Autoria de livros didaticos demandas saberes e marcas de negociações

May 31, 2017 | Autor: Adriana Ralejo | Categoria: Ensino de História, Livros Didáticos, Autoria
Share Embed


Descrição do Produto



Meyer (2007) estabelece um histórico sobre a concepção da retórica criticada por Platão como arte de manipulação aos estudos atuais, em que sua concepção foi redefinida e legitimada como metodologia de pesquisa. Para ver mais, consultar MEYER, Michel. A retórica. São Paulo: Ática, 2007.
A condição de que a obra selecionada tenha sido aprovada pelo PNLD foi determinada não pela valorização desse tipo de avaliação em si, mas porque, sob o argumento de que a obra fosse aprovada e entrasse em circulação no grande mercado das escolas públicas, o autor teve que seguir regras dessa avaliação ao qual está submetido e obteve sucesso ao ser aprovado.
COTRIM, G. História Global: Brasil e Geral – Manual do Professor. São Paulo: Saraiva, 2012.
Para acesso ao artigo, ver htttp://gilbertocotrim.com.br/livro-didatico-analises-e-avaliacoes-em-debate/ Acesso em 02/01/2014.
Reconheço que a concepção sobre a interdisciplinaridade é tema de grande discussão nas pesquisas educacionais, mas nesta ocasião apenas demonstro a concepção do autor sobre o assunto que não apresenta especificamente como compreende o termo.


5

Autoria de livros didáticos de História: demandas, saberes e marcas de negociações
Este trabalho tem por finalidade apresentar resultados parciais de pesquisa de mestrado que teve por objetivo central analisar como se estabelecem relações de autoria na produção de livros didáticos de História onde saberes são mobilizados e ressignificados. Para isso, foi preciso compreender mais detalhadamente o papel dos autores em meio às contingências da produção, identificando as demandas envolvidas nesse processo e como elas são apropriadas pelo autor em seu discurso didático.
Compreendendo o livro didático como parte de um currículo prescrito de grande complexidade por se situar no cruzamento da cultura, da pedagogia, da produção editorial e da sociedade (STRAY, 1993 apud Choppin, 2004), este material também se constitui como parte do conhecimento histórico escolar produzido por sujeitos que intitulamos como autores. Nesta oportunidade busco compreender como se estabelece a relação da produção desse tipo de conhecimento com a mobilização de saberes pelos autores de livros didáticos através da análise de fontes que expressam marcas de autoria.
Também considero importante relacionar o papel desses autores com as relações de poder envolvidas na produção de obras didáticas. Busco compreender como um autor de livro didático estabelece diálogos com as diversas demandas para produzir o que ele considera uma boa obra destinada à educação. Para que seu produto (o livro) entre no mercado editorial e seja aprovado pelas políticas avaliativas, é necessário seguir normas e exigências e, além disso, estabelecer laços atrativos com o público alvo. O livro didático é produto de um processo de negociação que visa construir consensos entre sujeitos e grupos sociais que disputam pela hegemonia de seu projeto. Essa relação de negociação constitui a primeira parte deste artigo cuja discussão é guiada através do referencial teórico da retórica.
Num segundo momento, apresento as opções metodológicas dessa pesquisa a fim de rastrear marcas de negociações e autoria através de duas fontes distintas: um artigo publicado online pelo próprio autor sobre livros didáticos e o Manual do Professor que acompanha a obra didática. A seguir, realizo uma análise sobre essas fontes tendo como foco responder sobre quais saberes o autor do livro didático mobiliza em suas produções. Como ele os mobiliza? Com quem o autor busca dialogar? Seus pares? Professores? Alunos?

1. Negociando distâncias
Para compreender essas negociações estabelecidas na produção do livro, recorro à contribuição teórica do campo da retórica que permite articular os interesses e as concepções de um autor daquilo que ele acredita sobre o que deve ser ensinado com as demandas de seu público.
A retórica é um campo de estudos que oferece possibilidades de decodificação e desmistificação do discurso. Acompanhando a visão de Michel Meyer, a retórica não é só entendida como uma arte de manipulação, mas também pode ser concebida como uma forma de promover a adesão da boa fé quando nos permite problematizar e buscar compreender a dimensão metafórica do discurso. "A retórica se inscreve, então, nesse vazio entre o literal e o metafórico, entre a presença imediata e aquilo que existe atrás" (MEYER, 2007 p.21).
Os estudos dessa nova concepção da retórica inaugurados por Perelman (1996) com uma perspectiva mais racional sobre o indivíduo, em que se buscou compreender como os argumentos são estruturados, passam a ser aprofundados por Meyer (2007) e Reboul (2004) considerando a subjetividade desse indivíduo. Reboul defende que a persuasão não pode ser analisada somente com base nos argumentos, mas também precisa que se considere a dimensão da oratória, que implica as relações de afetividade e a empatia entre o orador e o público. Ou seja, a retórica consiste em estudos de técnicas de persuasão, mas para compreendê-la, é preciso considerar o acordo estabelecido entre o auditório e o orador, e os argumentos moldados com base nesta relação.
Qual o objetivo de um livro didático? Dentre as várias respostas possíveis a essa pergunta, podemos considerar a tentativa de estabelecer uma comunicação com os alunos sobre o conhecimento escolar proposto. Mesmo que de forma provisória, devido às constantes incertezas e mudanças provocadas pelo tempo, a retórica representa a busca da construção de um consenso a favor da comunicação. Comunicar significa se fazer compreender pelo outro. E, para isso, é preciso renunciar alguns de seus interesses e formas de pensamento em favor do outro para lhe fornecer meios de alcançar os pensamentos do autor de forma eficaz (MEYER, 2007).
Nos estudos da retórica são consideradas três dimensões que configuram o discurso persuasivo: éthos, páthos e lógos. As três dimensões se articulam na significação do discurso, mas, nas pesquisas, o foco pode ser enfatizado em cada uma, de acordo com os interesses investigativos.
Observemos que o desenvolvimento do edifício retórico, da introdu ão à conclusão, recobre três grandes momentos: o éthos se apresenta ao auditório e visa captar sua atenção a respeito de uma questão, em seguida ele expõe o lógos próprio dessa questão, eventualmente apresentando o pró e o contra. E o orador conclui pelo páthos, pois dessa vez se trata de atuar no coração e no corpo do auditório, se possível agindo sobre suas paixões, em todo caso sobre seus sentimentos, e mesmo sobre suas emoções (idem p. 48 grifo do autor).

O lógos é o meio que permite estabelecer a comunicação que expressa a diferença existente entre o orador e seu auditório, na busca de sua persuasão pela força de seus argumentos ou pela beleza de seu estilo, comovendo a quem se dirige.
O páthos é qualificado como o auditório que se quer seduzir, convencer ou encantar. Na perspectiva de Aristóteles, o auditório era considerado como submisso e passivo ao orador, mas essa concepção veio sendo mudada, pois é justamente em função desse auditório que o discurso é moldado pelo orador, comandando assim o jogo da linguagem e a postura do autor. Se o auditório muda, o discurso também muda, levando o orador a se adaptar à nova configuração.
Como esse auditório se constitui no caso do discurso presente nos textos didáticos? Para quem é dirigido o livro? Neste caso, o auditório ao qual o livro didático é destinado, se diferencia daquele relacionado ao professor em sala de aula. O autor de livro didático está preocupado com um auditório múltiplo que inclui outros sujeitos além dos alunos. A persuasão envolve também os professores que poderão adotar o livro, os editores que irão publicá-lo, os avaliadores do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) que irão analisá-lo e os pais dos alunos, aqueles compram o material que seus filhos estarão estudando, podendo julgá-los como bons ou ruins.
O foco deste trabalho se volta para o lugar que expressa o éthos e como ele se constitui na relação ao seu auditório (páthos) através de seu discurso (lógos).
O éthos é um domínio, um nível, uma estrutura – em resumo, uma dimensão –, mas isso não se limita àquele que fala pessoalmente a um auditório, nem mesmo a um autor que se esconde atrás de um texto e cuja "presença", por esse motivo, afinal, pouco importa. (idem p. 35 grifo do autor)

Dessa forma, a enunciação não corresponde necessariamente ao autor como indivíduo, mas ao conjunto de sujeitos que estão envolvidos na produção do livro didático: editora, revisores, diagramadores, ou seja, aqueles que se mobilizam para concretizar a obra. O éthos corresponde ao domínio daquele que tem autoridade e legitimidade para produzir um discurso que se constitui na busca de que o auditório imaginado se identifique com o texto e o aceite.
Oliver Reboul, preocupado com essa concepção de discurso como um enunciado puro, sem a presença do "eu", reforça a importância de saber quem é que fala. Sobre isso, o autor diz que:
Primeira pergunta: quem fala? Ao contrário de certas análises estruturais, a leitura retórica assume a responsabilidade dessa pergunta, considerando úteis quaisquer informações referentes à vida do autor e à sua doutrina. Mas essas informações raramente são indispensáveis. E, assim, a leitura retórica postula que o texto tem autonomia e é entendido por si mesmo. (REBOUL, 2004, p. 140).

E acrescenta:
Finalmente, como o autor se manifesta em seu discurso? Esse é o problema da enunciação. (...)
Cumpre mencionar dois casos notáveis. O primeiro é aquele em que o eu do discurso não é o de seu autor: isso se observa na citação ou na prosopopeia. O segundo é o caso em que não há eu algum, em que o discurso se apresenta como puro enunciado, assim como os textos escritos por juristas ou geógrafos. Mas a ausência de marcas de enunciação não significa ausência de enunciação: os textos mais objetivos na forma às vezes são os mais tendenciosos. (idem, p. 141 grifo meu)

Destaquei o trecho que nos leva a relacionar a análise da retórica com a posição de atuação dos autores de livros didáticos. Em um discurso que, a princípio, aparenta não possuir marcas pessoais de autoria, dando autonomia ao texto para ser entendido por ele mesmo, Reboul indica que essa aparente ausência do "eu" não significa que não haja escolhas por quem produziu o texto e alerta sobre o quão tendenciosas podem parecer essas mensagens "sem autor".
Entre éthos e páthos existe uma distância definida por múltiplas diferenças (social, política, ética, ideológica, intelectual). A comunicação (lógos) surge como forma de resolver essa diferença, negociando e formando novas significações. É através do conceito de negociação à distância (MEYER, 2007) que encontro um instrumento teórico potente para entender as relações que o autor de livro didático estabelece para produzir uma obra para um público amplo, desconhecido e diferente entre si, mediante várias exigências do meio em que ele se encontra. Essa negociação se estabelece como um acordo entre sujeitos através da linguagem. Essa distância pode ser reduzida, aumentada ou mantida consoante o caso (MEYER, 1998 apud MONTEIRO & PENNA, 2011).
O que negociamos pela retórica? A identidade e a diferença, a própria, a dos outros; o social que as enrijece, o político que as legitima e por vezes as sacode; o psicológico e o moral em que elas flutuam. (...) Negociar a distância não é acertado antecipadamente, na maioria dos casos, e a relação interpessoal é então marcada por uma problematicidade que não é destituída de autoridade. (MEYER, 2007 p. 26, grifo do autor).

2. Buscando marcas de autoria
É considerando essas negociações que os autores de livros didáticos estabelecem uma relação para produzir uma obra que seja aceita por seu público, que realizo uma análise de um livro didático de História destinado ao Ensino Médio, publicado por um longo período no mercado editorial e aprovado pelo PNLD.
As obras selecionadas foram analisadas em diversos aspectos: a visão do autor sobre a importância de uma obra didática, a constituição técnica das obras e os conteúdos presentes nesses livros. Neste trabalho apresento os resultados de análise quanto ao primeiro aspecto, apresentando o discurso do autor fora do texto didático através de fontes que possam expressar os saberes que mobilizam, como no Manual do Professor do livro e em texto publicado pelo próprio autor em portal de internet. Que indícios de sua autoria podem ser encontrados em seu discurso? Quais os movimentos realizados no processo de sua constituição como autor/éthos?
Foi selecionada para análise a obra "História Global: Brasil e Geral" de autoria de Gilberto Cotrim, publicada pela Editora Saraiva desde o ano de 1997 até a data em que este artigo foi elaborado. O primeiro movimento investigativo realizado foi buscar informações sobre esse autor através de sites de busca na internet. Foi possível perceber através dos resultados encontrados que Cotrim possui uma longa trajetória em publicações no mercado editorial, o que instigou mais ainda esta pesquisa acerca do papel da autoria como uma atividade profissional, um éthos, em que há uma grande dedicação – no caso específico, a elaboração de obras didáticas, e não apenas a idealização de uma vocação para autor.
É preciso salientar que apesar do foco investigativo ter se voltado para um sujeito, compreendo que os conceitos de autoria e de sujeito não se restringem somente a um ser racional, mas um papel político desempenhado de forma coletiva. O éthos não constitui uma pessoa, mas um lugar de disputas e negociações que, no caso do livro didático, acabam por definir um nome, no caso Gilberto Cotrim, como responsável pela obra. Mas a autoria vai para além de um nome.

2.1 Fonte 1: artigo publicado na internet
Uma das fontes sobre a qual nos debruçamos para rastrear as marcas de saberes desse autor foi um texto de sua própria autoria publicado em 05 de março de 2013 em seu portal de internet intitulado Livro Didático: Análises e Avaliações em Debate. A leitura realizada não teve como objetivo buscar referenciais para desenvolver uma discussão sobre o livro didático, mas perceber quais os sentidos que o autor atribui a esse instrumento através de seu discurso.
Ao discutir sobre o papel dos livros didáticos, o texto analisado apresenta uma estrutura diferente da narrativa dos textos educacionais. Com citações e referências teóricas fortemente ancoradas na área de ensino de História, aparenta ser direcionado a pesquisadores e avaliadores, apresentando características de um texto científico.
Ao longo do texto são citados pesquisadores normalmente utilizados nas pesquisas sobre livros didáticos e ensino de História como Circe Bittencourt, Kazumi Munakata e Katia Maria Abud. São também utilizados pelo autor referenciais da teoria da História (Marc Ferro e Edward Carr) e da produção escrita (Roger Chartier, Eco e Bonazzi). A estruturação dos argumentos pautada nas discussões das pesquisas sobre o assunto, busca demonstrar que o autor está preparado para abordar questões e responder a críticas sobre o livro didático.
Essa preparação teórica do autor permite que ele desenvolva os seguintes argumentos sobre os livros didáticos: a importância desse objeto pedagógico para professores e alunos, as influências das políticas oficiais, do mercado editorial, das atualidades e das críticas sobre os conteúdos. Destaco e analiso trechos do texto que evidenciam esses aspectos.
Para Cotrim, o livro é destacado como um recurso educativo que é referencial pedagógico para professores e alunos. O autor assume a complexidade da análise do livro didático em todos seus aspectos e contradições. É apontado em diversos momentos que o uso do livro depende da apropriação que o professor faz em sala de aula, sendo que a autoria se estende para além do que está escrito na obra:
Assim, o livro didático é diferente de si e de outro não apenas pela mudança de seu conteúdo, mas pela modificação de suas formas de uso. O livro muda quando mudam leitores e leituras. E a autoria do livro inscreve-se na autoria das aulas – esse momento de interlocução entre professores, alunos e materiais pedagógicos. (COTRIM, 2013, s/n; 2012, p.05 grifo meu).

O trecho acima também está presente no Manual do Professor do livro didático analisado e possui uma concepção do autor sobre a autoria do conhecimento escolar. De acordo com o fragmento acima, o que dá ao livro uma forma singular não é o conteúdo em si, mas a apropriação que se faz dele. Faço um paralelo com o que Chevallard (1991) chama de transposição didática externa, que é o exercício feito por aqueles que decidem sobre as políticas curriculares, e a transposição didática interna, que depende da apropriação que o professor faz dessas políticas na sua prática em sala de aula.
Em outros momentos o autor enfatiza a importância do papel do professor na autoria do conhecimento, ou seja, ele se isenta da obrigação de que um livro didático tenha um caráter "completo" e abre a possibilidade de que seu discurso possa ser desconstruído, reconstruído e ressignificado por seus leitores. O autor diz que "vale lembrar que nenhum livro didático substitui o trabalho do professor" (COTRIM, 2013, s/n). A importância do livro ganha significado em sala de aula sendo mais um instrumento que contribui para a melhoria da educação no país:
Enfim, o livro didático pode ter sua importância na sala de aula. Mas está bem aquém da bipolaridade herói ou vilão. No fundo, é instrumento modesto no espaço amplo desta escola brasileira que, maltratada, só ganhará relevância quando integrar o contexto da valorização social da educação no país. Afinal, a educação precede a escola. (idem).

O autor constrói sua argumentação tanto neste texto quanto no Manual do Professor, sempre pautado nos Parâmetros Curriculares Nacionais, reforçando a importância das políticas oficiais e demonstrando que está buscando adequar sua obra às essas exigências.
O livro didático tem sido, desde o século XIX, o principal instrumento de trabalho para professores e alunos, sendo utilizado nas mais variadas salas de aula e condições pedagógicas, servindo como mediador entre a proposta oficial do poder expressa nos programas curriculares e o conhecimento escolar ensinado pelo professor. (idem).

A discussão sobre as diversas facetas do livro didático é conduzida através dos estudos que o autor realizou sobre o tema, dentre eles, aqueles que reconhecem o livro didático como obra editorial e mercadológica. A presença desses e dos outros elementos já citados não significa que o autor pense de tal forma. Não se pode esquecer que este é um texto escrito com o intuito de tornar-se público e disponível para leitura de qualquer leitor e o sujeito que vai buscar um texto desse tipo através da internet, provavelmente está envolvido e atento sobre as questões educacionais. Porém, não se pode negar que ao escrever tais conteúdos, o autor ao menos está ciente dessas problematizações.
Quando o autor aborda sobre a questão editorial, ele não atribui o trabalho que gera como fruto que veio totalmente de si.
(o livro didático) é obra editorial que, além do trabalho do autor, somente se materializa em função de diversos atores envolvidos no processo de publicação (editores, pareceristas, pesquisadores iconográficos, ilustradores, copidesques, gráficos). (...) Desse modo, este trabalho de publicação não se restringe à produção formal do livro, pois comparece ativamente no espaço da produção de sentidos. (idem, grifo meu).

Quanto à concepção do livro como obra mercadológica, o autor designa como clientela escolar as escolas particulares e as instituições educacionais do Estado, que faz a intermediação da compra para alunos da escola pública.
Como mercadoria, a obra didática está sujeita a uma série de injunções e condicionamentos: seu conteúdo está relacionado a currículos e programas oficiais, elaborados pelas próprias Secretarias de Ensino; avaliação de entidades governamentais; práticas de ensino utilizada por professores. (idem).

Ao considerar que seguir as especificações das políticas públicas é um critério que torna o livro uma mercadoria, o autor valoriza o Estado como seu maior comprador e atribui aos conteúdos oficiais curriculares como algo que é mais de valor mercadológico do que considerando a sua importância dessas políticas para a melhoria da educação. Considero que ao seguir os PCNs e PNLD tornou-se mais um critério para o livro conquiste maior número de vendas e aprovações do que a consciência da produção dessas políticas públicas em prol de uma educação de qualidade.
Ao considerar o livro didático como um dos recursos utilizados em prol da educação, o autor considera também o uso de outros tipos de recursos que ajudam no processo de ensino aprendizagem:
"Para garantir aos alunos a aprendizagem de habilidades e apropriação de conteúdos significativos, a escola contemporânea precisa lançar mão de múltiplos recursos educativos, incluindo jornais, revistas, filmes, hipermídia" (idem).

Cotrim se contrapõe a visão de transmissão dos conteúdos de forma única adotando a perspectiva da interpretação dos fatos. O autor considera que o ato de narrar, inclusive a narrativa didática, não constitui na descrição dos fatos tal como eles foram. Mas essa narrativa parte de um autor, que adota uma perspectiva sobre os fatos, de uma determinada maneira, direcionado a certo público.
Podemos comparar a atribuição que o autor dá ao historiador como um sujeito do conhecimento que produz uma interpretação sobre o fato com o ofício de um autor de livro didático.
"Assim, toda narração de fatos traz consigo atos de interpretação, que demandam pesquisar, selecionar, ordenar, valorizar e atribuir significados ao processo histórico investigado" (idem).

2.2 Fonte 2: O Manual do Professor
Outra fonte que permitiu a análise do discurso do autor foi o Manual do Professor das edições de 2010 e 2012 que apresentam uma explicação detalhada sobre a proposta do autor para a obra. Esse novo modelo de manual do professor com especificações estabelecidas pelo edital do PNLD aboliu o modelo de manual que continha somente respostas dos exercícios propostos no livro. O novo manual do professor:
(...) não pode ser apensas cópia do livro do aluno com os exercícios resolvidos. É necessário que ofereça orientação teórico-metodológica e de articulação dos conteúdos do livro entre si e com outras áreas do conhecimento; ofereça, também, discussão sobre a proposta de avaliação da aprendizagem, leituras e informações adicionais ao livro do aluno, bibliografia, bem como sugestões de leituras que contribuam para a formação e atualização do professor. (BRASIL, 2009).

Seguindo essas exigências, o autor apresenta no manual do livro uma discussão que aponta os seguintes itens: orientação teórico-metodológica; avaliação pedagógica; interdisciplinaridade; cultura afrodescendente e indígena; bibliografia; orientações, sugestões e respostas; leituras complementares e atividades complementares.
No campo de orientações teórico-metodológicas, seguindo a linha das pesquisas sobre teoria da História, o autor demonstra compreendê-la como uma ciência em construção que se configura de acordo com o contexto em que o historiador vive.
O conhecimento histórico se desenvolve como processo de contínuas visões e revisões de outros trabalhos e apresentação de novas perspectivas. (...) o historiador constrói um conhecimento limitado e seletivo, baseado em escolhas, filtros, esquecimentos e intencionalidades (COTRIM, 2012 p. 04).

Cotrim aproxima a característica da produção da obra didática do ofício do historiador, considerando a autoria como um processo de escolhas e interpretações e que depende dos alunos e professores para que seus conteúdos sejam discutidos, questionados, ampliados e aprofundados. Assim, os conteúdos dos livros precisam ser desenvolvidos em sala de aula, não representando uma suposta completude do conhecimento histórico escolar.
Esta obra didática também compartilha características do ofício do historiador. Por isso, está permeada de escolhas que se manifestam, por exemplo, nas formas de tratamento dos textos e da iconografia, na ênfase sobre determinadas questões e, também, nas ausências. Ao lado das intencionalidades existem, é claro, critérios teóricos, metodológicos e pedagógicos. (idem).

A educação é compreendida pelo autor como um processo de transmissão e produção de saberes. O desafio do professor, e também do autor, é acompanhar esse jogo do processo educacional.
Há momentos, por exemplo, em que é preciso selecionar os conteúdos a serem estudados pelos alunos, o que, inevitavelmente, implica promover escolhas de temas e interpretações históricas. (...) Há outros momentos em que é necessário empenhar-se para que os alunos desenvolvam o senso crítico em relação aos conteúdos estudados, ressignifiquem o que lhes foi ensinado e construam seu próprio saber. (idem p. 05)

O livro didático, no meio desse jogo, é um instrumento que pode contribuir para o processo de ensino-aprendizagem. O autor alerta que "o livro didático não é – nem deve ser tomado como – uma coletânea de aulas" (idem). A aula, para Cotrim, possui uma característica singular estabelecida no contato entre professores e alunos. O livro didático pode ser utilizado de múltiplas maneiras e na ordem que o professor acha que faça maior lógica para aquele momento próprio da sala de aula.
Compreendendo o livro didático como uma produção e não representação do conhecimento original e verdadeiro, o autor explica que a obra foi feita a partir de muitas escolhas: sobre a concepção de temporalidade, sobre a disposição dos conteúdos na obra, sobre o enfoque historiográfico, sobre o saber histórico escolar e sobre a noção de história como representação (COTRIM, 2014, pp. 5-7).
Sobre a temporalidade, o autor adota a sequência do passado para o presente, estimulando a percepção do aluno sobre mudanças e permanências comparado aos dias atuais. Dessa forma, Cotrim busca dialogar com um de seus auditórios – os alunos – através do uso de comparações com o tempo presente como meio que facilita a atribuição de sentidos sobre os conteúdos. Apesar de seguir a temporalidade cronológica, o autor aponta que há outras formas de se compreender o passado, indicando a outro tipo de auditório – avaliadores e pesquisadores – o conhecimento sobre outras perspectivas de abordagem historiográfica, não sendo a escolha feita pelo autor a única possível de ser desenvolvida.
A seleção dos conteúdos realizada para a explicação histórica, diante da multiplicidade de abordagens possíveis, seguiu a lógica de temas considerados pertinentes por ele à vida publica, focalizando diversas sociedades. Essas escolhas consistem em marcas da autonomia de Cotrim. O autor ainda diz que:
Não tivemos como proposta promover constante "integração" dos conteúdos, para não forçar as especificidades de cada processo. As ligações são feitas ao longo da obra de diferentes maneiras: nos textos de abertura das unidades e dos capítulos, na interpretação proposta à iconografia, nos boxes, nas atividades da Oficina de história etc. (idem).

No enfoque historiográfico, o autor assume conduzir uma história centrada na política e na economia – outra marca da autoria de Cotrim. Ciente dos questionamentos que esse tipo de enfoque pode provocar, o autor aposta na legitimidade da reflexão política e econômica como esferas fundamentais da investigação histórica.
Sobre o saber histórico escolar, Cotrim conduz uma discussão baseado nos PCNs, considerando que o livro didático reconstrói esse saber. Os assuntos que compõem esse saber transitam entre uma tradição da área de ensino e as inovações produzidas pelos novos estudos. Dessa forma, os conteúdos dos livros didáticos, ao mesmo tempo que representam um saber tradicional do ensino de História, também precisam se renovar. Este saber é constituído pelo autor com fontes de natureza variada além das documentais escritas como documentos iconográficos, públicos e privados.
Por fim, a história como representação é defendida pelo autor como:
(...) fundamental para uma história cultural que, na concepção do historiador Roger Chartier, "tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade social é construída, pensada, dada a ler". (CHARTIER, 1990, pp. 16-17) Essa concepção pode ser bem aplicada à necessidade de se identificar o modo como o livro didático apresenta suas formas e seus conteúdos, que são pensados, construídos e dados à leitura (idem p. 07).

Cotrim afirma sua concepção de autoria do historiador no que diz respeito à produção do conhecimento histórico: o autor é um sujeito que, inserido em um contexto, interpreta realidades, expressa percepções e interpretações. Ao defender que a História é uma representação, ele faz uma analogia com o livro didático cuja elaboração implica a produção de representações na constituição do conhecimento histórico escolar, logo, ele também se encaixa na posição de autor-sujeito.
No campo dedicado à discussão sobre a avaliação pedagógica, o autor expressa seu olhar sobre o aluno e passa a dialogar mais diretamente com o professor, a quem este material se destina. Até o momento então, a redação do Manual tinha um aspecto mais científico do que um diálogo do autor com seu público – o professor.
O processo de avaliação, para Cotrim, implica responder a três questões: o que, como e quando avaliar. A avaliação é pautada no objetivo geral que o autor propõe para o trabalho com os alunos: "ampliação da consciência do que fomos para transformar o que somos" (COTRIM, 2012, p.8). O autor desdobra essa consciência em duas dimensões: a consciência de si, para que possamos nos perceber como criaturas e criadores da sociedade, e a consciência do outro, levando ao reconhecimento da alteridade.
É preciso ressaltar aqui que o autor reconhece a existência do "outro" para uma "convivência democrática, fazendo-nos promover, por exemplo, escuta social, tolerância com as diferenças, respeito pelas minorias." (idem). Podemos perceber que o "outro" existe, mas não faz parte da história do "eu", estabelecendo uma relação de aceitação e não de integração com a realidade do aluno.
À pergunta "O que avaliamos?", respondemos em termos: o desenvolvimento da consciência histórica, que implica reflexão sobre si, atenção para o mundo, superação do isolamento narcísico e do alheamento social. (...) devemos avaliar tanto os aspectos voltados à aprendizagem dos conteúdos da heteronomia da alteridade, quanto os aspectos voltados ao desenvolvimento do senso crítico sobre os conteúdos, da autonomia, da criatividade e da singularidade pessoal. (idem).

Respondendo à pergunta de como avaliar, o autor considera que o livro promove uma avaliação ampla e contínua através de atividades ao longo do texto, não só ao final de cada capítulo. Porém, mais uma vez, o autor considera que o livro não contempla todas as possibilidades de avaliação, atribuindo ao professor a responsabilidade de conduzir, atribuir valor e propor novas formas de avaliação. Inclusive, o autor sugere outras atividades não presentes no livro.
Quanto ao quando avaliar, o autor considera que é um processo contínuo com diferentes graus de complexidade. Mas nega a especialização exagerada do aluno sobre o assunto historiográfico, incentivando a busca da interdisciplinaridade, guiado novamente pelos PCNs.
A disciplina de História tem muito a contribuir em projetos interdisciplinares desenvolvidos pelos professores em suas escolas. Nesse sentido, o trabalho pedagógico utilizando mapas, iconografia, literatura ficcional, entrevistas e filmes é um importante recurso para as atividades interdisciplinares. (idem p. 09)

Cotrim dá destaque à questão da interdisciplinaridade ao dedicar um espaço no Manual para discutir os recursos pedagógicos que permitem essa troca. O autor cita recursos da cartografia, iconografia, literatura, filmes, estudos do espaço social e o local de atuação do professor com uso de entrevistas e da memória oral. Sobre todos esses recursos o autor descreve diversas formas de uso, o cuidado que o professor deve ter e a necessidade de se ter um olhar crítico sobre cada um deles.
Por fim, como influência dos movimentos sociais e da legislação que tornou obrigatória o ensino da cultura e história afro-brasileiras e História da África e dos africanos e dos indígenas, o autor dedica um espaço para falar da implementação das leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08. Cotrim demonstra conhecer as críticas de pesquisas que apontam perspectivas de abordagem que destacavam aspectos negativos da escravidão e acabavam por reforçar os preconceitos e discriminações, e valoriza a promulgação dessas leis:
De certa forma, temas de história e cultura afro-brasileiras vinham sendo estudados nos livros didáticos há muito tempo. Mas é preciso verificar como esses temas eram estudados, muitas vezes carregados de negatividade e limitados à escravidão e ao domínio sofrido pelos africanos e seus descendentes, no Brasil e em outros lugares da América. (...) À primeira vista, instituir conteúdos obrigatórios por meio da legislação parece um pouco arbitrário. Todavia, as leis – como tudo o mais – têm história, e o processo que levou à promulgação da lei nº 10.639 foi fruto de pressões democráticas da sociedade, particularmente do movimento negro no Brasil que, legitimamente, exigia um tratamento à altura da importância dos negros brasileiros para a sociedade aqui construída ao longo de cinco séculos. (idem p. 12).

Mas o autor assume que somente com a legislação imposta à questão não fica resolvida e insere sua obra como parte do movimento que busca superar esses desafios:
Mas uma lei não resolve por si os problemas. (...) E ainda será preciso fazer muito mais para construir a igualdade no que se refere à apropriação da própria história dos brasileiros. Esse livro é resultado desse esforço. (...) O livro didático é um instrumento desse processo e, neste caso, houve um esforço para incorporar posturas apropriadas no que se refere à valorização da diversidade da população brasileira e à recusa do etnocentrismo e dos preconceitos em todo o processo histórico mundial aqui trabalhado.
Ao longo deste Manual, o professor encontrará sugestões de trabalho a partir de conteúdos tratados nas unidades e nos capítulos do livro. Em todas as sugestões, os objetivos são o combate ao preconceito e a valorização da diversidade, na certeza de que a raça humana é uma só e de que a história é por nós construída. (idem).

3. Considerações finais
Neste trabalho busquei os rastros que pudessem expressar as marcas de autoria em livros didáticos de História e suas negociações entre aquilo que precisa ser ensinado (demandas) e aquilo que se acredita sobre o que deve ser ensinado (saberes). Para isso, busquei fontes que apresentem o discurso do autor analisado pela pesquisa: um texto publicado pelo próprio autor em seu site e o Manual do Professor, momento em que o autor dialoga diretamente com seu leitor sobre o que se deve ensinar.
Ao analisar o texto publicado pelo autor, pode-se perceber tentativas de negociação através de argumentação que busca demonstrar seus conhecimentos teóricos atualizados e que fundamentam a elaboração de sua obra. Apesar da apresentação do portal de internet indicar que é destinado à professores e estudantes, o texto produzido apresenta características, como o tipo de linguagem e argumentos utilizados, que revelam estar direcionado também a um auditório mais específico que possui conhecimento de questões de educação (avaliadores do PNLD).
O texto foi publicado em 2013, dois anos depois da publicação do Guia de Livros Didáticos do PNLD 2012, onde consta a crítica ao Manual do Professor da edição de 2010 de sua obra didática:
"A abordagem sobre os processos de ensinar e aprender a História escolar é desenvolvida no tópico Saber histórico escolar, sem aprofundar as discussões nos campos do ensino de História e da Educação" (BRASIL, 2011, p. 89).

Ou seja, após os avaliadores do PNLD acusarem a falta de discussão envolvendo o campo de ensino de História e Educação, pode-se considerar que o autor buscou investigar pesquisas nessas áreas e publicar um texto em seu portal como resposta a essas críticas.
Quanto ao Manual do Professor, apesar do objetivo desse tipo de material proposto pelo Edital PNLD ser um instrumento de orientação teórico-metodológica para o professor no uso do livro didático de melhor forma para conduzir sua prática, o texto de Cotrim neste documento apresenta mais uma vez uma forma que parece voltada para avaliadores do PNLD e críticos acadêmicos, configurando sua negociação mais fortemente com um dos auditórios ao qual o livro se destina. Sua argumentação está estruturada muito mais de forma a justificar suas escolhas do que oferecer meios de articulação dos conteúdos do livro com outras áreas do conhecimento.
Em diversos momentos no texto, Cotrim defende que somente o livro não basta para oferecer uma educação de qualidade e que a continuidade desta tarefa depende da apropriação do professor em sua prática. Há momentos em que o manual oferece ao professor sugestões de outras ferramentas para o ensino, mas são discussões pouco desenvolvidas e parecem apenas buscar atender as exigências das políticas públicas. Além de evidenciar os múltiplos auditórios aos quais ele se dirige, é possível perceber que Cotrim busca estabelecer negociações face aos constrangimentos institucionais que está submetido.
Independente dos saberes de Cotrim evidenciados pelas fontes terem como origem as experiências desse sujeito ou o contexto de demandas políticas ao qual está inserido, os resultados nos permitem interpretar que o autor possui uma preocupação em demonstrar a um público crítico sua preparação quanto a questões do ensino de História. Ao articular através de seu discurso temas referentes às políticas públicas, ao mercado editorial, às inovações do campo da historiografia e às lutas dos movimentos sociais como a questão do negro e do indígena, o autor demonstra saber articular as demandas políticas e sociais a fim de se adaptar aos novos tempos.
Mas isso não significa que a obra de Cotrim se reduza a uma reprodução de demandas externas. Foi possível identificar marcas de autoria quando o autor, principalmente no Manual do Professor, deixa claro que, apesar da amplitude dos conhecimentos históricos, toma decisões de seguir determinados caminhos e não outros, quando, por exemplo, ele opta por seguir uma lógica temporal cronológica, reconhecendo a existência de outros tipos de abordagens e seguir um enfoque historiográfico centrado na política e na economia. Realizar escolhas é definir aquilo que você acredita ser importante, mesmo que não negue a existência de outras versões que também podem ser legitimadas como conhecimento. Traçar linhas de limites é definir-se, mesmo que provisoriamente.
.
4. Referências bibliográficas
BRASIL. Guia de Livros Didáticos: PNLD 2012: História. Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica, 2011
____________. Edital PNLD 2012. Brasília: Ministério da Educação, 2009.
CHEVALLARD, Yves. La transposición didáctica. Del saber sábio al saber enseñado. Buenos Aires: Aique Grupo Editor, 1991.
CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. In: Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, 2004.
COTRIM, Gilberto Vieira. História Global: Brasil e Geral. Volume único. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012.
MEYER, Michel. A retórica. São Paulo: Ática, 2007.
MONTEIRO, A.M.; PENNA, F. A. "Ensino de História: saberes em lugar de fronteira". Educação & Realidade, v. 36, p. 191-211, 2011.
PERELMAN, Chaïm; OLBRETCHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação – A Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
REBOUL, Oliver. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004



Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.