Autoria: Marca Registrada?

July 17, 2017 | Autor: Fabíola Tasca | Categoria: Design, Arte Contemporânea
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AUTORIA: MARCA REGISTRADA?1

Resumo: A presente comunicação pretende especular acerca de relações entre arte e trabalho subjacentes à noção de autoria na contemporaneidade, estreitamente tributária da separação entre concepção e execução como instâncias de produção da obra de arte. Palavras-chave: autoria, arte contemporânea, marca registrada AUTHORSHIP: TRADEMARK? Abstract: The aim of this paper is to explore the relations between Art and Work that underlie the very idea of authorship in contemporary art and culture, closely linked to the split between Conception and Execution as separate instances on the process of production of the artwork.

Keywords: authorship, contemporary art, trademark

Jackson Pollock está no umbral da porta. De um lado, uma legião de artistas ansiosos, marcados pela insígnia da marginalidade em suas diversas feições, compelidos pela urgência do fazer, engajados no enfrentamento de matérias, materiais e procedimentos de trabalho que traçam os respectivos pertencimentos à especificidade de uma ou outra mídia; de outro lado uma espécie de celebração em torno da inexorável anexação da vida como obra de arte. Em 1958 Allan Kaprow exortava os jovens artistas a celebrarem certa generalidade operativa no exercício de suas ocupações profissionais. Não mais definidos como pintores, poetas, dançarinos, músicos... aos artistas bastaria enunciarem sua condição intransitiva e tudo na vida estaria aberto para eles. “Simplesmente artistas” é como Kaprow define e resume a não circunscrição disciplinar constitutiva do fazer artístico contemporâneo, diagramado na passagem do idioma modernista para o não modernista, a partir da figura emblemática de Pollock (Kaprow, 2006). Nicolas Bourriaud esclarece a diferença fundamental entre o “ofício” do artista e os demais ofícios, salientando que o diacrítico em questão reside na natureza dos gestos realizados. Se as profissões ordinárias requerem o aprendizado e o exercício de gestos previamente definidos e codificados, “o artista moderno deve ele próprio inventar a sucessão de posturas e gestos que lhe permitirão produzir” (Bourriaud, 2011, p. 11). E não só os gestos e posturas, mas o ritmo e a distribuição dos produtos de seu trabalho. Bourriaud sublinha que “a obra de arte difere das outras classes de objetos pelo fato de não ser 1

A pesquisa que deu origem a esse texto (Mão de obra: arte e trabalho no contexto de certas práticas artísticas contemporâneas) vem sendo desenvolvida com o auxílio do Programa Institucional de Apoio à Pesquisa da Universidade do Estado de Minas Gerais, em projeto com vigência de abril 2013 a março de 2014, no qual as alunas Agatha Melo e Morgana Mafra participam enquanto bolsistas de iniciação científica.

determinada por um contexto profissional normativo” (Bourriaud, 2011, p. 12). Estamos no território da liberdade, reduto por excelência da arte e dos artistas, desde que arte se faz sem restrição metodológica ou de materiais. Luiz Renato Martins salienta que a Arte Moderna traça o percurso da constituição da arte como “paradigma simbólico do trabalho emancipado”, na medida em que o artista tornase o “maior responsável e detentor primeiro dos frutos do seu trabalho, das obras que apresenta diretamente ao julgamento público e, eventualmente ao mercado comprador” (Martins, 2003, p. 128). Trata-se do desenho de um novo contrato social-artístico, em paralelo ao qual as formas gerais de trabalho e de produção nos primórdios do capitalismo caminham em sentido contrário. À legião de antigos produtores independentes, os artesãos e os pequenos proprietários, mesclados aos demais miseráveis, resta como única possibilidade o regime de trabalho alienado: o modo no qual os proventos salariais podem variar, mas nunca o grau de liberdade frente à configuração e ao destino final do trabalho, cuja determinação pertence exclusivamente ao capitalista. (Martins, 2003, p. 128)

Nessa perspectiva,

a arte passa a valer, de certo ângulo ético e cognitivo, como um horizonte utópico ou uma promessa, para o restante da humanidade, que se vê excluída do direito de autodeterminação no trabalho e, por conseguinte, do direito à consciência cujo desenvolvimento se liga ao trabalho.” (Martins, 2003, p. 129)

Giulio Carlo Argan compreende a história da arte como uma história da liberdade, referindo-se à liberdade do artista poder deliberar sobre materiais, temas, procedimentos, independente de qualquer academia, de qualquer poder da igreja ou independente do poder real. Se considerarmos este postulado, podemos perceber o artista como o “modelo” do trabalhador emancipado. Em que medida tais apontamentos nos auxiliam na tarefa de compreender algumas mutações em curso nas condições de produção da obra de arte e no papel do artista? Numa determinada perspectiva, poder-se-ia agir como se a propalada liberdade fosse um elemento inquestionável, de maneira a colaborar para certa idealização da atividade artística, o que funcionaria como sustentáculo do estatuto vigente da arte na sociedade, um estatuto que informa a doxa. Trata-se de um discurso que investe na mistificação do trabalho artístico apresentado como uma atividade especial o que, num certo sentido, pode ser compreendido como uma manobra ideológica que termina por encobrir as efetivas condições

de produção da obra de arte, colaborando para a perpetuação do papel conservador da Instituição Arte que se ancora em determinadas premissas:

(1) A arte como manifestação suprema e eterna (leia-se apolítica) da civilização cristã ocidental. (2) A arte como manifestação reservada a alguns poucos eleitos, inteligentes e sensíveis, e que o são por dom, não por educação e aprendizado social. (3) A arte como espaço mítico, fechado sobre si mesmo, uma espécie de moderno substituto da religião. (Brito, 2005, p. 54)

Mas, pode-se questionar a possibilidade de um trabalho não alienado no contexto do sistema capitalista, convocando uma reflexão sobre as relações entre arte e trabalho. Tal reflexão permanece na ordem do dia pelo menos desde que Marcel Duchamp propôs objetos industriais como obras de arte, transportando o processo capitalista de produção (trabalhar a partir do trabalho acumulado) para a esfera da arte. Desde que tal provocação foi acolhida pelo mundo da arte como um dos lances mais engenhosos e significativos, a autoria foi problematizada de maneira irrevogável; não mais condicionada às habilidades artesanais, à intimidade com um ou outro metiê, o fazer artístico viu-se recorrentemente endereçado à pergunta sobre as especificidades de tão misteriosa atividade. Atitude como resposta. É o que nos diz Mário Pedrosa quando esclarece os critérios para a seleção de Porco Empalhado, enviado por Nelson Leirner ao Salão de Brasília, em 1969: “Na arte pós moderna, a idéia (sic), a atitude por trás do artista é decisiva” (Pedrosa, 1986, p. 236). Jacques Lenhardt (Leenhardt, 1994) caminha no mesmo sentido ao afirmar que a operação duchampiana, não apenas inserindo objetos readymade, mas, também, imagens já prontas no contexto da produção artística, propõe considerar o artista/autor não como um produtor de imagens que as ofereceria ao consumo “passivo” dos espectadores, mas como aquele que convidaria o espectador a assumir uma relação crítica com as imagens que o rodeiam. O artista/autor seria para Lenhardt, a partir de Duchamp - aquele que convidaria o espectador a ultrapassar sua submissão “automática” às imagens e com elas estabelecer certo tipo de engajamento. Essa é, sem dúvida, uma maneira de perceber a recolocação da questão da autoria quando esta não está mais identificada com o fazer, um determinado fazer, aquele da manipulação da matéria, do jogo com os materiais, da conformação do objeto. A partir da segunda metade do século XX, a arte vem estabelecendo inúmeros procedimentos que são responsáveis pelo deslocamento do lugar do autor enquanto um produtor de obras de arte - compreendidas em sua realidade material -, para a condição de um propositor de questões. Dispor elementos pré-existentes constitui parte do trabalho do artista

contemporâneo, engajado na tarefa de promover a emergência de novos sentidos a partir de justaposições insuspeitas. Mixar, apropriar, combinar, reordenar são verbos concernentes ao idioma contemporâneo, verbos que sinalizam o desalojamento da tradicional ideia de criação (ex nihilo), de índole romântica e moderna, pelas ideias de arranjo, combinação, organização. Nesse contexto, conforme salienta Jacques Rancière, parece desfazer-se o que constituía o conteúdo tradicional da noção de obra: “a expressão da vontade criadora de um autor numa materialidade específica trabalhada por ele, singularizada na figura da obra, erigida como original distinto de todas as suas reproduções. A idéia (sic) de obra torna-se radicalmente independente de toda elaboração de uma matéria particular” (Rancière, 2003). Como Nicolas Bourriaud acrescenta: “os artistas atuais não compõem, mas programam formas: em vez de transfigurar um elemento bruto (a tela branca, a argila), eles utilizam o dado” (Bourriaud, 2009, p. 13). O curioso é que tal reconfiguração dos procedimentos artísticos não ameaça a figura do autor. Estamos no seio de um processo complexo no qual a autoria passa a ser articulada a partir da complexa separação entre execução e concepção. Jacques Rancière nos diz que a noção de autor não se dissolve na manipulação das coisas banais ou na infinidade de reproduções, mas, ao contrário, aproxima-se da propriedade pessoal da ideia. Se o artista contemporâneo não está mais sob o imperativo de fazer a obra utilizando-se de sua própria força de trabalho, e, ao invés disso, pode terceirizar a execução, contratar assistentes, fornecer instruções, “[o] que se perde então não é nem a personalidade do autor nem a materialidade da obra. É o trabalho pelo qual essa personalidade se alterava nessa materialidade. A retirada da obra em direção à idéia (sic) não anula a realidade material da obra. Mas ela tende a transformar a propriedade paradoxal da obra impessoal em propriedade lógica de uma patente de inventor.” O que Rancière vem nos dizer é que o autor contemporâneo é mais estritamente proprietário do que jamais o foi qualquer autor.

Figura 1 - Rochelle Costi, Reprodutor, 2008. (Fonte: http://rochellecosti.com)

Uma oportunidade de especularmos a esse respeito nos é oferecida pela instalação de Rochelli Costi, Reprodutor (Figura 1). Dispostos no espaço da galeria encontravam-se imagens fotográficas de obras de diversos artistas, como German Lorca, Leonora de Barros, João Castilho, João Modé, Man Ray, Marina Abramovic, Mauro Restiffe, Rosângela Rennó, Thomas Farkas, Vik Muniz, além de um retrato da própria Rochelle Costi feito por um fotógrafo anônimo. A exposição apresentava também “mesas de reprodução”, as quais podiam ser utilizadas para o exercício do ato de desenhar a ser executado pelos visitantes. Estes tinham a liberdade de escolher uma fotografia, retirá-la da parede, encaixá-la em uma das mesas reprodutoras e copiá-la através da sombra projetada por um vidro vermelho que dividia a mesa em duas metades. De um lado a imagem de inequívoca autoria, do outro lado a sombra projetada, imagem etérea, puro reflexo que, ao ser reforçado pelo gesto do visitante, constituía um desenho de sua autoria. Depois de executada a ação de índole participativa, a imagem/desenho produzida pelo visitante podia integrar a instalação compondo a curadoria assinada por Rochelle Costi, o conjunto de seus originais. Muito se disse sobre Reprodutor sublinhar que a reprodutibilidade é sempre autoral e subjetiva. É sem dúvida uma possibilidade de leitura bastante interessante e Pierre Menard poderia ser um bom aliado se optássemos por seguir essa direção. Mas, para o argumento que gostaria de sugerir neste texto, os gestos de cada visitante não tanto os alçam à condição de autores (status em relação ao qual se requer bem mais do que um fazer isolado) mas, antes, os situam como fazedores que insinuam a questão da autoria como marca. Não por acaso a inicial da palavra Reprodutor estava grafada com o símbolo de Marca Registrada. Seria

preciso muito mais espaço e trabalho para investirmos em deslindar o labirinto das complexas relações contemporâneas entre produção e consumo, obra de arte e produto, concepção e execução, problemas em relação aos quais o campo do design talvez tenha muito a nos dizer. A potência de Reprodutor, creio, está na habilidade com a qual manobra certa ambiguidade: o procedimento por meio do qual cada visitante reproduzia as imagens/marcas dos autores em questão era o trabalho por meio do qual ele ou ela tanto sinalizava sua subordinação à ideia do autor quanto dela podia tomar distância.

REFERÊNCIAS ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. Tradução Luigi Cabra. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BOURRIAUD, Nicolas. Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si. Tradução Dorothée de Bruchard. São Paulo: Martins Fontes, 2011. BRITO, Ronaldo. Análise do Circuito. In: _______. Experiência crítica – textos selecionados. Organização de Sueli de Lima. São Paulo: Cosac & Naify, 2005. pp. 53-63. KAPROW, Allan. O legado de Jackson Pollock. In: FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília (Org.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. pp. 37-45. LEENHARDT, Jacques. Duchamp: Crítica da razão visual. In: NOVAES, Adauto. Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp. 339-349. MARTINS, Luiz Renato. A arte entre o trabalho e o valor. Palestra proferida no Centro Maria Antonia, USP, no seminário Argan, 10-12 nov. 2003. Disponível em:< http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/critica20-A-martins.pdf>. Acesso em: 07 fev. 2011. pp. 123-138. PEDROSA, Mário. Do porco empalhado ou os critérios da crítica. In:_______. Mundo, Homem, Arte em crise. Organização de Aracy Amaral. São Paulo: Perspectiva, 1986. pp..231236. RANCIÈRE, Jacques. Autor Morto ou Artista Vivo Demais? Folha de São Paulo. 06 de abril de 2003. Caderno Mais.

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