto que surge a Rede de Mulheres do MRS, que vai modificando a composição dos diretórios partidários em multi - nível, isto é, desde o diretório nacional até as próprias estruturas locais, ocasionando eventuais tensões dentro da militância partidária em momentos de eleições, como de fato aconteceu com as militantes mulheres que foram selecionadas como candidatas no processo das eleições primárias internas, mas que não foram ratificadas pelo partido em função das negociações com os aliados partidários. Para o movimento feminista, o impacto da aliança com o MRS se expressa em fenômenos diversificados. Em termos estruturais, o movimento sofreu rupturas internas que obstaculizaram a aposta das feministas, de fazer do MAM uma plataforma única de representação do feminismo nacional. Tais rupturas, contudo, não era uma total novidade para o movimento. Com o fim do período revolucionário, as mulheres começaram a se organizar em diversas redes temáticas declarando sua total independência da FSLN, mas não abandonaram a aspiração de instaurar uma rede única de representação, particularmente depois que AMNLAE fracassara no papel de articular todas as pautas feministas. Foi com essa intenção que apostaram por construir o CNF, mas as disputas internas ao redor do modelo organizativo a ser instaurada corroeram a consolidação desse espaço, fazendo com a que a formação do MAM em 2005 esteja direcionada por essa expectativa. Dessa forma, a aliança entre o MAM - MRS só ocasionou um ressurgimento das velhas disputas. O acordo teve também a capacidade de interagir com o estado. Embora a aliança entre partido e movimento respondesse aos embates que ambos começavam enfrentar com o governo FSLN, a relação com o poder público não apenas está caracterizada pelo conflito. O estado conjugou as tensões na sua relação com o feminismo, com uma serie de programas e normativa que recolocavam as pautas feministas e cediam maior espaço ao ativismo de mulheres. Leis como a emenda 50 – 50 ou até mesmo a Lei 779 (que criminaliza a violência contra as mulheres e os femicídios) revigorou a luta do feminismo nacional por uma democratização do sistema de partidos e da sociedade nicaraguense como um todo.

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Por fim, cabe reconhecer que esta interação trouxe à tona, veementemente, o debate ao redor da autonomia do movimento. Com relação a esse ponto, neste capítulo mostramos como esta categoria adquiriu múltiplas dimensões, destacando sua dimensão estratégica, processual, coletivamente moldável e conjunturalmente situada. As mulheres vão acionando constantemente essas diversas dimensões da autonomia, em função da conjuntura em concreto, facilitando assim a interação com o partido político e administrando os riscos gerados pela relação. O quanto essa autonomia polissêmica – e a relação aqui diagnosticada – pode se reconhecer na produção bibliográfica sobre o ativismo de forma mais geral, e mais particularmente do ativismo feminista na sua interação com o sistema de partidos políticos, é a questão que orienta o segundo capítulo desta tese a seguir.

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Cap. 2. Ganhos e desafios da abordagem relacional: Autonomia e identidade como categorias chave do movimento de mulheres

A intenção deste capítulo é dialogar com a literatura que aborda a interação dos movimentos sociais, particularmente do movimento de mulheres da América Latina com as instituições do sistema político, fundamentalmente partidos. Estamos partindo do entendimento de que as análises sobre o ativismo na região são, de certa forma, depositárias de uma tradição analítica que não só negou aos partidos políticos uma função vital para o ativismo, mas fez dessa recusa um elemento quase distintivo dos movimentos sociais 67. Em outras palavras, a caracterização dos movimentos sociais da região foi influenciada por visões que os distanciaram da arena político-institucional, em nome da preservação da novidade de formas organizativas, de relações internas e da liberdade para estruturar os conflitos sociais. Isto é, os movimentos sociais como novos atores, com novas formas de fazer política (OFFE, 1990). Tal entendimento foi, em boa medida, direcionado pelo engajamento dos intelectuais latino-americanos na luta contra os regimes autoritários que dominaram uma boa parte da América Latina nos anos 70 e os quadros explicativos ao redor da transição democrática nas duas décadas posteriores. Atravessados por esse percurso, os movimentos sociais foram explicados através de dois momentos conjunturais claramente separados (CARDOSO, 1994). Em um primeiro momento, os analistas salientaram um elenco de características para identifica-los, partindo da espontaneidade e de uma frouxa institucionalização, atrelada a uma concepção de autonomia, entendida como o afastamento das relações verticais e clientelistas que caracterizariam os autoritarismos do estado e as instituições partidárias (HELLMAN, 1992). A virtude dessa separação estava em compreender os movimentos como atores contenciosos, que almejavam uma mudança radical para erradicar as práticas autoritárias do estado.

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Algumas categorias explicativas desenvolvidas por teóricos europeus, sintetizadas em processos de criação de identidades coletivas, transformações culturais como alvos de novos conflitos e inovação de arranjos organizativos (distantes dos arranjos partidários) como sendo distintivos dos “novos movimentos sociais” parecem ter ecoado na literatura latino-americana que compreendeu os movimentos sociais segundo o enquadramento proposto na análise pós-marxista que inspirara a Teoria dos Novos Movimentos Sociais. Estas noções influenciaram as explicações sobre o movimento de mulheres da Nicarágua, o qual, segundo Montenegro (1997) – e usando a definição de Jelin (1987) é caracterizado como um arranjo social e organizativo que persegue a “extensão da cidadania sociopolítica (..) pela procura social da identidade e da apropriação de um campo cultural” (1997: pp. 22-23) como elementos constitutivos do movimento – e do feminismo – no país.

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A segunda fase marcada pela transição dos estados autoritários à criação de instituições e práticas democráticas entre finais dos 1980 e ao longo da década dos 1990, foi entendida como de refluxo e de institucionalização desses atores. As análises decorrentes desse entendimento levaram a anunciar um declínio dos movimentos sociais, desde que estes “largaram” as lutas confrontacionais para incursionar em estratégias de negociação, compromissos institucionais com o estado e novos tipos de relações com os partidos políticos. O pessimismo instaurado (ALVAREZ e ESCOBAR, 1992) representado na ideia de uma espécie de extinção dos movimentos sociais foi produto, na visão de Cardoso (1994), de uma mudança de “contextos ideológicos” onde estas interpretações foram criadas. Isto é, não mudaram os atores, “mas os contextos que de algum modo, interferem e estão presentes na própria produção do conhecimento” sobre eles (1994: pp 83- 84). Já as transformações políticas que vários países da região experimentaram desde a primeira metade dos 2000 encontraram quadros analíticos que não deram conta, suficientemente, das novas relações políticas que estas mudanças ocasionaram. Diversos diagnósticos ao redor das análises sobre o ativismo no bojo destes contextos acusaram a existência de vazios interpretativos ao redor dos vínculos entre as instituições do sistema político e as organizações da sociedade civil (ZIBECHI, 2006; TATAGIBA, 2010 e 2011; SADER, 2011). Os anseios dos ativistas e intelectuais por estarem frente a uma superação do “neoliberalismo hegemônico” na America Latina parecem ter conduzido a vincular essa noção anti- hegemônica com uma recusa ao sistema político e os seus correlatos do poder, principalmente estado e partidos. É inegável que as interpretações ao redor da distância – e em ocasiões do conflito – entre a sociedade e o sistema político, particularmente o estado, deram conta de uma experiência histórica de exclusão política e autoritarismos oficiais em contraposição às relações de solidariedade e experiências democratizantes na arena da sociedade civil, mas tais compreensões parecem resultar insuficientes na hora de diagnosticar as mudanças no interior das instituições políticas que têm permitido, não apenas uma aproximação destas instituições ao campo social, mas uma multiplicidade de formas participativas para além dos espaços formalmente instituídos 68.

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No seu breve texto, Zibechi (2006), por exemplo, reconhece a existência dessa pluralidade de formas de ativismo nos diversos contextos contemporâneos, apoiado em Seoane e Taddei (2004). Contudo, adverte de imprecisões das explicações teóricas e critérios conceituais insuficientes na hora de diagnosticar as instituições políticas permeáveis, como uma consequência institucional da transformação política na região.

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O problema, no entanto, parece se encontrar no que Sader (2011) constata como uma “visão dominante” que caracterizou as elaborações teóricas sobre a autonomia dos movimentos sociais, legitimadas em base da noção de um “mudar o mundo sem alcançar o poder”. Essa noção da autonomia parece ter universalizado as construções analíticas ao redor dos movimentos sociais e da ação coletiva, tendo consequências teóricas em análises que privilegiaram repertórios confrontacionais, formas de separação das instituições políticas em contraposição a uma leitura virtuosa da sociedade civil. Uma distinção que o autor explica a partir do sucesso do discurso de um “outro mundo possível” onde as formas de dominação política e relações de poder são excluídas, alertando a necessidade de uma retomada do campo político em nome de uma transformação maior: “O resgate da dimensão política, da esfera do poder, é essencial si se quiser construir o outro mundo possível, e não preservar simplesmente no plano da resistência. Este resgate encontrou também dificuldades porque, como resultado dos processos de redefinição de temáticas, o Estado quase desapareceu como objeto de reflexão (CLACSO ficou muitos anos sem Grupo de Trabalho sobre o Estado como exemplo significativo)”. (SADER, 2011: 17)

Ao tempo em que as análises na região registravam um descompasso entre a realidade política e as produções bibliográficas, a configuração do campo empírico escolhido para esta tese nos coloca frente um cenário complexo. Ao nos aproximarmos às estratégias que o movimento de mulheres da Nicarágua executa na relação com os partidos políticos – e particularmente com o MRS – constatamos, por exemplo, que as mulheres interpretam esta relação como uma forma de transformar o poder formalmente instituído sem, necessariamente, alcançá-lo. Em diversas entrevistas realizadas a líderes do MAM e ativistas de outras organizações do movimento, ficou evidente que as mulheres apostam por uma aliança com o partido político para transformá-lo em termos de relações de gênero, de modo que essa transformação “de dentro” conduza uma mudança no estado que se expresse em reformas institucionais e garantias de direitos para as próprias mulheres. Tal experiência não só dilui as fronteiras normativas com que estamos acostumados a explicar partido e movimento social, como também nos constrange a reformular as próprias categorias como ativismo, autonomia e até a própria noção de movimento social. Contudo, acreditamos que as críticas direcionadas às abordagens latino-americanas da ação coletiva com relação à ausência das instituições do sistema político, não necessariamente caracteriza as análises do movimento de mulheres e o feminismo na região. Seja por conta do

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histórico mobilizatório das mulheres latino-americanas ou pela abordagem feminista dessa vasta tradição teórica, (WAYLEN, 1993: CHINCHILLA, 1994, JAQUETTE, 1994: ALVAREZ, 2000), os marcos interpretativos do feminismo têm incorporado o sistema político como espaço fundamental para o ativismo sem que isso comprometa a própria noção de autonomia do movimento de mulheres. Em outras palavras, o campo teórico feminista interpretou as instituições políticas como um lócus importante para o ativismo das mulheres, sem negar a formação machista e excludente do estado latino-americano ao qual tem se direcionado as estratégias de mobilização destas “atoras” 69. O pensamento que melhor caracterizou a segunda onda do feminismo latino-americano, por exemplo, representado no instigador lema “o pessoal é político” expressa com clareza como a luta do movimento de mulheres se inscreve numa disputa cultural que renomeia sentidos e códigos das relações do cotidiano, a partir dos quais transformar acentuadamente o sistema político, desde que a conquista do voto não foi o suficientemente capaz de melhorar os mecanismos de representação das mulheres. O explícito questionamento da crítica feminista ao pensamento liberal marcado pela separação entre esfera privada e espaço público instaurou uma espécie de “epistemologia feminista” (MIGUEL e BIROLI, 2014) que vincula a subordinação experimentada pela mulher no campo doméstico à sua exclusão da esfera pública (2014: pp. 28-29). Os sentidos de uma disputa política inscrita nas experiências cotidianas das mulheres têm implicações para compreender a imbricação, presente na teoria feminista, entre o campo subjetivo e a prática política do movimento de mulheres ao longo da transição democrática latino-americana. Na medida em que estados ditatoriais dos anos 1970 e começo dos 1980 incrementavam a repressão contra os espaços políticos tradicionalmente instituídos – particularmente partidos e sindicatos – as mulheres politizavam os espaços comunitários que ainda não eram inteiramente reprimidos, como por exemplo, vizinhanças, grupos de reflexão políticas nas igrejas (estimuladas pelas Comunidades Eclesiais de Base) e assim por diante. Com a transição democrática, as instituições da política formal assumiram relevância, voltaram a 69

As feministas latino-americanas forjaram as próprias experiências organizativas enfatizando uma “autonomia absoluta”, tanto em termos da própria organização como do conteúdo da luta política, face o estado, partidos políticos, ou até mesmo projetos institucionais da esquerda mesmo que pudessem compartilhar anseios de transformação política. Mas como Alvarez (2000) demonstra, essa autonomia foi “abalada” no bojo do processo de democratização, desde que diversas feministas se envolveram em campanhas eleitorais, pressionaram dentro dos partidos por espaços e políticas de gênero ou, até mesmo, foram para o Estado (Schild, 2000). Isto gerou, nos anos 90s, uma prática feminista descentrada, heterogênea em termos organizativos e fortemente espalhada dentro de arenas institucionais do Estado e instituições multilaterais que “absorveram” (Alvarez, 2000) as matrizes discursivas de gênero.

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funcionar os mecanismos eleitorais e os sistemas de partidos, mas ausentes de mulheres. Isto motivou que uma das primeiras agendas do movimento fosse pressionar para alcançar seu próprio espaço no partido político e nas arenas de representação política, não sem antes lidar com conflitos no interior do movimento (WAYLEN, 1993). Partindo dessa constatação, neste capítulo queremos explorar as interações entre feminismo e política, pensando em obter subsídios que contribuam com a ampliação das fronteiras analíticas dos movimentos sociais desde uma perspectiva relacional, tendo como foco central o conceito de autonomia. Isto é, nossa imersão na literatura sobre o ativismo – e sobre as conexões entre feminismo e as instituições políticas – tem por objetivo compreender como essa bibliografia trata da questão da autonomia do movimento e até que ponto ela dialoga com o caso empírico escolhido para esta pesquisa. Para realizar essa operação, este capítulo está dividido em três seções. Na primeira queremos analisar o estado atual – e as contribuições – da literatura dos movimentos sociais que adota a abordagem relacional e expande as fronteiras de análise para incorporar as instituições do sistema político. A incursão nessa bibliografia está orientada pela necessidade de compreender como esta abordagem contribuiu para modificar a nossa compreensão sobre a categoria de autonomia e como ela se relaciona com a noção da identidade coletiva com que os movimentos sociais operam. Na segunda parte deste capítulo aplicaremos esse olhar à literatura sobre partidos políticos na região. Queremos explorar até que ponto essa produção bibliográfica incorpora – e com que olhar – os movimentos sociais, motivados pelo empenho de encontrar em ambos os quadros teóricos, explicações que enriqueçam a agenda de pesquisas relacionais com que esta tese dialoga. Concluiremos este texto nos debruçando na literatura especifica do movimento feminista para entender como operam aqui as categorias de autonomia e identidade, entendidas sob a chave da relação com o sistema político. Faremos isso em diálogo com a bibliografia especifica do movimento de mulheres da Nicarágua e como ela compreendeu as instituições políticas construídas ao longo do processo democrático.

Toda essa construção analítica estará

permeada pela relação que os atores experimentam na realidade posta em análise. Como vimos no capítulo anterior, as atoras do movimento elaboram sua própria compreensão da autonomia e queremos entender como essa elaboração cognitiva do campo interage com os quadros analíticos que estamos mobilizando.

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Não se trata de uma revisão exaustiva sobre o estado da literatura relacional e suas conexões ao redor do feminismo e política, mas de entender o que esta literatura pode nos oferecer no sentido de diagnosticar as relações analisadas nesta tese, e que contribuições podemos extrair para fortalecer um repertório de pesquisas preocupadas em deslocar as fronteiras analíticas do ativismo e derrubar os binarismos (que nem sempre são capazes de capturar a realidade) entre a arena societal e campo político. 2.1. Desafios da abordagem relacional: A recolocação de “autonomia” e “identidade coletiva” como categorias chave 2.1.1. Do conceito de sociedade civil às abordagens interacionais Esta tese enfrenta dois grandes desafios teóricos ao apostar por compreender a conexão entre o movimento de mulheres da Nicarágua com os partidos políticos como mais uma modalidade do ativismo. Assumir este argumento nos demanda, por um lado, uma operação analítica que não só deve instaurar um diálogo entre a literatura dos movimentos sociais – que parte desde uma perspectiva relacional – com análises mais específicas sobre os partidos políticos, mas exige também, por outro, uma explicação sobre como as relações com as instituições do sistema político impactam no ativismo. Ao acionar um diálogo entre ambos os quadros teóricos, encontramos um primeiro vazio já mencionado anteriormente: não existe, nos estudos dos partidos políticos, um consenso sobre o lugar e o papel que ocupam os movimentos sociais para além da conquista do voto e a veiculação das pautas partidárias em períodos de campanha (GOLDSTONE, 2003; KUNRATH e OLIVEIRA, 2011), enquanto os estudos ao redor dos movimentos sociais, particularmente pautados pela influente caracterização de “outsiders” (TILLY, 1978) legaram o entendimento de que a interação entre ambos os atores é fonte de cooptação ou, no máximo, um risco que conduz à anulação dos movimentos sociais (ALVAREZ e ESCOBAR, 1992; HELLMAN, 1992). Tais compreensões são decorrentes de dois movimentos analíticos inscritos no aprofundamento da transição democrática na América Latina. Por um lado, a ênfase de teorização sobre o conceito de sociedade civil entre finais dos anos 80 e ao longo dos anos 90 esteve pautada em contraposição à visão “estatizada” da Política (DAGNINO, 2010). Isto é, ao tempo em que a Política era assumida como o espaço restrito do poder institucionalizado – claramente representado no Estado – à sociedade civil era atribuída um ideário composto pela autonomia absoluta com relação ao estado e aos partidos políticos, pela distância das relações

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autoritárias em nome do consenso e formas reticulares de intercâmbios interpessoais como características previamente dadas (DAGNINO, 1994; CARDOSO, 1994, ALVAREZ e ESCOBAR, 1992). Os movimentos sociais ficaram alojados nesse segundo campo. Ao serem registrados na arena da sociedade civil, os atores movimentistas foram entendidos como desconectados das instituições retentoras do poder e distantes da “política”, entendida aqui como o lugar do poder hegemônico e predeterminado. Um deslocamento da noção de “política” era, então, necessário para afiançar pesquisas que deslocassem também o espaço no qual os movimentos sociais estavam sendo compreendidos. Como foi alertado por Slater (2000), tratou-se, por tanto, de compreender que o que é – e não é – político, está em múltiplas locações simultâneas, e sempre sujeito a transformações constantes em dependência de disputas e conjunturas concretas: “(...) as maneiras como os movimentos sociais foram analisados tenderam a reproduzir uma abordagem da política que fica confinada a um domínio predeterminado, implicitamente construído como não problemático (...). A dimensão política poderia ganhar uma certa dualidade, pela qual poderia ser vista como inscrita no interior de diferentes esferas do todo social e também como constitutiva do terreno sobre o qual o tecido e o destino do todo social é decidido (Slater, 1994). Dessa forma, o que é e o que não é político em qualquer momento dado muda com o surgimento de novas questões postas por novos modos de subjetividade – por exemplo, “o pessoal é político” e diferentes tipos de relações sociais” (2000: pp. 508).

Por outro lado, o aprofundamento da transição democrática em diversos contextos da América Latina ao longo dos 90 trouxe à tona uma crise de representação, alargando mais ainda a separação entre a política e o campo social. No lastro do avanço democrático, os partidos políticos perderam a centralidade da representação, associado ao incremento do protesto e de formas de mobilizações que permitiram o surgimento de novos atores portadores de interesses e reivindicações diversas pela consolidação democrática. O fortalecimento da esfera pública como cenário de explicitação de interesses em disputa começou a demandar uma pluralidade de formas de representação, e por tanto de mediação política para a efetividade das demandas surgidas na sociedade. Tal disputa não ficou apenas restrita às pautas de reivindicação, mas também se evidenciou em atritos pela legitimidade das formas de mediação que veiculassem tais demandas, configurando, então, uma luta pelo conteúdo democrático e pela forma de como conduzir esse conteúdo. Essa disputa,

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característica da construção democrática na região, trouxe implicações para o entendimento da representação, como explica Baquero (2000): “O declínio dos partidos, por outro lado, é explicado pelo surgimento de movimentos sociais que não acreditam nos canais mediadores tradicionais para transmitir suas reivindicações. Autores como Leffort (1983) e Offe (1984, 1988) argumentam que o descrédito dos partidos justifica a busca de novos espaços de legitimidade para a ação coletiva por parte das mobilizações populares, levando ao surgimento do que foi denominado de invenção democrática (...) subjacente a essa discussão está a questão que contrapõe a esfera da representação política vis-à-vis à participação direta. Os movimentos sociais, nessa perspectiva, são vistos como hostis à tradição da representação política. Deduz-se, por tanto, que as mobilizações populares enfatizam a dimensão participativa em detrimento da esfera representativa. Desta forma, os partidos deixam de ser ponto de referência importante como transmissores de demandas. A perspectiva autonomista identifica os grupos étnicos e movimentos feministas, entre outros, como sendo formas alternativas de participação e representação política” (2000: pp 162 – 163)

Dessa forma, então, a ênfase autonomista na compreensão normativa dos movimentos sociais, associada a uma contraposição entre representação política e participação, impediram a elaboração de modelos analíticos que explicassem a interação entre partidos e movimentos, cujos fenômenos de relações afiançaram-se em algumas conjunturas da América Latina mais recentemente. Como consequência das mudanças políticas em vários contextos da região, iniciadas desde a primeira metade de 2000, começamos experimentar uma intensa aproximação entre o campo social e político (POUSADELA, 2010), registrado não só na incorporação de ativistas dos movimentos sociais em posições da burocracia do estado (TATAGIBA, 2010, ABERS e VON BULOW, 2011), mas também nos trânsitos que diversos líderes do movimento experimentam entre estado (às vezes como assessores parlamentares), partidos políticos (outras até como candidatos a diversas posições eleitorais), ONG, academia e assim por diante. Na falta de modelos analíticos mais acurados como consequência das visões essencialistas do ativismo nas décadas anteriores, de onde então podemos extrair diagnósticos e categorias que deem conta das interações que queremos explicar aqui? Uma boa forma de responder a essa indagação seja talvez recorrer mais uma vez ao Slater (2000) e aceitar o argumento que ele nos propõe de assumir o caráter interativo – e

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mutuamente constitutivo – entre “política” e “político”, isto é, das praticas institucionais de barganhas políticas, intra-partidos e parlamentares como constitutivas de relações societais. Apoiado em Arditi (1994), Slater nos sugere compreender a interação entre política e o sentido político que a envolve “de modo mais eficaz, como um tipo de relação que pode se desenvolver em qualquer área do social, independente de se permanece ou não dentro do recinto institucional da política. (...). Num sentido importante, a ideia de imbricação da política e do político reflete o debate sobre as relações entre o Estado e a sociedade civil” (2000, pp. 513 – 514). Desde tal perspectiva seria então necessário ficarmos atentos para os mais variados e complexos movimentos estratégicos que atravessam as duas esferas, a da política (no seu sentido mais institucional representado nas práticas do estado e dos partidos) e a do político (no seu sentido mais heterogêneo, de múltiplos interesses e disputas), cujos fluxos dissolvem a nitidez da diferenciação entre as duas. Em certa medida, acreditamos que é o que Goldstone (2003) invoca ao analisar as interfaces das interações entre estado, partidos e movimentos sociais. Os fluxos entre política e político, podem ser refletidos nele através um extenso continuum que vai registrando, quase de forma simultânea, repertórios de ação política institucionalizada (lobby, participação em coligações eleitorais, etc) e não institucionalizados (ocupações de vias públicas, passeatas, etc). Ao longo desse continuum, as experiências institucionais e não institucionais têm a potencialidade de se interferirem mutuamente, ocasionando que o limite entre elas seja, em ocasiões, altamente difuso. Contudo, este modelo não sugere uma fusão entre as experiências institucionais e não institucionais. Ele, de fato, mostra que existem claras distinções entre elas, como extremos de “um mesmo espectro” de ações políticas. Negociações e cabildeio, decisões judiciárias, influência no Legislativo são fenômenos totalmente distintos de ocupações, paralisações de vias, boicotes, etc. Porém, eles fazem parte de um mesmo espectro político fazendo com que a política institucionalizada e os movimentos sociais sejam mutuamente constitutivos (2003: pp. 2 – 4). Partindo de tal entendimento, Goldstone propõe: “(...) there’s no reason to expect that protest and conventional political action should be substitutes, with groups abandoning the former as they become able to use the latter. While some groups may, at different times, be more “in”, in the sense of being more aligned and

116 integrated with the institutional authorities, while other groups are more “out”, there is neither a simple qualitative split nor a “once and for all” crossing of some distinct line separating challengers from insiders. It is more accurate to think of a continuum of alignment and influence, with some groups having very little access and influence through conventional politics, others having somewhat more, and still others quite a lot; but groups may move up and down this continuum fairly quickly, depending on shifts in state and party alignments. Protest may sometimes be a means of moving upward along the continuum, or a response to movement downward, or even an option that becomes easier and more available as institutionalized access increases (2003: p. 9)”

A constatação de que os trânsitos entre “insiders” e “outsiders” acontecem de forma simultânea impõe um desafio metodológico chave às pesquisas que incorporam o foco relacional para definir os atores coletivos sem as barreiras que os separava (no plano normativo) do sistema político. Afinal de contas, nosso investimento em problematizar a visão essencialista sobre os atores e derrubar a rigidez das barreiras entre um e o outro, nos conduz a observar os fenômenos políticos que acontecem no campo intermédio, aqueles intersectam os atores e alargam seus próprios limites. Fazer um investimento analítico nessa direção é também necessário para entender os fenômenos políticos do caso que estamos analisando. Como vimos no capítulo anterior, as ativistas do MAM – e particularmente as integrantes da Coordenadoria Política Nacional – experimentam intensamente esses trânsitos, deslocando constantemente as fronteiras que as “separam” do partido MRS. No caso, Azahalea Solis, coordenadora nacional do MAM não só desempenhou funções chaves dentro do MRS na escolha interna dos candidatos que seriam negociados na coligação eleitoral “Aliança PLI”; ela também circulou dentro de outros espaços, liderando as estratégias ativistas da rede cidadã UCD, e representando essa rede dentro da própria Aliança PLI, onde inclusive assumiu a candidatura para deputada nacional. Isso tudo evidencia que as estruturas partidárias– e de fato as de todas as instituições do sistema político (GOLDSTONE, 2013, p. 12) – são permeáveis aos movimentos sociais, fazendo com que uma vez os ativistas interfiram nas estruturas do estado e dos partidos, estimulem alterações institucionais que vão desde arranjos organizativos na provisão das políticas públicas, instauração de pautas no jogo eleitoral, criação de novas estruturas partidárias, etc.

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Por sorte, estes tipos de deslocamentos analíticos são cada vez mais frequentes na literatura do ativismo latino-americano, e particularmente na literatura brasileira, onde encontramos estudos sobre o ativismo na fronteira entre estado e sociedade (ABERS e VON BULOW, 2011), diversidade de interações dos movimentos com o sistema político na cidade de São Paulo (TATAGIBA, 2011), tipologias de relações entre partidos e movimentos de economia solidária em contextos locais (KUNRATH e OLIVEIRA, 2011), repertórios de interação no interior do estado heterogêneo (ABERS, SERAFIM e TATAGIBA, 2011) e ativismo feminista dentro do estado brasileiro (ABERS e TATAGIBA, 2014). 2.1.2. A recolocação de duas categorias chaves: Autonomia e Identidade

Além de quebrar a dicotomia, consagrada no campo teórico – entre sociedade e sistema político – o que esta nova agenda de pesquisas traz para a compreensão do ativismo contemporâneo é uma recolocação de dois termos analíticos importantes na explicação dos movimentos sociais: Autonomia e Identidade Coletiva. A invocação dos analistas à categoria de autonomia no seio de democracias latino-americanas não consolidadas era, em parte, uma alusão aos relatos dos ativistas que, entre os anos 70 e 80, privilegiavam suas lutas pela emancipação (e remarcando a separação) dos estados autoritários. Assim, as atribuições dos autores por essa categoria como “distintiva” dos movimentos sociais reconhecia-se no plano prático dos atores, porém como Gurza Lavalle e Szwako (2015) adequadamente contra-argumentaram 70, tratavam-se de operações analíticas que não simplesmente reproduziam a narrativa dos ativistas como retrato de uma conjuntura histórica concreta. Tratava-se também de diagnósticos que se reconheciam em amplos quadros teóricos internacionais, que operavam aliando o conceito de autonomia ao de sociedade civil 71.

70

O interessante percurso analítico no trabalho de Gurza Lavalle e Szwako (2015) está representado na revisão crítica de algumas teses centrais com que a ciência social brasileira tem entendido as relações entre estado e sociedade civil. Considerando um avanço importante no atual debate brasileiro, orientado por compreender uma mutua constituição entre o estado e a sociedade civil, os autores revisam deslocamentos teóricos chaves como a emergência tardia da sociedade civil no Brasil, a não relação com partidos e estado com uma “marca de nascença” dessa sociedade civil e o surgimento de uma “interdependência”com o estado a partir do período constituinte. A cada um desses argumentos, os autores elaboram contra-argumentos para mostrar uma complexidade teórica que relativiza cada uma dessas teses, tendo como foco central a categoria de autonomia. 71 Uma das maiores influências que a gênese do conceito de sociedade civil teve nesse lado do hemisfério é de clara filiação habermasiana, ajudando a instaurar uma diferenciação analítica entre o mundo sistêmico (estado e mercado) e o mundo da vida. Como Gurza Lavalle e Szwako remarcam, nesta perspectiva a “autonomia é, precisamente, não uma reivindicação de determinados atores em uma conjuntura específica, mas uma

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Esses quadros analíticos pousaram aqui, na América Latina, conjugando a visão autonomista da sociedade civil com a compreensão dos partidos políticos como estruturas oligárquicas, ideia oriunda da “lei de ferro” da referenciada obra de Michels (1972). Nesse sentido, a contribuição que a Teoria dos Novos Movimentos Sociais – depositária do marxismo europeu pós-industrial – ofereceu para explicar o ativismo latino-americano, vinculada às compreensões mencionadas anteriormente, condicionou boa parte dos diagnósticos que, começando os anos 90, pregavam o fim da autonomia (quando não apenas denunciavam a cooptação), ao ponto de desenvolver o que Hellman (1992) chamou de “fetichismo da autonomia”, cuja categoria era entendida pelas distinções de “isolamento, espontaneidade e precária institucionalização”: “(..) We may find it difficult to understand the manifest preference of some analysts for the small, weak, isolated and powerless community movement over the very same group of people once their demands have been satisfied. What is clear, however, is the antiorganizational bias of the work of those who are pleased and excited by the spontaneity of isolated grass-roots movements and dismayed when these autonomous movements link up with others in stronger, far better organized and coordinated political coalition. (…) Some analysts, as I have noted, insist that the incorporation of autonomous social movements into broader political movements represents the loss of an authentic popular voice. But those who hold this view fail to grasp that he encounter between movement and party is a dialectical one in which the movement is altered but, so too, is the party – whether the party in question is a small, precariously situated leftist coalition” (1992: pp. 58)

O problema foi que tal representação teórica foi mantida ao longo dos anos da transição democrática pós-1990. Os processos de abertura e reformas políticas que seguiram à derrocada dos regimes ditatoriais apostavam por uma reconstituição do campo formal institucional da política e a instauração do jogo eleitoral como superação dos conflitos, ambas as condições resultantes das negociações regionais de paz na América Central em 1989. A superação de mais de dez anos de conflito civil na região conduzira à chegada de estados neoliberais que elevaram os níveis de precariedade social e pobreza, bastante compreensíveis em contextos de pós-guerra.

propriedade distintiva e constitutiva – por definição – do mundo da vida, imprescindível para a realização do seu potencial de inovação e emancipação” (2015: pp. 175)

119

No caso específico da Nicarágua, essas condições estimularam um intenso surgimento de associações 72 que, em grande medida, surgiram como reação à compactação do estado em 1990. O fim do período revolucionário trouxe a reboque reformas estruturais significativas que reduziram o estado – outrora revolucionário e de marca socialista – em até 25%, refletidas na demissão de 300,000 servidores públicos (BAB, 2012). Com uma forte experiência prévia no estado, uma boa parte desses ex-funcionários refletiu essa expertise acumulada na criação e desenvolvimento de ONGs e diversos tipos de associações (a maioria delas prestando serviços em substituição de políticas públicas que foram contraídas como reflexo da diminuição estatal), diversificando amplamente o campo da sociedade civil durante o primeiro quinquênio dos 90. Tal fertilidade de associações e movimentos, particularmente por causa do seu traço de origem inscrita no aprendizado do ativismo sandinista, surgiu em clara separação do estado neoliberal instaurado em 1990, mas também em separação do próprio partido (FSLN) que lhes formatara na esteira da luta contra a ditadura. O afastamento da FSLN – e do sistema de partidos em geral – era a expressão de um “desencanto” (MONTENEGRO, 1997) com os partidos

políticos 73,

cuja

autonomia

(vista

como

consequência

do

afastamento)

desempenhava uma função estratégica para a obtenção de recursos e consolidação de novas relações e redes que lhes permitisse influenciar (desde fora) no estado. Como podemos prever, esse cenário contribuiu com manter o legado de diagnósticos que louvavam o caráter autônomo dos movimentos sociais, distanciados das instituições políticas e sem intermediações claras, observando a prática dos atores. No caso do movimento de mulheres da Nicarágua – como vimos no capítulo anterior – essa era uma questão fundamental. Explicitar a separação da FSLN (e do estado) era necessário para decidir sua própria agenda e formatos organizativos. Foi com essa lógica que entre 1991 – 1992 todas as organizações do movimento realizaram uma diversidade de ações que resultaram na explícita “Declaração da Autonomia” que marcou a gênese das redes do movimento e uma atomização de novas organizações locais.

72

Segundo o estudo de Rocha (2011), o 72% de mais de 4,200 ONGs e outras associações existentes na segunda metade dos 2000 surgiram entre 1991 – 1993. Para detalhes, vide Rocha (2011) In: Envio Digital: http://www.envio.org.ni/articulo/4400 73

Em estudo elaborado em 1997, Montenegro mostrou que só um 7,1% das organizações membros do movimento de mulheres tinham relações com os partidos políticos. A baixa intensidade das relações era atribuída, na época, à perda “da capacidade dos partidos de sintetizar as aspirações das mudanças democráticas” que o país precisava no período de pós-guerra (MONTENEGRO, 1997: pp. 408 - 409).

120

A compreensão do conceito de autonomia, sob esse registro, não foi capaz de dar conta dos cruzamentos que, a partir de 2001, as ativistas começaram experimentar com o sistema de partidos políticos. Ao longo dos últimos treze anos, o movimento de mulheres, sob análise, decidiu interagir com – e impactar no – sistema político institucional, apostando por ampliar a abertura democrática como um meio para criar as condições que efetivariam os direitos das mulheres e ampliaria o ativismo feminista. Essa é a visão que está, literalmente, presente nos materiais produzidos pelo movimento. No Documento Político (2006) que o MAM elaborou face às eleições presidenciais de 2006, as ativistas do movimento já tinham projetado o alcance das suas alianças a través de uma passagem que também incorpora os anseios de relação com o Estado: “(..) La experiencia muestra que un movimiento de mujeres autónomo bien puede cooperar con élites gobernantes y ganar con ello efectividad, pero que eso dependerá de qué élites estén en el poder y de las políticas de género que impulsen. La Autonomía frente al Estado es necesaria para que las élites gobernantes apoyen al Movimiento de Mujeres, sí y sólo sí éste se ajusta a sus necesidades y objetivos. No obstante, es un hecho que cuando existen coincidencias en las agendas, puede darse una cooperación útil, no sólo para el Estado, sino también para el Movimiento” 74 (2006: pp. 16 – 17)

Ao apostar pela inserção no sistema político (TATAGIBA, 2011), o movimento não só deslocou as compreensões analíticas que estariam sendo elaboradas ao redor dele, como revelou a dimensão cognitiva que a autonomia estaria adquirindo. Neste caso, as ativistas conferiram à autonomia um rol estratégico, pois ela não é apenas compatível com a relação construída com o sistema político institucional, como “necessária” para que a relação aconteça, e nela, o movimento coloca suas próprias condições. Isto reforça os argumentos de Tatagiba e Teixeira (2006) ao redor de que a autonomia, pensada desde essa perspectiva, nos compele a indagar sobre a característica dos vínculos que os movimentos acionam com o sistema político, ao tempo que nos informa sobre as escolhas dos interlocutores que o movimento faz “em função das suas agendas, de defender seus interesses, de definir os objetivos da interação, e até que ponto eles pautam ou são pautados” (2006, p. 229). 74

À rigor essa referencia apareceu, por primeira vez, no estudo de Santamaria (s/d) quem nos anos 90 analisou as relações do movimento de mulheres da Nicarágua com o estado neoliberal que começava se configurar naqueles anos. A pesquisa de Santamaría foi altamente influente para o movimento incorporar na sua prática – e narrativa – os diagnósticos erigidos sobre a autonomia que estaria sendo privilegia durante os primeiros anos pós-revolução, motivando que o próprio movimento compreendesse (e assim aparece no Documento Político do MAM) que uma das estratégias para superar as práticas conservadoras e patriarcais do aparato estatal nicaraguense passaria por alianças que desafiaram o estatus da autonomia declarada em 1991.

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Com esse registro, deveríamos então considerar que algumas categorias como “cooptação, clientelismo, interdependência” precisam ser, no mínimo, revisadas ou – como sugerido por Dagnino e Tatagiba (s/d) – questionar se ainda são pertinentes para diagnosticar as relações. E para isso, resulta muito mais útil adotar o modelo analítico do continuum sugerido em Goldstone (2003). Mesmo que esse continuum goldstoniano tenha sido pensado para explicar a diversidade de repertórios que acontecem ao longo de uma linha caracterizada por dois extremos que vão desde a “inserção no campo institucional” até “ações violentas e disruptivas”, é possível pensar também que ao longo desse continuum, a autonomia vai adquirindo simultaneamente diversas dimensões. Tal proposta encontra reconhecimento em um dos contra-argumentos teóricos elaborados por Gurza Lavallle e Szwako (2015), ao redor de tornar a autonomia um fluxo, uma espécie de “continuum presente na prática de todo ator da sociedade civil e em diferentes momentos” (p. 171) mais do que um simples atributo, na maioria das vezes conferido pelos pesquisadores ou outro tipo de atores externos. Eliminando a autonomia como um atributo conferido externamente, nos deparamos aqui então com as múltiplas dimensões presentes na prática dos atores, sempre cognitivas e autorreferenciada, mas que demandam abstrações necessárias para atingir o status de categoria teórica. Em outras palavras, poucas contribuições seriam feitas ao avanço desse repertório de pesquisas relacionais, reproduzindo apenas a cognição dos atores sem essas possíveis intermediações capazes de questionar a própria construção dos ativistas na prática. Essa elaboração analítica está presente em Tatagiba (2011), ao colocar a autonomia no difícil equilíbrio de tensão com a capacidade do movimento em de gerar impacto político. A autora argumenta que, no meio da diversidade de relações com o sistema político, está presente uma tensão que coloca no centro, o princípio de autonomia do movimento com a capacidade de eficácia política que lhe distingue. Dessa forma, o movimento enfrentaria o dilema de contrapor a eficácia política (entendida pela capacidade de impactar o jogo político, de obter certificação das instituições políticas e alcançar mudanças de acordo com os seus interesses) ao Princípio de autonomia (entendida pela sua particularidade de se diferenciar dos atores da política institucional sem desistir dos laços com esses atores). O dilema aqui está representado na dificuldade que o movimento tem de qualificar sua imersão no sistema político para obter certificação institucional que lhe garanta impacto, sem “comprometer” a

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identificação construída com a base social que sustenta sua capacidade de obter reconhecimento do próprio sistema político. A característica da tensão entre eficácia – autonomia abre as possibilidades de constatação empírica, ao nos conduzir até um olhar para a relação da estrutura do movimento com seus ativistas e base social. Mas demanda, contudo, uma operação analítica em planos diferenciados, isto é, “requere-se de investimentos e apostas específicas” que permitam abrir um diálogo entre as considerações que fazem os pesquisadores ao redor dos movimentos sociais e as considerações nativas que surgem dos próprios atores no campo 75. O debate sugerido aqui nos leva então para a questão central da identidade do movimento, como segunda categoria chave. Embora que com ênfases diferenciadas, esta categoria marcou presença nas principais tradições analíticas dos movimentos, desenvolvidas por teóricos americanos e europeus, a partir dos fenômenos de mobilização que surgiram nas democracias ocidentais desde a segunda metade dos anos 60 76. Através dos embates teóricos – e a despeito deles – a abordagem do conceito de identidade evidenciou as limitações teóricas para interpretar os trânsitos dos ativistas com o sistema

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Tatagiba, por tanto, oferece uma compreensão preliminar, que não inteiramente normativa, sobre ambas as categorias ao interpretar essa autonomia como definidora da relação, isto é, “a disposição e capacidade de participar com o outro sem perder certa distância crítica que permite colocar a própria relação como objeto de reflexão” (2011); enquanto a eficácia dá conta da capacidade dos movimentos por provocarem mudanças políticas, mas que não se mede apenas pelos seus resultados. 76

O incremento dos “ciclos de protesto” (TARROW, 1997) e a intensidade das mobilizações ao longo dos anos 60 e 70 não só chamaram a atenção dos analistas ao redor dos fenômenos sociais que estes conflitos trouxeram, como permitiu a construção de grandes modelos teóricos para analisar a ação coletiva, reunidos em duas tradições de análise (americana e europeia). A Teoria de Mobilização de Recursos (TMR), de origem americana, ofereceu um grande passo em questionar a visão das mobilizações massivas como fenômenos anormais do sistema político, e totalmente irracionais, desde o ponto de vista psicológico. Tudo pelo contrario. Os autores da TMR mostraram que as mobilizações fazem parte do próprio sistema político, e ao surgirem, mobilizam toda uma racionalidade – inspirados em Olson (1965) – que desencadeia uma institucionalidade organizativa. Dessa forma, o artigo seminal de McCarthy e Zald (1977) instaurou conceitos como organização de movimentos sociais, indústria de movimentos e contramovimentos. A maior contribuição da TMR ao estudo dos movimentos sociais foi ter oferecido interessantes referentes empíricos para um extenso repertório de pesquisas que testaram estes conceitos. A Teoria do Processo Político (TPP), desenvolvida também por teóricos americanos, questionou à TMR por negligenciar o fato de que os movimentos atuam em arenas políticas que influenciam significativamente suas estratégias. Centrados nos fatores do entorno, os estudiosos da TPP desenvolveram o conceito de Estrutura de Oportunidades Políticas (EOP) (TARROW, 1997) que ajuda a explicar a questão chave do por que os movimentos se mobilizam. Sob tal perspectiva, os movimentos respondem a constrangimentos conjunturais como mudanças nas elites, novas alianças e eventos concretos que vão formatando o ativismo. Os teóricos europeus entraram no embate, criticando à TMR e à TPP por serem altamente estruturais, negligenciando fatores importantes como a identidade, cultura e emoções (GOODWIN and JASPER, 1999). Com essa inspiração, e em contraposição ao marxismo pós-industrial, foi que surgiu a Teoria dos Novos Movimentos Sociais (TNMS), focando a análise nos atores, nas pautas culturais colocadas e na inovação de formas organizativas. Para ler mais detalhes sobre estes embates, recomendamos McAdam and McCarthy (1996), Della Porta and Diani (1999), Klandermans and Staggenborg (2002).

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político. Assumir a identidade como um atributo dos indivíduos, na maioria dos casos conferido por atores externos (e quase sempre associada à noção de autonomia desde sua dimensão de afastamento), limitou as possibilidades de compreender a dimensão processual e mutável (DELLA PORTA e DIANI, 1999) que os atores colocam em prática ao se relacionar com as instituições políticas. Dessa forma, o elemento processual da identidade oferece às compreensões relacionais sobre o ativismo boas pistas para entender as estratégias de mobilização. A formação da identidade coletiva – em termos de Melucci (2010) – pensada como processo significa que ela vai se formatando ao longo de um trajeto de auto-reconhecimento, onde os atores outorgam constantemente sentidos à experiência coletiva, geram novas experiências que certifiquem sua pertença e reinterpretam os códigos que lhes permitam definir o “nós” coletivo (DELLA PORTA e DIANI, 1999: pp. 85 – 86). É nesse sentido que Melucci propõe ignorar a unidade como ponto de partida para explicar os movimentos. Isto é, abandonar a ideia de que o movimento social é UM ente capaz de ser capturado e compreendido dentro dos seus próprios limites, e no seu lugar, adotar a compreensão de que o movimento social é um personagem resultado de um processo coletivo 77 complexo. Este “movimento social” –personagem é, em si, uma construção permanente e não se constitui como um ente predeterminado. E, como todo processo de construção coletiva, fica sujeito a tensões, contingências e a uma reinterpretação constante dos sentidos atribuídos ao fato de “pertencer” ao movimento social. Com essa imersão, não só nos deparamos com uma visão dinâmica da ação coletiva, como iluminamos o processo a través do qual o movimento social estende seus limites. Ao alargar as fronteiras, os movimentos incorporam uma diversidade de atores ao ativismo (academia, ONGs, mídia, burocratas do estado, militantes partidários, etc), a través de um mecanismo que permite também ao próprio movimento social – personagem se inserir nos espaços institucionais do sistema político. É isso o que Abers e Tatagiba (2014) evidenciaram ao

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A contribuição que o Melucci ofereceu ao definir a “identidade como um processo” e, por tanto, dinâmico, é que nos ajuda a ver como esse processo se dá, de fato, no nível meso que conecta as motivações de mudança que acontecem no micro, com as mudanças que efetivamente tomam lugar nas estruturas macro. Em 1988 o autor definiu que: “collective identity is an interactive and shared definition produced by several individuals and concerned with the orientations of action and the field of opportunities and constraints in which the action takes place: by “interactive and shared” I mean a definition that must be conceived as a process, because it is constructed and negotiated through a repeated activation of the relationships that link individuals”. (1988: 342).

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acunhar o conceito de “ativismo feminista no estado brasileiro” e o que a nossa pesquisa de campo encontrou no plano empírico. O fato de o MRS ter criado uma estrutura que almeja ser reconhecida como elo entre o partido e o movimento feminista comprova que a militância partidária insere-se no ativismo, e adere às pautas concretas do movimento, estimulando trânsitos e uma diversidade de fenômenos que acontecem entre as – e dentro das – arenas de cada um dos atores. Isso tudo nos permite constatar que o movimento social existe dentro e fora do sistema político, de forma que os vínculos com o mundo institucional não são completamente rejeitados. O tempo todo o movimento social vai intersectando ambas as esferas (da vida cotidiana e da institucionalidade política) sem abrir mão da sociabilidade que os define. Em outras palavras, mesmo considerando a inserção no campo institucional, não podemos esquecer que as pautas políticas dos movimentos se formam no profundo tecido da sociedade (MELUCCI, 2010: pp. 174 – 175). Tal fenômeno reconhece-se de igual forma na análise de Tilly (2005), para quem também a identidade e o ativismo que ela suscita fazem parte de um processo transacional. Na sua visão, as transações interpessoais são o estofo básico dos processos coletivos, com a capacidade de conformar novas identidades, vínculos duráveis, tendências e disposições (sejam coletivas ou individuais). Apoiado no chamamento à sociologia relacional de Emirbayer (1997) e no trabalho de Merton (1968) ao redor das explicações baseadas em mecanismos, Charles Tilly elaborou um modelo analítico que foca nos efeitos indiretos e não pretendidos – resultados incrementais surgidos de erros e reparos – das transações. Segundo essa análise, as transações entre os atores não elimina as fronteiras que os divide. Pelo contrário, através das fronteiras dão-se transações, interações e relações que geram mudanças em todos os planos (no interior dos espaços, na localização das fronteiras, no ambiente, etc.) que afetam o conjunto e moldam as identidades, tanto coletivas quanto individuais. Nesse sentido, ele reforça: “Overall, it analyzes the transformation of collective identities: shared the answers to the questions 'Who are you?' 'Who are we?' or 'Who are they?' Such identities, it indicates, center on boundaries separating us from them. On either side of the boundary, people maintain relations with each other: relations within X and relations within Y. They also carry on relations across the boundary: relations linking X to Y. Finally, they create collective stories about the boundary, about relations within X and Y, and relations between X and Y. Those

125 stories usually differ from one side of the boundary to another, and often influence each other. Together, boundary, across-boundary relations, within-boundary relations, and stories make up collective identities. Changes in any of the elements, however they occur, affect all then others”. (2005: 8)

Esta identidade, criada no lastro do processo transacional, tem impactos evidentes para a ação coletiva. Autores como Touraine (1981) e Gamson (1992), retomados em Della Porta e Diani (1999) 78 elaboraram o argumento de que a construção simbólica que acompanha o processo de formação da identidade estimula – e formata – a ação coletiva, conectando identidade com estratégia, categorias que estão em constante tensão na análise do Munk (1995) ao redor de possíveis conexões entre as tradições analíticas – americanas e europeia – dos movimentos sociais. Nesse ponto, as explicações analíticas do Munk (1995) são instigantes. O autor nos sugere a necessidade de colocar em interação as dimensões “identidade - estratégia” para aprofundar, no plano da teoria, explicações que deem conta da vocação pela transformação política que os movimentos expressam ao se relacionar com as instituições do sistema político: “La orientación hacia el cambio de un movimiento social sólo puede realizarse si afirma y mantiene la naturaleza no negociable de su identidad y si se rehúsa a actuar puramente como un actor estratégico. Por lo tanto, el análisis de la orientación hacia el cambio de un movimiento social no puede llevarse a cabo ni en términos de su habilidad para realizar una acción estratégica, algo que la bibliografía estadunidense tiende a hacer, ni en términos de la identidad con la cual un movimiento social surge, como la bibliografía europea tiende a hacer; sino sólo en términos de la interacción entre estas dos dimensiones” (1995: pp. 31)

Para Munk, os vínculos com o sistema político efetiva a dimensão estratégica dos movimentos sociais, e numa direção similar a Tatagiba, argumenta que a presença da tensão entre a dimensão da estratégia com a da identidade é o indicador de que eles têm a capacidade de conservar sua distinção “de autonomia e arraigo social” 79 quando interagem

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De fato este processo de auto-reconhecimento em um “nós”, funciona como pré-requisito para o ativismo. Assim os autores argumentam “collective action cannot occur in the absence of a ‘we’ characterized by common traits and specific solidarity. Equally indispensable is the identification of the ‘other’ to which can be attributed the responsibility for the actor’s condition and against which the mobilization is called (Gamson, 1992). The construction of identity therefore implies both a positive definition of those participating in a certain group, and a negative identification of those who are not only excluded but actively opposed” (1999: pp. 87) 79 A noção de “arraigo social”, extraída da análise de Melucci (2010) informa sobre a capilaridade do movimento “na vida cotidiana” (DAGNINO e TATAGIBA,s/d). Tal ancoragem representa uma fonte fundamental para o ativismo com que os movimentos contemporâneos, principalmente o movimento feminista, operam. As demandas de transformações políticas que atingem a arena institucional do sistema político

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com os partidos. Assim, os movimentos operam tanto na interação com o sistema político como desde sua dimensão mais estratégica (aliás, a interação com o sistema político faz parte da sua dimensão estratégica), e por tanto, eles formam-se, definem-se e existem nas relações. Como vimos na pesquisa de Lacombe (2010), e observamos no campo, esta configuração está presente na experiência do MAM ao se relacionar com o sistema de partidos. O movimento fez um forte investimento em criar uma estrutura hierárquica e monolítica que lhe permitisse (mas não só por isso) interagir com o sistema de partidos políticos. Porém, pelos vínculos que mantém com a base e o arraigo que tem na “vida cotidiana”, este vínculo entre “estrutura/identidade – estratégia” foi motivadora de tensões. A estrutura hierárquica cedeu faculdades à Coordenadoria Política do movimento para expulsar as ativistas que questionaram o andamento da aliança com o MRS, mas não evitou que o outro grupo de expulsas ainda continue se auto-identificando como militantes do MAM. Chegando a este ponto queremos fazer duas deduções analíticas preliminares. A primeira é que estamos assistindo ao andamento de um repertório de pesquisas que, apesar de estar longe de oferecer análises conclusivas, mostra claríssimos avanços no debate sobre as formas contemporâneas do ativismo. A inovação está representada na observação e análises de repertórios de ação que transbordam os limites “já estabelecidos” entre a sociedade civil e a institucionalidade do sistema político, fazendo com que a interseção entre ambas as esferas surja como espaço fundamental das reflexões, pois neles não só transitam ativistas e agendas compartilhadas. Nesse espaço intermédio acontecem fenômenos políticos que informam sobre os tipos de relações que os atores estabelecem nos mais variados contextos democráticos latino-americanos. Por outro lado, essa inovação do ativismo traz à tona diversos desafios teóricos. O maior deles é diagnosticar a inovação política – pautada pelas relações –atualizando as categorias consagradas nas análises dos movimentos sociais, particularmente a de autonomia, identidade coletiva e até mesmo a própria categoria de movimento social. Revisando a literatura que cada dia adota com maior ênfase a abordagem relacional, todas coincidem em sugerir a visão processual como uma saída para recolocar as citadas categorias.

emergem claramente das experiências de injustiça e desigualdade que acontecem no micro. A conexão entre esses níveis funciona como mecanismo essencial para a identificação desse “nós-movimento” e reforça a vocação de mudança política que identifica o movimento social. Para mais detalhes, MELUCCI, A.- Acción Colectiva, Vida Cotidiana y Democracia. México. El Colegio de México, Centro de Estudios Sociológicos, 2da Ed. 2010.

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Assumir a visão processual significa, mais que nada, anular a ideia de que categorias como autonomia e identidade – e por consequência a de movimento social – são atributos dos atores coletivos. Elas são, antes disso, processos de construção coletiva que formatam os atores sociais e permitem estabelecerem as mais diversas relações com as instituições do sistema político, sem abrir mão das suas próprias pautas e formas organizativas. No decorrer do ativismo, os atores ativam mecanismos que lhes permitem se autorreconhecer como participantes de um movimento e, ao mesmo tempo, vão também resignificando sua autonomia para saberem se relacionar – com a distância necessária – das instituições do sistema político. Ambos os mecanismos acontecem ao longo de um processo que demanda conectar constantemente a percepção dos atores ao redor do continuum com a capacidade de abstração que pode ser exercida pelos pesquisadores para diagnosticar que tipos de fenômenos surgem neste processo. E nisso coincidimos inteiramente com a compreensão de Gurza Lavalle e Szwako (2015) sobre o estado atual e o futuro imediato desta agenda de pesquisas no tocante à categoria de autonomia dos movimentos: “Esses avanços são conclusivos em um ponto: é equivocado entender a autonomia – da sociedade civil ou dos movimentos sociais – como ausência de relação – com o Estado, nesse caso. Se tomada como não relação, a autonomia se torna um obstáculo epistemológico, quer dizer, obstáculo de pensamento contra o próprio pensamento (BACHELARD, 1972 [1934]). Assim, longe de ser ausência de interação com atores políticos, a autonomia como categoria nativa exige o escrutino dos modos práticos de sua inovação nas, e por meio das, configurações concretas em que ela é mobilizada” (2015: p. 182)

Esta tese assume esse chamado situando a autonomia do movimento de mulheres nas respectivas conjunturas em que é invocada, mas reforçaremos tal apelo indagando – no plano reflexivo da nossa análise – quais são os sentidos que ela vai adquirindo de acordo com a prática dos atores. Se a autonomia é uma categoria processual (e relacional), enfrentaremos tal dinamismo ao longo da trajetória de relações que o movimento de mulheres tem construído com os partidos políticos no lastro da construção democrática nicaraguense. Isto nos impõe mais duas operações teóricas já anunciadas no começo deste capítulo. Precisamos detectar que tipo de diálogo estabelecer com a literatura de partidos políticos e com a própria bibliografia sobre o movimento latino-americano de mulheres, a partir do debate desenvolvido até aqui. Esse é o objetivo das páginas a seguir.

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2.2. A relação na literatura de partidos políticos: Descobrindo a sub-cultura partidária

Os vínculos entre os movimentos sociais e os atores partidários não deixa de ser, no mínimo, uma questão “problemática” para a literatura de partidos políticos, se analisarmos as categorias de partidos que essa bibliografia mobilizou a partir da publicação do trabalho de Michels (1972) 80. A referenciada obra Political Parties influenciou a compreensão dos partidos políticos como modelos organizativos específicos, estimulando uma agenda de análises interessada em compreender em que medida os modelos de organização poderiam informar sobre os tipos de partidos que começavam a surgir nas democracias desse lado do hemisfério. Assim, ao longo de cem anos de debates, os partidos políticos se instaurariam como atores centrais para o desenvolvimento da Ciência Política ocidental pensando as questões fundamentais da construção democrática (AMARAL, 2013). Durante essas décadas, a literatura de partidos associou as análises destes atores à consolidação da democracia, isto é, aos partidos políticos foram atribuídas funções fundamentais para a criação e sustentação dos sistemas democráticos, como o acesso ao estado, estruturação das regras eleitorais, agregação – e sistematização – de interesses, mediação e educação política, ou até mesmo, de representação e condução legislativa (BAQUERO, 2000; FRIEDENBERG, 2013; AMARAL, 2013). O avanço destas análises consolidaram duas grandes áreas de pensamento a partir das quais estes atores seriam explicados. Por um lado, o foco sobre as formas organizativas afiançaram a compreensão estruturalista dos partidos políticos refletida numa produção fecunda de tipologias partidárias (MICHELS, 1972; DUVERGER, 1970, PANEBIANCO, 2005)

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; ao

mesmo tempo em que, por outro lado, o debate sobre como os partidos respondem às

80

Trata-se da clássica obra produzida por Michels em 1911, mas para o debate teórico desta tese tomamos como referência a segunda edição traduzida ao espanhol em 1972. 81 O acesso de um grande número de pessoas na política, assim como a universalização do sufrágio e as novas formas de representação, associado ao avanço do processo democrático no mundo ocidental ofereceram à literatura de partidos um bom cenário para diagnosticar as mudanças organizacionais dos partidos políticos, segundo as transformações desses contextos. Dessa forma vemos como, além da construção de um binarismo entre a categoria de partidos de quadro vs partido de massas elaborada por Duverger na metade do século XX, testemunhamos transformações organizativas que conduziram os partidos de massas a se instituírem em partidos catch-all (PANEBIANCO, 2005 em AMARAL, 2013). Logo depois, o acesso dos partidos a posições dentro do estado e os esquemas de financiamento público instauraram um tipo de “partido-cartel” (FREIDENBERG, 2013) que se distingue pela ênfase nos esquemas eleitorais, isto é, uma espécie de “cartel eleitoral” que não combate o status quo. Existe uma série de estudiosos que questionam as análises dos partidos a partir do seu caráter meramente organizativo e demandam diagnósticos a partir das funções que esses atores desempenham para as democracias. Podemos encontrar detalhes desse debate em LEVITSKY, 2003, MARTINEZ, 2009 e FREIDENBERG, 2013.

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expectativas geradas (isto é, fazem aquilo para o qual foram criados) abriu outro fértil campo de análises funcionalistas que explicaram os partidos a partir dos seus objetivos de segmentação social, sistematização de interesses e obtenção do poder (LAWSON, 1976; SCHUMPETER, 1996; WELLHOFER, 1974) 82. Almejar um conceito único de partido político, no meio dessa pluralidade analítica, não só é uma expectativa estéril como equivocada. Como os autores já mostraram, as explicações sobre os partidos geraram fortes embates teóricos que tentavam criar narrativas consolidadas, mas respondendo – é claro – às circunstancias conjunturais concretas, como a consolidação de certos tipos de regimes políticos, ou até mesmo a trajetória da Ciência Política. No interior dessa pluralidade, o entendimento sobre a relação que os partidos costuraram com os atores da sociedade civil – incluindo movimentos sociais – ficou determinado pelas duas correntes analíticas já citadas, destacando a importância que as organizações da sociedade civil teriam em conjunturas eleitorais concretas, como podemos inferir do trabalho revisionista de Amaral (2013): “A análise do relacionamento dos partidos políticos com outras organizações da sociedade civil sempre foi um tema fundamental para a compreensão do desenvolvimento organizativo das agremiações políticas. Especialmente na experiência democrática europeia, os partidos utilizam as organizações (como sindicatos, grupos religiosos, etc.) como forma de criarem vínculos com setores do eleitorado. Em troca, as organizações da sociedade civil desempenham o papel de intermediários entre a sociedade e os partidos políticos e auxiliam na agregação de interesses. Desde o início do século XX, os partidos estabeleceram diferentes tipos de vinculação com as organizações da sociedade civil e com diferentes graus de intensidade. As organizações podem ser totalmente independentes dos partidos, e sua associação estar vinculada à consecução de objetivos comuns, ou completamente vinculada a eles, contando, inclusive, com uma superposição completa de membros e liderança. Já com relação ao nível de intensidade, a literatura indica que o ápice da aproximação entre partidos políticos e organizações da sociedade civil aconteceu na “época de ouro”dos partidos de massa, entre os anos 20 e 60 do século passado” (AMARAL, 2013: p 24 grifado no texto original)

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Temos que admitir que sintetizar a amplíssima produção teórica sobre os partidos políticos em apenas duas correntes de pensamento seja um exercício bastante limitado, sob risco de não fazer jus à complexidade de focos e abordagens. Contudo, podemos argumentar que os focos funcionalista e organizativo dominaram o debate acadêmico para explicar estes atores, o que não anulou a pluralidade de conceitos em detrimento de um corpo teórico homogêneo. Para nos aproximarmos desse debate e conhecer as diversas clivagens experimentadas, recomendamos veementemente dois textos que destacam pela qualidade em explicar essa diversidade teórica: MARTINEZ, 2009 e AMARAL, 2013.

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Esta citação ilumina duas questões chaves para a compreensão do lugar destinado aos movimentos sociais na literatura partidária. Por um lado, as organizações da sociedade civil – incluindo os movimentos – resultam altamente funcionais em conjunturas eleitorais pela capacidade de enquadrar interesses e agendas, auxiliando aos partidos em uma das suas funções mais demandadas que é a de sintetizar (e representar) a diversidade de interesses presentes na sociedade. Eles (os movimentos) desempenham também um papel de intermediação e tradução desses interesses. Mas essa função não pode ter uma caracterização unidirecional, cujo questionamento não ecoa na literatura dos partidos. Os movimentos sociais não apenas “transmitem” os interesses eleitorais que favoreçam ao partido (cuja imagem, diga-se de passagem, dominou a compreensão da relação partido-movimento nos anos 80, destinando aos movimentos o papel de “correias de transmissão”); eles também transferem suas próprias pautas, demandas e estratégias à arena partidária, exercitando assim, a relação de troca. Tal intercâmbio pode ser estimulado pela “superposição de militantes” ou “múltipla filiação” (MISCHE, 2008) que permite aos ativistas se deslocarem a través de espaços multi-situados sem perder sua capacidade de agência. O problema está em que a explicação ao redor da troca parece ser destinada apenas às experiências dos partidos de massas, reforçando assim, as distinções normativas presentes na tradição teórica. Isto é, existe um traço de origem nos quadros explicativos partidários que remete aos contextos concretos onde esta literatura foi criada, obstaculizando compreender como esse intercâmbio opera em contextos politicamente voláteis, como os contextos latino-americanos. Em outras palavras, a tradição analítica dos partidos (a chamada “teoria clássica”, em termos de Martinez, 2009) se corresponde com democracias caracterizadas por uma alta tradição partidária na qual os partidos contam com estruturas claramente definidas e relações já fortalecidas com as militâncias, o que permitiu aos estudiosos desenvolver tipologias em contextos industrializados. Já na América Latina, onde os partidos políticos possuem estruturas informais e um esquema organizativo, digamos que altamente flexível, podemos encontrar experiências de formação de redes clientelistas e fluxos recorrentes de militantes e estratégias no interior das coligações partidárias, particularmente focadas em eleições (FREIDENBERG & LEVITSKY, 2007), cujas experiências não podem ser fortemente enquadradas nas grandes narrativas tradicionais.

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A composição interna, frouxa e informal, tem sido, contudo, necessária para as adaptações dos partidos políticos em períodos de crises políticas, bastante recorrentes, na nossa região. O estudo de Levitsky (2003) sobre as transformações do partido justicialista argentino permite observar, por exemplo, como as crises recorrentes que caracterizam os contextos latinoamericanos conduziram a uma recomposição de sistemas de partidos, ocasionando fragmentação e instabilidade ao próprio sistema. Perante essa fragmentação, os partidos precisam revisitar suas estruturas internas para certificar critérios de afiliação e pertença, cujo processo traz à tona a relação direta que os partidos possuem com os setores da “vida cotidiana”. De fato, como o estudo de Levitsky o comprova, um dos fatores que facilita a adaptação dos partidos políticos a contextos instáveis, é a sua capacidade de acionar “o arraigo social” que o sustenta e o aproxima ao cotidiano dos seus militantes. O partido ativa o vínculo com as organizações da sociedade civil, com a intenção de “certificar a lealdade eleitoral e encapsular” os interesses que representa, deixando de lado o problema das estratégias de readaptação para enfrentar as mudanças na conjuntura política. Ao fazê-lo, institui-se uma espécie de “subcultura partidária” (PANEBIANCO, 1988), que vem do “encapsulamento” dos interesses – e dos membros – que auxilia o partido na legitimação do eleitorado de pertença. Um mecanismo que na explicação de Levitsky, apoiado em Panebianco (1988), funciona quando o partido atinge um estagio de institucionalização 83 de modo que: (...) societal rootedness is associated with mass party structures and organizational encapsulation (Sartori, 1968:122; Wellhofer, 1979a, 1979b). By “incorporating within the political party as many of the everyday life activities of the membership as possible” through the sponsorship of unions, youth and women’s branches, sports clubs, cooperatives and other organizations, mass parties created distinct party subcultures or “communities of fate” (Wellhofer, 1979b: 171). Such encapsulation raises the threshold at which voters decide to abandon their party, creating, in effect, “electorates of belonging” 84 (Panebianco, 1988: 267) apud (Levitsky, 2003: 13).

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A questão da institucionalização do partido também recebe diversas interpretações teóricas em dependência do referencial analítico que se mobiliza. Em Levitsky (2003), apoiado por Huttintong (1968), Keselman (1970), Panebianco (1988) e Appleton (1997), a institucionalização do partido é o que permitiria sua capacidade de adaptação, a través do fortalecimento das relações com outros atores da vida política, incluindo o que os teóricos de partidos políticos chamam de Grupos de Pressão ou Grupos de Interesse. Em outra perspectiva, a institucionalização entende-se como a normalização dos procedimentos intra-partidários (JANDA, 1980) ou até mesmo a própria capacidade de captação de recursos financeiros (PANEBIANCO, 1988) 84 Segundo Levitsky, Panebianco define esse “eleitorado de pertença” como o setor que compõe a subcultura partidária e que se institui sendo um apoiador nativo do partido independentemente das estratégias que o partido

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Pode-se notar que esse mecanismo está determinado pela intensidade e dinâmica da incorporação – e por tanto da relação – dos militantes, eleitores e simpatizantes 85 com as estruturas institucionais dos partidos, cuja característica nos situa nas intersecções entre as instituições partidárias e os espaços da arena societal. A criação de subculturas partidárias revela que os partidos operam com uma composição interna absolutamente plural, dispersa e heterogênea que, em dependência das mudanças do contexto político e as relações que estes instauram gera tensões com potencialidades para conduzir à perda de militantes e fraturas partidárias altamente sensíveis. Na literatura sobre o sandinismo nicaraguense (SANTUISTE, 2001; BALDIZON, 2004; PUIG, 2008 e 2012 e BAB, 2102) e na investigação empírica desenvolvida para esta tese, conseguimos constatar que as interseções entre as expressões partidárias sandinistas (FSLN e MRS) com as organizações da sociedade civil, e particularmente com organizações do movimento de mulheres ao longo do período analisado, ativaram as diversas dimensões dessa subcultura partidária na hora de enfrentar as tensões impostas pelas transformações políticas. Assim, quando a FSLN sofreu a derrota eleitoral de 1990, perdendo as chances de continuar com o projeto de estado revolucionário iniciado dez anos atrás, ativou os vínculos com as organizações de base (particularmente sindicatos) para estimular uma reforma organizativopartidária que lhe permitisse retomar o poder de volta. A crise organizativa daquele período acarretou num forte racha interno que gerou o novo partido MRS, cinco anos após a perda eleitoral. Essa ruptura partidária teve reflexos similares nas próprias organizações de base. Os sindicatos foram praticamente desintegrados e já as organizações feministas que se multiplicaram naquela época tinham declarado total ruptura de AMNLAE, sendo no caso, a única rede que manteve os vínculos com a FSLN. Como uma das ativistas nos informou durante a pesquisa de campo, naquela época se instaurou uma espécie de “paranoia da divisão” que fez com que toda líder que questionasse define. Em outro texto, Wellhofer (1974) argumenta que o partido “estratifica” os setores da vida social para se constituir como uma “comunidade de destino”, de forma que para esse seu reduto estima incentivos e compensações, do mesmo modo que Olson estima que os atores acedem a incentivos e benefícios para a ação coletiva 85 As interpretações sobre a membresia é também um tema complexo na bibliografia dos partidos políticos, pois como explicado em Cabarozzi & Medina (2002), o caráter voluntário destas organizações políticas ocasiona que a composição dos partidos, e por tanto, suas fronteiras e limites, seja entendida de diversas maneiras. Pode- se considerar que os partidos estejam integrados pelos militantes, ativistas e afiliados “de carteirinha”, mas também se interpreta aos “eleitores fieis” como integrantes das organizações partidárias desde que eles garantem apoio político e são potenciais captadores de novos apoios; uma interpretação que não deixa de ser polêmica posto que considera-los como parte dos partidos equivale a considerar “os consumidores de suco de laranja como membros da própria fábrica” (Cabarozzi & Medina,2002)

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os estilos tradicionais de liderança fosse percebida como simpatizante do MRS. Assim, muitas feministas dentro das associações sindicais, por exemplo, foram objetos de demissão, perseguições judiciais e ameaças por parte de líderes intermédios da FSLN. As tensões desses vínculos reapareceram em 1998 quando Ortega foi acusado de estupro pela enteada, Zoilamérica Narváez. O “caso Zoilamérica” teve consequências para o movimento feminista em conjunto, e para as ativistas de forma particular, desde que a RMCV (Rede de Mulheres Contra a Violência) optara por apoiar e acompanhar a vítima durante o andamento do processo na justiça, acarretando custos pessoais para algumas lideranças que não só foram ameaçadas pelos líderes partidários. Algumas, inclusive, tiveram de enfrentar profundos quadros patológicos de depressão ao perceber que o partido no qual militavam há mais de vinte anos tinha desenvolvido uma maquinaria totalmente disposta a proteger Ortega do processo judiciário. Como podemos constatar na análise de Puig (2008), as tensões experimentadas na subcultura partidária (definida pelos vínculos com as organizações de base) impactaram na reorganização estrutural do partido. Ao perder uma parte dos seus vínculos por causa dos atritos com as organizações feministas – e as rupturas no interior dos sindicatos – a FSLN teve que mudar sua própria característica organizativa para reconquistar o poder em 2006. Apoiado no estudo de Santiuste (2001) ao redor transformação da FSLN pós 1990, e nas pistas organizativas de “voz, disciplina e lealdade” que Panebianco (1990) ofereceu para compreender os partidos políticos, Puig (2008) diagnosticou os sentidos que essa mudança teve para compreender o que distingue ao FSLN de hoje em dia: “El aparato burocrático casi para-estatal de Partido Vanguardia que dirigía la revolución durante los achos ochenta tuvo que desmantelarse con la pérdida del poder, y con ella, desaparecieron los recursos públicos. Fue entonces cuando el FSLN tuvo que transformarse súbitamente. En poco tiempo, el FSLN se adaptó a un entorno donde los recursos de la organización dependían,

sobre todo, de la capacidad de

obtener (y retener) cargos

institucionales mayoritariamente electos (Santiuste, 2001). Ello supuso el “adelgazamiento” de la organización y la mutación de la naturaleza de sus cuadros políticos, que pasaron de ser gestores públicos o miembros de los cuerpos armados, para convertirse en cargos electos, ya fueran diputados, alcaldes, concejales o miembros de organismos autónomos del estado. A raíz de esa doble mutación – en el tamaño organizativo y en la naturaleza de sus cuadros – la maquinaria del FSLN se convirtió en una “pequeña” organización férreamente jerarquizada, con una importante implantación territorial en el país” (2008: p. 298).

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Até que ponto a literatura específica do movimento de mulheres pode nos ajudar a iluminar esses vínculos e oferecer categorias que expliquem a interação com o sistema político? Dessa questão nos ocuparemos na seção a seguir. 2.3. Autonomia e identidade: Duas categorias centrais na literatura feminista

Toda análise ao redor do movimento de mulheres da Nicarágua, nos mais primários aspectos conceituais, parte dos estudos seminais que Santamaría (s/d) e Montenegro et al (1997) realizaram ao longo dos anos 90, cujos esforços centrais foram destinados a diagnosticar a autonomia experimentada naqueles anos. Não foi por acaso. Com o fim da revolução sandinista, que trouxe como consequência a perda do vínculo com o FSLN como Partido Vanguarda, as organizações de mulheres que já começariam a pipocar desde 1988, descobriram-se (a partir de 1990) que poderiam tomar decisões sobre arranjos organizativos próprios e formular pautas sem nenhum tipo de intermediação que interferisse na sua prática estratégica. Como vimos no capítulo anterior, pairava nas ativistas uma profunda sensação de derrota ao desabar o projeto revolucionário pelo qual se engajaram decididamente, mas conjugado a uma percepção de “alívio” que, por primeira vez, poderiam sentir ao tomar suas decisões sem questionamentos de uma autoridade. Isso pode explicar a ênfase que as organizações colocaram na Declaração de Autonomia que, em 1992, alicerçou a formação das redes e a instauração de outros arranjos mais formais (particularmente ONGs). A trajetória das ativistas – e sua procedência mais imediata – não poderia ficar excluída de qualquer compreensão sobre o movimento. Praticamente todas atuavam desde dentro do estado revolucionário poucos anos antes, seja nas burocracias dos ministérios ou nas associações sindicais dos trabalhadores públicos para depois passar a militar, em cheio, no campo da sociedade civil, sem contar que efetivamente todas eram militantes da FSLN. Dessa forma, qualquer definição do movimento de mulheres que tome como ponto chave a autonomia explicitada naqueles anos, teria que incorporar a existência de tensões. Tomando como base as pesquisas citadas, o movimento começou a ser compreendido como um espaço coletivo que reúne “todos os grupos de mulheres que lutam contra a subordinação e discriminação” (MONTENEGRO, 1997: p. 376), usando diversos métodos de luta com “autodeterminação e independência”. A primeira dimensão deste conceito nos remete à noção

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de identidade, sobretudo àquela que se sustenta no caráter político de identificação de gênero, enquanto a ideia de “autodeterminação” nos remete à noção de autonomia. Partindo deste conceito, Santamaría (s/d) mostrou como a identificação de gênero desempenhou um papel estratégico para estimular o ativismo. Definir o movimento como um espaço que envolve todas as mulheres engajadas ao redor de um conflito contra a “subordinação e discriminação” (cuja pauta é caudatária das experiências de subordinação das mulheres no âmbito privado) não apenas revelou a vocação abrangente do feminismo nicaraguense que começava a se fortalecer nos anos 90– e se concretizou anos depois na instauração da rede única –como destacou a identificação de gênero entanto categoria unificadora. E gênero, nestes contornos, não é um fator essencialista, nem definidor dos limites biológicos, e sexuais. Antes, ele informa das desigualdades socioculturais e iniquidades culturalmente aceitas (SZWAKO, 2012) que mantiveram as mulheres latino-americanas excluídas de uma cidadania plena do âmbito público, e em nome da qual começaram se mobilizar contra os estados autoritários entre os anos 70 e 80. Como foi descrito por Vargas (2000), o processo no qual essas lutas despontaram caracterizou a expansão da segunda onda do feminismo na região, desvendando principalmente a dimensão política das desigualdades domésticas. Para essas expressões feministas atingir a arena pública significava perceber o Estado como um alvo para “remodelar, reconceber, refundar, e não apenas um simples lugar para ocupar uma vaga em concreto” (VARGAS, 2000, tradução minha). No caso do movimento de mulheres da Nicarágua, essa dimensão política da identidade de gênero foi a que auxiliou na agregação de interesses das mulheres desde diversos âmbitos, identificando o que hoje em dia se denomina como “movimento amplo de mulheres”. Além da separação do partido e do estado, as feministas precisavam se distanciar também da identificação de classe (mulher trabalhadora, mulher campesina, etc.) com que o governo revolucionário dos anos 80 as distinguia. Destacando a identidade de gênero, o movimento apostava por ampliar suas relações, atrair mulheres desde outras esferas, incluindo militantes de partidos políticos e de funcionárias do estado para, assim, estender seu escopo de influência política (SANTAMARIA, s/d pp. 22 – 23). Já com relação à segunda dimensão do conceito de movimento (a da autonomia), a ideia de “autodeterminação e independência” que apareceu na literatura especifica do movimento de mulheres da Nicarágua não partia especificamente da chave de não relação. Para Santamaría

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(s/d) a autonomia pensada nessa caracterização do feminismo nicaraguense dos anos 90, informava sobre a capacidade do movimento para interagir com o estado e o sistema de partidos, mas a partir da tensão entre a autonomia organizativa e a autonomia de recursos. Nesse quadro analítico, a autonomia organizativa refere-se a capacidade que o movimento possui para decidir seu próprio arranjo organizativo no qual mobilizar as pautas e interferir no estado. Já a autonomia de recursos informa sobre a faculdade que o movimento tem para definir sua própria agenda a partir da qual mobilizar apoio financeiro, sem que necessariamente a obtenção desses recursos interfira na agenda. Só que no caso da Nicarágua dos anos 90, ambas as categorias operaram sob tensão, como argumentou Santamaría: “La autonomía es un elemento necesario para que el movimiento pueda mantener una agenda propia, independiente de intereses partidistas o de criterios externos a la organización. No es, sin embargo, suficiente para que éste sea efectivo. Incluso, puede actuar en detrimento de sus alcances cuando el acceso a recursos es limitado y hay una clara pérdida de influencia en las instituciones políticas formales” (SANTAMARIA, s/d p. 106).

Talvez seja por isso que no estudo de Montenegro (1997), apoiada em Vargas (2000), a concepção de autonomia remeteu especificamente à noção de defesa do movimento, isto é, ela opera desde sua estratégia defensiva e, por tanto, relacional: “Como proceso colectivo, la autonomía se expresa como la capacidad de defender los intereses del colectivo femenino, y es por lo tanto, un concepto relacional. En ese sentido, es un proceso combinado y desigual, que es afectado por el entorno y el contexto histórico donde ocurre” (1997, p. 407).

Tanto a autonomia (traduzida aqui como estratégia de defesa do movimento e em tensão) como a identidade de gênero (capaz de abarcar os mais diversos interesses das mulheres organizadas) reforçaram as apostas do feminismo nicaraguense por construir um movimento que fosse mais politizado e suficientemente capaz de penetrar o sistema político. Se observarmos esta definição do movimento, elaborada nos anos 90, em comparação com a compreensão que acompanhou a formação do MAM em 2005, podemos entender a evolução do pensamento feminista ao redor do estado e das instituições políticas, já não só como alvos a serem “refundados” e sim como espaços para serem ocupados. Como vimos no capítulo anterior, baseado no Documento Político do MAM, o movimento entrou desde 2004 numa fase de “refundação” que conduzira à criação do MAM, sob a

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identidade de um movimento social e “movimento político” que atuaria sobre quatro eixos necessários para a consolidação democrática, os quais “democracia paritária do sistema, estabelecimento de um estado de direito moderno e laico, identificação das mulheres como sujeito político e fortalecimento de um movimento feminista autônomo”. Em outras palavras, trata-se de penetrar as instituições do sistema político. Temos que admitir que essa transformação não respondeu apenas à trajetória democrática do contexto nacional. Ao longo da década dos 90, as agendas feministas da América Latina experimentaram uma espécie de “absorção” (ALVAREZ, 2000) por parte dos estados e dos partidos políticos da região, produto da IV Conferencia Mundial de Mulheres em Beijing de 1995 e os subsequentes encontros latino-americanos (com destaque para a Oitava Conferência Latino-Americana das mulheres em Lima 2000) onde os estados da América Latina ratificaram a Convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. Em resumo, as pautas feministas começaram a circular com enorme habilidade nos espaços da política global e nos recintos políticos da região. Para Alvarez (2000) a rápida absorção das pautas feministas por parte do sistema político latino-americano é, de fato, consequência de uma trajetória incansável de luta das feministas nos mais variados contextos da região, mais do que uma simples concessão dos estados, porém, ela opera do lado oposto da cooptação. Ao opor o conceito de “absorção” ao de “cooptação”, a autora não só preservou o caráter de agência que as ativistas possuem quando estão lá dentro (do estado, do partido), como iluminou as lutas interpretativas que elas desempenham, isto é, um tipo de ativismo feminista destinado a definir o que pode – e não se pode – colocar em agenda dos discursos oficiais sobre gênero. Em outras palavras, o estado, os partidos e todas as instituições do sistema político surgiram como arena crucial para a luta feminista. Isto, como era esperado, trouxe a reboque uma série de dilemas e tensões no plano teórico e prático. Não só a categoria de autonomia demanda reatualizações, como algumas consequências contingentes da absorção institucional começam a ser levantadas. O fenômeno da imersão da agenda feminista no sistema político institucional das democracias ocidentais, particularmente no estado, foi teorizado por um conjunto de autoras feministas australianas como de Femocracia. A femocracia explica o fenômeno de feministas “femocratas” que entraram nas burocracias de estado, veiculando as pautas do movimento para alterar o conjunto do sistema, tanto nas

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normas legislativas como no processo de tomada de decisões (YEATMAN, 1990; CURTHOYS, 1993). A questão é que, no interior desse processo, o estado faz uma “incorporação seletiva das demandas” (ALVAREZ, 2000), devolvendo ao conjunto da sociedade a efetivação de algumas reivindicações que não são reconhecidas pelo conjunto das feministas. Segundo Curthoys: “Yeatman (1990) sees the problem which faces all femocrats, their fundamental dilemma, as being that the feminist strategies they propose will tend, whatever their intentions and class sympathies, to suit the interests of middle-class women like themselves. Ideas such as affirmative action and equal opportunity for example, are helpful only for those already with education and recognized skill. Further, femocrat successes operate in firmly circumscribed aspects of state activity”(CURTHOYS, 1993, p. 31).

Não se trata só de que o estado faz uma apropriação seletiva das pautas mobilizadas, mas qualquer consequência dessa incorporação vai bater de frente com a pluralidade de interesses presente nas organizações de mulheres. Como já fora mostrado por algumas autoras (DAGNINO, 2000; TATAGIBA, 2010) mergulhar nas instituições do sistema político demanda um repertorio de competências técnicas que muitas vezes os movimentos sociais (e neste caso, as mulheres que militam nos movimentos populares) não sempre têm, de modo que as consequências dessa imersão tende a responder apenas aos interesses que consigam ser mobilizados nas arenas institucionais e em dependência do tipo de atores (e atoras) que consigam entrar. Este dilema nos faz voltar à categoria central de identidade de gênero. Como vimos nas páginas acima, no caso nicaraguense, a identidade de gênero desempenhou uma função fundamental para a coesão do movimento em um contexto altamente complexo como foi o de traspasso do período revolucionário à fase neoliberal. Com isso, não só o movimento conseguiu ampliar suas relações e abranger “todos os grupos de mulheres” como ajudou a configurar um ativismo centrado em lutas contra as diversas formas de subordinação e discriminação das mulheres. O problema foi que tal coesão anulou a pluralidade – e as tensões – que estão sempre presentes nas organizações de mulheres, cuja agenda se define ao longo de um processo altamente contencioso, tornando suficientemente complexa a operação de definir o movimento a partir das suas pautas. Ocuparemos-nos especificamente desse ponto a seguir.

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2.3.1. A formação da identidade como um processo contencioso

Apesar de que o conceito de identidade de gênero operou a favor de uma politização do movimento de mulheres da Nicarágua em uma conjuntura difícil, o caráter unificador que lhe fora atribuído apagou as tensões que surgem na formação dessa identidade. A expectativa de que as pautas do movimento respondam a interesses comuns, sob o suposto de que todas compartilham as mesmas reivindicações é, no mínimo, difícil de sustentar. Não existe consenso, nem na teoria nem na prática das atoras, de que as pautas feministas contra a subordinação e discriminação sejam homogêneas e unitárias. Antes, o processo de formulação dessas pautas é altamente contencioso e sujeito a tensões. Já Crenshaw (1989), no seu “manifesto interseeccional” (grifo nosso), chamou atenção para o processo de como as opressões que as mulheres afrodescendentes e imigrantes latinas nos EUA sofrem, estão definidas por um cruzamento de tipos de opressões. Segundo esta análise, as mulheres sofrem simultaneamente condições de racismo e sexismo, atravessadas por questões de classe, gênero e institucionais, se distanciando totalmente das experiências das mulheres brancas feministas de classe média. Isso não pretende explicar a discriminação desde uma somatória de opressões, mas de um cruzamento de discursos, estruturas ideológicas, políticas e de classe que perpassam as próprias experiências de discriminação. A segunda dificuldade que uma compreensão unificadora da identidade nos traz é que ela pode tender a considerar a “mulher” como uma categoria única que reúne interesses em comum e se define a partir deles (MOLYNEAUX, 2001). Analisando a incorporação dos interesses das mulheres no estado revolucionário da Nicarágua dos anos 80, Molyneaux elaborou duas categorias chaves para explicar a imbricação dessa agenda em contextos de formação política mais ampla, que são as dos interesses das mulheres em contraposição com os interesses de gênero (sendo estes de caráter prático e estratégico) 86. A partir dessa classificação, a autora assegurar que os interesses das mulheres estão permeados pela sobreposição de outras atribuições, sejam estas de raça, classe, étnica ou nacionalidade, de modo que:

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Nesta distinção os interesses de gênero são interpretados de forma dedutiva, e eles são catalogados de práticos quando remete a interesses mais imediatos como de moradia, alimentação, emprego, etc. Já os interesses estratégicos remetem a questão de mais longo prazo, como por exemplo, a luta contra diversas formas de opressão motivadas pelas relações desiguais de poder por razoes de gênero (BAB, 2012)

140 “Although present in much political and theoretical discourse, the concept of women’s interests is, for the reasons given earlier, a highly contentious one. Because women are positioned within their societies through a variety of different means – among them, class, ethnicity and gender – the interests they have as a group are similarly shaped in complex, and sometimes conflicting, ways. It is therefore difficult, if not impossible, to generalize about the interests of women. Instead, we need to specify how the various categories of women might be affected differently and act differently on account of the particularities of their social positioning and their chosen identities. However, this is not to deny that women may have certain general interests in common. These can be called gender interests to differentiate them from the false homogeneity imposed by the notion of women’s interests” (2001: p. 43)

Embora esta classificação derrube a ideia de um processo único de formação de identidade, ela não permite iluminar suficientemente o processo de imbricação das agendas que se dá na prática das atoras. A separação dos interesses práticos dos interesses estratégicos esquece que na prática da política real, ambas as agendas operam de forma conjunta. Isto quer dizer que o movimento de mulheres não separa suas demandas de necessidades práticas – de sobrevivência e de cunho econômico – das que tem uma disputa de caráter cultural e mais estratégica. Muito pelo contrario, elas convivem conjuntamente e permite que as reivindicações por recursos sejam, também, de caráter estratégico, e por tanto, político (ALVAREZ e ESCOBAR, 1992). Outro grande desafio que esta questão dos interesses traz à tona é o problema da representação. Se o conteúdo das demandas do movimento de mulheres não está particularmente caracterizado por uma agenda de reivindicação unitária, enquanto mulher não pode ser assumida como uma categoria essencialista, então que tipo de representação pode ser vivenciado no campo feminista quando se dá a interação com as intuições políticas? Como vimos em Molyneaux, os interesses estão permeados por diversas clivagens que, em certos casos, aprofunda outras formas de opressão, constatação que então elimina qualquer possibilidade de que os interesses das mulheres sejam “suficientemente” representados por outras mulheres (SQUIRE, 2001). No plano empírico, encontramos evidências de que as atoras optaram pela delegação de funções, como uma saída ao dilema da representação. As informantes da nossa pesquisa de campo, principalmente as que militam em organizações que não tem vínculo com o MAM, reconhecem que as redes nacionais (especialmente MAM e RMCV) que conformam esse

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grande espectro reconhecido como “movimento amplo de mulheres” são as responsáveis de incursionar em parcerias com as instituições do sistema político. Alias essas alianças são percebidas como altamente qualificadas, se reforçadas com o ativismo de rua, ocupações, relações com a mídia, etc, cujas ações compõem o repertório das outras organizações. A luta ao redor da aplicação da Lei 779 (lei que criminaliza os femicídios e as diversas formas de violência contra as mulheres) que aconteceu em 2012 é bastante emblemática sobre o funcionamento dessa delegação. A polêmica surgida a partir da aplicação da lei aquele ano, gerou a possibilidade de que o Tribunal Supremo decretasse a inconstitucionalidade da lei, produto de mais de cinco recursos apresentados por associações conservadoras e grupos de advogados “em defesa da família tradicional”. O momento para enfrentar tal retrocesso não podia ser menos complicado. As organizações de mulheres tinham recém concluído um episódio de muita tensão interna devido a que a apresentação e cabildeio de lei no Congresso teve como protagonista o MEC (Movimento Maria Elena Cuadra), organização nacionalmente reconhecida pela luta a favor de direitos econômicos das mulheres, operárias e trabalhadoras domésticas, que não incorporou à RMCV (a rede nacional reconhecida na luta contra a violência às mulheres). Apesar da forte tensão interna, as organizações optaram por delegar funções para evitar a ameaça do Supremo Tribunal. Ao MEC couberam as relações com a mídia, negociação direta com a presidenta do Supremo Tribunal (devido a que já existia uma relação previa entre a presidenta do MEC e a magistrada); ao MAM que aproveitasse sua inserção com o sistema de partidos para formar a respectiva base militante em temas sensíveis relacionados com a lei; à RMCV coordenar a campanha nacional; ao Movimento Feminista um forte trabalho pedagógico via as ONGs que o integram; e às diversas ONGs territoriais a realização de ciclos de formação nas comunidades ao redor do espírito e alcance da lei. O trabalho coordenado salvou a aplicação da lei e superou, pela via da experimentação (e não sabemos se de uma vez por todas), a necessidade de contar com uma plataforma única capaz de sintetizar todos os interesses das organizações. Ao menos é o que podemos deduzir da fala da presidenta do MEC para a nossa pesquisa nos meses posteriores à campanha a favor da lei: “Yo sólo pregunto qué hay que hacer, si es necesario hacer algo, pero no quiero saber ni me intereso en entrar en las disputas de las otras (organizaciones). En eso, creo que en el MEC

142 somos prácticas. Si nos necesitan, ahí estaremos, pero no para opinar en sus asambleas ni incidir en sus procesos”

A questão dos interesses, efetivados desde cada espaço, ganha aqui centralidade. A identidade de gênero ajuda a mobilizar demandas concretas e mantém a potencialidade de coesão, mas ela coexiste com as múltiplas identidades que o movimento experimenta. Durante nossa ultima imersão entre 2013 e 2014, conseguimos conversar com Maria Teresa Fernández, a representante da plataforma de mulheres rurais (Coordenadora de Mulheres Rurais), muitos meses depois que o movimento amplo tinha se envolvendo na luta por salvar a lei. Estava altamente instigado em entender qual é aqui a percepção de autonomia e identidade de gênero, e como tal percepção vai ao encontro dos interesses, digamos “mais feministas” representados na luta a favor do aborto, contra a violência e pela lei 779 (demandas percebidas como tipicamente urbanas e de classe média): “(…) la autonomía la veo desde que no nos están orientando lo que debemos hacer, ni con quien tenemos que relacionarnos. Nosotras tenemos una fuerte alianza con el MEC, defendiendo derechos, defendiendo cosas. Y eso no nos ha generado ningún problema. Nosotras fuimos parte muy activa del grupo promotor de la ley 779, así como del grupo que trabaja en la agenda concertada económica de las mujeres. Entonces, las mujeres, en diferentes espacios estamos muy claras de que tenemos que unirnos y trabajar por lo menos, en determinados derechos. Sabemos que no podemos estar de acuerdo con todo, pero que no se sigan retrocediendo los derechos básicos de las mujeres. Por ejemplo, en el caso del aborto, no salimos a las calles porque en mundo rural es difícil defenderlo como agenda, pero nosotras en la CMR estamos de acuerdo con el aborto terapéutico y tenemos relación con el MAM, con la RMCV. No estamos en contra de lo que ellas mueven. Creo que en el caso del movimiento amplio de mujeres, hay una diversidad en la que nos encontramos y nos respetamos”.

Até que ponto a atualização das categorias de autonomia e identidade, mobilizadas neste capítulo, dão conta da trajetória das relações que as ativistas foram experimentando ao longo da transição democrática nicaraguense? Se ambas são categorias processuais e sujeitas a tensões, podemos então esperar que expliquem parte das experiências de relações, também dinâmicas, por mais de vinte anos. Faremos essa operação nos próximos dois capítulos a seguir.

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********** Neste capítulo tivemos a pretensão de experimentar um diálogo entre três quadros teóricos (da ação coletiva e movimentos sociais, de partidos políticos e do movimento de mulheres) a partir de duas categorias chave: Autonomia e Identidade. Nosso pressuposto foi de que estas narrativas merecem uma revisão sob os refletores das dinâmicas relacionais experimentadas na prática política mais recente na América Latina, caracterizada pelos vínculos que os movimentos sociais constroem com as instituições do sistema político. No nosso caso, olhando para os vínculos dos movimentos de mulheres da Nicarágua com o sistema de partidos políticos. No debate sobre a literatura dos movimentos sociais, reconhecemos que existe um importantíssimo avanço capaz de derrubar as dicotomias com que estávamos acostumados a diagnosticar os atores da vida política. Ao entender que os atores da sociedade civil e as instituições do sistema político têm a capacidade de se constituírem mutuamente (e não são totalmente externos como víamos anos atrás), nos enfrentamos ao desafio teórico de saber caracteriza-los adequadamente. Ao longo do debate realizado, conseguimos constatar que duas das categorias centrais com as quais caracterizávamos os atores coletivos (autonomia e identidade) merecem, no mínimo, uma atualização. Tomando como base o debate relacional praticado mais recentemente na literatura brasileira, inferimos que podemos obter ganhos se ambas as categorias deixam de ser entendidas como atributos dos atores coletivos e começamos a entendê-las como processo. Isto significa que, na prática dos atores, autonomia e identidade estão sendo constantemente resignificadas e, por isso, têm uma função estratégica que permite os atores se aventurarem nas relações. Da literatura de partidos políticos questionamos que a tradição analítica, caracterizada pelas abordagens organizativas e funcionalistas, incorporou tangencialmente os movimentos sociais, mas isso não permitiu observar que papel era destinado aos atores movimentalistas em conjunturas não eleitorais. Ao nos aproximarmos das análises sobre partidos, detectamos que existe uma compreensão de serem altamente heterogêneos e permeáveis aos atores da sociedade civil, gerando uma espécie de sub-cultura partidária que ilumina dinâmicas e fenômenos que acontecem na intersecção entre os partidos e movimentos. Para determinar como essa zona de intersecção funciona, precisaríamos avançar mais na análise empírica que nos outorgue a capacidade de deduções mais adequadas.

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As explicações teóricas sobre o movimento de mulheres da Nicarágua – apesar de sua especificidade – nos ajudou em dar um passo mais à frente na compreensão das categorias de autonomia e identidade. Aqui detectamos que ambas as categorias são historizicadas, elas vão respondendo às conjunturas concretas e desempenham uma função estratégica para o feminismo nicaraguense interagir com o sistema político. Ao menos para a compreensão do movimento nicaraguense de mulheres, a autonomia não foi compreendida sob a chave da não relação, e sim desde uma perspectiva de defesa do movimento “em relação” com os atores políticos. E isso faz total sentido para diagnosticar a experiência prática destas atoras. Como veremos no capítulo a seguir, o movimento de mulheres tem sua gênese na esteira de luta contra a ditadura somozista, gerado por estimulo de uma das tendências internas da FSLN e formatado ao longo dos anos do processo revolucionário desde dentro do estado, sob a “tutela” do Partido Vanguarda. O problema para o movimento de mulheres, e para o feminismo mais em concreto, não foi construir a relação com o sistema político, e sim romper com ele a partir de 1990. Isso tem, como podemos prever, consequências para a definição de identidade, e neste caso, a identidade de gênero. Nos anos seguintes ao fim da revolução, a identidade de gênero desempenhou uma função estratégica para estimular o ativismo e gerar coesão ao movimento, mas com os anos essa coesão teve de ser reformulada, particularmente depois que um dos atores chaves do movimento amplo decidiu investir no sistema de partidos políticos, instaurando tensões ao processo de construção da identidade, partindo da noção de interesses e demandando soluções no plano prático dos atores. Dar conta desse dinamismo e observar como ele foi sendo experimentado ao longo da trajetória é o objetivo dos próximos dois capítulos.

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Cap. 3. As mulheres na revolução: De guerrilheiras às “ativistas autônomas”

Podemos não cometer exagero ao afirmar que a revolução sandinista de julho de 1979 foi, com altas probabilidades, um dos fenômenos políticos latino-americanos mais importantes da segunda metade do século XX. Apenas superada pela revolução socialista cubana de 1959, a revolta popular nicaraguense capturou a atenção de ativistas e intelectuais do mundo ocidental, que depositaram a pequena região centro-americana baixo os refletores da guerra fria. As expectativas presentes nos diagnósticos da época (MAREGA, 1982; MOLYNEUAX, 1986; RANDALL, 1986) de que a Nicarágua daria o passo definitivo para a instauração do socialismo real correspondiam-se com duas configurações da realidade daqueles anos. Por um lado, a Nicarágua ia no contrafluxo dos contextos latino-americanos, ao derrubar uma das ditaduras mais duradouras da região (duas gerações da família Somoza que retiveram o poder por 45 anos), enquanto os regimes autoritários tomavam conta de uma boa parte da América Latina, produto da consolidação do Plano Condor na América do Sul. Na visão de Molyneaux (2001), a Nicarágua daqueles anos se transformou em “símbolo da resistência global”, especialmente pelo enfrentamento do pequeno país mesoamericano às hostilidades provindas de Washington, que não permitiria uma “nova Cuba” na sua região mais próxima que estimulasse o avanço socialista nos países latinos. Por outro lado, a insurreição popular liderada pelo movimento guerrilheiro Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), distinguia-se das similares experiências de guerrilha latinoamericanas (inclusive da cubana) em apostar por uma profunda transformação do sistema que conseguisse – por via da revolução – superar as desigualdades entre homens e mulheres, associado à superação das diversas formas de opressão experimentadas na sociedade. Tais anseios fazem parte do próprio DNA sandinista. O Programa Histórico da FSLN, apresentado em 1969 desde a clandestinidade à sociedade nicaraguense 87 – oito anos depois da criação da guerrilha – já incorporara a visão de uma sociedade equitativa, baseada em justiça social, erradicação do analfabetismo, uma profunda reforma agrária e a completa “emancipação da mulher”, a cujo último ponto destinou-se um capítulo inteiro.

87

Uma versão digital do Programa Histórico da FSLN pode ser encontrada em: http://americo.usal.es/oir/opal/Documentos/Nicaragua/FSLN/PROGRAMA%20HISTORICO%20DEL%20FSL N.pdf

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Direitos como licença maternidade, proteção das mães solteiras, instauração de creches, etc, foram estipulados no horizonte da guerrilha, pautas pareceriam altamente transgressoras para a época, mas de certa forma compreensível se consideramos o envolvimento das mulheres no movimento guerrilheiro. Segundo Molyenaux (1986), cuja obra ofereceu a primeira compreensão sobre as características do incipiente feminismo naqueles anos da experiência nicaraguense, a guerrilha sandinista foi integrada por 25% de mulheres, uma das cifras mais altas de mulheres na luta armada, sem paralelo na experiência latino-americana e superado apenas por Vietnã (MOLYNEAUX, 2001: p.38). Esta constatação motivou uma série de análises que perseguiam explicar, por um lado, que fatores permitiram o alto envolvimento das mulheres no conflito armado nicaraguense e, por outro, que papel era destinado a elas, uma vez estavam dentro do movimento (CHINCHILLA, 1994, KAMPWIRTH, 2002; ZIMMERMANN, 2006). Quanto os elementos que conduziram ao engajamento armado das mulheres, Kampwirth (2002) encontrou uma espécie de confluência de fatores estruturais, ideológicos e pessoais que surgiram como consequência das transformações do sistema de propriedade experimentando no país a partir do final dos 50. Vejamos. A concentração da terra, associado a um crescimento econômico desigual que vinha se experimentando ao longo do período ditatorial nos anos 60 e 70 motivou a migração de famílias campesinas (grande parte delas caracterizada por mães solteiras ou famílias abandonadas pelo pai) das comunidades rurais às periferias dos centros urbanos, onde começavam a pipocar as experiências participativas nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB). O envolvimento nos grupos de reflexão estimulado pelas CEB nas periferias das principais cidades auxiliou na formação de uma consciência política ao redor das causas da opressão e a necessidade das lutas coletivas por superá-las. Por outro lado, os esforços de recrutamento da FSLN foram concentrados, durante os primeiros anos dos 70, nas periferias urbanas e particularmente nos centros estudantis. As principais associações de estudantes universitários, particularmente nas cidades de Manágua e León (no ocidente do país) sofriam a constante repressão da ditadura somozista entre 1973 e 1975, ocasionando um forte engajamento universitário na luta clandestina. Como veremos um pouco mais à frente neste capítulo, um bom número de ativistas feministas iniciou sua militância na FSLN desde esses espaços, permitindo que o movimento guerrilheiro fortalecesse as relações desde a clandestinidade com um amplo leque de organizações (sindicatos, associações estudantis, etc) e movimentos populares urbanos. Isto reforçou a

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análise de Kampwirth (2002), ao redor da composição de gênero que a guerrilha experimentava naquele período: “It seems likely that the average woman of the FSLN was also more urban and more educated than the average man of the FSLN, since urban women and students generally were freer to violate their traditional gender roles than were rural women and nonstudents. As a rule of thumb, I think we should assume that the social origins and motivations of female guerrillas and male guerrillas will differ in most, if not all, cases” (2002: p. 43)

Já no tocante aos papeis que as mulheres desempenhavam dentro do movimento guerrilheiro, a literatura e a experiência concreta das ativistas revelaram tensões. Para boa parte do movimento guerrilheiro, não era fácil admitir que as mulheres pudessem ingressar na luta armada, com as mesmas capacidades e competências militares que os homens possuíam, e quando conseguiam entrar, elas tiveram de reproduzir papeis tradicionalmente aceitos. No estudo que Zimmermann (2006) realizou sobre a revolução nicaraguense, podemos encontrar que às mulheres eram destinadas as tarefas de manter os aparelhos limpos, alimentar os fugitivos e cuidar deles, datilografar comunicados e manifestos que serviam de comunicação da guerrilha com as redes urbanas. Mas também desempenhavam as funções fundamentais de recrutamento. Durante os primeiros dez anos de existência, isto é ao longo de toda a década dos 60, a FSLN mostrava uma atuação bastante precária em termos de luta armada. Diversos ataques militares da ditadura estavam acabando com o movimento clandestino, de forma que a FSLN precisava reorientar todos os esforços ao redor do trabalho organizativo e de recrutamento. Nesse contexto, em 1963 Gladys Báez, uma jovem estudante, militante do Partido Socialista (PS) – um dos principais opositores à ditadura somozista – foi orientada pelo partido para formar uma coalizão de mulheres socialistas que pudessem desenvolver ações de apoio ao novo movimento clandestino contra a ditadura, representado na FSLN. Essa associação não teve maior sucesso em termos de reconhecimento político, mas a experiência permitiu que Báez continuasse no processo organizativo, com o qual em 1967 formou a Aliança Patriótica de Mulheres Nicaraguenses (APMN), uma nova associação que tinha a particular distinção de funcionar, fundamentalmente, como um espaço de recrutamento de novos membros para as filas do movimento guerrilheiro. Isso tudo fez de Báez a primeira mulher a se incorporar na FSLN como guerrilheira combatente e, por tanto, a primeira em experimentar os desafios de tal incorporação. A partir

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de um depoimento que ela ofereceu ao estudo de Luciak (2001), podemos inferior que o maior constrangimento era provar que a participação das mulheres na luta armada era, simplesmente e de fato, possível: “In the first place, to accept the presence of women was a new experience for the men. The challenge in my case was that it depended on me whether more women would be brought to the mountains. I understood this clearly, that it depended on me. The compañeros were accustomed to see us arrive as messengers, to see us engaged in logistical support, but our full-time permanent presence, this was a different story” (Entrevista realizada a Baez por Luciak em Julho de 1998)

Enfrentando o preconceito machista, fortemente capilarizado no movimento guerrilheiro, as mulheres tinham de comprovar que podiam ter as mesmas habilidades militares dos homens, conforme avançavam as demandas da luta clandestina. Mas ao longo do processo insurrecional, elas não só mostraram a capacidade militar, como também uma habilidade para combinar diversos repertórios (de luta armada, de trabalho organizativo, conexões com núcleos urbanos, criação e resguardo de casas de seguridad, etc) que foram altamente decisivos para o êxito do movimento. Para analisar as diversas formas de participação das mulheres, não apenas durante a luta insurrecional, mas ao longo do processo revolucionário, este capítulo está dividido em quatro partes que abarcam os dois primeiros momentos de inflexão selecionados (de acordo com a divisão metodológica que formulamos na introdução desta tese). Nossa imersão ao conjunto desse processo tem como objetivo compreender os vínculos que as mulheres foram experimentado no seio da militância sandinista, apoiados em depoimentos obtidos durante nossa pesquisa de campo e na literatura específica da época. Na primeira seção deste capítulo, abordaremos brevemente o período que vai desde a formação da FSLN até os momentos mais radicais do confronto militar contra a ditadura somozista, focados particularmente na participação das mulheres. Veremos como as ativistas foram associando um sofisticado repertório de ações clandestinas com trabalhos organizativos nas cidades, estimulando a formação da primeira associação de mulheres (AMPRONAC) que, anos depois, se transformaria na rede única de mulheres organizadas no período revolucionário. Na segunda seção analisaremos a experiência concreta de AMPRONAC e os vínculos que esta associação foi estabelecendo com a FSLN nos anos prévios à revolução. O objetivo aqui

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é explicar como o sandinismo foi estimulando novas formas de participação política das mulheres, por primeira vez em confronto direto contra o sistema. Como era de se esperar, AMPRONAC era altamente inovadora com relação às mobilizações das suas antecessoras (as sufragistas dos anos 50, e as militantes do Partido Liberal Nacionalista, PLN, vinculado com Somoza dos anos 60) e foi alvo de uma importante transformação após o triunfo revolucionário. Sobre os anos posteriores à derrubada da ditadura trataremos na terceira parte deste texto. Compreenderemos como o ativismo ensaiado em AMPRONAC foi alterado pelo novo governo revolucionário instaurado em 1980 (e fortalecido após as eleições de 1984), que orientou a criação de AMNLAE como rede única aglutinadora das mulheres sandinistas. Veremos como, apesar da vocação de estrutura única, as mulheres ocuparam outros espaços (particularmente os sindicatos) para estender o feminismo que começaria se fortalecer a partir de 1985. Importante destaque merece aqui o processo da Constituinte de 1986 onde, por intermediação de AMNLAE, as “novas feministas” conseguiriam incorporar pautas altamente progressistas para a própria esquerda dos anos 80. Encerraremos este capítulo conhecendo os primeiros coletivos de feministas “autônomos” da FSLN que começaram a pipocar já nos últimos anos do período revolucionário. Interessante passagem merece aqui o experimento (“meio real – meio brincadeira”, em palavra das próprias atoras) no qual as feministas sandinistas se aventuraram, sem muito sucesso, na criação do novo Partido de la Izquierda Erótica (PIE). Argumentamos que apesar de não ser instituído organicamente, nem sustentado pelas feministas ao longo dos anos, a “aventura” do PIE é altamente sintomática da vocação partidária que as feministas possuem, podendo assim circular (nos dias de hoje) habilidosamente na trilha pedregosa e difícil dos partidos políticos. Toda essa nossa construção estará orientada pelo impulso de compreender como no extenso desse processo vão se experimentando as primeiras dimensões da autonomia. 3.1. Da formação da FSLN e as mulheres na luta da insurreição popular contra Somoza

Nos anos prévios ao nascimento da FSLN, a ditadura somozista focalizava a repressão, gradualmente violenta, sobre grupos de intelectuais e universitários que, ao longo dos anos 50, protestavam contra o nível de centralismo eleitoral e controle político, associado ao monopólio dos meios de produção que o General Anastásio Somoza García tinha acumulado por quase vinte anos ao frente do poder.

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Oficialmente, a ditadura se instaurou na Nicarágua em maio de 1936, quando o Gral. Somoza García, sendo então (e graças às pressões da embaixada dos Estados Unidos) chefe da Guarda Nacional (uma espécie de Exercito Nacional que teve sua base fundacional na ocupação dos marines americanos iniciada em 1910), deu golpe de estado no presidente conservador Juan Bautista Sacasa. O golpe de estado de Somoza aconteceu dois anos depois que o presidente Sacasa assinara uma trégua com o militar dissidente Augusto C. Sandino (chefe de um grupo militar rebelde que pressionava pelo desmanche da Guarda Nacional e a ruptura dos laços de dependência com Washington), justo na noite de fevereiro de 1934 em que Somoza gestou um operativo para assassinar Sandino na capital. Os conflitos entre Somoza e Sandino estavam marcados pela recusa deste último em aceitar a presença de um contingente de marines que ocupara a Nicarágua entre 1910 – 1934 para proteger os interesses de alfândega de Washington no país. O chefe militar quis aproveitar que o acordo entre Sandino e o presidente Sacasa atrairia o militar rebelde até Manágua, para comandar a cilada em que autorizou seu assassinato (PUIG, 2012: pp. 2 - 4). Sem oposição nenhuma e usando um ferrenho controle da Guarda Nacional (GN), Somoza incrementava a cada momento a repressão contra os grupos acadêmicos, jornalistas e partidos de oposição que protestavam contra as consecutivas reeleições. Em setembro de 1956, durante uma festa de gala no interior da Nicarágua, o ditador é assassinado a tiros por um jornalista 88, episódio que incrementou a repressão militar, instaurou um estado de sítio e um controle absoluto por parte do filho, Luis Somoza Debayle por mais de dois anos. Isso tudo reduziu as oportunidades para o sucesso político da resistência anti-somozista. Contudo, seis anos depois, e claramente inspirados no triunfo revolucionário do movimento “26 de Julho” de 1959 em Cuba, um grupo de jovens dissidentes 89 do Partido Socialista (PS) e Partido Conservador da Nicarágua (PCN) - os históricos inimigos de Somoza Garcia – criaram a FSLN em 1961, em Tegucigalpa, na vizinha Honduras, com a intenção de prolongar as estratégias nacionais e militaristas de Sandino, mas com uma atuação estratégica conhecida de “foquismo” em áreas rurais e através de operações clandestinas (PUIG, 2012: 22- 23).

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Rigoberto López Pérez,considerado oficialmente como um dos heróis nacionais da Nicarágua Carlos Fonseca, Tomás Borge, Santos López, Silvio Mayorga e Germán Pomares.

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Durante os primeiros cinco anos de existência, a FSLN enfrentou sérias dificuldades de recrutamento, associado à escassez de armamento, incoerência organizativa e falta de capacidade militar, cujas condições, segundo a literatura específica sobre o sandinismo (BALDIZON, 2004; PUIG, 2012), ameaçavam com extinguir o movimento guerrilheiro. Foi quando a guerrilha sofreu o primeiro grande golpe pela ditadura. Aconteceu em 1967, durante o ataque conhecido como “a emboscada de Pancasán”, depois que a GN descobrisse um dos esconderijos nas montanhas da província de Matagalpa (norte do país), devido a um erro de um dos guerrilheiros que deixou exposta a localização da coluna clandestina. Praticamente todos os membros da guerrilha sandinista naquela localidade foram aniquilados. Apesar da enorme perda, a FSLN já estava numa melhor posição em termos de reconhecimento e arraigo social. O movimento tinha conseguido afiançar as relações com os partidos opositores a Somoza (PS e PCN), organizações estudantis e sindicatos, que representavam – já naquele período – uma importantíssima fonte de recrutamento. No mais, os constantes ataques da ditadura contra o movimento entre 1967 e 1969, e que acabaram com a vida de proeminentes líderes como Julio Buitrago e Leonel Rugama 90, só fizeram aumentar o apoio popular à luta clandestina. A derrota de Pancasán, junto com os ataques da GN em Manágua, reforçaram os esforços da FSLN pela formação política de quadros e por uma abertura organizativa que melhorasse o recrutamento. Com a incorporação de Gladys Baéz à clandestinidade em 1967, o movimento começou a permitir o ingresso de mais mulheres provindas dos sindicatos e das organizações universitárias. Mas essa ampliação não procurava apenas um engajamento na luta armada. Como a análise de Murguialday (1990) percebeu adequadamente; já com um melhor treinamento estratégico, os guerrilheiros precisavam circular clandestinamente pelas principais cidades do país, e para isso necessitariam de redes de comunicação, cuidados médicos, abastecimentos e casas de seguridad que garantissem a segurança dos sandinistas. As casas de seguridad não eram mais que domicílios, em aparência, de famílias de classe média, que escondiam os guerrilheiros, assim como guardavam as munições e alguns recursos financeiros que o movimento 90

Dois ataques da GN, em Manágua, são aqui emblemáticos. A GN tinha a informação da existência de casas em diferentes bairros da cidade que começavam esconder a vários membros da guerrilha. Com tais denúncias, a ditadura montou duas ferozes operações de ataques numerosos (entre 300 a 500 militares) contra estas chamadas casas de seguridad, que resistiram por horas. Ao concluir os ataques, os militares descobriram que essa resistência era feita por apenas uma pessoa. Esse tipo de “heroico sacrifício” aumentou a adesão e simpatia da sociedade nicaraguense pela luta sandinista (MAREGA, 1982; pp. 41 – 42).

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conseguisse levantar durante as primeiras operações clandestinas; em definitiva, instauraramse como os espaços urbanos mais importantes da luta guerrilheira. Em praticamente todas as principais cidades da Nicarágua, essa infraestrutura urbana era responsabilidade exclusiva das mulheres. Luisa Amanda Espinoza desempenhou uma dessa funções centrais. Oriunda de setores populares do interior do país, Espinoza tinha a responsabilidade de cobrir uma casa de seguridad onde funcionava uma escola de treinamento militar clandestina. Nela, auxiliou na fabricação de armas caseiras, realizava trabalhos domésticos para famílias de classe média com o objetivo de conseguir recursos que financiassem materiais didáticos de formação militar que acontecia lá dentro, e ainda precisava cuidar dos assuntos domésticos, desde a faxina até a alimentação dos guerrilheiros. Através de um dos depoimentos de Espinoza, reproduzido no estudo de Murguialday (1990), podemos compreender a dupla dimensão das dificuldades que as mulheres enfrentavam ao se envolver na luta clandestina, a partir dessa múltipla funcionalidade: “En ese tiempo, el trabajo de la mujer en el FSLN era bien difícil porque las compañeras no se integraban de una manera completa a la lucha, sino que su participación era limitada por las mismas circunstancias (…) la mujer tenía la tarea de darle a la casa clandestina la imagen de una casa normal, algo que era muy difícil realmente. No podíamos dar ninguna información acerca de nosotros a los vecinos, no se podía llevar una vida normal porque en la casa había armas y compañeros clandestinos” (Espinoza, Luisa Amanda apud Murguialday, 1990: p. 56)

Luisa Amanda tinha 22 anos de idade quando foi assassinada em 1970 durante uma operação militar da ditadura na cidade de León, sendo a primeira mulher da FSLN sacrificada na esteira da luta clandestina. Nos anos seguintes, muitas outras mulheres que nem ultrapassavam os 23 anos de idade começaram a perder a vida ao longo de diversas operações da GN, na medida em que o combate entre a guerrilha e a ditadura começava a recrudescer nas cidades, tornando-se importantes símbolos da luta guerrilheira. Foi o caso de Arlen Siu, uma jovem cantora, formada nos ciclos de reflexão política e cristã nas pastorais das periferias, assassinada em 1975 durante um confronto contra a GN na cidade de Jinotepe (45 kms de Manágua), quando tinha apenas 20 anos. Entre sacrifícios e um alto engajamento nas ações mais estratégicas, as mulheres comprovaram que tinham as mesmas habilidades militares que os homens, conquistando o

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direito de participar nas

grandes

operações

que

a

FSLN só começou a experimentar

em

1974. Em dezembro daquele guerrilha

ano,

a

invadiu

uma festa que estava sendo oferecida por José María Castillo, Passeata popular em 1978 em apoio ao movimento guerrilheiro. No destaque, o retrato da jovem guerrilheira Arlen Siu, assassinada pela ditadura em 1975 (Foto: Susan Meiselas, Arquivo Magnum)

um dos mais notáveis ministros da ditadura

de Anastásio Somoza Debayle (filho mais novo do Gral. Somoza Garcia) ao embaixador dos Estados Unidos. O comando guerrilheiro, composto por 13 membros, dos quais três mulheres 91, conseguiu a primeira libertação de presos políticos e a obtenção de apoio financeiro para as atividades clandestinas. Com tal façanha, a FSLN começava a ganhar notoriedade mundial e uma alta adesão das organizações da sociedade civil ao projeto guerrilheiro. Uma série de ações posteriores e atos emblemáticos da guerrilha evidenciaram o alto nível de engajamento das jovens guerrilheiras. Dois episódios de 1978 merecem, nesse sentido, maior destaque. Nos primeiros meses daquele ano, a mídia noticiava o assassinato do chefe do Estado-Maior da GN, Gral. Reynaldo Pérez de Vega (conhecido por ser o maior torturador da ditadura e o mais temido depois de Somoza). O cadáver do torturador foi encontrado nu no quarto da advogada de uma empresa construtora. A advogada – Nora Astorga – tinha sumido e (segundo a mídia) teria sido sequestrada pela FSLN, mas a verdade – que depois foi divulgada pela guerrilha – é que Astorga era mais uma guerrilheira sandinista que atraiu o Gral. Pérez ao seu apartamento, enquanto três guerrilheiros esperavam por ele escondidos no armário. O militar foi atacado no quarto de Astorga, quem já – no segundo trimestre daquele 91

A operação é reconhecida como o “Assalto à casa de Chema Castillo”, representando a primeira operação de grande impacto da FSLN. Isto permitiu ao movimento guerrilheiro começar a divulgar suas principais demandas à comunidade internacional. As mulheres integrantes deste comando exitoso foram Letícia Herrera, Eleonora Rivera e Olga Avilés. Para detalhes desta operação, e muitas outras da guerrilha, recomendamos o blog de Baltodano, Mónica: www.memoriasdelaluchasandinista.org

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ano – aparecia sorridente nas fotos clandestinas, com um fuzil nas costas (CARDENAL, 2012, p. 90 -91). Em agosto do mesmo ano, a FSLN fez seu segundo grande ato de impacto, ao ocupar o Palácio Legislativo quando os deputados estavam em plena sessão. A segunda líder no comando desta operação era Dora María Téllez, uma moça de 23 anos quem largou a formação em Medicina pela Universidade Nacional para se engajar na luta clandestina. Essa operação permitiu uma nova libertação de presos políticos, e estimulou o ativismo de outras organizações, particularmente sindicatos e associações de profissionais. Já nos últimos meses, prévio à insurreição final de 1979, o país viveu duas batalhas emblemáticas do engajamento militar das mulheres guerrilheiras. Uma delas foi a libertação 92 da província de Carazo (ao sul de Manágua), obtida por uma esquadra formada exclusivamente por 150 mulheres guerrilheiras, assim como a libertação da cidade de León (no ocidente do país), liderada por Téllez à frente de uma esquadra composta por sete líderes, dos quais cinco mulheres. A libertação de León é considerada, na literatura, como a vitória urbana mais importante da insurreição armada (LUCIAK, 2001). Com o contexto altamente turbulento na Nicarágua, a condição de Somoza era pouco favorável no plano internacional. A posse de Jimmy Carter como Presidente dos Estados Unidos (1977 – 1981), recolocou uma preocupação central sobre os Diretitos Humanos com relação à Nicarágua, motivando que Washington suspendesse todo tipo de apoio ao regime somozista. No país, todos os empregadores convocaram a uma greve nacional contra a ditadura, enquanto as associações de profissionais, sindicatos e mulheres, em aliança com a FSLN, criaram duas grandes redes de protesto contra o regime. Em poucas semanas, a confluência destes três fatores contribui para a derrubada do ditador. Mas aqui vale uma ressalva importante. A despeito da contribuição da luta armada para alcançar a revolução em 1979, muitas das ações de impacto não teriam tido a mesma dimensão sem a experiência mobilizatoria de outros setores que recusaram as armas. E nisso, as mulheres desempenharam um papel fundamental. À experiência das guerrilheiras que se incorporaram à FSLN desde a clandestinidade, teremos que acrescentar outras modalidades mobilizatórias que a FSLN também estimulou desde os polos urbanos. 92

A libertação das cidades foi representada nos enfrentamentos armadas diretos, nas ruas, que diversas esquadras da FSLN mantiveram contra a GN durante os últimos meses da insurreição. O objetivo da FSLN era expulsar – e prender – os soldados da GN das principais cidades para decretar a vitória final. Pretendia-se, antes que nada, desmantelar por completo a Guarda Nacional (MAREGA, 1982).

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E na verdade, não nos referimos aqui à FSLN como uma frente monolítica e sim como uma rede movimentista altamente plural e conflitiva. O grau de consolidação que a guerrilha foi experimentando ao longo de quase vinte anos, motivou a formação de facções internas que estimularam a organização de outros atores fora da linha de combate, incluso mulheres. Foi isso o que facilitou a criação de AMPRONAC, a principal rede de mulheres ativistas que começaram a existir naqueles complicados anos. Dessa experiência trataremos na seção a seguir. 3.2. Do nascimento de AMPRONAC e os primeiro conflitos de classe

Apesar de que em 1977 a FSLN já era forte em termos organizativos e com uma alta centralização e disciplina militar, o movimento se caracterizava pela existência de três facções internas – ou tendências – que, embora articuladas ao redor da mesma finalidade de derrubar a ditadura somozista, mantinham disputas chaves ao redor de como realizar a luta armada (BALDIZÓN, 2004). A literatura divide essas três facções em: Tendência Proletária (TP), fortemente influenciada pela experiência de luta chilena contra o golpe a Salvador Allende, que outorgava maior importância às alianças da guerrilha com instâncias organizativas como sindicatos, associações comunitárias, grupos estudantis, etc, e apostava por conectar as ações de luta destas (greves nacionais contra o regime, por exemplo) com levantamentos armados por parte da guerrilha como forma de apoio. A Tendência de Guerra Popular Prolongada (GPP) pregava uma estratégia de ataques continuados fortemente baseado no modelo cubano, isto é, uma sequência de ataques focalizados particularmente nas áreas de montanha, enquanto a Tendência Tercerista (TT) sintetizava as estratégias das outras duas facções ao sugerir uma combinação de luta rural e urbana em aliança com atores institucionais do sistema político (partidos opositores a Somoza, por exemplo) como estratégias fundamentais para enfrentar a ditadura 93. Cada uma das tendências mantinha autonomia quanto à coordenação das suas estratégias com atores externos à FSLN, o que permitiu aos militantes sandinistas, representantes da 93

As tendências coexistiram marcadas por uma disputa quanto à condução da revolta e sob questionamentos mútuos que iam desde falta de “consistência ideológica” até “excessivo militarismo”. Baldizon (2004) interpreta a divisão dessas tendências como um traço distintivo da origem da FSLN que empurrou a ter uma espécie de “estado colegiado” durante os anos 1980, durante a instauração do governo revolucionário, permitido pela condução de nove comandantes à frente da Direção Nacional do Estado. Para conhecer mais sobre a estrutura organizativa da FSLN, recomenda-se Baldizón (2001); Zimmermann (2006) e Puig (2012).

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Tendência Proletária, contatar duas mulheres que já começavam se vincular com a FSLN, mas não eram conhecidas publicamente, nem exerciam posições de comando em estrutura nenhuma, para a formação de um comitê humanitário que assistisse os presos políticos e se constituísse como uma plataforma de denúncia dos atos de repressão da ditadura. É assim como a FSLN orienta a Lea Guido e Gloria Carrión, ambas profissionais liberais e representantes de famílias da elite local (além de ser a irmã de Luis Carrión, um dos mais conhecidos representantes da TP de então, Gloria, por exemplo, tinha recém terminado a faculdade nos Estados Unidos quando foi chamada a formar esse comitê) o que facilitaria a conexão das ações humanitárias locais com atores internacionais. Num primeiro momento Guido e Carrión optaram por criar o comitê, incorporando a mulheres da elite local, representantes de grupos cristãos em bairros nobres da capital ou procedentes de famílias ricas que inclusive estivessem relacionadas com membros da ditadura, mas com a sensibilidade suficiente para se engajar em missões humanitárias. Esta composição facilitou que o comitê fizesse algumas ações de protesto contra a repressão ditatorial, sem nenhum tipo resposta violenta por parte do regime. Com o tempo, o comitê começou a perder fôlego e algumas mulheres saíram da organização, até que as dirigentes sandinistas resolveram ampliar a composição e contatar mulheres de outras procedências, como trabalhadoras, moradoras dos bairros periféricos, integrantes das CEB e de classe média. Com essa nova composição, os interesses do comitê já começaram ser alterados. As novas integrantes não queriam ficar “restritas” às ações humanitárias e acreditavam que se existia uma organização que podia aglutiná-las, era necessário envolver outros interesses que veiculassem as posições da diversidade feminina. É com essa lógica que nasceu a Asociación de Mujeres ante la Problemática Nacional (AMPRONAC). Meses depois da primeira decisão da assembleia da associação, na qual ficou resolvida a própria identidade da plataforma, e aproveitando a suspensão de um novo estado de sítio que Somoza tinha decretado, AMPRONAC é lançada publicamente em setembro de 1977. O papel das mulheres procedentes das CEB é aqui fundamental. Decidiu-se que a coordenação entre comunidades das pastorais em Manágua e as igrejas moravas do atlântico nicaraguense poderia ajudar a visibilizar a repressão da ditadura contra os camponeses naquela região. Assim, então durante uma missa católica em Manágua, as mulheres de AMPRONAC

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emitiram a primeira proclama pública, para denunciar o desaparecimento de 129 camponeses da região atlântica do país, onde a igreja morava tem uma forte presença 94. O pronunciamento teve impacto e AMPRONAC começa a ser vista pelos atores do sistema político com maior atenção, afinal de contas era a única plataforma onde representantes da burguesia local mostravam posicionamentos contra a ditadura de Somoza de forma mais clara, junto às mulheres trabalhadoras e de classe média. Isto, contudo, gerou receios das outras duas tendências da FSLN que começaram a acusar a AMPRONAC de ser um “grupo de burguesas”, embora a associação tenha conseguido articular mulheres rurais, camponesas e trabalhadoras. Um dos depoimentos levantados por Murguialday (1990) sobre este fenômeno resulta altamente revelador quanto à natureza da associação e a percepção que esta gerava entre os opositores à ditadura. Quando Pedro Joaquin Chamorro 95, um dos líderes da oposição partidária contra Somoza, diretor do jornal La Prensa e representante de famílias da elite local é assassinado, surgiram movimentos de protestos com maior força e AMPRONAC mostra que já tem a habilidade suficiente para liderar esse tipo de protestos. Naquele ano, a associação já reunia mais de mil ativistas em várias cidades do país. Uma das ativistas de AMPRONAC, entrevistada por Murguialday, lembra esse momento assim: “Cuando fue asesinado Pedro Joaquín Chamorro, la pequeña burguesía del campo y la ciudad comprendió que podía ser asesinado también alguien de la burguesía: Chamorro era un burgués. En la Cámara de Comercio a la que yo pertenecía porque mi padre tenía un pequeño negocio de telas, se produjo un conato de rebelión. Era una rebelión muy distinta a la del pueblo que se manifestaba en la calle, en los barrios, de noche y de día. La de la Cámara de Comercio era una rebelión elegante. Las mujeres que estábamos ahí comenzamos a pensar que en nuestra región también era necesario organizar AMPRONAC y me plantearon si yo 94

Embora a Teologia da Libertação não nascesse na América Central, foi na luta insurrecional da Nicarágua onde encontrou as possibilidades de ser efetiva. O envolvimento de diversas comunidades na luta insurrecional estimulou o trabalho das CEB e desde 1976 uma variedade de padres católicos estrangeiros começaram se envolver de diversas maneiras no movimento guerrilheiro nicaraguense. Um dos ícones desse “sacerdócio insurreto” foi o padre Gaspar García, de procedência espanhola que resolveu pegar em armas e coordenar ações estratégicas na frente sur (uma das maiores células organizadas pela guerrilha). Em poucos anos, o padre Gaspar era um dos cinco guerrilheiros mais procurados pela GN, sendo assassinado durante uma operação militar em dezembro de 1978 (MAREGA, 1982; CARDENAL, 2012). 95 Violeta Chamorro, viúva de Pedro Joaquin Chamorro, começa a ser reconhecida publicamente durante as passeatas de repudio contra a repressão que foram motivadas pelo assassinato de Pedro Joaquin. Nos primeiros anos após o triunfo revolucionário, Violeta integra a primeira coalizão de reconstrução, mas desiste de continuar dentro depois de vários conflitos com o sandinismo. Anos depois, ao calor das negociações para um cesse ao fogo no final dos anos 80, ela se junta a uma coalizão de oposição contra o governo revolucionário, cuja plataforma consegue derrotar à FSLN nas eleições de 1990. Violeta Chamorro governou a Nicarágua entre 1990 - 1996

158 podía tomar contacto con la AMPRONAC de Managua. Al principio resultaba elegante estar en AMPRONAC. Estaba de moda. Eran mujeres de la alta burguesía, casi todas. La primera reunión parecía un desfile de modas, se sentía perfume francés” (1991: p. 42. Testemunho de Cela Diaz de Porras, reproduzido por Murguialday em Nicaragua, Revolucion y Feminismo)

O pluralismo vivenciado no interior de AMPRONAC, apesar de ser altamente estratégico para estimular, por primeira vez, a mobilização das mulheres, era também a principal fonte de tensões dentro da associação, particularmente pelo fato de que várias ativistas de AMPRONAC militavam simultaneamente na FSLN, sem contar a própria militância de Guido e Carrión. Começando 1979, a repressão da ditadura era cada vez mais intensa. Mas a reação popular perante

cada

ataque

era

imediata, de forma que as principais viviam

cidades combates

praticamente todos

do

país

armados os

dias.

Nesse contexto, tomam formas diversos repertórios de luta, Icônica foto do “muchacho molotov” no interior do país, na cidade Estelí (norte da Nicarágua) poucos meses antes da insurreição de Julho de 1979 (Foto: Susan Meiselas, Arquivo Magnum)

para além da armada, como greves nacionais, levantamento

de barricadas nos bairros, ataques de bombas caseiras, e até mesmo ocupação de terras, colocando em discussão por primeira vez a questão da concentração de propriedades no interior do país. Nesse contexto, todas as organizações, incluindo a FSLN, juntaram-se em duas grandes redes que iriam a acompanhar a ofensiva definitiva para derrubar a ditadura. Essas duas redes foram a Frente Amplia Opositora (FAO) e o Movimento Pueblo Unido (MPU). Na primeira, a missão era o fim da ditadura para a convocatória de novas eleições nas quais Somoza não iria participar, enquanto no MPU, a aposta era de mais longo prazo. Nesta última, a proposta girava em torno da criação de um modelo de recomposição da propriedade privada, uma vez se alcançasse a revolução popular.

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Isto colocou um sério dilema no interior de AMPRONAC. Não se tratava apenas de optar por uma rede específica, mas de declarar qual é a compreensão de sociedade à qual AMPRONAC era adepta. Mas isto gerava sérios conflitos internos, até porque um bom número das ocupações de terra, que o MPU apoiava abertamente, era feita por mulheres ativistas de AMPRONAC, associação que também incluía mulheres proprietárias, afetadas pelas ocupações. Durante a pesquisa para esta tese, conversamos com Gloria Carrión, quem conseguiu explicar como viveram esta tensão que, ineditamente instaurava o debate sobre que tipo de relação iria ser construída entre as mulheres organizadas com a FSLN: “Nosotras votamos por adherirnos al MPU. Ya en enero de 1979 Lea y yo anduvimos en Costa Rica, Panamá y EEUU como miembro del MPU denunciando al régimen. Esa decisión causó un sismo en AMPRONAC y hubo renuncias de gente, hasta manipulación de algunas terratenientes de occidente que querían que AMPRONAC no votara en esa asamblea por el MPU. A mí y a Lea, incluso, nos dijeron públicamente que éramos del FSLN y que estábamos manipulando a la organización. Como debes entender, en ese entonces decir públicamente que eras del FSLN, era prácticamente una sentencia de muerte. Y claro, el conflicto es porque (en AMPRONAC) había mezclados campesinas con terranientes y clase media. AMPRONAC se une al MPU, pero fue un momento muy importante que definió claramente nuestras relaciones con el FSLN. Y éste no era un tema menor para nosotras. Recordá que el movimiento social sale de una orientación del FSLN, pero el FSLN no orientó al movimiento social. La orientación del FSLN fue caminando y avanzando para una cosa más grande, pero nunca se planificó ni se pensó que iría a ser lo que llegó a ser. En ese momento, también fue interesante porque tuvimos la discusión del derecho a ser militante (da FSLN), sin ser una manipuladora. Discutimos el tema de la militancia (na FSLN) de forma abierta. La mayoría en AMPRONAC no eran militantes, al inicio solo éramos dos, lo que pasa es que como esto fue creciendo, mujeres militantes de otras tendencias se fueron uniendo. Pero la mayoría era gente nueva, de base que no tenía ningún tipo de colaboración ni militancia”.

Esse era o debate que dominava na organização quando em Julho de 1979, Somoza foge do país e é decretada euforicamente a revolução popular. O triunfo revolucionário alterou por completo o estado, as relações políticas e os modelos organizativos até então conhecidos. Ao obter o poder quase de forma imediata, nos primeiros anos de 1980, o movimento guerrilheiro instaura um modelo de estado protetor, altamente centralizador e hierárquico. A Direção Nacional da guerrilha, por exemplo, se transforma na Direção Nacional (DN) do estado e o estilo de disciplina militar domina as relações entre governo e sociedade.

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Neste contexto, AMPRONAC é desintegrado pelo estado revolucionário e, no seu lugar, instaura-se a nova rede de mulheres, Asocación de Mujeres Luisa Amanda Espinoza, AMNLAE (em homenagem à jovem guerrilheira assassinada em 1970), que funciona sob controle absoluto do estado sandinista, mas é também o momento em que o feminismo europeu (evidentemente atraído pelo sucesso revolucionário) circula livremente e cria raízes no país. É disso que trataremos na seção a seguir. 3.3. AMNLAE vs Sindicatos. Espraiando um feminismo fora dos contornos da rede única

Passada a euforia do triunfo revolucionário, os desafios da FSLN para

reconstruir

Nicarágua,

após

a 45

anos de um regime ditatorial repressor e quase dez de conflito armado,

eram

dramaticamente monumentais. O país estava colapsado.

As

indústrias praticamente

Massiva comemoração da revolução popular na manhã de 20 de Julho de 1979, na praça central de Manágua (Foto: Susan Meiselas, Arquivo Magnum)

no chão. As atividades produtivas paralisadas há mais de três anos. Os mortos e feridos, produto da luta insurrecional de 1974 – 1979 somavam já o 15% da população nacional (MURGUIALDAY, 1990: p. 75). Em termos de indicadores sociais, a situação não era menos dolorosa. Segundo estudos da época (WHEELOCK, 1979), praticamente duas de cada três mulheres rurais viviam em condições de miséria e subordinação, enquanto o analfabetismo, que durante o triunfo revolucionário atingia o 50,35% do país inteiro, se concentrava fundamentalmente nas mulheres campesinas em até um 93%. Existiam comunidades rurais onde esse índice aumentava até o 100%. Perante tal cenário, era compreensível que a principal tarefa do novo estado revolucionário estaria centrada na reconstrução social do país, passando por uma forte cruzada de

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alfabetização rural, reativação da produção agrícola e reanimação das indústrias locais. Para tal empreitada, as organizações de massas (sindicatos, docentes, associações de profissionais e mulheres) com que a FSLN já tinha relações consolidadas – construídas na esteira da luta insurrecional dos anos 70 – seriam fundamentais. A palavra de ordem para todas as organizações de massas era que a agenda delas seria, fundamentalmente, “a agenda da revolução”, em outras palavras, aquela que a FSLN designasse. Isso, é claro, tinha impactos para a reorganização das mulheres que já militavam em AMPRONAC. Pairava entre alguns dirigentes sandinistas a sensação de que AMPRONAC era principalmente uma associação de mulheres burguesas que não seriam mais compatíveis com a nova agenda revolucionária, onde o protagonismo teria que pertencer às mulheres obreiras, rurais e trabalhadoras. E embora fosse a própria FSLN que criou AMPRONAC no período mais duro da luta contra a ditadura, parecera que o desconhecimento das outras duas tendências à legitimidade de AMPRONAC conspiraria contra sua existência. Foi assim que, quinze dias depois do triunfo revolucionário, a FSLN resolve desintegrar AMPRONAC e orientou a formação da nova AMNLAE. A comunicação entre as diversas estruturas da organização (AMPRONAC/Manágua com os territórios, por exemplo) foi cortada, devido a que as estruturas das organizações de massas em todos os municípios ficariam sob o controle do Secretário Político da FSLN. No ínterim, Lea Guido é designada como ministra de Bem-estar Social, enquanto Gloria Carrión ficou na liderança nacional de AMNLAE. Durante os primeiros anos do novo governo, Carrión realizou consultas nas estruturas municipais da rede para dilucidar qual seria o campo de atuação das mulheres no contexto revolucionário. Mas em paralelo, a DN da FSLN já tinha convocado a todas as organizações de massas a uma assembleia onde orientaram qual seria o campo de atuação de cada uma. À AMNLAE correspondeu instaurar brigadas de saúde nos municípios, e Carrión entende que essa pauta ainda era passível de debate dentro das estruturas da organização, resolvendo continuar a consulta municipal. Em 1981, a FSLN resolve punir Carrión, argumentando que não estaria obedecendo à linha de atuação pautada pelos dirigentes. Foi o momento quando ela enfrentou o primeiro processo administrativo por parte da Secretaria de Organizações de Massa que funcionava no novo estado: “Me levantaron una acusación en el secretariado, de que estaba desacatando la orden bajada de la DN del FSLN (…). Me sacaron de la Secretaria General de AMNLAE y me mandaron a

162 Jinotega (norte do país) y fue asi que designaron a Glenda Monterrey en la Secretaría General. Hay quienes después dijeron que ese era un conflicto de las tendencias porque la Glenda era de la GPP y yo era de la TP y en ese momento había una cierta corriente subterránea que se dio después de la revolución. Acordate que las tres tendencias se unen para derrocar a Somoza, pero después de la revolución se instauró la DN que, según se manejaba, era para evitar las luchas de tendencias. Lo que después me entero es que en lo que me hicieron a mí, se mezclaron las cosas”.

Ao longo dos primeiros anos, AMNLAE enfrentava o grande desafio de pautar suas ações estratégicas pelos interesses das mulheres. Dois fatores contribuíram para que, em menos de três anos, se frustrassem todas as expectativas ao redor dessa capacidade. Por um lado, o forte controle da DN da FSLN sobre o âmbito de atuação de AMNLAE, associado à falta de experiências na região que pudessem auxiliar na implementação de um ativismo feminista, fez com que a rede não respondesse às mulheres de forma estratégica. Tanto fazia se hoje atuava na formação de brigadas de saúde, depois na Cruzada de Alfabetização, em seguida no reforço da instauração dos Comitês de Defesa Sandinista. A atuação meramente conjuntural acabava gradualmente com sua capacidade estratégica. Por outro lado, como as atoras do campo insistiram durante nossa pesquisa, com o tempo AMNLAE decantou-se por interesses setoriais que não conseguiam abarcar a diversidade dos interesses das mulheres. A visão que o governo revolucionário tinha ao redor do papel das mulheres na revolução, determinou que AMNLAE ficasse apenas focada em trabalhar com as mães dos heróis (os jovens mortos tanto na luta insurrecional como no confronto armado contra a contrarrevolução dos anos 80) nos bairros periféricos. O resto de mulheres, profissionais, trabalhadoras agrícolas e jovens, não encontrou aqui suficientemente reconhecimento. Em resposta a essa carência de representação, as mulheres começaram a ampliar sua influência nos espaços sindicais. A Central Sandinista dos Trabalhadores (CST) e a Associação de Trabalhadores do Campo (ATC) consolidaram-se, nos primeiros dois anos da revolução como as duas centrais sindicais mais importantes do setor público. A orientação da FSLN de criar as respectivas Secretarias das Mulheres em ambas as centrais, foi o melhor momento que as feministas encontraram para instaurar aqui o que não podiam encontrar em AMNLAE. Feministas como Maria Teresa Blandón e Ana Criquillon (da ATC) e Sandra Ramos (CST), colocaram grandes esforços para que os sindicatos respondessem às demandas

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das mulheres trabalhadoras, sem questionar tão abertamente a liderança que AMNLAE representava para a DN. E nisso, as feministas – e principalmente as teóricas feministas – europeias (espanholas e francesas) que chegaram à Nicarágua, atraídas pelo projeto revolucionário, foram fundamentais. Em pouco tempo, as jovens Secretarias das Mulheres de ambas as centrais sindicais começaram a implementar uma série de projetos como a criação de clinicas de saúde sexual e reprodutiva para atender as trabalhadoras agrícolas, creches que funcionavam especialmente nos período de coletas de café e algodão, assim como o desenvolvimento de uma série de cursos de formação em feminismo e mundo laboral que estariam sendo lecionados por estudiosas espanholas. Um dos depoimentos que obtivemos durante nossa pesquisa de campo, resulta bastante explicativos sobre essa dupla estratégia experimentada pelas feministas. Ana Criquillon, quem na época coordenava os projetos feministas da ATC, tem origem francesa e chegou à Nicarágua em 1973, pouco antes dos anos violentos da luta insurrecional. Nos primeiros anos, Criquillon se envolveu em grupos de reflexão feministas nas CEB dos bairros orientais de Manágua, mas teve que deixar o país em 1978 por causa de compromissos conjugais. Só retornou ao país pouco depois do triunfo revolucionário e em 1983 entrou num dos projetos da Secretaria da Mulher na ATC. Criquillon elabora suas reflexões, considerando a relação com AMNLAE e o tipo de estratégias costuradas dentro da ATC: “(..) la revolución había cuestionado que las mujeres fuéramos solamente para el hogar, la reproducción y la familia. Esa parte ya estaba bien incorporada. Lo que la revolución no abordó fue el tema de la relación hombre-mujer dentro del hogar ni en términos del trato, ni de la división sexual del trabajo o de la participación en la toma de decisiones ni nada de eso. Entonces lo que se comenzó a hacer desde las Secretaría de la Mujer de los sindicatos era evidenciar la contradicción entre lo que pretendían lograr en relación a lo de afuera, con lo que implicaba para dentro. Y eso sí era subversivo, lo que pasa es que el tiempo fue demasiado corto para lograr más cosas. Ya estamos hablando que tuvimos esa conciencia en 1986 y ya en 1989 acabó todo. En 1989 que vino el fin formal del conflicto con la contrarrevolución. Los hombres regresaron al trabajo y se da un reflujo de las mujeres a sus antiguos lugares. No exactamente a lo mismo porque a nadie se le borró todo lo que había pasado, pero en términos de políticas públicas no hubo un intento de frenar ese retroceso. Entonces, nuestra estrategia era ésa, porque las centrales sindicales y las organizaciones de masas tenían más fuerza política que AMNLAE. Más poder político. La idea era subirse a ese

164 caballo porque ese era el ganador, y al mismo tiempo influenciar a AMNLAE desde dentro pero por fuera”

A estratégia deu certo parcialmente. AMNLAE não experimentou nenhuma reforma profunda em termos estratégicos, mas assumiu consciência das suas limitações depois que as mulheres trabalhadoras do setor público, muitas delas já com um discurso ineditamente feminista, apontaram os principais problemas da relação com a FSLN durante a II Assembleia Nacional de AMNALE. Neste evento as feministas levantaram diretamente às reclamações aos representantes da DN que não aceitavam os argumentos das trabalhadoras. O embate estava centrando em que a FSLN não permitiria que AMNLAE se distraísse das questões centrais “da classe obreira, a produção agrícola e a atenção às mães dos mártires” para se envolver numa “batalha dos sexos” (MURGUIALDAY, 193 – 204). Para as feministas (principalmente as das centrais sindicais) a questão central era decidir como o estado respondia às novas necessidades geradas pelas mulheres camponesas que assumiam dupla jornada de trabalho (na roça e no lar) quando os homens estavam na frente de batalha, ou quais mecanismos de punição poderiam ser aprovados para o caso dos assédios sexuais nos períodos de coleta. Este embate nunca foi resolvido, embora a DN da FSLN se comprometesse a criar uma comissão que analisaria as alternativas possíveis. Contudo, o processo de consulta para a Constituinte de 1986 canalizou boa parte dessas demandas. AMNLAE liderou o processo de consulta para incorporar na nova Constituição revolucionária os temas centrais para as mulheres. O resultado do processo espantou mais uma vez à DN Sandinista. Alguns pontos como a criminalização da violência contras a mulheres, o reconhecimento da união estável, o direito da mulher sobre seu próprio corpo e os castigos aos assédios no mundo laboral foram apresentados à nova Assembleia Constituinte. Apesar de que os legisladores não compraram inteiramente o pacote feminista, alguns elementos já foram incorporados, tais como o divorcio unilateral e o reconhecimento de direitos de união estável. Se bem os avanços na nova Constituição geraram um sentimento eufórico nas feministas, o conflito com a DN da FSLN pelas posições divergentes sobre a representação dos interesses das mulheres perdurou até os últimos anos do período revolucionário. Na visão majoritária da DN da FSLN (todos homens) não faria sentido que as mulheres procurassem canais de representação especifica dos seus interesses (como estava sendo feito nas Secretarias das Mulheres, por exemplo) posto que já as mulheres tinham a sua disposição todos os canais que

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o estado e a revolução ofereciam. Conforme esta visão, as mulheres fazem parte de uma classe (geralmente obreira e trabalhadora) e é no marco dessa classe que os direitos são pensados. Para as feministas, cuja visão era minoritária nas estruturas orgânicas dentro da FSLN (praticamente só um membro da DN, Carlos Núñez), os interesses das mulheres são altamente diversos e cabe a AMNLAE responder a eles desde uma perspectiva menos orgânica e segundo as reivindicações elevadas pelas mulheres. Pensar a autonomia das organizações nesse contexto de embates e centralização é, no mínimo, instigante. E esta tese deve muito ao trabalho de Murguialday quem apenas começando 1990, e poucos meses antes das eleições nas que a FSLN perdeu o poder, arriscou algumas considerações preliminares sobre que tipo de experimentação da autonomia era essa: “La cuestión de la Autonomía no ha sido irrelevante en la dinámica de AMNLAE. En Nicaragua, la trayectoria de las organizaciones populares ha estado caracterizada por un progresivo acceso a ciertos niveles de autonomía respecto al FSLN y al Estado, y la asociación femenina no ha sido ajena a esta evolución. Desde su inicio, las líneas de trabajo y las dirigentes han sido designadas por la dirección del FSLN, lo que no ha impedido que en ocasiones puntuales (…) hayan tenido desacuerdos con posiciones de la dirección sandinista, en particular desde que asumieron con más interés las reivindicaciones de las mujeres y se tornaron permeables a los enfoques feministas. Una cierta autonomía en el terreno ideológico y político ha ido abriendo el camino a la autonomía organizativa, que avanzará notablemente en 1990 con la elección democrática de las dirigentes del movimiento”. (MURGUIADAY, 1990; p. 276)

3.4. Das maiores tensões com a FSLN e “aventura” do PIE

Como podemos perceber até aqui, os conflitos entre as feministas e a direção da FSLN já eram latentes desde 1987, ao redor de duas questões centrais: Qual é o papel das mulheres na defesa da revolução e até que ponto AMNLAE representava os interesses das mulheres sandinistas. Com relação ao primeiro ponto, esse embate não gerou maiores tensões, devido a aceitação das organizações de massas à condução da FSLN com relação à agenda revolucionária. A militância sandinista reconhecia a condução da FSLN na preservação da revolução popular, mas isso não eliminava as inconformidades das mulheres ao ver limitada sua capacidade de contribuir estrategicamente, particularmente no campo militar.

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Por exemplo, as mulheres nunca foram consideradas para serem mobilizadas no conflito civil que foi de 1982 a 1987 contra a contrarrevolução (o contingente armado apoiado inteiramente por Washington), apesar das demandas de um grupo de mulheres que tinham se engajado na luta insurrecional poucos anos antes. Já as que desenvolviam trabalhos estratégicos no Exército Popular (como foi o caso da ex - guerrilheira Letícia Herrera), eram rapidamente deslocadas para trabalhos menos estratégicos e mais orgânicos (nas secretarias políticas do partido, por exemplo) uma vez concluíam suas funções militares. Praticamente toda a contribuição que as mulheres fizeram para a reorganização do Exercito Popular Sandinista nos anos 80 era invisível. Já no segundo ponto, sobre o papel de AMNLAE e a falta de representação dos interesses das mulheres, a questão era ainda mais polêmica, como vimos na seção anterior. Na falta de conciliação de visões, novos arranjos autônomos da FSLN começaram a surgir após a Assembleia Sandinista de 1987. Dois deles chama nossa atenção. Por um lado, feministas das cidades do interior do país que não se reconheciam na representação de AMNLAE, e nem nas Secretarias da Mulher nas centrais sindicais, começaram a criar os primeiros coletivos de mulheres nos territórios. Os coletivos de mulheres foram espaços criados por feministas locais que pretendiam experimentar novas formas de organização mais próximas das comunidades, particularmente oferecendo serviços as mulheres nos pequenos municípios, mas também experimentando novas formas de feminismo local. É nesse contexto que surgem os coletivos de mulheres de Matagalpa (norte), Masaya (sul) e León (ocidente), totalmente independentes das orientações sandinistas e da intermediação de AMNLAE. Essa experiência, aparentemente, gerou algumas preocupações na cúpula do estado – e do partido – sandinista. É, ao menos, o que podemos deduzir da Proclama que em 1987 a FSLN emitira explicitando sua visão oficial ao redor da diversidade de expressões que estariam surgindo para além da AMNLAE. Nesse documento, a FSLN assumia compromissos de responder a todas as demandas feministas, mas só quando o conflito armado com a contrarrevolução concluísse. Isto, obviamente não satisfez as exigências feminista que, de maneira provocativa, sugeriram a criação de um novo partido integrado inteiramente por mulheres.

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A iniciativa chamada de Partido de la Izquierda Erótica (PIE) surgiu de um grupo de feministas (algumas da ATC, quase todas integrantes de AMNLAE, mas críticas à rede) que participaram da IV Conferência Feminista Latino-Americana em Taxco, Mexico. O encontro regional versou sobre as capacidades de autogestão das feministas latino-americanas, de forma que algumas das reflexões em torno deste ponto poderiam ter influenciado na definição da proposta de fundar o novo partido. Foi com essa determinação com que as feministas retornaram à Nicarágua. O PIE foi uma iniciativa que reuniu a feministas como Ana Criquillon, Milú Vargas, Sofia Montenegro, Vilma Castillo, Alba Palacios, Olga Espinoza, Rita Arauz, María Lourdes Bolaños, Ivonne Siu e a escritora Gioconda Belli. A maioria delas (excetuando Palacios e Arauz) não mantém mais relação com a FSLN, cujas rupturas foram se acentuando ao longo dos anos 90, como veremos no capítulo a seguir. O debate dentro deste grupo de feministas era ate que ponto a falta de resposta por parte da FSLN legitimava a formação de um partido paralelo, em termos reais, ou apenas como uma maneira de pressionar para obter mudanças mais radicais no interior do sandinismo. Mas como bem lembrou Criquillon para a nossa pesquisa, o mais importante era enviar mensagens à FSLN de que já começavam a pipocar expressões feministas fora da AMNLAE que a DN não poderia mais controlar: “Lo importante de todo eso es que ya había inquietud, sí, dentro del FSLN, de que había una fuerza feminista acumulada que se comenzaba a notar, fuera de su control. A muchos no les gustaba para nada y otros no lo veían esto como real. Algunos miembros de la DN hasta veían esto con simpatía. Por ejemplo, Carlos Núñez que en esa época estaba casado con Milú Vargas no le veía ningún problema de que se formulara lo del PIE, de hecho, nos apoyaba, se hacían las reuniones en su casa, etc. Luis Carrión tampoco estaba alejado, le parecía simpático”

A iniciativa do PIE não foi mais do que uma aventura, instigante por sinal, mas que naufragara nas bravas correntezas da transformação conjuntural que a Nicarágua – e toda a região da América Central – começara a experimentar aqueles anos. O governo revolucionário, e praticamente o presidente Daniel Ortega, foi empurrado a negociar o cesse do conflito com a contrarrevolução, como uma condição para reestabelecer a estabilidade na região mesoamericana. Um primeiro resultado deste processo de negociação foi o chamamento a eleições onde a FSLN perdeu o poder, e por tanto se deu por decretado o fim da revolução popular. A

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sensação de perda se impôs no sandinismo dramaticamente, superando por um momento todas as tensões internas que se viveram poucos anos antes, e nisso a proposta do PIE não foi mais pra frente. As urgências do feminismo nos anos 90 foram outras, igualmente desafiadoras. Disso vamos tratar no capítulo a seguir. ***************** A nossa intenção com este capítulo foi estabelecer uma primeira trajetória que mostrasse as relações entre as mulheres organizadas e a Frente Sandinista (FSLN), desde sua origem. Como conseguimos observar, apesar de que a interação entre ambos os atores foi de coordenação em um bloco só (um movimento guerrilheiro, altamente disciplinado e hierárquico), a relação estava traçada por tensões desde a própria origem. As dificuldades surgiram por causa dos receios do movimento guerrilheiro ao redor das capacidades das mulheres de se envolverem na luta armada. E ainda assim, quando elas conseguiram entrar no movimento, as dificuldades de atuação eram imensas. Por um lado, as mulheres desempenhavam as funções que melhor se adequavam aos preconceitos machistas da época, isto é, elas limpavam os aparelhos, tomavam conta da alimentação dos guerrilheiros e das casas de proteção para assegurar a subsistência da clandestinidade. Apesar da dificuldade no ativismo armado, a FSLN também estimulou outro tipo de ativismo ao orientar a formação de um comitê que, com os meses se transformou em AMPRONAC. No plano da literatura especifica do movimento de mulheres da Nicarágua, e na fala das atoras no campo, AMPRONAC é reconhecida como a primeira organização que se mobilizou no país, ao redor de pautas estabelecidas meramente pelas mulheres. Mas sua origem de classe, associado ao vínculo das dirigentes de AMPRONAC com a FSLN suscitou diversas tensões internas entre as próprias ativistas. Com o triunfo revolucionário de 1979, a FSLN começa a exercer um forte controle centralizado sobre todas as organizações de massas, incluindo mulheres. A cúpula do estado revolucionário resolve desintegrar AMPRONAC e orienta a formação de AMNLAE como a nova rede única. O problema é que, principalmente por causa da visão setorial que a FSLN impõe sobre AMNLAE (focada nas mulheres obreiras, mães dos mortos, etc) a rede foi perdendo gradualmente centralidade, na medida em que o feminismo começava se consolidar como uma corrente de pensamento e atuação por parte das organizações de mulheres.

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Finalizando os anos 80, se instaura uma nova tensão entre as “novas feministas” e a DN sandinista. Aos poucos, as feministas começam se distanciar de AMNLAE sem atacá-la diretamente, mas cobrando da FSLN uma ampliação dos canais de representação. Na falta de conciliação de visões, as feministas começam a experimentar novos arranjos organizativos, através de coletivos locais, e até surge a iniciativa de criar um novo partido inteiramente feminista. Este último ponto nos chama fortemente a atenção. Por um lado, nos informa sobre a vocação partidária que está presente no código genético do feminismo nicaraguense, fazendo com que as organizações consigam se relacionar tranquilamente com os atores partidários hoje em dia. Mas também nos revela sobre a características altamente heterogênea destas atoras. Nem a AMNLAE, mas tampouco o PIE, nem as Secretarias da Mulher nas centrais sindicais ou os coletivos locais foram reconhecidos como os representantes únicos do feminismo nicaraguense. Tudo pelo contrario, isso tudo revela uma espécie de diversificação de formas organizativas, cujos modelos e alternativas dominaram o debate do feminismo nos anos 90. Em definitiva, o que resta de todo esse debate é a constatação de que, se por um lado a FSLN foi bem sucedida em estimular o ativismo das mulheres – e por consequência do feminismo no país – ele fracassou em alterar as iniquidades nas relações de gênero, esquecendo assim sue próprio Programa Histórico. É o que podemos extrair das reflexões de Sara Henríquez, uma das líderes do Coletivo de Mulheres de León, no ocidente do país, com quem conversamos durante nossa pesquisa de campo: “Eso no pasó porque ésta fue una revolución de machos. Una cosa es la lucha revolucionaria, en donde las mujeres nos vamos a pelear contra una dictadura y ese era el objetivo. Ese fue el foco, siempre tuvimos claro de que nuestro objetivo era derrocar al dictador, pero sobre un montaje patriarcal. ¿Qué cambio ibas a pedir, si todo venía de los machos y cuántos abusos no se cometieron? La revolución también fue eso. Las mujeres no teníamos conciencia de género, ni teníamos bien claro lo del feminismo. Yo me acuerdo que esto lo aprendí después de la revolución. Eso requirió mucha educación, pero los estudios de género son demasiado recientes. En definitiva, la revolución fue macha”.

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Cap. 4. Gênero e Neoliberalismo. O momento da incisão vital e o sandinismo fraturado

As tensões não resolvidas entre as feministas e a Direção Nacional da FSLN, por causa da falta de espaços e mecanismos suficientemente capazes de veicular as demandas das mulheres (considerando o fracasso de AMNLAE), teve impactos altamente críticos para a relação que ambos iriam manter após a derrota eleitoral do projeto revolucionário. Todos os sandinistas, e não apenas a FSLN, mas a amplidão da militância que tinha contribuído com a defesa da revolução ao longo dos anos 80 viveram o resultado eleitoral de fevereiro de 1990 – e as transformações suscitadas – com uma “sensação de luto” (KAMPWIRTH, 2006) desde que os setores e organizações (sindicatos, mulheres, docentes, etc) perderam o referente ideológico central que tinham no estado para gerar mudanças nas que inscreveriam seus projetos de justiça social. O abatido e emblemático discurso que o presidente Daniel Ortega ofereceu um dia depois das eleições, anunciando que aceitaria a derrota eleitoral a custas de truncar o projeto revolucionário, mas prometendo que a “FSLN gobernaría desde abajo” tinha a intenção de enviar uma mensagem às organizações de massas e seus aliados setoriais de que o sandinismo manteria o poder nas ruas no decorrer da consolidação do seu novo papel opositor. Não que a FSLN fosse inexperiente em estratégias de oposição e confronto, mas à diferença da luta insurrecional dos anos 70, o desafio nesta ocasião estava representado em adotar as novas regras do jogo que descartassem a luta armada como opção. Perder o poder (conquistado pelas armas) no meio de um jogo pacífico de caráter eleitoral impôs um desafio monumental ao futuro do sandinismo organizado. E no caso da FSLN, esse desafio implicava aprender a ser partido político de oposição, depois de ser um movimento guerrilheiro que manteve o poder formal (LUCIAK, 2001). Para complicar sua condição, tal aprendizado se daria num contexto de um fraco sistema de partidos. Mas os desafios para todo o espectro sandinista eram totalmente diversos. Mesmo que a sensação de perda fosse compartilhada por todos, no caso das feministas nicaraguenses experimentavam-se sentimentos praticamente contraditórios. Todas as ativistas reconheciam que o novo governo de Violeta Chamorro ocasionaria uma regressão dos direitos conquistados pelas mulheres no marco da Constituinte de 1986, mas ao mesmo tempo a falta

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de acordos com a FSLN por causa da ineficiência do estado sandinista em atender às demandas feministas fazia com que agora as organizações pudessem se sentir “mais livres” de decidir qual seria seu próprio esquema organizativo, desde o qual elevariam as demandas ao novo estado. De certa forma, as reclamações das feministas têm reconhecimento no comportamento eleitoral de 1990. Como Bab (2012) confirmou anos mais tarde, a maioria dos eleitores de Chamorro foram mulheres, provavelmente mães ou companheiras de homens jovens que tinham sido assassinados, ou no mínimo mobilizados compulsoriamente no Serviço Militar Patriótico (SMP), durante os anos do conflito armado contra a contrarrevolução. As condições de pósguerra

que

enfrentava

o

país

para

uma

reorganização social eram altamente complexas. O conflito entre o governo revolucionário

e

a

contrarrevolução acabou com a vida de 30, 865 nicaraguenses entre 1985 Ato de posse da Presidenta Violeta Chamorro em abril de 1990. Ao lado, Daniel Ortega após entregar o mandato (Foto: Arquivo La Prensa)

1989,

aos

acrescenta aproximado

que

se um

de

50,000

mortos e desaparecidos durante a luta insurrecional contra a ditadura somozista entre 1974 – 1979 (Walker, 1997 apud LUCIAK, 2001). A disponibilidade de pouquíssimos recursos para responder às demandas dos desmobilizados de guerra por terra e crédito, também colocava grandes obstáculos para a transição do conflito civil ao jogo democrático. A desmobilização da contrarrevolução e a redução significativa do Exército Popular que existia na década sandinista concluíram em julho de 1990 com a promessa (referendada pela OEA) de que todos os desmobilizados teriam acesso a uma rede de proteção como moradia, saúde, emprego, escola e apoio ao seu amplo processo de inserção na vida civil. O projeto inicial era criar polos de desenvolvimento.

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O problema para cumprir as promessas foi de limitações de recursos econômicos, por um lado, e de que algumas terras que já estavam destinadas para tais polos começaram a ser ocupadas por desmobilizados que provinham da base sandinista, por outro. Esta situação deixou os “ex-contras” sem clara capacidade organizativa, associado à frustração que já experimentavam ao perceber que o triunfo eleitoral de Chamorro não significou um reconhecimento deles como novo Exército Nacional 96. Um dos maiores conflitos da transição era a questão da propriedade. Segundo estimativas oficiais, em 1992 mais de 165,000 propriedades rurais estavam sem títulos, nem reconhecimento oficial (STANFIELD, 1992, p. 20). Esta situação não era totalmente surpreendente. A revolução sandinista tinha modificado por completo a estrutura de propriedade no país: ao redor de 50% de propriedade produtiva foi produto da reforma agrária. As grandes fazendas foram reduzidas de 36.2% a 6.4% priorizando novas formas de relação produtivas, particularmente de cooperativas rurais. Com o fim da revolução sandinista, esta situação levou um rumo dramático. A desapropriação, melhor conhecida como a piñata 97 no período da transição entre Ortega e Chamorro fez com que entre março e abril de 1990 fossem tituladas aproximadamente 695, 732 acres de terra a favor de 8,583 famílias, muitas delas próximas à cúpula da FSLN. Este episódio acabou com a reputação das autoridades sandinistas e cobriu o processo de inserção civil de muita insegurança. Essa foi razão pela qual os grandes momentos de instabilidades políticas no país foram por causa das ocupações de terras por parte dos desmobilizados entre 1990 e 1996. Não só os desmobilizados de guerra sofreram profundamente para conseguir a inserção na vida civil e produtiva. Um amplo setor das bases sandinistas também enfrentou tremendas dificuldades pela subsistência no cenário mais cruento do período no liberal. O encolhimento do estado, como parte do amplo pacote de reformas estruturais pactuadas com o FMI e Banco

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Para Luciak (2001), o problema da contrarrevolução foi que, como grupo de insurgência dos anos 80, não tinha objetivos mais amplos do que derrubar o governo sandinista. Ao FSLN perder o poder pela via eleitoral por uma coalizão de 14 partidos de direita liderados por Chamorro, fez com que eles fossem marginalizados no processo de transição pós-revolucionária. 97 A “piñata sandinista” é chamada à aprovação de um pacote de três leis que a FSLN introduziu no Legislativo poucos dias depois que perdeu e as eleições de 1990. As leis tinham a intenção de legalizar a reforma agrária feita pelo governo revolucionário e a entrega de empresas estatais aos trabalhadores, mas a cúpula do partido ampliou os benefícios e conseguiu que boa parte dessas propriedades (mansões e empresas que tinham sido expropriadas pelo estado revolucionário) fossem parar nas mãos dos dirigentes sandinistas, lideranças intermédias e suas famílias. As leis se aprovaram semanas antes da posse de Chamorro. Para detalhes, recomendamos Santiuste (2000), Luciak (2001) e Puig (2012).

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Mundial aprovado pelo governo de Chamorro, expulsou 300 mil servidores públicos dos postos de trabalho em 1992, dos quais mais do 50% eram mulheres, incrementou a cifra de subemprego em até 45% e empurrou a migração de 700 mil nicaraguenses (BAB, 2012: p. 162 – 165). Se bem sua administração foi altamente restritiva em termos de políticas sociais e manutenção das redes de proteção que já existiam no governo revolucionário, a presidenta Chamorro foi fundamental para a reconciliação social no período de pós-guerra. Com a saída da FSLN do poder, vários exilados começaram a retornar ao país (a maioria provinda de México e Miami) que não só obtiveram benefícios no novo governo liberal, como espalharam uma sensação de rejeição aos membros da base sandinista que tinham sido expulsos do setor público e nem conseguiam emprego no mundo privado. A mácula da piñata foi rapidamente associada a ser sandinista, isso quando não eram vinculados com o passado conflitivo de guerra que o país sofreu entre 1984 – 1989. María Teresa Fernández, hoje a coordenadora nacional da CMR (a maior rede de mulheres rurais do país) sofreu entre 1990 – 1991 os efeitos combinados dessa rejeição. Durante o governo revolucionário, Fernández era funcionaria de baixo escalão no Banco Central, até que em 1984 ela é orientada pela DN da FSLN a se “profissionalizar” politicamente, isto é, virar um quadro chave do partido na cidade. Suas funções, desde essa posição, era organizar os comitê de base sandinista dentro de um distrito da cidade, na maior área de abrangência que o partido tinha em Manágua. Fernandez chegou a ser diretivo do Comitê Distrital partidário, mas, como ela nos relatou durante a nossa pesquisa de campo, teve que abandonar esta posição, pouco depois da derrota eleitoral de 1990: “Me tuve que separar del FSLN por problemas familiares. Mi esposo estaba desempleado y mi hijo enfermo que necesitaba una operación muy cara. Entonces ya no podía seguir de voluntaria porque mi familia me necesitaba. Pero nadie me quería dar trabajo. En los años 80 fui una política del FSLN y en los lugares donde iba no querían políticos quemados, así me lo dijeron. En ese tiempo ya estaban organizando el Interbank y como yo tenía la experiencia del banco, un colega de los tiempos de aquellos años con quien yo estaba en las instancias asociativas, ya estaba en el Interbank y me dijo que llegara. Pero al hablar con el gerente, me dijeron que no querían políticos quemados. Yo me encontraba con compañeros que habían sido de la comisión de gobierno en el distrito que andaban desanimados porque nadie les quería dar trabajo, sintieron que nadie les quería dar la mano. Y casi sólo me encontraba

175 hombres porque las mujeres se fueron a sus casas. Yo entonces decidí que no iba a buscar más a ningún sandinista y que iba a resolverlo de mi propia manera”

As penúrias de Fernández continuaram por alguns meses de 1991. Durante quase todo esse ano virou vendedora ambulante de livros e revistas e complementava com alguns bicos de recepcionista em pequenas empresas de amigos. Nos últimos meses desse ano, o país começou a experimentar uma fertilidade inédita de associações de sociedade civil. Surgem ONG, associações, redes e movimentos feministas altamente profissionalizados que começaram a implementar projetos com mulheres prostitutas, atenção psicológicas para jovens que sofriam violência sexual, operarias de zona franca, etc. Foi essa fertilidade associativa que salvou a Fernandez: “Quien me llamó fue la Lola Ocón, a quien conocía desde los cuadros del FSLN, porque ella había sido voluntaria del zonal 6 del Frente. En el 92 comienzo pues en la Fundación Nimehuatzin. Ahí fue donde ya comienzo a vincularme con el movimiento de mujeres, comienzo a tener el contacto con asuntos que no conocía, como el trabajo con movimientos de gays, lésbicas, etc. La presidenta de la ONG me había delegado funciones para ver varias áreas como investigaciones y comunicaciones. En el FSLN no tuve vínculos con las organizaciones de masas, sino que fui un cuadro completo del partido. Estaba en la escuela de cuadros. Yo tenía un bagaje fuerte de información de toda la estructura, pero no de las asociaciones. En la Nimehuatzin conocí el trabajo de la Ana Pizarro, vi la creación de Sí Mujer, en donde estaba la Lola Ocón, con ideas feministas. Ahí es donde comienzo a reencontrarme con todas esas mujeres que estaban en el FSLN, en estructuras, pero ahora en un mundo en función de un trabajo con el movimiento de mujeres. Es donde me empiezo yo a conocer otras cosas, como los temas de DDHH en los que la Nimehuatzin nos formaba, a tener una mirada al SIDA desde la perspectiva de la gente, etc. El trabajo además era conocer la vida de las mujeres trabajadoras de la calle, y uno entendía lo que realmente le pasaba a ellas”

Esta breve passagem episódica da vida de Fernández nos oferece riquíssima informação sobre o momento difícil de rejeição que vivia a militância da FSLN e o do movimento feminista, praticamente viçoso e vigorando naqueles anos. As pautas das feministas não eram mais decididas pelo partido, multiplicavam-se os ciclos de formação e oficinas em temas específicos das mulheres, criavam-se novas redes e alianças, etc. Enquanto isso, a situação da militância sandinista, de base, não experimentava o mesmo vigor. Muitos ex-servidores

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públicos nunca mais voltaram ao mundo laboral, e quando não emigraram, entraram no mercado informal de trabalho para sempre (BAB, 2012). É esse o contexto no qual se centra este capítulo. Queremos entender o que mudou no movimento feminista a partir da perda do poder por parte da FSLN e qual foi o percurso das relações entre as ativistas feministas e as estruturas partidárias ao longo do período neoliberal, no qual a FSLN batalhava para se consolidar como a maior oposição do país. Para fazer tal análise, dividiremos este capítulo em três subseções. Na primeira vamos a conhecer qual foi o processo que conduziu à definição de novos arranjos organizativos do feminismo nicaraguense, a partir da criação de redes temáticas. É nesse contexto onde, por primeira vez todas as organizações do movimento declaram, publicamente e com todas as letras que são autônomas do estado e dos partidos políticos. Seguidamente analisaremos o processo duro e de transformação profunda que a FSLN sofreu entre 1994 – 1995, que deu origem ao MRS. Uma serie de modificações estatutárias e estruturais (na DN do partido, na Assembleia Sandinista, etc) foram aprofundadas em direção de aumentar o controle de Ortega sobre as decisões chave do partido, fundamentalmente da seleção do candidato presidencial, motivando um afastamento do movimento feminista. E concluiremos este capítulo abordando o episódio mais emblemático do conflito entre a FSLN e o feminismo nicaraguense. Em 1998, Ortega foi acusado de estupro pela enteada Zoilamérica Narváez, num episodio que paralisou o país por completo e motivou um grande racha nas organizações de mulheres, particularmente na RMCV. Esses três momentos correspondem aos outros dois momentos de inflexão que selecionamos no nosso debate metodológico, antes de passar a compreender quais são as dimensões analíticas que queremos propor para explicar a diversidade de fenômenos que surgem na aliança do feminismo nicaraguense com o MRS, subscrita na campanha eleitoral de 2006. 4.1. Das primeiras redes até os conflitos no CNF

Com a derrota eleitoral em fevereiro de 1990, a DN da FSLN não tinha mais o controle das organizações de massas, por tanto, aquele debate sobre a qualidade de representação de AMNLAE que caracterizara os últimos anos do período revolucionário não fazia mais sentido. Os coletivos locais que tinham começado a surgir desde 1988 começaram a se fortalecer e estender suas redes, mas curiosamente a iniciativa do PIE nunca foi para frente.

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Em lugar de debater sobre estruturas partidárias alternas à FSLN, o que as feministas colocaram como pauta central a dilucidar foi qual seria o melhor modelo organizativo que se corresponderia com os interesses das mulheres, tantas vezes adiado no período sandinista. Em outras palavras, sem a direção da DN nem a representação absoluta pretendida por AMNLAE, a primeira inquietação que surge para as mulheres é “como nos organizamos”? Duas alternativas são colocadas em questão. Por influências das feministas europeias que já começavam a providenciar projetos de cooperação internacional para as primeiras organizações descentralizadas, os coletivos locais sugeriram a formação de redes, descentradas e reticulares, que se instaurariam ao redor da agenda temática das mulheres. Já as feministas mais afins à ideia original do PIE (e nessa corrente destacam Sofia Montenegro e Maria Teresa Blandón) o mais importante não era o arranjo em si, mas a dinâmica interna que o distinguiria. Em outras palavras, podem ser redes de organizações, ONG ou qualquer outro tipo de modelo, sempre que tenha um funcionamento interno altamente hierárquico, centralizado e vertical. Pelos depoimentos das atoras, deduzimos que o acento do debate estava colocado na autonomia do feminismo. Isto é, independentemente do modelo a ser escolhido, qualquer decisão que fosse assumida devia girar em torno da autonomia do movimento que estava começando a se configurar naqueles anos. E autonomia com relação a dois atores: FSLN e estado neoliberal. Com relação ao primeiro, existiam certas urgências. As instâncias mais próximas ao partido, como por exemplo, a Radio Ya, emissora que tinha sido criada pela FSLN na primeira semana que entregou o poder a Chamorro, e até mesmo algumas centrais sindicais como a ATC, começavam a difamar as organizações feministas por causa das criticas que as mulheres realizavam sobre AMNLAE. Já com relação ao estado neoliberal, a urgência estava centrada em declarar a autonomia que permitisse ao nascente movimento decidir suas respectivas pautas a partir das quais interagiriam com o estado. É isso o que fica evidente do depoimento de Blandón coletado durante nossa pesquisa de campo: “Yo me mantuve en AMNLAE hasta 1991 que es cuando nos dividimos por causa del tema de la piñata de cómo la dirección nacional de la ATC se coludió con la dirigencia del FSLN para hacer un reparto muy corrupto, muy espurio de las empresas del estado. Prácticamente todas las feministas renunciaron a la ATC. Todas salieron en medio de muchos hostigamiento, de mucha tensión, presión y de mucha hostilidad. Es que dimos la pelea hasta donde fue humanamente posible, al punto incluso de poner en riesgo nuestra vida porque el nivel de agresividad de la dirigencia que se había quedado con las empresas era bastante

178 fuerte, porque ellos estaban defendiendo lo que consideraban SUS propiedades. A partir de ahí, yo me dediqué básicamente a participar activamente en estos nuevos espacios de organizaciones de mujeres que empezaron a surgir en el país. El debate más importante que teníamos entonces era el de la autonomía. ¿Qué iba a pasar ahora que el FSLN había perdido las elecciones? Fue también cuando nos fuimos a tomar la Radio Ya porque la Radio Ya comenzaba a decir que todas éramos unas putas, unas lesbianas, y entonces nos tomamos la radio por una hora para denunciar el machismo sandinista”

Ao longo dos anos 90, as tensões das feministas com a maioria das instâncias afins à FSLN foram se acentuando gradualmente, o que não impediu que as ativistas tomassem sua decisão sobre o arranjo organizativo. Após várias semanas de debates internos, as feministas optaram por definir sua organização dentro do modelos de redes, reticulares e descentralizadas, e em função dos interesses temáticos. Com relação ao conteúdo temático, a decisão foi instaurar quatro redes que, por sua vez, identificariam o campo de atuação do nascente feminismo, reunido ao redor das Rede Saúde (RS), Rede de Mulheres Contra a Violência (RMCV), Rede dos Direitos Econômicos das Mulheres (RDEM) e Rede de Educação (RE) não sexista. Das quatro estruturas, apenas duas foram duradouras no tempo. A RS manteve uma forte atuação ao longo dos primeiros cinco anos, mas com o tempo foi se decantando numa atuação de ONG e hoje em dia tem a responsabilidade focal de coordenar a campanha 28 de setembro no país (a campanha latino-americana pela legalização do aborto). A RMCV é a única estrutura que ainda hoje aglutina as organizações locais e mantém uma atuação beligerante no nível local. Faz total sentido, como veremos na seção a seguir, no contexto onde não apenas a violência aglutina as atoras em ações coordenadas, mas permanece presente uma disputa entre as feministas e o novo estado sandinista de hoje em dia, ao redor da falta de resposta oficial ao incremento dos femicídios no país. Além da decisão ao redor do modelo organizativo, outro ponto que as feministas precisavam afiançar era o da autonomia. Com essa intenção, já um ano depois (em 1991) convocaram ao primeiro festival do 52% que se realizaria no 08 de março de 1991 (52% está referenciado à percentagem de mulheres que compõem a população nacional) como uma justificativa para reunir toda a quantidade possível de organizações feministas (na época, os coletivos locais começavam integrar inúmera quantidade de ONG de mulheres que ofereciam serviços clínicos, atenção jurídica, etc, em todos os municípios do país) que começavam se espalhar naquele ano. O festival foi altamente fundamental, não apenas para que as feministas

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reconhecessem a diversidade de energias que já estavam presentes na dinâmica nacional, mas porque ele instaurou a base a partir da qual seria declarada a autonomia. Naqueles anos, Florence Bab realizava sua pesquisa de doutorado sobre o modelo de funcionamento das mulheres microempresárias e associadas em cooperativas, no interior do novo contexto neoliberal da Nicaragua. Na elaboração do seu caderno de campo, que anos mais tarde (2012) publicou no país, a autora oferece sua visão sobre a importância do festival e as diversas atividades que ele desencadeou: “Hoy se considera que fue un momento decisivo en la historia de la organización del movimiento feminista de Nicaragua. Las mujeres habían demarcado claramente su territorio y reivindicado un nuevo espacio social donde desarrollar un movimiento. La energía generada por el festival no terminó allí, sino que se tradujo en planes de realizar un encuentro nacional, anunciado para enero de 1992. La meta era traer a mujeres de todo el país, independientemente de su afiliación política, para que asistieran a tres días de talleres y discusiones. Las organizadoras esperaban a unas 300 ó 400 mujeres, pero se inscribieron más de 800 y se tuvo que trasladar la reunión al centro de convenciones más grande de Managua, lo cual envió una poderosa señal a la sociedad” (BAB, 2012: pp. 64- 65)

Três deduções analíticas são fundamentais de serem levantadas aqui.

Primeiro tanto a

decisão sobre o modelo de redes, quanto o festival de 52%, e o encontro de mais de oitocentas feministas em Manágua – conhecido como o encontro de Unidas en la Diversidad, UED – constituíram o lançamento do movimento feminista da Nicarágua como é conhecido nos dias de hoje. É aqui onde surgem os primeiro elementos de diferenciação do movimento: organizadas em redes, altamente plural e reclamando sua autonomia do sistema político. Segundo, AMNLAE não participou em nenhum destes eventos, nem menos ainda das discussões ao redor do modelo organizativo, deixando clara sua separação do nascente movimento feminista. As ativistas envolveram AMNLAE em todas as convocatórias, mas sua ausência falou muito sobre o tipo de controle que ainda a FSLN exercia sobre aquela organização, cada vez mais isolada. E finalmente, a decisão do modelo organizativo de redes, vinculada a questões temáticas, informa muito sobre o caráter do movimento que estava sendo construído naqueles anos. Questões como saúde, educação não sexista, direitos econômicos e luta contra a violência se

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instituíram como as pautas ao redor das quais o movimento começaria a atuar, definindo assim os interesses imediatos das feministas naquele contexto 98. Nos anos seguintes ao encontro da UED, o movimento feminista passou por transformações organizativas que definiram sua trajetória no contexto neoliberal. Vejamos. Gradualmente a UED foi se consolidando como uma primeira grande rede aglutinadora do movimento (algo que AMNLAE não conseguira), mas os conflitos por estilos de liderança começaram logo a aparecer. As demandas de uma estrutura hierárquica e centralizada, posição que fora derrotada no debate sobre a formação das redes, continuavam presentes no movimento, conduzindo à primeira grande divisão da UED, e que resultou numa nova organização conhecida como “La Malinche”. Com o tempo, esta organização alcançou certo grau de institucionalização e, em menos de um ano, se transformou no Comitê Nacional Feminista (CNF), que por mais de cinco anos se manteve como a rede única de organizações feministas do país. Pouco depois do conflito interno que a FSLN viveu, expressado na criação do MRS e com impactos para as organizações de mulheres (assim como todas as organizações de massas), o CNF sofreu uma nova ruptura e se desintegra em 1997, para voltar a fazer mais uma tentativa em 1999 que só conseguiu se manter até 2004, quando já surge a necessidade de criar a rede única, sem intermediação das organizações. Essas foram as bases para a criação do MAM em 2005. Dois depoimentos ao redor dessa experiência organizativa são aqui fundamentais. Maria Teresa Blandón, mais uma vez explica a lógica que estava por trás destas apostas por estrutura única: “Nos fuimos a fundar el CNF porque nos hacía falta algo. Estaban las redes, perfecto, pero eran redes temáticas que estaban sobre un tema específico. Nosotras queríamos tener un debate más nacional, queríamos hablar de lo que pasaba en la coyuntura política, en el estado en los partidos. Es decir, queríamos tener un foro de mujeres feministas, un activismo con más reflexión, teorización y más propuesta y por eso creamos el CNF. En la segunda etapa del CNF que empieza en 1999, tenía menos organizaciones, pero la misma perspectiva. Necesitábamos un feminismo más reflexivo (…) En el 2001, el CNF decidió meterse en una alianza de partidos políticos para empezar a trabajar sobre el tema de las elecciones. No 98

Não surpreende então que, apesar do desconhecimento do governo de Chamorro a uma serie de direitos das mulheres que ficaram estabelecidos na Constituição de 1986, as feministas tenham conseguido uma serie de conquistas importantíssimas influenciando no estado entre 1992 - 1997, tais como a instauração de Delegacia das Mulher em todas as instancias policiais do país, Programas de Atenção de Saúde à Mulher e apoio jurídico às operarias da Zona Franca.

181 recuerdo como se llamaba, pero era una concertación donde estaba el MRS, el PC, el PLI u otros, que se rompió cuando empezaron a discutir sobre candidaturas. Como ves, este es un tema ya viejo”

A dissolução definitiva do CNF em 2004 e o investimento por criar uma nova rede (MAM) em 2005 não só respondeu às divergências internas pelo impulso das alianças partidárias. Segundo outras visões presentes no movimento, estas diferencias de posições políticas eram também suscitadas pelos estilos de autoritarismos e centralização que se vivenciava dentro destas redes. É o que está presente, por outro lado, no relato de Ana Criquillón: “Me parece que las disputas internas no contribuyeron a nada para fortalecer el CNF. Ahora, ¿Por qué se dieron esas disputas internas? Algunas dicen que se dieron por conflictos personales, yo no creo mucho en eso, pero obviamente hay cuestiones de carácter, de estilos de liderazgos, había cuestionamientos al autoritarismo político, al trato, digamos que a la cultura política interna dentro del CNF, pero no sé qué tan determinante fue esto para que el CNF se disolviera. En todo caso el MAM nace tratando de superar todo eso y llamando a la unidad entre mujeres que no forzosamente habían estado dentro del CNF”.

Paralelo às experiências de um feminismo vibrante, mas ao mesmo tempo conflitivo na sua prática interna; o percurso que a FSLN viveu ao longo dos anos 90 não foi menos tenso. Dessa parte nos ocuparemos a seguir. 4.2. O fim da convivência: FSLN fraturado e o nascimento do MRS

Junto com a sensação de luto que toda a militância sandinista sofrera a partir da derrota eleitoral de 1990, existia um impulso por dilucidar qual tinha sido o maior erro do partido FSLN na perda do poder conquistado na base de muito sangue e anos de luta armada. Não precisou se esperar muito para iniciar as discussões internas. Praticamente duas semanas depois da entrega do poder por parte de Daniel Ortega à presidenta Chamorro, a militância do partido foi convocada para um conjunto de assembleias partidárias, onde supõe-se, analisariam as melhores estratégias para a retomada do poder. O principal teor das assembleias partidárias que aconteceram entre 1991 – 1992 ainda analisavam ate que ponto era necessário destituir a Chamorro para continuar com o projeto revolucionário truncado em fevereiro de 1990, ou se “apenas” o partido devia se adequar ao novo jogo eleitoral. Tal debate gerou duas tendências. A chamada “Esquerda Democrática”,

182

defendida por Daniel Ortega, privilegiava o uso das ruas, da violência como forma de oposição e os repertórios de luta usados historicamente pela FSLN para gerar instabilidade ao novo governo de Chamorro, por um lado, enquanto a corrente “Por um Sandinismo que volte às Maiorias” pressionava por estratégias de oposição institucional a partir do diálogo e de alianças dentro do sistema de partidos e com as elites locais, em nome do “novo jogo democrático”, por outro. Em síntese, um conflito sobre as visões ao redor do modelo de democracia a ser instaurado (SANTIUSTE, 2000, LUCIAK, 2001). O conflito entre ambas as tendências ficou mais intenso entre 1992 – 1994, principalmente depois que Ortega obteve reformas estatutárias que lhe permitiram controlar as estruturas de direção do partido e isolar a tendência do “um Sandinismo que volte às Maiorias”. Em 1994, a Assembleia Sandinista

(AS)

convoca

a

um

congresso nacional do partido na tentativa

de

conciliar

ambas

as

facções, mas em lugar de conseguir uma reunificação, a AS só conseguiu radicalizar mais ainda o conflito

Cópia da Proclama “Por um Sandinismo que volte às maiorias” que serviu de base fundacional do MRS (Foto: Arquivo MRS)

durante a renovação da DN que, inesperadamente, se realizou no mesmo encontro. As eleições internas deram como resultado uma ampla vantagem a Ortega que reteve 53% da DN e 65% da AS. Sergio Ramirez, quem fora vice-presidente da Nicarágua durante o período revolucionário e companheiro de luta de Ortega, mas integrante da facção oposta, não foi reeleito no diretório, deixando claro que o partido não institucionalizaria a tendência “Por um Sandinismo que Volte às Maiorias” empurrando esse grupo a formar uma dissidência que meses depois viraria um novo partido. Este foi o contexto que deu origem ao Movimento de Renovação Sandinista (MRS), oficialmente em 1995. Quais são as razões que permitiram a Ortega tal margem de manobra, ao ponto de transformar quase todas as estruturas do partido, completamente fiel ao seu projeto interno?

183

Não existem amplas explicações na literatura sobre a FSLN que explique adequadamente este ponto, mas pelo conhecimento do campo e até onde a literatura consegue demonstrar, encontramos que parecem mais plausíveis nas explicações sobre os resultados do congresso de 1994. Por um lado, a derrota eleitoral de 1990 não só desmoralizou a militância sandinista como provocou um afastamento de alguns líderes, principalmente da tendência “Por um Sandinismo que Volte às Maiorias” destas bases. Por um tempo, pairou no ar a sensação de que Ortega foi o único que ficou na frente do partido no momento mais duro da militância, reforçando sua liderança tradicional, mas também sua condução personalista nas estruturas partidárias. Por outro lado, o desprestígio da cúpula sandinista por causa do vergonhoso episódio de “La piñata”, afastou mais ainda alguns líderes nacionais das respectivas bases. Embora quase todos estes líderes tenham gerado um profundo respeito e admiração por causa do envolvimento da luta armada nos anos 70, a militância parecia não perdoar que alguns dirigentes usassem o caso da piñata para desprestigiar Ortega, quando eles também tinham sido beneficiados com o pacote de leis que legitimou a distribuição das propriedades. Assim, o MRS iniciou sua vida partidária incorporando três membros do anterior Diretório Nacional da FSLN (Dora Maria Tellez, Luis Carrión e Mirna Cunnigham), deixando a tendência de Ortega tomar conta da condução da FSLN até o triunfo eleitoral de 2006. Esse é o momento de inflexão ao que alguns autores (SANTIUSTE, 2000, LUCIAK, 2001, BALDIZON, 2004) atribuem as razões pelas quais a FSLN “passou de ser sandinista a orteguista”. A despeito do resultado que comprometeu os mecanismos de democracia interna da FSLN, esta assembleia de 1994 foi também emblemática por ser o primeiro momento em que o sandinismo começou o debate ao redor das questões de cota de gênero, resolvendo que as mulheres ocupariam um 30% nas estruturas de direção. Se bem não decidiu nada com relação às cotas para a apresentação de candidaturas, essa decisão motivou que em 1996 a FSLN apresentasse até 35,6% de candidatas para posições no legislativo, enquanto o MRS apresentou 24,7% de mulheres nas mesmas posições (VIJIL, 2010). O conflito causado com o surgimento do MRS teve duras consequências para as próprias organizações de massas, que viveram a tensão praticamente na mesma intensidade. Os sindicatos se fracionaram e algumas líderes feministas dentro deste setor foram acusadas de traição por parte dos companheiros sindicalistas, por quererem criar um novo tipo de

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liderança que questionasse a liderança tradicional. Ser feminista não só “distraia” da questão central de classe, como se argumentava nos anos 80, mas também implicava não reconhecer a liderança tradicional e histórica forjada na luta, “da mesma forma que o fazia o MRS”. Mais uma vez, recorremos ao depoimento de Ana Criquillon para explicar esse impacto: “Lo del conflicto de las dos tendencias antes del nacimiento del MRS, tuvo su impacto en las organizaciones de masas, pero ya para esa época había feministas que no estaba más en esas organizaciones (…) había un revoltijo de mujeres feministas que tuvieron liderazgo durante la revolución que ya no estaban en las organizaciones de masas ni trabajaban en ellas, menos en el gobierno, por supuesto. Estaban sueltas, en sus colectivos y en sus lugares. Ya ahí es cuando se empieza a hablar de un movimiento autónomo porque recuerdo que se fue creando una especie de ruptura entre la parte del movimiento que está fuera de las organizaciones de masas y las que están dentro. Pero no es una ruptura por razón político-ideológica, sino por cuestiones de la autonomía. Así es como (las feministas dentro de las organizaciones de masas) comienzan a cuestionar (a las que están fuera) por la radicalidad, la falta de agenda, mientras las otras (las de afuera) las acusan (a las de adentro) de perder la perspectiva. En todo caso, las que estaban todavía dentro de los sindicatos estaban perdiendo poder porque las mismas organizaciones de masas estaban en crisis. Era una pérdida de poder por todos lados”

Outro caso que encontramos durante nossa pesquisa de campo, revela muito bem o impacto desta ruptura partidária nas organizações da base sandinista e sua relação com o nascente feminismo no país. Sandra Ramos, presidenta do MEC, coordenava a Secretaria da Mulher da CST quando essa fratura que levou à criação do MRS e, como ela conta durante a entrevista para esta pesquisa, as disputas que já vinham se acumulando por questões de liderança, eclodiram em perseguições e processos na justiça com implicações duras, ao menos no caso dela: “En la CST yo coordinaba la Secretaría de la Mujer. Ahí se comenzó una campaña en contra de nuestra coordinación, el objetivo era desmantelar la Secretaría por considerarla un liderazgo paralelo. Esa crisis se mantuvo en el seno de la CST y cuando vino la crisis por lo del MRS. Ahí unos compañeros le informan a la dirigencia del FSLN que yo estaba siendo parte del MRS. Entonces, imagínatelo, en plena crisis, los liderazgos intermedios informan que en una de las organizaciones del Frente está alguien del MRS, pues es lógico, me vuelan la cabeza. Yo decido entregar cuentas claras para el Congreso de 1994. A sólo dos días del Congreso, veo que aparece la oficina saqueada y me acusan a mí de robar los bienes de la CST. Con miembros de seguridad armado, llegan a decir que llegué en un camión por la

185 noche y me llevé todas las cosas. Me tocó huir durante todo un año, fui la primera perseguida política de este país. Por suerte, antes de que todo esto pasara ya había entregado las cuentas claras a los donantes que estaban apoyando los proyectos. Entregué los talonarios de cheques y cada una de las cuentas a cada uno. En ese entonces, el embajador de Austria me contacta y me ofrece asilo político. Yo me quedé congelada y le dije que si no había demandado asilo ni durante la época de la Guardia (Somoza), no tenía por qué hacerlo ahora y que iba a dar la pelea aquí. Entonces mejor les pedí que me ayudaran contratando al abogado. Y lo hicieron. Un año después el abogado consiguió rebatir cada uno de los argumentos y conseguí ganar el caso”

As consequências foram igualmente tensas para a condução do arranjo organizativo que estava recém sendo experimentado no país com a criação do CNF. Nesta nova rede feminista, segundo nos contou Blandón, a ruptura veio pautada pela dupla militância das atoras: “Se generó una gran ruptura en el CNF por lo del MRS en ese momento, porque hubo gente dentro del CNF que se dividió en sus posturas. Unas estaban más a favor de la disidencia y otras más a favor de las opiniones más ortodoxas. Se radicalizaron y en el CNF eso empezó a generar muchas sospechas. De hecho, cuando en esa etapa rompimos, que fue a finales de 1996, tengo muy claro que uno de los argumentos era que una de las compañeras desconfiaba de otras compañeras. La acusación era que había compañeras que no habían roto su vínculo ideológico con el FSLN. Y eso generó una ola de desconfianza grande”.

Toda essa intensidade de interações entre partido e movimento, definida por tensões e recorrentes acusações de infiltradas ou totalmente cooptadas por ambos os partidos marcou a prática do feminismo ao longo da década dos 90. Mas como veremos a seguir, ficou mais acentuada ainda no interior do processo judicial a que Ortega fora submetido, a partir da acusação por estupro. 4.3. ¿Qué tenemos que ver nosotras con eso? O caso Zoilámerica como um divisor de águas

Em março de 1998 uma carta pública da filha mais velha de Rosario Murillo, esposa de Ortega, sacudiu o país inteiro, e mais ainda à militância sandinista e todas as organizações feministas da Nicarágua. Zoilamérica Narváez, filha de Murillo, acusava o seu padrasto Daniel Ortega (na época o maior líder da oposição sandinista no Legislativo) de tê-la estuprado constantemente desde que ela tinha 15 anos de idade, anunciando o início de um processo na justiça.

186

A primeira reação das ativistas da RMCV, depois do choque inicial (que em alguns casos durou até dias) era de se a Rede apoiaria a demanda na justiça ou ficaria à margem do processo inteiro. A decisão não foi nada fácil. Existam ativistas que argumentavam que este caso não devia exigir uma dedicação exclusiva da rede (“por que ela, e não as outras?”), enquanto existia uma pressão, particularmente das ONGs feministas integrantes da RMCV (partcularmente a chamada Puntos de Encuentro) de que o processo demandaria uma dedicação exclusiva da rede considerando a estatura política do acusado. Patricia Orozco é uma feminista fortemente ativa na RMCV e, na época coordenava ações de campanha para a prevenção da violência contra as mulheres quando teve de, junto com as outras companheiras ativistas, dilucidar a postura da rede perante este caso: “En ese momento la cuestión era ¿Por qué esta red tiene que ver, qué tenemos que ver nosotras con eso? Nosotras respondimos que el caso era muy simbólico, la persona involucrada no era cualquier persona, sino líder del partido, diputado y que había sido presidente de Nicaragua. Es decir, todas esas connotaciones. Esto produjo muchísimo debate y la RMCV estuvo a punto de partirse en dos, entre las que sí decíamos que teníamos que acompañar este proceso y las que decían que no. Y la mayoría de las que decían que no eran compañeras que tenían todavía su relación más intensa”.

Depois de tantas semanas de debate, a RMCV resolveu criar um comitê que acompanharia Zoilamerica no processo na justiça, colocando às feministas na linha de frente do confronto contra a FSLN, cuja estrutura tinha decidido colocar toda a máquina partidária para defender Ortega. Segundo fora me relatado durante a pesquisa de campo, naquele ano Murillo contatou, infrutuosamente, a cada militante feminista para paralisar as ações da RMCV a favor da demanda de Zoilamérica, mas essa postura só acentuou os atritos das feministas com relação à FSLN. A partir deste caso, disseminou-se a ideia entre as organizações, de que o caso Zoilamérica auxiliaria às feministas fazerem a “incisão vital” do partido, o corte que ainda restava ser feito por aquelas que mantinham a esperança de que a FSLN poderia ainda representar os interesses feministas. O caso também gerou quadros intensos de depressões e traumas que algumas feministas desenvolveram ao conhecer detalhes da denúncia. Durante a pesquisa de campo escutei relatos como “bati o carro de madrugada”, “fiquei vomitando uma semana inteira”, referindo-se às diversas reações que o caso gerou nas –ainda – militantes sandinistas.

187

O andamento do processo contra Ortega na justiça impactou, também, fortemente nas organizações de mulheres. Se bem a RMCV evitara, de último minuto, um racha definitivo na sua estrutura e organizações de base, o caso constrangeu todas as organizações de mulheres do país a assumirem uma posição clara ao redor da denúncia por estupro, e nisso, AMNLAE mostrou o maior dilema. A rede, ainda fortemente vinculada à FSLN, emitiu um comunicado em que declarou o apoio a “todas as vítimas” de estupro, ao mesmo tempo em que demandava salvar à FSLN de uma crise maior. O caso impactou, da mesma maneira, o debate público. Três anos antes da denúncia de Zoilamérica, a Polícia Nacional em parceria com organizações locais de mulheres – particularmente os coletivos surgidos nos anos 80 nas cidades de Matagalpa (norte) e Masaya (ocidente) – desenvolveu um projeto piloto para instaurar Delegacias da Mulher que pudessem canalizar as denúncias de assedio e estupros. Com o caso Zoilamérica, as denúncias por estupro incrementaram no país, obrigando à multiplicação das Delegacias da Mulher que atendessem todos os casos. Em menos de um ano, a Polícia criou 30 unidades para atender as novas denúncias. Com relação ao partido político FSLN, embora a maquinaria estivesse disponível para defender Ortega, isto não anulou as tensões. A acusação por estupro coincidiu com o Congresso Nacional que a FSLN realizaria no Feministas nicaraguenses, usando máscaras com o rosto de Zoilamérica, protestam na frente do Supremo Tribunal contra a anulação do processo judiciário contra o líder sandinista (Foto: Taringa.net)

segundo

semestre

de

1998.

Na

realização do congresso, foi altamente notório o conflito da cúpula com os

antigos companheiros que já tinham aproximações com o MRS, ao redor da denúncia. A abordagem do partido sobre o caso Zoilamérica acelerou mais ainda o afastamento e influenciou que muitos deles nem assistissem ao congresso nacional, anunciando poucos dias depois sua adesão ao MRS (LUCIAK, 2001). Mas também incidiu no debate sobre as cotas de gênero dentro da FSLN, iniciado apenas naquele ano. O Congresso partidário de 1998 tinha a demanda de aprovar uma emenda que incorporasse até um 30% de mulheres no diretório partidário, mas como está evidenciado no estudo de Luciak (2001), o Congresso acabou derrubando toda medida de discriminação

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positiva, sob a influência de Ortega, quem precisava de estruturas capazes de apoia-lo para enfrenta o processo judiciário: “He (Ortega) pointed to the party’s quotas system as an obstacle to men’s assumption of

leadership positions although they were better qualified that the women. This criticism was perceived as an effort to discredit women. Ortega’s hostility toward women was obviously rooted in the Zoilamerica case” (2001: 181)

Paralelo à reforma partidária, e com o objetivo de bloquear o andamento do processo na justiça, Ortega negociou uma série de emendas à Constituição e à Lei Eleitoral com o então presidente liberal Arnoldo Alemán (1996 – 2001), e em troca não levaria adiante as acusações de corrupção que a FSLN iniciara contra o mandatário pelo desvio da ajuda internacional que respondeu à devastação provocada pelo furacão Mitch, o maior fenômeno natural que arrasou uma boa parte da América Central nos últimos meses de 1998. Alemán obteve, automaticamente, um assento no Legislativo uma vez concluiu o seu mandato em 2001, e Ortega conseguiu reduzir a percentagem de votos estabelecidos na Constituição para declarar o triunfo eleitoral em primeiro turno, com o qual conseguira a reeleição em 2006. O que este caso pode nos informar sobre a interação do sandinismo com as feministas? O desgaste da relação que já vinha se arrastando desde 1988 foi acentuado aqui no caso Zoilamérica, demarcando uma separação absoluta com o partido. As posturas do MRS, em confrontação com Ortega, começaram a gerar a simpatia das organizações feministas, ao ponto que sete anos depois terminaram subscrevendo a aliança que sustenta esta pesquisa, e cuja compreensão, que daria as bases para a elaboração de um modelo analítico, discutiremos no capítulo a seguir.

189

Cap. 5. Detectando a zona de intersecção: Proposta de um modelo analítico

Nas primeiras páginas desta tese anunciamos que somos movidos por duas inquietações centrais. Por um lado, queremos compreender o que de fato mudou, em termos de relações políticas, a partir das transformações em alguns contextos latino-americanos desde a primeira metade dos anos 2000. Tais transformações estão representadas no acesso ao poder por partidos políticos que, quando não provêm dos movimentos sociais, têm, ao menos, um histórico de relações bastante próximo dos atores da sociedade civil. Nesse debate não queremos avaliar – e passamos bem longe disso – até que ponto esses estados instauram efetivamente uma “agenda de esquerda” no poder. Aliás, sem pretender entrar nessa estéril polêmica, compatibilizo com as análises que diagnosticam os novos regimes, a partir da existência de relações cada vez mais próximas entre instituições políticas e atores da sociedade civil, incluindo, é claro, movimentos sociais (TATAGIBA, 2011; ABERS e VON BULOW, 2011; IGLESIAS, 2012). Em outras palavras, e usando as deduções analíticas de Pousadela (2010), os novos contextos se distinguem (no mínimo) dos regimes neoliberais que lhe precederam, em superar o distanciamento que existia entre os atores sociais e as instituições do sistema político, em nome da gestão. Estas mudanças, contudo, foram também alvos de outros tipos de diagnósticos. Desde uma perspectiva mais focada no funcionamento do estado, alguns autores (SETALA e SCHILLER, 2009; ALTMAN, 2005) argumentaram que os novos estados geraram uma espécie de atualização de mecanismos de democracia direta (referendos, plebiscito, etc) como formas participativas. O que essas análises perseguem é compreender até que ponto estes mecanismos respondem a uma prática institucional (a gênese está no estado) ou são reações naturais ao ativismo (surgem das sociedades). Acreditamos que nenhuma das duas alternativas ilumina a complexidade embutida na interação entre estado e sociedade civil, caracterizadas por clivagens sobrepostas de atores, interesses e agendas compartilhadas, onde a autonomia (referimos-nos à autonomia dos movimentos sociais, mas com certeza é um conceito compartilhados por todos os atores envolvidos 99) vira uma categoria central. É aqui onde reside minha segunda inquietação. 99

Por causa do seu traço de origem, costumeiramente associamos autonomia ao conceito de movimento social, mas se partimos da noção de que nas interações ambos os atores se afetam na mesma medida, como então analisar a autonomia dos partidos políticos na interação? É o debate que está proposta em Desai (2003) mas que foge dos limites da nossa pesquisa.

190

Como a autonomia pode ser conjugada nessa interação onde comunga estado, organizações da sociedade civil e partidos políticos? O caso que esta tese escolheu para desenvolver esse debate (como podemos observar no Capítulo 1) é a aliança que uma das maiores redes feministas da Nicarágua (MAM) costurou com o partido MRS no seio das eleições presidenciais de 2006. A distinção desta aliança é que foi subscrita com reconhecimento notarial em forma de contrato, estabelecendo responsabilidades concretas para os atores na parceria. Algo completamente inédito na experiência política da Nicarágua, e até onde tenho informação, sem paralelo em outros países da região. O acordo entre o MAM e o MRS se justifica, mesmo que não exclusivamente, pelos embates que o feminismo nicaraguense já vinha experimentando com o estado de forma geral ao longo dos anos 90, e com a FSLN desde 1989 por causa dos conflitos de representação (como vimos no capítulo 3), de maneira mais particular. A aposta do movimento era que ao se aliar a um “partido confiável” (MRS) seria possível fazer avançar a agenda de gênero no desenho e implementação das políticas públicas. Como foi relatado por uma das entrevistadas para esta pesquisa 100, o MAM montou no cavalo do MRS anelando provocar mudanças no Congresso e no sistema de partidos a favor de uma agenda feminista. Pelo que capturamos do campo, a formalidade desta aliança está associada à vocação dinâmica da autonomia destas atoras. Para o MAM, o contrato surge como uma garantia de que o partido não vai desrespeitar o combinado. E mais do que isso. O contrato respondeu a uma análise estratégica que todas as organizações do movimento fizeram previamente. Expressões que obtivemos das ativistas de “no le vamos al MRS dar un cheque en blanco” ou “todas compartimos la misma posición política” só nos mostra que a aliança em si não era a causa das divergências e fraturas dentro do movimento.

100

Geni Gomez, líder local do movimento na cidade de Matagalpa (128 kms ao nordeste de Manágua) relata como a decisão de se aliar ao MRS foi altamente estratégica para o MAM: “Si queríamos una relación positiva con los partidos políticos era importante contar con una bancada en la Asamblea Nacional que fuera, por lo menos, amigable para el movimiento de mujeres y por eso lo que sucedería en esas elecciones de 2006 era trascendental, porque al movimiento le interesaba una bancada más independiente y confiable. Ahí se planteó lo del MRS, que si queríamos una alianza con el MRS como partido o con la coalición del MRS. Se dio un debate muy intenso, se discutió que esa alianza no se podía hacer fuera de los cinco puntos que el MAM había establecido”.

191

Mas a condução do acordo, os arranjos que foram suscitados na dinâmica da aliança (ativistas como candidatas a deputadas em coalizões lideradas por partidos de direita, por exemplo) e os compromissos que as coordenadoras políticas foram assumindo gradualmente motivaram os atritos. As consequências estruturais no movimento foram evidentes. Não só o MAM sofreu duas ondas de expulsões de ativistas, como praticamente todas as organizações tiveram que tomar decisões ao redor da sua relação com as redes nacionais. Falaremos disso mais à frente neste capítulo. Por enquanto vale mencionar outros tipos de caracterizações e impactos que esta aliança teve. Como vimos nos capítulos anteriores, esta parceria se deu na base da definição de funções formais para ambos os atores. O MRS ficou com a obrigação de incorporar no programa de campanha eleitoral – e de governo, no caso de um eventual triunfo – uma agenda de políticas públicas para a efetivação de cinco pontos programáticos que o MAM tinha definido ao longo de dois anos de discussões estratégicas. Para o movimento, os deveres se resumiram em quatro: assessorar a equipe de campanha, auditar o manejo dos fundos da campanha, apoiar os candidatos e candidatas do partido e assessorar a bancada da coalizão no Legislativo, cujos termos foram reconhecidos notarialmente. A aliança entre ambos os atores trouxe à tona um duro debate ao redor da autonomia para o movimento de mulheres, acarretando em conflitos entre algumas líderes e militantes de base e organizações aliadas. Na visão das lideranças nacionais do MAM, o acordo com o MRS era imperativo e tinha um duplo objetivo: disputar os sentidos do debate eleitoral – e tangencialmente concorrer nas próprias eleições – e construir condições para enfrentar o contexto potencialmente adverso para o movimento caso Ortega ganhasse o pleito. Ao que já sabemos, esta aliança teve impactos concretos, tanto para as dinâmicas organizativas do movimento, quanto para mudanças dentro do sistema de partidos. Isto é, as estruturas de ambos os atores foi alterada quase de forma simultânea, ao mesmo tempo em que tiveram a capacidade de alterar os outros atores do entorno, com consequências para a infraestrutura participativa que a Nicaragua experimentou no período entre 2007 – 2011. Pretendemos voltar a essa experiência do campo, mas apenas instigados pelos dois fatores que respondem às inquietações centrais que perpassam essa tese. O que é que essa experiência de interação entre MAM e MRS nos oferece em termos de criar um modelo analítico que possa explicar a interação entre movimento social e o partido político? Como a categoria de autonomia se configura nessa interação?

192

Para abordá-las, faremos um movimento analítico que nos permita observar os fenômenos que acontecem no espaço intermédio entre movimento e partido, e como esses fenômenos interagem com as mudanças conjunturais, por um lado, e com as dimensões interno-estrutural dos atores em relação, por outro. Quer dizer, observaremos a zona meso onde os atores interagem, uma área que tem consequências para os arranjos internos dos próprios atores, e com potencialidades de gerar outros arranjos organizativos no entorno onde atuam. Esse espaço, que chamaremos de “zona de intersecção”, surge como resultado de um acúmulo de relações que as ativistas do MAM e militantes do MRS foram experimentando ao longo de 20 anos de transição democrática. Ao mesmo tempo, essa zona de intersecção, ao ser acionada, motiva novas relações e outras formas do ativismo, fazendo com que estes atores – partido e movimento – extrapolem seu campo de atuação para além do encontro entre eles. Em outras palavras, a zona de intersecção é o suficientemente moldável para estimular novas relações incorporando outros parceiros e alterando os arranjos organizativos do entorno, ao mesmo tempo em que impacta as próprias estruturas internas de movimento e partido. Dessa forma, somos compelidos a fazer uma análise multi-situada, na procura de impactos tanto no interior de cada ator, isto é, na estrutura interna do partido e do movimento social, na intersecção onde eles se encontram e nos espaços exteriores onde eles incursionam – e ao mesmo tempo criam – como produto de tal interação. Para fazer esse debate, este capítulo está dividido em duas seções. Na primeira parte vamos retomar partes centrais do histórico de relações que o movimento de mulheres e o sandinismo experimentaram ao longo de mais de vinte anos, como fomos observando a través dos três capítulos anteriores desta tese. A nossa incursão nesse histórico não será para repetir suas características, mas para mostrar onde – e em que momento conjuntural concreto – partido e movimento foram se intersectando, até criar a zona de intersecção que queremos pôr em pé. Na segunda parte vamos a analisar e entender os pressupostos teóricos que nos ajudem a caracterizar a região interseccional que estamos identificando nesta pesquisa, observando que fenômenos perpassam nessa área intermédia e o que isso pode nos informar sobre o caráter da autonomia do movimento de mulheres que opera nessa interação. Concluiremos este capítulo com algumas deduções preliminares sobre a contribuição que este modelo de intersecção oferece para a agenda de pesquisas relacionais (já identificadas no

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capítulo 2) quais os limites que nossa contribuição ainda enfrenta, e quais são nossos alcances e desafios teóricos. 5.1. As interseções na trajetória: os encontros constantes entre partido e movimento

As relações com o sistema de partidos políticos não é, ao todo, uma grande novidade para as feministas nicaraguenses. Como conseguimos perceber ao longo desta tese, por quase trinta anos as ativistas do movimento têm estado interagindo – conjugando tensões e habilidades – com as dimensões partidárias do sandinismo, mais intensamente com a FSLN, porém recentemente com o MRS, segundo as conjunturas concretas. Desde essa perspectiva, o acordo MAM- MRS só sintetiza a prática já apreendida desde os primórdios do ativismo de mulheres na gênese da AMPRONAC, lá por 1977. O próprio sandinismo tem uma gênese no sistema de partidos. Mesmo focando na luta armada e clandestina como estratégia para a derrubada da ditadura, os partidos políticos da época – especialmente o PS e o PCN – foram fundamentais para reforçar a capacidade de recrutamento da guerrilha. Com a crise organizativa que o sandinismo sofreu durante os anos 90, após a derrota eleitoral de fevereiro que marcou o fim do período revolucionário, os vínculos do feminismo com o partido (desde sua militância na FSLN) foram alvos de tensão. Não bastasse já a ruptura com AMNLAE – que foi submetida a um claro isolamento por parte das feministas – as feministas que ainda estavam nas centrais sindicais (particularmente na CST) foram compelidas a declarar sua filiação ao sandinismo tradicional, representado em Daniel Ortega, ou sua simpatia ao recém-nascido MRS. Só que esse chamado não foi na base da consulta, e sim do conflito, como se evidenciou no caso da Secretária da Mulher da CST em 1995. O que queremos argumentar aqui é que a intersecção que pretendemos colocar em pé foi se moldando naquelas experiências, e para nosso interesse analítico, três momentos (as conjunturas críticas, no modelo explicativo do Institucionalismo Histórico) nos parece altamente emblemáticos. a) A formação da AMPRONAC: Existe uma forte recorrência na literatura – e na fala das feministas – de que AMPRONAC representa a gênese do movimento feminista contemporâneo. Até 1977, e excetuando a experiência das sufragistas dos anos 50 que associavam a luta pela conquista do voto à consecução de outros direitos

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fundamentais como saúde e trabalho sob a liderança de Josefa Toledo (SAEZ, 2007), as mulheres não eram organizadas em associação nenhuma que confrontasse diretamente o sistema. Foi a FSLN, via Tendência Proletária (TP), que animou a formação de um novo grupo, mas sem a intenção de gerar um movimento que mobilizasse demandas mais abrangentes. Em outras palavras, o que a FSLN (e apenas uma parte dele) pretendia era criar um comitê humanitário, ao estilo “mães da praça de maio”, que focasse em temas concretos. Mas as mulheres que foram se aproximando ao comitê, e que traziam uma forte experiência de formação e reflexão política nas CEB junto a outras mulheres que militavam clandestinamente na guerrilha, estimularam um ativismo que não iria se focar na denúncia. E nisso a FSLN fez um trabalho fundamental ao espalhar a ocupação de terras como uma forma de ativismo para questionar a concentração da propriedade produtiva. O que este caso nos oferece evidencia é que a composição plural que sempre caracterizou à FSLN (anos depois transformado em partido político que até certo ponto manteve essa heterogeneidade) estimulou um ativismo que se dá nos encontros. Mulheres, com uma carga reflexiva sandinista e reforçada na teologia da libertação, ofereciam a AMPRONAC inovações para seus repertórios de luta.

b) A invenção do PIE: Esta iniciativa que um grupo de 10 feministas lançou, até de maneira subversiva em 1987, no contexto da forte tensão pela qualidade da representação que o nascente feminismo cobrava da DN da FSLN, informa sobre duas questões importante sobre a autonomia e a interação do feminismo com o sistema de partidos. Com relação ao primeiro, é chamativo que a autonomia era compreendida pelas feministas do PIE desde um registro muito particular. Isto é, trata-se de uma autonomia particularmente vista como separação da FSLN e seu esquema de representação criado em AMNLAE, mas para ser efetiva precisaria da instauração de um novo partido, mesmo que feminista. É o que nos leva ao segundo ponto: a vocação partidária que distingue o feminismo nicaraguense. Parecera que o arranjo partidário está sempre presente na memória coletiva destas atoras. A intersecção com o sistema de partidos é aqui uma condição desejada.

c) A crise organizativa da FSLN e o nascimento do MRS: Se é para falar de um momento intenso de intersecção entre o feminismo e o partido político, a crise interna que o sandinismo viveu no começo dos 90, e que levara a criação do novo partido,

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MRS, é bastante representativa. Partido e movimento foram afetados por igual. Muitas ativistas foram ameaçadas e perseguidas judicialmente, desde que as lideranças tradicionais da FSLN associavam suas demandas de gênero (no seio das centrais sindicais, por exemplo) a um tipo de “ser do MRS”. Essa associação que a velha guarda da FSLN fez entre feminismo e MRS, pode ter sido altamente influente para o tipo de relações que, anos depois, ambos os atores construiram. 5.2. Colocando em pé o modelo analítico da zona de intersecção

Os estudos de Hellman (1992) e Levitsky (2003) foram de inspiração central para pensarmos as dinâmicas de intersecção que surgem no encontro entre feminismo e partido político, analisadas aqui. Ao destacar como movimentos e partidos são reciprocamente influenciados e alterados pelo encontro, Hellman (1992) não só questionou as abordagens essencialistas dos movimentos sociais, como estabeleceu um diálogo crítico com as abordagens estruturalistas e funcionalistas que motivaram o desenvolvimento de tipologias partidárias na Ciência Política ocidental, e herdaram uma compreensão dos partidos políticos como entidades monolíticas, homogêneas e, de certa forma, impermeáveis. Já Levtisky (2003) analisou as estratégias de adaptação dos partidos políticos em contextos latino-americanos, onde ativam sua capacidade de certificar o “arraigo social” que eles possuem, estimulando assim (e aqui ele é subsidiário do conceito de Panebianco) uma subcultura partidária. Seguindo a trilha aberta por Hellmann (1992) e Levitsky (2003), podemos então reafirmar que a proximidade dos movimentos com os partidos nem sempre gera cooptação para os ativistas. Em outras palavras, o vínculo entre movimentos sociais e partidos políticos é uma característica evidente no contexto latino-americano, que impacta ambos os atores, ao mesmo tempo em que revela as estruturas porosas dos partidos políticos. Contudo, estas constatações não oferecem maiores pistas para entender – e qualificar – os trânsitos que acontecem na área intermédia entre partido e movimento. Acreditamos que os impactos gerados pela interação entre estes atores, responde também a fenômenos que surgem nas intersecções, cujo processo, segundo o argumento do Tilly (2005) contribui na formação de identidades coletivas produto de transações interpessoais.

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Como já citamos no debate teórico desta tese, Tilly vê nas transações interpessoais a base de todos os processos sociais, conformando assim novas identidades, vínculos duráveis, tendências e disposições (sejam coletivas ou individuais). Apoiado nos sustentos da sociologia relacional e na ideia de mecanismos, o autor elaborou um modelo analítico que foca nos efeitos indiretos e não pretendidos das transações. De acordo com esse modelo, as transações entre os atores não elimina as fronteiras que os divide. Pelo contrário, através das fronteiras dão-se transações, interações e relações que geram mudanças em todos os planos (no interior dos espaços, na localização das fronteiras, no ambiente, etc.) que afetam o conjunto e moldam as identidades, tanto coletivas quanto individuas. O modelo elaborado por Tilly (2005) caracteriza-se dessa maneira:

X

Y

shared stories

boundary

relations Relations within X

across boundary

Relations within Y

Figure 1-1. Boundaries, Ties, and Identies (Tilly, 2005:08)

Este modelo nos oferece um importante framework analítico para explicar a existência de uma interação que produz alterações multi-situadas. Quer dizer, as relações vão alterando os fenômenos dentro das estruturas de movimentos e partidos, modificam os fluxos que surgem na fronteira entre eles e produz novas estórias e identidades coletivas. A zona de intersecção que queremos explicar produz tais efeitos, mas à diferença da fronteira (do esquema

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“tillyano”) a zona de intersecção não é rígida, pode ser moldada constantemente e também produz alterações fora do escopo da aliança movimento social-partido. Nossa proposta de interseccionalidade encontra também uma fonte de inspiração nas discussões feministas que analisam as diversas formas de opressão desde uma perspectiva sobreposta. Crenshaw (1989) elaborou entre finais dos 80s e no começo dos anos 90s, uma espécie de “manifesto interseeccional” (grifo nosso), chamando a atenção para o cruzamento de tipos de opressões que experimentam as mulheres afrodescendentes e imigrantes latinas nos EUA. Na sua compreensão, estas mulheres sofrem simultaneamente condições de racismo e sexismo, atravessadas por questões de classe, gênero e institucionais, se distanciando totalmente das experiências das mulheres brancas feministas. Mas não se trata de explicar a discriminação desde uma somatória de opressões, mas de um cruzamento de discursos, estruturas ideológicas, políticas e de classe. Já em 1989, Crenshaw definiu tais experiências, desde uma perspectiva totalmente interaccional, argumentando que: “A discriminação, assim como o tráfego de veículos em um cruzamento (intersection), pode fluir em uma direção ou em outra. Se um acidente acontece no cruzamento, ele pode ter sido causado por carros vindos de várias direções e, às vezes, por carros que vêm de todas as direções” (Crenshaw apud Kerner, 2009). Embora a intenção inicial da autora fosse mostrar como as formas de discriminação têm múltiplos fatores sobrepostos, ao longo do tempo a análise de Crenshaw avançou no sentido de propor que é nos cruzamentos onde as identidades políticas são forjadas: “Recognizing that identity politics takes place at the site where categories intersect thus seems more fruitful that challenging the possibility of talking about categories at all. Through an awareness of intersectionality, we can better acknowledge and ground the differences among us and negotiate the means by which these differences will find expression in constructing group politics (1995: p. 1299).

Todos estes subsídios teóricos fortalecem nosso investimento analítico ao redor das interações, ao explicar os processos de formação de identidades que acontecem em diversos planos, tanto nas estruturas internas, na esfera intermédia, mas também nos espaços externos. Isto é, a interação tem consequências para os atores envolvidos e para “terceiros”, impactando assim o entorno onde a relação é experimentada. É aí onde opera a zona de intersecção, cujas evidências estão presentes no caso sob análise. Vejamos. A aliança entre MAM – MRS serviu de impulso para o fortalecimento de outras redes que protagonizaram uma série de protestos entre 2010 – 2011 contra as reformas do

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sistema participativo promovidas pela administração da FSLN. E ao mesmo tempo, contribuiu para a formação de coligações partidárias, particularmente de direita, que nas eleições de 2012 tentaram evitar, sem sucesso, a reeleição de Ortega. Com tais experiências, a formação dessas redes conjugou movimento e partido nas mesmas estruturas e com fins compartilhados, moldados em grande medida pela própria conjuntura. Assim, a zona de interseção não é apenas um lugar de encontro de estórias individuais que molda novas identidades (individuais e coletivas). Os atores também interagem com a conjuntura, alteram os arranjos organizativos do contexto e interagem contenciosamente com o Estado. No nosso modelo, esta zona de intersecção é representada da seguinte maneira:

• • •

Zona de intersecção

Movimento Social

Histórico de relações

Entorno político

Partido

Novos arranjos organizativos Coalizões Sociopartidárias Redes de ONG, academia, movimentos, etc Grupos de apoio em campanha eleitoral

O que queremos explicar a partir deste desenho? Primeiro, a interação entre o movimento e partido cria um terceiro espaço que é moldado constantemente pelas alterações do entorno político. Esse terceiro espaço que chamamos zona de intersecção provoca mudanças estruturais tanto para o interior do movimento como do partido, mas essas transformações estruturais retornam a este espaço intermédio que vai sendo simultaneamente moldado pelas mudanças geradas.

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Em outras palavras, os impactos de mão dupla têm capacidade de impactar também a própria intersecção, e isto se expressa cada vez que as ativistas do movimento desempenham funções que não estavam inicialmente pactuadas (como fiscalizar os processo eleitorais interno do partido, por exemplo), fazendo com que a intersecção seja constantemente revalidada, negociada, alterada, etc. Em segundo lugar, os fenômenos criados nessa zona estimulam arranjos organizativos no entorno onde ela acontece. As transações dos atores que atravessam esta região intermédia visam provocar mudanças no contexto político, e para isso, geram novas redes, incitam novas alianças, interferem em diversos tipos de coordenação com outros atores para obter mudanças políticas e impactar no estado. No caso da Nicarágua, a aliança MAM- MRS teve a capacidade de estimular – e reforçar o ativismo da UCD, e ainda conseguiu alcançar o estado na esteira dos processo de aprovação das normativas 50 – 50 e lei 779. A zona de intersecção não age como fronteira entre os atores, mas sim como espaço de transação. À diferença da fronteira, a zona de intersecção não separa nem distingue os atores, mas os reúne em torno de interesses, agendas e objetivos com potencialidades de gerar transformações políticas. Assim, esta zona não só e capaz de vincular espaços estruturais, mas de colocar em diálogo contextos, estórias vividas e estratégias por mudanças políticas. É aqui onde encontramos uma terceira dimensão desta zona de intersecção. Ela tem a capacidade de sintetizar trajetórias individuais e reunir históricos de relações previamente compartilhadas. Os atores se relacionam porque eles se conhecem de antes, fazem cálculos sobre os resultados da interação, baseados em encontros no passado, de modo que esta zona intermédia pode ser também definida pela confiança que eles depositam para efetivar a relação. Todas essas característica, acreditamos, explicam adequadamente os fenômenos que surgem na intersecção MAM- MRS. As feministas e os militantes partidários já compartilharam estórias prévias desde o próprio processo revolucionário, conhecem seus interlocutores e sabem o que podem esperar da relação. Isto gera uma dinâmica de interação entre reconstituição do passado, reações aos constrangimentos do presente e um futuro imediato imaginado no resultado da aliança. Quando tanto deputados como ativistas reafirmam que a “raiz em comum é sandinista”, é porque eles partem de uma identidade não apenas compartilhada, mas temporalmente referenciada, fazendo do elemento temporal uma variável fundamental para explicar a relação.

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É neste ponto onde situamos parte das contribuições metodológicas desta tese para as análises relacionais. Pensar a interação a partir da interferência da trajetória dos atores com as estratégias projetadas no presente, pode nos auxiliar em futuras indagações empíricas que pretendam compreender o alcance das interações políticas no atual contexto latino-americano e dar um passo a mais na construções de categorias suficientemente capazes de diagnosticar o ativismo experimentado hoje em dia na região. 5.3. Algumas considerações analíticas

Nossa pretensão com este capítulo foi a de colocar em pé o modelo analítico representado numa zona de intersecção, capaz de dar conta dos fenômenos que surgiram a partir da aliança que o movimento de mulheres da Nicarágua (representado no MAM) costurou com o partido político MRS,de forma particular, e com sistema de partidos de forma mais genérica. No nosso modelo, chamamos a atenção para três níveis que operariam nessa zona de intersecção identificada: trajetórias, estruturas organizativas e entorno político. Para começar, partimos do entendimento de que a relação entre movimentos sociais e partidos políticos não pode ser apenas entendida pelo desafio e tensões que esta representa para a autonomia do movimento. Ao invés de assistirmos a um impacto unidirecional, assumimos que a relação tem impactos para ambos os atores, para a relação em si e para o entorno onde eles existem. Este caso nos permite também mostrar que a pluralidade interna dos partidos tende a reproduzir disputas motivadas pela influência dos movimentos, ao tempo que estes incorporam dentro dos partidos algumas pautas buscando transformar as agendas partidárias e impactar no estado. O partido canaliza essas pautas graças à subcultura interna que desenvolve, onde se movimentam diversos interesses que ganham espaço nas estratégias de campanha eleitoral. Mas tal alcance enfrenta, contudo, diversos desafios. Afinal os partidos não só estreitam a coordenação com os atores dos movimentos. Eles também precisam de coordenações eleitorais com seus pares partidários, cujas negociações podem gerar novos conflitos e tensões organizacionais. Essa porosidade dos atores é a que permite a interação e molda a zona de intersecção que estamos diagnosticando aqui. Tal zona opera como um lugar de encontro entre biografias. O conhecimento prévio dos atores – às vezes de “maneira informal” - se constitui num impulso chave para a coordenação e, ao mesmo tempo, tal intersecção é constitutiva de outros arranjos organizativos que estimulam o ativismo.

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O impacto da intersecção não só se registra nas estruturas internas, mas é também possível detectar resultados em arranjos organizativos que acontecem “fora da interseção”, afetando simultaneamente os fenômenos que acontecem ao redor. Assim, a intersecção interage também com a conjuntura de forma dialética, isto é, a interação é moldada pela conjuntura, que por sua vez se vê impactada pela relação dos atores. Partido e movimento se aliam constrangidos pelas transformações políticas, e ao mesmo tempo essa aliança suscita mudanças no próprio estado, não só pelo partido ocupar posições públicas, mas também porque o ativismo que esta interação estimula consegue alcançar o estado. Outra constatação que podemos derivar desta análise diz respeito ao papel que os movimentos desempenham para o partido político. Por que o partido se interessa em interagir com um movimento especifico? Dizer que são aproximações que respondem a conjunturas eleitorais não só seria uma constatação óbvia (afinal todos os partidos interagem com a sociedade na busca de votos) como também não permitiria ver como essa interação avança ao longo do tempo. Eleições são temporariamente situadas (acontecem cada quatro anos) e a final de contas os partidos não só participam de eleições, eles continuam existindo além delas, mesmo que a intenção seja conquistar o poder via eleições. Neste caso, então, por que a aliança perdura? Acreditamos que é porque o movimento feminista da Nicarágua não só é um ator confiável para o MRS, reportando-se às interações pessoais que datam desde a década de 80. A essa confiança se adiciona o fato de que o movimento tem uma ancoragem social de maior alcance que o partido político. O movimento tem inserção comunitária e presença no território (mesmos as feministas expulsas que residem do norte do país, continuam se auto- definindo MAM) e também prestígio entre as organizações pares, acadêmicos e outras organizações sociais, podendo transitar entre diversas redes e experimentar novas formas de ativismo. Foi o MAM quem chamou o MRS para se integrar à UCD. Mas isso não elimina a existência de tensões. Temas como cotas de gênero e a alteração de estruturas (via a Rede de Mulheres do MRS, por exemplo) gerou atritos para as lideranças partidárias na hora de negociar com seus pares nas coligações eleitorais que tem uma atuação interna distinta e outros interesses. Aqui o partido sofre perdas de militantes e tem que modificar parte de suas normativas internas, deixando em evidência que age com um ator altamente heterogêneo e com contenções domésticas.

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É claro que todas essas constatações variam em função da conjuntura e dos atores analisados. Não podemos ainda afirmar que o modelo proposto pode dar conta de diversas experiências de relação entre partido e movimento nos mais variados contextos. Isso sim vai depender de maiores investimentos de pesquisas empíricas com perspectiva comparadas entre contextos que nos ajudem a validar – ou refutar decisivamente – as categorias aqui mencionadas.

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Conclusões Preliminares

Chegado até este ponto final da tese, existem uma série de reflexões que pretendemos levantar para entender o alcance que esta pesquisa tem e os limites encontrados, tanto no processo de pesquisa de campo, como durante o ciclo das reflexões escritas. Uma alerta neste sentido parece essencial. A nossa discussão não tem a capacidade de oferecer conclusões definitivas, posto que estamos inscritos num repertorio de investigações, ainda em construção, que começa a derrubar as separações entre sociedade civil e instituições do sistema político. Isto é, pesquisas capazes de derrubar as visões tradicionais de compreensão da ação coletiva, mas não o suficientemente consolidadas para serem inteiramente conclusivas. Desde esse lugar, faz-se necessário negociar visões, reflexões e pontos em comum que, eventualmente, possam conduzir a estabelecer categorias e conceitos suficientemente capazes de alcançar um status teórico. Explicitar as próprias reflexões suscitadas por todo este nosso processo de pesquisa, tendo esse horizonte teórico em mente, é o objetivo desta seção final. Nosso primeiro ponto a considerar tem a ver muito com os limites que esta pesquisa enfrentou. Se bem optamos por analisar a interação entre movimentos sociais e partidos políticos, hoje estamos suficientemente conscientes de que o debate ao redor da interação movimento – partidos não pode dispensar um olhar sobre o estado. Afinal, os partidos ganham relevância para os movimentos sociais porque, eventualmente e em algum momento da dinâmica política, eles ocupam o estado. Os ativistas, de certa forma, almejam a democratização das instituições do sistema político, o que demanda ao plano das análises, adotar uma compreensão totalmente diversa dos atores que interagem. Sendo um pouco mais claros, as apostas dos movimentos sobre os partidos políticos estão orientadas em impactar no estado, de forma que a conjunção dos três atores faz-se necessária nas análises para compreender as inovações do ativismo que estamos observando hoje em dia. Mas precisamos fazer essa operação, considerando a pluralidade que caracteriza a cada ator. Isto é, movimento, partido e estado se inter-relacionam partindo da sua própria heterogeneidade, e não como atores monolíticos ou coesos. Alias pelo que observamos no

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campo, essa pluralidade que lhes caracteriza, é a que também lhes permite interagir com os outros e tornar suas fronteiras totalmente permeáveis. Nesta tese não conseguimos dar inteiramente conta do estado, devido a que chegamos ao campo munidos do conhecimento de que a interação entre o movimento feminista e o estado nicaraguense era inteiramente de conflito, de forma que isto inviabilizou a possibilidade de ver até que ponto as ativistas lançam mão dos repertórios institucionais (recursos no judiciário, por exemplo) que o próprio estado oferece. Isso, de fato, acontece na experiência nicaraguense. Nem menos avançamos suficientemente em diagnosticar adequadamente como o estado foi respondendo com medidas compatíveis com as próprias demandas feministas, ao mesmo tempo em que continuava reprimindo as organizações e ameaçando as ativistas com diversos processos na justiça. Já no caso do partido político, fizemos maiores investimentos de pesquisa, ao ponto de encontrar essa sub-cultura partidária que adotamos da análise do Levistky. Os exemplos mais chaves são a criação e funcionamento da Rede de Mulheres do MRS, a abertura da coligação eleitoral do espectro da direita liberal (Aliança PLI) às redes de organizações (UCD) onde transitam as ativistas, os processos de fiscalização na seleção de candidatos (primárias) que o MRS permitiu às ativistas, entre outros fenômenos. Acreditamos que isso tudo representa traços da subcultura partidária que alimenta a zona de intersecção (que levantamos no capítulo anterior), mas também se tratam de fenômenos formatados pela conjuntura concreta. Essas alterações organizativas e estruturais, interações com as coligações eleitorais, etc, são entendidas no contexto específico da Nicarágua, e por tanto, requereríamos de maiores pesquisas comparadas para entender o alcance da nossa contribuição. Isto bate com uma segunda reflexão que queremos trazer aqui. A nossa pesquisa tem a pretensão de contribuir com o avanço do debate relacional, mas a análise desenvolvida aqui é conjunturalmente situada. A FSLN – e, por conseguinte o próprio MRS – é um partido político com muitas particularidades, de modo que qualquer análise não pode esquecer seu traço de origem. Ela nasceu nos anos 60 como movimento armado para derrubar a ditadura de Anastásio Somoza Debayle, e por tanto, este ativismo demandava dos militantes colocar a própria vida em risco.

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Isso – podemos argumentar tomando em consideração o debate teórico que realizamos no capítulo II – eleva o debate sobre a identidade que operou naquele contexto. Os atores foram capazes de se envolver no ativismo, totalmente cientes de que poderiam ser assassinados, questão que, claramente interroga de maneira frontal a literatura que por anos explicou o engajamento dos atores a partir da necessidade de maximizar os benefícios individuais. Provavelmente isso explicaria porque o movimento foi capaz de fazer a revolução, e por tanto, capaz de hegemonizar os códigos discursivos ao redor da construção democrática. Mais do que corporificar uma ideologia partidária, segmentada e que corresponde a interesses particulares, a FSLN foi associada a um projeto de nação em um momento muito particular. Apostar pelo sandinismo pós-derrubada da ditadura, significava mobilizar os anseios de um projeto nacional democrático, equitativo e orientado pela justiça social dos quais carecia ferozmente a ditadura somozista. Dessa forma, o sandinismo assume aqui uma dimensão histórica, coletivamente apropriada e que transborda os limites partidários. Mas com o fracasso do projeto revolucionário em 1990, a FSLN se transformou em mais uma expressão (importante é claro, mas não mais a única) do sandinismo. O processo bem sucedido de construção da identidade sandinista que a FSLN construiu entre os anos 70 e 80, afinal conspirou contra seu próprio projeto de partido único, e vanguarda das massas. A isso se acrescentaram as transformações que a FSLN fora experimentando ao longo dos anos 90 e começo de 2000, que fizeram dele, segundo Puig, um partido cartel. A divisão sandinista de 1994, que teve como consequência o nascimento do MRS em 1995 e o afastamento das organizações de massas, não só disseminou a identidade de “ser sandinista” em diversas arenas (na FSLN, mas também no MRS, nas associações, nas redes feministas, etc) e, por tanto, foi motivador de disputas sobre quem “de fato é” (e não é) sandinista. Acreditamos que a aliança do movimento feminista com o MRS exprime adequadamente essa disputa. As organizações das redes feministas (particularmente do MAM) se consideram depositárias do verdadeiro legado sandinista, e essa mesma identidade atribuem ao MRS. A confiança entre ambos os atores, que suscitou ao mesmo tempo a interação, está permeada por esse entendimento, desde que os membros de ambos os lados se colocam em total confronto ao projeto de volta ao poder de Daniel Ortega que, na visão do MAM- MRS, foi quem traiu à causa sandinista original.

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É neste ponto onde a trajetória assume relevância como categoria para explicar a interação. O acordo entre partido e movimento informa sobre quanto cada um sabe do outro, e por tanto, o que podem esperar dos acordos que esta interação suscite. A maior dificuldade de trabalhar com trajetória, e assim foi observado na nossa experiência no campo, é que não só nos exige, enquanto pesquisadores, critérios bem justificados e suficientemente transparentes na hora de escolher quais eventos do histórico são os mais relevantes na explicação das interações. Esse tipo de discricionariedade cientifica acentua mais ainda o desafio, se associado aos tipos de métodos para explicar esta trajetória. O método mais comum é indagar na memória dos atores. A questão é que tal memória é determinada por interpretações de fatos passados (sujeito de reinterpretações por parte de nós, pesquisadores) e preceitos morais que os atores possuem. Entre tanta subjetividade, faz- se necessário não só justificar e clarificar os critérios de escolha, mas de explicitar adequadamente as consequências de cada evento selecionado na nossa análise. Outra categoria relevante com que esta tese lidou de forma central foi com a da autonomia. Como explicamos ao longo da tese, e fomos vendo nos capítulos empíricos, a autonomia não é vista como um atributo dos atores, e sim como uma construção constante – e dinâmica – que se dá no plano prático dos atores. Em termos empíricos, e segundo constatamos no campo, essa autonomia tem um caráter polissêmico e multi-situado. Isto significa que por um lado, ela é alvo de diversos tipos de interpretações, de forma que instaura divergências entre as atoras, tem também uma função estratégica. Como apontamos no começo desta tese, as “atoras” do movimento usam essa categoria para mostrar um distanciamento do sistema de partidos e do estado, sem declarar uma ruptura completa. Ao ser passível de interpretações e conflitos, com um caráter estratégico, a autonomia assume uma dimensão processual, isto é, vai sendo resignificada de forma constante, e respondendo a um processo em concreto. Cada vez que nomeiam o tipo de autonomia, as atoras estão imersas num processo político concreto, seja de separação do partido FSLN (autonomia organizacional e política), seja para dialogar com o estado (autonomia defensiva) ou bem para negociar com outros atores da cena partidária (autonomia dialogante). Essas diversas categorias são construídas no decorrer da ação. Em termos teóricos, essa categoria esteve muito vinculada à noção de identidade de gênero. Os diversos estudos aos que tivemos acesso deram conta de uma autonomia que nunca foi

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pensada na chave da não relação, mas pelo contrario, a adotaram como uma categoria relacional (traduzida aqui como estratégia de defesa do movimento) e associada à identidade de gênero (capaz de abarcar os mais diversos interesses das mulheres organizadas). Anelamos a que essas compreensões sobre as múltiplas dimensões da autonomia possam também contribuir com o debate relacional no processo de atualização e reificação de diversos conceitos com os que analisamos o ativismo e sua inovação contemporânea. Por fim, assumimos nesta tese o risco de propor um modelo analítico para explicar a interação entre partido e movimento, a partir de uma zona de intersecção. Esta zona intermédia que os atores constroem, provoca alterações estruturais nos atores que interagem (criam-se novas estruturas, alteram as regras de cotas, mudam a proporção de gênero nas estruturas já existentes, etc), mas também vai estimulando alterações constantes no entorno participativo. As evidências encontradas no campo de pesquisa confirmam esse duplo impacto. O partido, MRS, não só alterou a normativa interna para retomar a regra das cotas em período eleitoral, como criou uma nova estrutura vinculada aos diretórios (Rede de Mulheres) que garante a conexão com o movimento e vai se espalhando nas múltiplas estruturas partidárias. Mas também gera tensões, na mesma medida em que a participação das mulheres nas listas de candidaturas vai desafiando o machismo presente na cultura local. O segundo impacto evidente está no entorno onde os atores interagem, não só representado na formação da UCD (como foi o caso), mas também na formatação de alianças partidárias aonde as ativistas incursionam, diluindo as fronteiras entre os atores. Temos querido chamar atenção para os fenômenos que surgem nos espaços intermédios das interações, em lugar de observamos apenas partidos e movimentos por separado. Sabemos que a partir da relação que eles costuram vão se alterando mutuamente. Porém, mais do que ver as mudanças dentro das suas próprias estruturas internas, o que nos interessa é ver as dinâmicas no campo intermédio. Focar nossa análise no espaço intermédio e diagnosticar a intersecção que ali opera nos oferece uma visão mais rica sobre a interação do que olhar para os atores em si. Não se trata apenas de contrariar as dicotomias e de descartar a oposição entre os atores, mas de explicar os processos dinâmicos e as contingências experimentadas na prática política, cujas experiências ainda precisam de diagnósticos mais completos e de esquemas analíticos acurados. Eis esse aí o nosso maior desafio.

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ANEXO 1.

Acuerdo Político Entre el Movimiento Autónomo de Mujeres de Nicaragua (MAM) y la Alianza Movimiento de Renovación Sandinista (MRS) El Movimiento Autónomo de Mujeres, en adelante denominado MAM, representado por Sofía Montenegro en nombre de la Coordinadora Política y la Alianza Movimiento de Renovación Sandinista, denominada Alianza MRS, a través de su representante legal, Luis Carrión Cruz, Considerando Que para el MAM las elecciones del 2006 adquieren un carácter estratégico porque representan la única posibilidad de encontrar una salida pacífica y civilizada a la actual crisis derivada del agotamiento del modelo económico, del cierre del sistema político, la captura del Estado por el bipartidismo caudillista y la falta de voluntad de la clase gobernante, Que para el MAM el ingreso de nuevas fuerzas políticas a la competencia electoral puede significar el inicio de la apertura democrática que el país necesita, Que para las mujeres nicaragüenses, sean participantes o no del Movimiento Autónomo de Mujeres, es fundamental contar con un Programa Político que de manera objetiva asuma sus necesidades y aspiraciones, como condición indispensable para la construcción de una verdadera democracia para todas las personas, Que la Alianza MRS representa para el MAM una verdadera alternativa de cambio y de salida para la presente crisis que vive el país, cuyos postulados programáticos coinciden con las demandas democráticas planteadas por el MAM, Que para el MRS es parte de su objetivo suscribir alianzas con los movimientos sociales y aquellos individuos y fuerzas políticas comprometidas con la ruptura del pacto y el establecimiento de un nuevo orden institucional.

Acuerdan: Cláusula primera Establecer un acuerdo político sobre la base de los Cinco Puntos Programáticos para la Construcción Democrática en Nicaragua presentado por el MAM a la Alianza MRS y que comprenden: 1. Establecimiento de la institucionalidad democrática 2. Estado laico 3. Democracia genérica 4. Justicia social

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5. Política de población Cláusula segunda La Alianza MRS ha elaborado su programa que coincide en su casi totalidad con lo planteado por el MAM y se compromete a incorporar al mismo los aspectos que aún no están contenidos y que están comprendidos en los Cinco Puntos Programáticos para la Construcción Democrática en Nicaragua, al tiempo que el MAM se compromete a proporcionar asesoría al equipo de campaña y a los candidatos(as) y activistas en el manejo de los mismos. Cláusula tercera Integrar a una representante del MAM a fin de participar en las deliberaciones en las que se defina el rumbo estratégico de la campaña y para contribuir a la supervisión-auditoría social del manejo de fondos para la campaña para la debida transparencia y rendición de cuentas democráticas a la ciudadanía. Cláusula cuarta La Alianza MRS al asumir el gobierno de la República se compromete a consultar con el MAM para la conformación del gabinete, así como el MAM se compromete a proporcionar asesoría a la bancada de la Alianza y a las comisiones legislativas que presidan. Cláusula quinta El MAM se compromete en el proceso electoral a realizar una campaña autónoma centrada en el llamado a la no abstención, la defensa del voto ciudadano, la ruptura del pacto y por la conquista de la verdadera democracia, promoviendo el programa conjunto MAM-MRS entre los electores. Así mismo, compromete su respaldo a las candidaturas del MRS en particular a las candidatas mujeres. En prueba de conformidad y aceptación, firmamos el presente Acuerdo en dos tantos de un mismo tenor, con igual valor legal, en la ciudad de Managua a los quince días del mes de junio del año dos mil seis. Por la Alianza MRS

Por el MAM

____________________ Luis Carrión Cruz

__________________ Sofía Montenegro

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ANEXO 2.

Esboço da trajetória do movimento de Mulheres para a Pesquisa

1976 – 1979

Fases da luta contra a ditadura somozista, A FSLN se consolida como o movimento de guerrilha que abala os alicerces da ditadura desde a clandestinidade. É preciso falar aqui das três tendências que caracterizaram a guerrilha. A revolução se deu em Julho de 1979, mas não só como uma união das três tendências. Resultou também do surgimento de duas redes que aglutinou múltiplos setores sociais (universidades, médicos, professores, moradores, etc) para além das frentes de luta armada

Surgimento de AMPRONAC (a literatura coincide em que AMPRONAC é a gênese do movimento de mulheres. Fontes: Entrevista a Gloria Carrion e.Depoimento de Lea Guido no livro de M. Randall) 1984 - 1987.. Participação no governo revolucionário, situação do nascimento das Secretarias da Mulher nos sindicatos filiados ao partido ( ATC e CST). A FSLN desintegra AMPRONAC e impõe a formação de AMNLAE que é determinada pela FSLN com a “organização única” das mulheres. Fontes chaves: Entrevista a Maria Teresa Blandon, Sandra Ramos e Sofia Montenegro

1988 – 1990

Começa o debate sobre a “Autonomia”. Aqui destacam as questões sobre o Congresso de 1988 e as eleições de 1990 que conduziram ao fim da revolução. O elemento mais importante aqui é o surgimento dos “Coletivos de Mulheres” em localidaes como Masaya, León e Matagalpa.

Destaque sobre 1991 e o “Festival do 52%” que conduziu ao “Encontro de Unidas na Diversidade”. O destaque do momento foi o de ruptura com o partido FSLN e a própria declaração de Autonomia. A decisão que marcou foi o surgimento das redes (influência internacional e da cooperação). Entre as ONGs maiores estão LA MALINCHE, LA CORRIENTE e LAS BUJIAS. Fontes chaves: Entrevistas a Sofia e Maria Teresa Blandon e Geni. AMNLAE não participa mais desse processo e algumas ativistas começam a se desvincular dessa associação.

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1994 – 1996

Crise da FSLN, primeiro grande racha do partido e nascimento do MRS. A tensão entre as duas tendências explode e impacta fortemente nas “organizações de massas”. Crise na CST e a perseguição contra Sandra Ramos... Surge o MEC e a CNF. Entrevistas chaves: Maria Teresa B, Maria Teres Fernandes. Sandra R e Ana C.

1998

Caso Zoilamérica. Ortega é acusado pela enteada por estupro quando ela tinha 15 anos. O maior impacto deste processo foram as dissidências da RMCV e a radicalização do controle de Ortega sobre a FSLN. É importante resgatar daqui a questão do congresso do partido, a ratificação de Ortega e o pacto com Aleman. AMNLAE começa a sua crise. Aqui é chave Sofia, Violeta e Patricia A CNF não consegue se consolidar como a maior rede feminista. As primeiras que romperam com a FSLN não entraram na CNF e alguns até argumentam que teve problemas de lideranças e condutas arbitrárias. Em 2004 surge o MAM com a intenção de superar os conflitos anteriores, mas a sua visão sobre os partidos e a aliança com o MRS gera uma nova ruptura e surge o “movimento feminista” (volta ao passado com LA CORRIENTE)

2006

É o ano das eleições marcado pelo crescimento do MRS, mas que sofre com a morte de Herty Lewites e a questão do aborto na campanha eleitoral. A FSLN volta ao poder. E o governo 2007 – 2011 marca um distanciamento forte que faz o movimento voltar aos seus debates internos sobre a Autonomia. Atores chaves neste momento: MAM, MEC, Movimento Feminista, Os Coletivos que continuam sobrevivendo e a CMR (Coordenadora de Mulheres Rurais)

O foco da pesquisa é poder explicar como essas relações foram definindo as interações que aconteceu durante o primeiro mandato de Ortega 2007 – 2011 em termos de relações do movimento com o Estado e o partido político. Vale a pena dar uma olhada sobre a aliança PLI e a formação da UCD para observar redes e autonomia.

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ANEXO 3.

INFORME RED MUJERES MRS Enero 2011- Febrero 2013 Un 13 de Noviembre del 2010, nosotras las mujeres del MRS, fundadoras y no fundadoras, jóvenes y adultas, pobres y no pobres, del campo y de la ciudad nos juntamos para reafirmar nuestro compromiso con la patria y de manera particular con las mujeres. Coincidimos con lo que decían nuestras hermanas del Partido de la Izquierda Erótica que “para salvar este país, las mujeres tenemos que actuar y poner orden a esta casa destartalada y sucia que es nuestra patria”. Nuestro liderazgo en la vida partidaria es necesario, por lo que apegadas a los principios del partido y nuestros estatutos decidimos organizarnos en la Red de Mujeres MRS y asumimos el compromiso de promover la participación de las mujeres en la vida política, social y económica de Nicaragua. En Septiembre del 2010 iniciamos procesos de formación sobre nuestra identidad como mujeres, lo que llevó al lanzamiento oficial de la Red en Noviembre. Luego a inicios del 2011 empezamos nuestro proceso de planificación estratégica, logrando tras varios encuentros concluir un plan estratégico en conjunto, el cual ha sido clave para guiar nuestro accionar. Cabe mencionar que ya desde el 2003 habían habido esfuerzos desde las mujeres del MRS por planificar el accionar de la Red, espacio que ha existido en los estatutos desde la fundación del partido. A inicios del 2011 le dimos forma al funcionamiento de la Red, organizando un grupo promotor y enlaces en diversos departamentos para impulsar la misión, visión y objetivos estratégicos que nos habíamos planteado: 2011 - 2015 Misión: Somos una red que promueve la participación de calidad de las mujeres en el MRS con el fin de fortalecerlo y provocar cambios que nos conduzcan a la equidad entre hombres y mujeres dentro del partido, en la casa y en la sociedad. Visión: Una red organizada con presencia beligerante y propositiva en las estructuras de toma de decisión del Partido y en cargos públicos Objetivos estratégicos: 1. La Red de mujeres del MRS se encuentra constituida y reconocida institucionalmente y entre las organizaciones de mujeres 2. Mujeres acceden a cargos de elección popular y en las estructuras del MRS. 3. Las mujeres inciden en la legislación y políticas públicas nacionales y municipales e intercambian experiencias con mujeres de partidos políticos de otros países.

Mucho de nuestro quehacer en el 2011 giró en torno a las elecciones nacionales y los respectivos procesos internos para elegir a nuestros candidatos a diputados y diputadas dentro de la Alianza PLI. Para ello, las mujeres de la Red nos organizamos con el fin de promover las candidaturas de mujeres en el Consejo Nacional. Nos ayudamos en el diseño de volantes, fotos y videos de las candidatas,

222 publicitamos sus candidaturas utilizando FB. Incluso nos pistoleamos, maquillamos unas a las otras y aconsejamos en aspectos de imagen. ¡Hasta una canción nos inventamos! pero más importante es que logramos apoyarnos y darnos valor las unas a las otras. En el Consejo, en el que los votantes eran primordialmente hombres, logramos un apoyo contundente hacia nuestras candidatas mujeres, quedando en primer lugar mujeres en: Masaya, Managua, Estelí, Chinandega, Matagalpa, Nueva Segovia. Otras 5 mujeres quedaron en segundos puestos, otras 5 en tercer lugar y otras 5 más en otras posiciones. Nuestra organización y comunicación tuvo un impacto significativo en la promoción de las candidatas mujeres y nos sentimos orgullosas de haber contado con candidatas renovadoras capaces, comprometidas, trabajadoras y beligerantes. A pesar de los logros en el Consejo, tras finalizar el complejo proceso de negociación con la Alianza PLI, varias de nuestras candidatas no lograron quedar en puestos ganadores. Sumado a esto el Orteguismo se encargó de atacar directamente a algunas, el caso de Ana Margarita Vijil, quien fue inhibida ilegalmente de participar como candidata. El 2011 representó un año de intensa actividad en tareas relacionadas a las elecciones nacionales. Nuestras candidatas trabajaron arduamente en el desarrollo de sus respectivas campañas, así como en la promoción y defensa del voto, proyectando nuestro liderazgo dentro y fuera del partido. Tras el masivo fraude, las mujeres MRS, junto a nuestros compañeros, documentamos y salimos a denunciar y protestar. Aun con el fraude electoral, logramos que quedaran electas 3 diputadas Renovadoras, quienes se han destacado por su trabajo beligerante dentro y fuera de la Asamblea, así como en las diversas secretarías e instancias del partido. Durante el 2011 la red jugó un papel importante como canal de comunicación entre las mujeres y contribuyó a incentivar y garantizar la participación de mujeres en los diversos procesos de formación política (Taller sobre estrategias de campaña; taller sobre estatutos con enfoque de género; curso corto en gerencia política, entre otras reuniones inter-partidarias) . En el 2012 la Red continuó su actividad y trabajó fundamentalmente en lograr su ampliación y una mayor proyección fuera del partido. Las mujeres nos organizamos de cara a garantizar nuestro espacio en las estructuras del partido, en las directivas municipales y departamentales, en la directiva nacional y en el consejo. Para ello realizamos diversas reuniones con mujeres, incluyendo 2 giras departamentales (Granada, Masaya y León-Chinandega), en las que informamos sobre el quehacer de la Red y nuestras propuestas de reforma a los estatutos y, por supuesto, animamos a las mujeres a postularse como candidatas en las directivas y como convencionales. Entre los logros más importantes del 2012 estuvo la aprobación en la Convención de las propuestas de reforma a los estatutos impulsadas por la Red; dirigidas a garantizar la participación de las mujeres en pie de igualdad y en condiciones de equidad en órganos de dirección del partido y en cargos de elección popular, fortaleciendo con ello a la Red.

Arto.7 Los miembros de la Junta Directiva Nacional electos por la Convención Nacional, de las juntas directivas departamentales y regionales y de las juntas directivas municipales, así como los delegados y delegadas a la Convención Nacional, serán en un cuarenta por ciento mujeres y en un cuarenta por ciento hombres, siendo el veinte por ciento restante de libre elección..

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Arto. 37 La Junta Directiva Nacional es el órgano de conducción política del Partido y estará integrada por: e) Quien desempeñe, respectivamente, el principal cargo en la organización juvenil y en la Red de Mujeres del MRS. Arto. 53 En todos los casos en que deben elegirse o designarse candidaturas para cargos de elección popular serán en números iguales, mujeres y hombres. Otro logro en la Convención fue la elección de 9 mujeres (de un total de 13 cargos) en la directiva Nacional del partido, incluyendo la presidenta del partido. En este último período, la Red ha continuado siendo un medio para capacitarnos, impulsar y desarrollar nuestros liderazgos, acompañarnos, motivar e integrar a más mujeres al partido. Fundamental ha sido el desarrollo de un ciclo básico de formación para las mujeres electas en las nuevas directivas municipales, el cual incluye temas de género, liderazgo, poder, uso básico de correo y nuevas tecnologías, entre otros. Al igual que en el año anterior se ha garantizado la participación de mujeres en las diversas oportunidades de formación política (Academia de mujeres, curso avanzado participación política, curso partidos políticos, curso oratoria y debate, etc.). El 2012 también representó un salto cualitativo en cuanto a ampliar nuestra coordinación con otros grupos de mujeres (participación en reuniones y encuentros). A la vez logramos proyectarnos más a través de nuestros posicionamientos sobre la coyuntura nacional (8 de Marzo; Repudio a ataque de Lisset Sequeira; Día internacional cáncer de mama; repudio a violación de niña en zona seguridad Ortega; Día Internacional en contra de la violencia hacia las mujeres -25 Noviembre) y con nuestra participación en las diversas marchas del movimiento de mujeres en defensa de los derechos de las mujeres y en contra de la impunidad policial y judicial (Plantón frente a Policía Nacional, Marcha 25 Nov, Marcha 10 de Dic.). Nuestras diputadas han jugado un papel destacado en temas claves como el Código de la familia, que incluye la incorporación de los gabinetes de la familia como mecanismo de control del Orteguismo. Hay muchos retos aún por delante; pasito a paso hemos ido avanzado en nuestras metas. Ahora, a seguir oganizándonos y capacitándonos. Sólo juntas podremos conseguir que las mujeres tengamos empleo digno y con igual salario que los hombres; que no sigan muriendo mujeres innecesariamente por embarazo o parto, ni a manos de sus compañeros de vida, esposos, familiares o conocidos; que nuestros impuestos sirvan para contribuir a la convivencia social en la diversidad y pluralidad que representamos todas las mujeres y que se exija que aporten más los que más ganan; que tengamos un país en paz en nuestras casas, en nuestros lugares de trabajo, en nuestros barrios, en la calle y en los espacios públicos y políticos; que en estos lugares se respete la dignidad de cada mujer y de cada hombre y que el cuerpo de nosotras las mujeres no sea objeto de negociación ni para diseñar leyes y políticas públicas ni para aspirar a cargos públicos o partidarios: ningún puesto a cambio de nuestros cuerpos.

¡QUE VIVAN LAS MUJERES DE NICARAGUA! ¡QUE VIVAN LAS MUJERES DEL MRS!

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