Autoria mediata por meio do domínio de organização, totalitarismo e banalidade do mal: um paralelo entre os pensamentos de Claus Roxin e Hannah Arendt

July 16, 2017 | Autor: Adriana Gregorut | Categoria: Hannah Arendt, Direito Penal, Filosofia do Direito, Claus Roxin
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Faculdade de Direito

Autoria mediata por meio do domínio de organização, totalitarismo e banalidade do mal: um paralelo entre os pensamentos de Claus Roxin e Hannah Arendt

Adriana Silva Gregorut

São Paulo 2014

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Adriana Silva Gregorut

Autoria mediata por meio do domínio de organização, totalitarismo e banalidade do mal: um paralelo entre os pensamentos de Claus Roxin e Hannah Arendt

Trabalho apresentado à Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como prérequisito para a obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Professor Gustavo Octaviano Diniz Junqueira

São Paulo 2014

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AVALIAÇÃO:_______________________ ASSINATURA DO ORIENTADOR:_______________

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RESUMO O presente trabalho pretende estabelecer um paralelo entre os pensamentos de Claus Roxin e Hannah Arendt. Busca-se nos conceitos de totalitarismo e banalidade do mal, elaborados pela filósofa alemã, os argumentos históricos para reafirmar a pertinência do critério da fungibilidade do executor direto, referente à categoria de autoria por meio do domínio da organização elaborada por Roxin no bojo de sua teoria do domínio do fato. Pretende-se, dessa forma, questionar a força de críticas elaboradas por Friedriech-Christian Schroeder no sentido de que o critério da fungibilidade, se considerado como determinante e suficiente para definir a autoria mediata em aparatos organizados de poder, levaria à impunidade dos executores diretos. PALAVRAS-CHAVE Teoria do domínio do fato; autoria mediata por domínio da organização; totalitarismo; banalidade do mal.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 6 1. A Teoria do Domínio do Fato.......................................................................................... 11 1.1. Antecedentes..................................................................................................... 11 1.2. As origens da teoria..........................................................................................

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1.3. Aspectos metodológicos...................................................................................

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1.4. As manifestações concretas da ideia de domínio do fato.................................

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2. A autoria mediata por meio do domínio da organização................................................. 21 2.1. Pressupostos...................................................................................................... 23 2.1.1. O poder de comando..........................................................................

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2.1.2. A desvinculação do Direito................................................................ 23 2.1.3. A fungibilidade do executor direto....................................................

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2.2. O pressuposto da fungibilidade e suas críticas.................................................

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2.3. A elevada propensão ao cometimento do fato..................................................

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3. Totalitarismo e banalidade do mal no pensamento de Hannah Arendt...........................

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3.1. O totalitarismo e seus “elementos cristalizadores”: o imperialismo e o antissemitismo.....................................................................................................................

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3.2. Os movimentos totalitários e a propaganda como instrumento de dominação do homem de massa............................................................................................................. 34 3.3. Princípio de liderança.......................................................................................

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3.4. Organização totalitária......................................................................................

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3.5. Ideologia e terror............................................................................................... 43 4. O vazio de pensamento e a banalidade do mal................................................................

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4.1. O mal radical..................................................................................................... 47 4.2. Eichmann como exemplo de homem supérfluo................................................ 49 4.3. A perda do senso comum e o vazio de pensamento.........................................

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5. A elevada propensão ao cometimento do fato em regimes totalitários...........................

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5.1. Autoria e responsabilidade no totalitarismo.....................................................

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6. Considerações finais........................................................................................................

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BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................

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INTRODUÇÃO "Duas guerras mundiais em uma geração, separadas por uma série ininterrupta de guerras locais e revoluções, seguidas de nenhum tratado de paz para os vencidos e de nenhuma trégua para os vencedores, levaram à antevisão de uma terceira guerra mundial entre as duas potências que ainda restavam"1

O sentimento a que se refere Hannah Arendt na passagem em epígrafe é o mesmo que impulsionou a comunidade internacional, desde o período pós-Primeira Guerra Mundial, a buscar a responsabilização dos autores das atrocidades às quais foi submetida a humanidade durante os referidos episódios históricos. Um exemplo emblemático dessa constatação é o caso Adolf Eichmann, oficial do regime nazista na Alemanha, responsável pela logística de transporte dos prisioneiros dos campos de concentração para os campos de extermínio. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, Eichmann se refugiou na Argentina, onde foi localizado e capturado pela Mossad, serviço de inteligência israelense, em 1960, sendo levado a Jerusalém para julgamento. Em Israel, foi instaurado um Tribunal especial para seu julgamento, tendo sido condenado à pena de morte e executado em 31 de maio de 1962. A filósofa alemã Hannah Arendt acompanhou o julgamento de Eichmann, a convite da revista norte-americana New Yorker, e publicou uma série de artigos que, reunidos, compuseram sua obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal2. Na referida obra, Arendt desenvolveu sua ideia de banalidade do mal. Segundo a pensadora alemã, o mal jamais pode ser radical – apenas o bem é radical. Assim, somente é possível admitir a ideia de mal banal, que é aquele que se manifesta quando o indivíduo abdica de sua faculdade de pensar e deixa de refletir criticamente sobre suas ações. Eichmann seria, portanto, a personificação da ideia de mal banal: um indivíduo medíocre, sem aptidões notórias ou conquistas profissionais importantes, que se tornou um

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ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo, trad. Roberto Raposo, São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalem: um relato sobre a banalidade do mal, São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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burocrata dentro do aparelho organizacional do nazismo, de forma que executava as ordens emanadas das autoridades superiores sem refletir sobre seus resultados. Esse mesmo caso serviu de inspiração para o desenvolvimento da ideia de domínio da ação por meio de um aparato de poder organizado, parte integrante da teoria do domínio do fato elaborada por Claus Roxin. Por meio da teoria do domínio do fato, Roxin propõe uma opção dogmática complexa acerca da autoria criminosa, que serviu para superar as teorias sobre autoria e participação até então elaboradas, consideradas pelo jurista alemão como insuficientes para explicar de maneira satisfatória a autoria delitiva. A pretensão da teoria do domínio do fato é definir o conceito de autor. Assim, Roxin parte do princípio orientador de que o autor é a figura central do acontecer típico, o que permite delimitar as formas de participação e autoria. O jurista o faz a partir do exame das diversas manifestações concretas da ideia do domínio do fato. Como resultado desse exame, é possível identificar três diferentes manifestações práticas da ideia do autor como figura central do acontecer típico: (i) a autoria imediata, em que o autor possui o domínio direto da ação, ou seja, corresponde àquele que realiza todos os elementos do tipo; (ii) autoria mediata, em que o autor possui o domínio da vontade de um terceiro, que se resume em instrumento do agir típico; e (iii) coautoria, que ocorre quando dois ou mais autores possuem o domínio funcional do fato. O objeto de estudo do presente trabalho se limitará à análise da figura da autoria mediata por meio de aparato organizado de poder e suas características, as quais têm sido aplicadas, não só, mas principalmente, no julgamento por tribunais internacionais de crimes de guerra e crimes contra a humanidade perpetrados por agentes de Estado3. São três os pressupostos do domínio da organização previstos por Roxin: (i) a emissão de uma ordem por meio do poder de comando exercido pelo agente no marco da organização; (ii) a desvinculação da organização em relação ao Direito; e (iii) a fungibilidade dos executores individuais.

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O Tribunal Penal Internacional tem adotado em suas decisões, desde a decisão de recebimento da denúncia no caso Katanga, em 2008 (ICC-01/04-01/07-717), o critério elaborado por Claus Roxin para definir a autoria mediata por meio do domínio da organização, que será abordada a seguir neste trabalho. Nesse sentido: WEIGEND, Thomas. “Perpetration through an organization”, Journal of International Criminal Justice, vol. 9, 2011, pp. 91-111.

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Dentre os seus requisitos, o que mais gera críticas da doutrina é o último – a fungibilidade do executor direto, segundo o qual a organização criminosa (estatal ou não estatal) se caracteriza pela grande quantidade de indivíduos dispostos a cumprir as ordens do homem de trás, “de modo que a recusa ou a perda de um indivíduo não pode impedir a realização do tipo” (ROXIN, 2009, p. 82)4. Um dos principais críticos de Roxin é o jurista também alemão FriedrichChristian Schroeder, que defende que a fungibilidade não pode ser o fator determinante e nem suficiente da autoria mediata nesse caso5. O pensador vai além: afirma que a fungibilidade poderia levar à impunidade dos executores individuais. Em razão das mencionadas críticas, Roxin desenvolveu a ideia de que, no caso da autoria mediata pelo domínio da organização, a segurança do resultado não é plena, mas “é, de qualquer modo, maior que na hipótese de interposição de pessoas não responsáveis”. Assim, a presença dos três pressupostos dessa espécie de autoria mediata proporciona uma elevada propensão ao cometimento do fato, de maneira a reforçar o domínio do acontecimento por parte do homem de trás. Nesse contexto, mostra-se pertinente a análise da obra de Hannah Arendt sobre o fenômeno do totalitarismo e a ideia de banalidade do mal. Segundo a filósofa, os movimentos totalitários se tornam possíveis apenas quando existe, à sua disposição, um enorme contingente de material humano, que se constitui em massas desorganizadas, suscetíveis de manipulação ideológica. Com base nessa análise histórica, é possível perceber que a fungibilidade não é apenas parte de uma construção teórica, como pressuposto da figura da autoria mediata por meio de estrutura organizada de poder, mas é sobretudo uma realidade fática em regimes totalitários, o que se busca demonstrar no presente trabalho. A hipótese aqui levantada é a de que críticas como a de Schroeder podem ser vencidas com base em uma análise detida do fenômeno totalitário. O contexto do totalitarismo permite que pessoas ocupando posições no topo da hierarquia de poder emitam ordens que serão cumpridas necessariamente, independentemente de quem as executará, tendo em vista o grande contingente humano de que dispõem os líderes do governo totalitário. Assim, com ROXIN, Claus. “O domínio por organização como forma independente de autoria mediata”, Panóptica, v. 4, n. 3, 2009, pp. 69-94. 5 SCHROEDER, Friedrich-Christian. Autoria, imputação e dogmática aplicada no direito penal; Eduardo SaadDiniz, Andrés Falcone, Gustavo de Carvalho Marin (organização), São Paulo: LiberArs, 2013.   4

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base na teoria do domínio do fato, torna-se possível considerar autor aquele que emite a ordem no âmbito da organização. Trata-se de uma questão de autoria, e não de responsabilidade penal. Verifica-se, nesse sentido, que a teoria do domínio do fato, conforme elaborada por Roxin, é a concepção de autoria que melhor explica a criminalidade estatal em governos com características de totalitarismo, nos quais o critério da fungibilidade se manifesta da maneira mais acentuada, em razão do fenômeno da banalidade do mal. Em resumo, propõe-se analisar, no presente trabalho, a figura elaborada por Claus Roxin da autoria mediata por meio de aparato de poder organizado, estabelecendo-se uma relação com o fenômeno do totalitarismo e com a ideia de banalidade do mal, elaborados por Hannah Arendt. Pretende-se, com base na referida discussão, pôr em questionamento a crítica proposta por Friedrich-Christian Schroeder, enfraquecida em face dos argumentos históricos encontrados na obra de Hannah Arendt. Isso porque, a ideia do mal banal acentua a pertinência do requisito da fungibilidade do executor direto, ainda que este represente não uma posição dogmática absoluta, mas um padrão teórico não-universal. Para cumprir essa proposta, em primeiro lugar, será apresentado, no Capítulo 1, um panorama geral da Teoria do Domínio do Fato, as formulações teóricas que a antecederam, os aspectos metodológicos que serviram de ponto de partida para Claus Roxin e as diferentes manifestações concretas da ideia de domínio do fato, identificadas pelo jurista, e que possibilitaram a formulação das respectivas categorias de autoria que compõem a teoria. O Capítulo 2 analisará, de maneira mais aprofundada, a ideia da autoria mediata por meio do domínio da organização e seus pressupostos. Voltar-se-á a atenção mais detida para o requisito da fungibilidade do executor direto e as críticas desenvolvidas por Friedrich-Christian Schroeder. Será apresentado, por fim, o critério da elevada propensão ao cometimento do fato, que permitiu a Roxin esclarecer alguns pontos da teoria, de forma a contrapor referidas críticas. No Capítulo 3, analisaremos como as ideias de totalitarismo e banalidade do mal se desenvolvem na obra de Hannah Arendt, partindo da análise do imperialismo e do antissemitismo como elementos precursores dos movimentos totalitários e a propaganda como instrumento primordial de domínio das massas. A seguir, será analisado o princípio da liderança, que define a estrutura hierárquica no totalitarismo e permite entender como se dá a organização totalitária e seu funcionamento. E, finalmente, será discutido o papel da ideologia

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e do terror como instrumentos de exercício do poder dos movimentos totalitários e de manutenção da organização do Estado totalitário. No Capítulo 4, examinaremos as condições que ensejam o surgimento do fenômeno da banalidade do mal, partindo do seu contraponto ao conceito de mal radical, conforme formulado por Kant, o qual Hannah Arendt abandona quando estabelece contato com a figura de Adolf Eichmann. Serão identificados, nas características pessoais do exoficial nazista, os traços do homem de massa, que personifica o que a filósofa alemã denomina como a perda do senso comum e o vazio de pensamento, os dois acontecimentos humanos que, no contexto do totalitarismo, ensejam o surgimento do mal banal. Finalmente, o Capítulo 5 cuidará de estabelecer um paralelo entre o pensamento de Claus Roxin e Hannah Arendt, de modo a identificar nos regimes totalitários a ocorrência, de fato, do pressuposto da fungibilidade do executor direto e do critério da elevada propensão ao cometimento do fato. Com base nessa análise, será possível questionar como se dá a autoria delitiva e a responsabilidade individual em regimes totalitários.

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1. A Teoria do domínio do fato 1.1. Antecedentes Claus Roxin elaborou sua teoria acerca da autoria e da participação delitivas a partir de uma inquietação pessoal em relação ao que verificou ser uma insuficiência na delimitação das formas de participação no delito, sendo que a doutrina alemã se dividia em posições irreconciliáveis a respeito da questão. Entretanto, nos 25 anos que antecederam a publicação da obra Autoría y dominio del hecho en derecho penal, em 1963, conforme observa Roxin (p. 20), a chamada teoria do “domínio final do fato” passou a ocupar posição central na discussão, podendo ser considerada a teoria dominante, àquele tempo. Até então, algumas formulações teóricas acerca da autoria delitiva obtiveram destaque no âmbito da doutrina jurídico-penal. Roxin (2000, p. 23) observa que, durante a primeira década de vigência do Código Penal alemão, predominava na ciência jurídica a influência do positivismo naturalista, que submetia as ciências do espírito às idéias das ciências naturais, reduzindo os fenômenos jurídicos a meros cursos causais. Nesse sentido, o Direito Penal passa a classificar as pessoas intervenientes no delito conforme seu aporte para a realização do resultado. As correntes positivistas passam a sofrer fortes críticas na década de 1920, contexto em que surge na dogmática jurídico-penal a denominada escola neokantiana, que abandona o método empírico das ciências da natureza e passa a adotar a metodologia das ciências culturais, conferindo sentido valorativo aos fenômenos jurídicos. Estes não são mais deduzidos da realidade, mas são a ela incorporados por meio da formação de conceitos condicionados pela ideia de finalidade. Nesse sentido, a distinção entre autoria e participação é operada por meio da valoração jurídico-normativa de cada contribuição individual ao resultado (ROXIN, 2000, p. 27). Elabora-se, assim, o conceito extensivo de autor, segundo o qual é autor todo indivíduo que causa lesão típica ao bem jurídico, que não seja mero indutor ou cúmplice. Para Roxin, o perigo dessa concepção está no fato de que, por ser demasiadamente extensa, deixa ao arbítrio do juiz a definição da autoria e da participação no caso concreto, com base em uma abordagem teleológica. O problema identificado por Roxin fora antes percebido pelos expoentes das teorias ontológicas de autoria. Estas concebem o conceito de delito e os fenômenos jurídicos

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por meio de uma “observação intuitiva do ser” (ROXIN, 2000, p. 32). Hans Welzel entendia os conceitos jurídicos como descrições de um ser configurado a partir de sua realidade. Assim, recorre-se a estruturas ontológicas, prévias ao ordenamento jurídico, para determinar o conceito de autor. Como consequência da premissa ontológica pura, tem-se a ideia de que, atribuir conceitos gerais como cumplicidade, participação e autoria aos delitos concretos, constitui uma operação artificiosa que se dirige a um fim, o que contraria os fatos naturais e realmente existentes. A conclusão necessária a que se chega, portanto, é a de que só é possível conceber um conceito de autor: o conceito unitário. Ou seja, ao tipo penal corresponde um determinado tipo de autor, que deve ser captado em sua essência, com base na observação da realidade (ROXIN, 2000, p. 33). Welzel, apesar de partir da mesma premissa ontológica, se afasta dessa concepção pura, de modo a admitir que a distinção entre autoria e participação se encontra nas diferenças ontológicas e de categoria entre as respectivas ações (ROXIN, 2000, p. 35). Dessa forma, o jurista parte do conceito ontológico de ação, não suscetível às modificações decorrentes da finalidade que o legislador pretende conceber à norma, e que consiste em condicionar o curso causal por meio da conduta humana dirigida a um determinado fim. Das ideias até aqui expostas decorrem os principais conceitos de autoria delitiva, conforme cada uma das teorias do crime. Em primeiro lugar, destaca-se as teorias causais de autoria, que podem ser divididas em duas principais correntes. A primeira é aquela que sustenta a equivalência de todas as condições causais, afastando qualquer classificação entre autores e partícipes – trata-se de conceito unitário de autor. A segunda corrente admite a existência de diferenças causais entre as condições do resultado. São as teorias objetivo-materiais, que surgiram a partir da percepção de que seria possível determinar diferentes classes e graus de causalidade para um resultado típico, de forma a estabelecer delimitações entre autoria e participação. Em segundo lugar, as teorias objetivo-formais consideram autor como aquele que executa por si mesmo os elementos descritos no tipo penal – os demais são apenas cúmplices ou indutores (ROXIN, 2000, p. 54). Para Roxin, o defeito dessa teoria reside no fato de ser incapaz de entender a autoria mediata e a coautoria. Por fim, destaca-se a contribuição das teorias subjetivas, as quais realizam a distinção entre autoria e participação segundo critérios exclusivamente intrapsíquicos

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(ROXIN, 2000, p. 71), descartando qualquer critério objetivo, externo ao âmbito subjetivo. Podem ser divididas em: (i) teorias do dolo, que atribuem ao partícipe uma vontade dependente da vontade do autor; e (ii) teorias do interesse, segundo as quais “é autor quem atua com ânimo de autor, ou seja, quer o crime como seu” (JUNQUEIRA e VANZOLINI, 2013, p. 439), enquanto o partícipe comete o delito em favor de interesse de terceiro. Segundo Roxin (2000, pp. 85-86), desde as concepções objetivo-formais e objetivo-materiais, até a concepção subjetiva sobre autoria delitiva, todas as teorias possuíam ao menos alguns dos elementos contidos na ideia de domínio do fato. Entretanto, esses elementos constituem apenas vestígios do que viria a ser a teoria do domínio do fato, não podendo ser consideradas suas precursoras.

1.2. As origens da teoria A expressão “domínio do fato” foi utilizada pela primeira vez por Helger (ROXIN, 2000, p. 81), sem, contudo, lhe atribuir o sentido que hoje possui, relacionando-a apenas à esfera da culpabilidade e deixando de aplicar o critério do domínio do fato para delimitar os conceitos de autoria, indução e cumplicidade. No entanto, é Lobe (1933 apud GRECO e LEITE, 2013, p. 14) que apresenta a primeira formulação concreta da ideia de domínio do fato, utilizando como critério de autoria a vontade de cometer um delito correspondente ao próprio domínio sobre a execução do fato. Assim, autor é aquele que é determinado por esses dois elementos subjetivos-objetivos – a vontade e o domínio sobre a execução. Na figura da participação, falta o domínio sobre a ação executiva, encaminhada a realizar o resultado (ROXIN, 2000, p. 86). Trata-se de concepção primitiva, mas que serviu de base para posterior noção de domínio do fato formulada por Welzel, no contexto de sua teoria finalista, obtendo com este autor notável repercussão. A razão de ser Welzel considerado fundador da teoria do domínio do fato, e não Lobe, é que o primeiro conferiu efetividade à teoria, enquanto o segundo não exerceu influência alguma nas discussões doutrinárias de seu tempo. Welzel desenvolveu sua teoria em termos extremamente genéricos, porém foi o primeiro a delimitar os conceitos de autor e partícipe. Parte do pressuposto metodológico já mencionado, que se fundamenta no aspecto ontológico dos fenômenos jurídicos, para definir autoria e participação como manifestações características do atuar final dentro do mundo social (WELZEL, 1939 apud ROXIN, 2000, p. 87).

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Para Welzel, autor é aquele que, consciente do fim atribuído a suas ações e de sua ilicitude, o coloca em prática, configurando a realidade. Em outras palavras, autor é aquele que possui o domínio final do fato – trata-se de conceito restritivo de autor. Os indutores e cúmplices, por sua vez, possuem o domínio sobre sua participação apenas, mas não sobre o fato em si. Para Nilo Batista (2005)6, trata-se de critério final-objetivo, segundo o qual autor é aquele que condiciona o curso causal com vistas à produção de um resultado típico e, por isso, possui domínio sobre a realização do delito. Ressalta-se que o domínio final do fato não é o único critério de autoria admitido por Welzel, que prevê, ainda, outros elementos, como os requisitos objetivos do autor e os elementos subjetivos de autoria. Nesse sentido, “sólo si se dan estos requisitos tiene el autor ‘el dominio del hecho más amplio’, en sentido no meramente final, sino también social” (ROXIN, 2000, p. 88). Posteriormente, Welzel acaba abandonando o sentido social de autoria, sem descartar os requisitos objetivos e subjetivos como critérios adicionais ao domínio final do fato. Conforme já mencionado, a teoria formulada por Welzel se apresentou de maneira nitidamente genérica e abstrata, de forma que a teoria do domínio do fato apenas conquistou seus contornos mais concretos com os estudos formulados por Claus Roxin, apresentados em sua monografia de 1963, Autoría y dominio del hecho en derecho penal. A partir de então, a teoria começa a conquistar a aceitação quase hegemônica que hoje sustenta, sendo amplamente aplicada em tribunais europeus e cortes penais internacionais, como o Tribunal Penal Internacional7.

1.3. Aspectos metodológicos Em artigo mais recente, Roxin (2012, p. 299)8 destaca que a jurisprudência alemã tem delimitado a autoria delitiva a partir de dois critérios subjetivos – o interesse e a 6

 BATISTA, Nilo. Concurso de agentes, 3. ed., Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2005.   O Tribunal Penal Internacional tem adotado em suas decisões, desde a decisão de recebimento da denúncia no caso Katanga, em 2008 (ICC-01/04-01/07-717), o critério elaborado por Claus Roxin para definir a autoria mediata por meio do domínio da organização, que será abordada a seguir neste trabalho. Nesse sentido: WEIGEND, Thomas. “Perpetration through an organization”, Journal of International Criminal Justice, vol. 9, 2011, pp. 91-111.   8 ROXIN, Claus. O princípio da proteção do bem jurídico e seu significado para a teoria do injusto, In: ESER, A. et al.; AMBOS, K. e BÖHM, M. L. (coord.). Desenvolvimentos atuais das ciências criminais na Alemanha, Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2013. pp. 289-308.   7

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vontade do domínio do fato; e dois critérios objetivos – a intensidade da participação no fato e o próprio domínio do fato. Entretanto, o jurista alerta para o perigo da arbitrariedade judicial ao delegar ao juiz a escolha entre os critérios mencionados. Destarte, a falta de definição, na doutrina e jurisprudência alemãs, dos critérios definidores de autoria e participação impulsionou os estudos de Claus Roxin sobre o tema, de modo que este buscou estabelecer um critério norteador único. Nesse sentido: “A situação de instabilidade jurisprudencial, somada à indefinição conceitual que caracterizava a doutrina – faltava uma sistematização do lugar da ideia de domínio do fato na dogmática da autoria –, foram os fatores que motivaram a busca de um critério reitor comum, capaz de, por um lado, estabelecer de forma sólida o traço distintivo do conceito de autor e, por outro, guiar as decisões judiciais, resguardando os cidadãos de decisões judiciais intuitivas e arbitrárias.” (GRECO e LEITE, 2013, p. 15).

Em especial, as teorias ontológicas (que constituem o sistema finalista) se mostraram fundamentais para a ideia de domínio do fato elaborada por Roxin, pois constituem a base metodológica de sua construção teórica, mesmo quando se apresentam como contraponto a algumas posições dogmáticas tomadas pelo jurista. Nesse sentido, Roxin parte da ideia elaborada por LANGE (1961 apud ROXIN, 2000, p. 46) de que o conceito de autor deve ser determinado primariamente, sendo necessário afastar o conceito secundário de autor, que opera por meio da subtração – “autor é aquele que não é partícipe”. Portanto, no esforço de determinar primariamente o conceito de autor, Roxin (2000, p. 44) parte do princípio orientador de que o autor é a figura central do acontecer em forma de ação. Trata-se do ponto de partida metodológico que considera autor, coautor e autor mediato como as figuras centrais no sucesso do resultado, enquanto indutor e cúmplice se situam à margem do acontecer típico. É nesse ponto que reside a inovação dogmática da obra de Roxin. A partir de então, Roxin direciona seu trabalho à elaboração do conceito de domínio do fato como conceito aberto. Assim, por meio de um procedimento descritivo, um conceito aberto permitiria sua adequação aos diversos casos concretos. Isso porque o método descritivo não delimita o conceito de autor mediante fórmulas rígidas. Ou seja, o conceito aberto não possibilita uma indicação exaustiva de elementos essenciais e não se fecha ao reconhecimento de novos elementos de conteúdo.

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Ao mesmo tempo, o método descritivo, ao considerar a imprevisibilidade das possíveis circunstâncias, veda qualquer situação generalizadora, valendo-se de princípios regulativos (ou orientadores) da valoração judicial. Isso significa que, considerando a multiplicidade de elementos relevantes à determinação do conceito de domínio do fato, o legislador ou o criador desse conceito devem se limitar a determinar diretrizes, deixando a cargo do aplicador do Direito a sua definição no caso concreto, por meio dos princípios regulativos. Em outras palavras: “[...] cuando en la determinación del concepto de autor en cualquier ámbito vital que ha de captarse mediante la descripción, la multitud de elementos del supuesto de hecho con relevancia para la determinación del dominio del hecho es tan grande que se sustrae al enjuiciamiento anticipado generalizador, el legislador o bien el creador del concepto tienen que conformarse en este lugar con una directriz y para lo demás dejar al encargo de aplicar el Derecho el enjuiciamiento del cado concreto de la mano del principio regulativo dado” (ROXIN, 2000, p. 148).

Importa ressaltar, ainda, que a noção de domínio do fato de Roxin encontra-se intimamente ligada ao princípio da proteção do bem jurídico, que possui papel central na teoria da pena formulada por Roxin: “[...] em cada situação histórica e social de um grupo humano os pressupostos imprescindíveis para uma existência em comum se concretizam numa série de condições valiosas como, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade de actuação ou a propriedade, as quais todo o mundo conhece; numa palavra os chamados bens jurídicos; e o direito penal tem que assegurar esses bens jurídicos, punindo a sua violação em determinadas condições” (ROXIN, 2012, pp. 27-28)9.

Nesse sentido, o jurista propõe a idéia de que “participação é um ataque a um bem jurídico levado a cabo sem qualificação de autor e deve, pois, ficar impune nos casos em que falte um ataque a um bem jurídico” (ROXIN, 2012, p. 301). Compreende-se, com essas considerações, como as noções de centralidade e marginalidade se relacionam à definição de autoria e participação – o autor é a figura central do acontecer típico, configurado no ataque ao bem jurídico, sendo que a punibilidade se

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ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal, 3. ed., Lisboa: Vega, 2004.  

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estende também ao partícipe quando este, apesar de se encontrar à margem do resultado, também coloca em risco determinado bem jurídico. A partir dessas ideias, considerando a diversidade da matéria, Roxin (2000, p. 149) propõe uma análise concreta das distintas formas de intervenção no sucesso delitivo, como forma de descrever, em cada grupo de casos, a maneira por meio da qual se manifesta a ideia do domínio do fato. Isso significa que a teoria do domínio do fato não se apresenta como um fim em si mesma, mas como instrumento para solucionar problemas concretos. Decorre dessa assertiva que o critério do domínio do fato como delimitador dos conceitos de autoria e participação conforme proposto por Claus Roxin não possui pretensão de universalidade, sendo que o próprio jurista alemão admite casos em que não se aplica a ideia de domínio do fato, como nos casos de delitos de infração de dever, delitos de mão própria e delitos culposos.

1.4. As manifestações concretas da ideia de domínio do fato A partir das considerações acima, é possível elencar as diversas manifestações concretas da ideia de domínio do fato identificadas por Roxin ao longo de sua obra. Em primeiro lugar, verifica-se a ideia de domínio da ação, que é considerada a manifestação mais evidente do domínio do fato – em todos os contextos imagináveis, o indivíduo imputável que realiza direta e livremente todos os elementos do tipo de mão própria é considerado autor (ROXIN, 2000, p. 151). Nesse grupo de casos, classificado como autoria imediata, o domínio do fato se manifesta no domínio da própria ação. Dessa forma, afasta por completo as concepções subjetivas de autoria, uma vez que os motivos que impulsionam o autor a cometer o delito não maculam seu domínio sobre o sucesso do resultado e sua posição central na execução, ainda que o fato tenha sido executado mediante indução ou coação de terceiro. A diferença em relação aos casos em que o autor que pratica o delito sob a influência de coação de terceiro, ou em casos de estado de necessidade, inimputabilidade e erro de proibição, é que a legislação penal prevê expressamente a exclusão de culpabilidade. Isso, contudo, não afasta a autoria, uma vez que esses indivíduos, atuando de mão própria, possuem pleno domínio do fato e são autores, ainda que não culpáveis. Em seguida, destaca-se a ideia de autoria por domínio da vontade, uma das principais contribuições de Roxin para a teoria da autoria, que consiste em entender como se

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torna possível fundamentar a autoria daquele que não executa o fato por si mesmo. Trata-se da chamada autoria mediata, em que um sujeito (denominado o “sujeito de trás”) possui o domínio do fato com base no poder da vontade dirigida (ROXIN, 2000, p. 166). Em outras palavras, autor é aquele que domina a vontade de terceiro, que tenha sido reduzido a mero instrumento de realização do tipo penal, ainda que plenamente responsável. Segundo Nilo Batista (2005, p. 130), “nessa ‘manipulação’ do decurso do fato pela via de uma vontade alheia submetida é que está o fundamento material da autoria mediata”. A partir dessa formulação, torna-se possível identificar distintos grupos de casos em que se manifesta a ideia de domínio do fato pelo domínio da vontade. Em primeiro lugar, verifica-se a hipótese em que o homem de frente se vê influenciado por um estado de necessidade coativo – nesse caso, tanto o executor direto quanto aquele que exerce a coação dominam o fato e são, portanto, autores. No entanto, não se fala, aqui, em coautoria, mas em dupla autoria, ou seja, ambos os intervenientes se encontram no centro da ação delitiva, mas com critérios de imputação distintos: o executor direto em virtude de seu agir; o sujeito de trás em virtude de seu poder sobre a vontade do primeiro. A diferença é que, conforme exposto no item anterior, o homem de frente teve sua vontade viciada e, portanto, é desculpado em razão de expressa previsão legal. Trata-se do princípio da responsabilidade: [...] ao exculpar o homem da frente em certos casos de coação (§ 35 do StGB; art. 22 CP), o legislador dá a entender que quer responsabilizar o homem de trás que provoca ou que se aproveita dessa situação. O princípio da responsabilidade é, para Roxin, o único parâmetro viável nos casos de coação, uma vez que dominar alguém que sabe o que faz é algo, em princípio, excepcional, que só pode ser admitido com base nos parâmetros fixados pelo legislador (GRECO e LEITE, 2013, p. 16)10.

A conclusão a que chega Roxin (2000, p. 193) é que o sujeito que executa o fato, influenciado por uma situação criada pelo sujeito de trás, será exonerado de responsabilidade penal (em virtude de expressa previsão no ordenamento jurídico), tendo em vista o domínio da vontade por meio de coação, da qual é titular o autor mediato.

GRECO, Luis e LEITE, Alaor. “O que é  e o que não é  a teoria do domínio do fato sobre a distinção entre autor e partícipe em direito penal”, Revista dos Tribunais, vol. 933, p. 61, Jul. 2013, pp. 13-35.  

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O segundo grupo de casos analisado por Roxin corresponde àquele em que o autor mediato domina a vontade em virtude de erro do executor direto. Aqui, o domínio do fato pelo homem de trás se fundamenta no seu conhecimento superior de que o executor direto atua em erro, tornando-o instrumento da ação delitiva. Roxin (2000, p. 196) admite, nessa hipótese, o princípio do domínio final do fato formulado por Welzel: a diferença do caso ora analisado para os casos de domínio da vontade pela coação reside no fato de que, nos casos de erro, o sujeito de trás é o único que configura o acontecer em direção ao resultado, com vistas a uma finalidade da qual o homem da frente não possui conhecimento. Trata-se, nesse caso, do que Roxin denomina de “supradeterminação final do curso causal”. O executor direito, por sua vez, aparece como instrumento cego, destituído de sua capacidade humana de atuar com finalidade, introduzido no plano causal como fator condicionante do fato. Da mesma forma como ocorre no caso de domínio da vontade em virtude de coação, o homem de trás e o executor direto que atua em erro são ambos autores; no entanto, o homem da frente, por estar em erro, é também desculpado por meio de expressa previsão legal. Por fim, destaca-se a última forma de autoria mediata: o domínio da vontade por meio de estruturas de poder organizadas. Essa é a parcela mais original da teoria de Roxin e que mais gerou repercussão, sendo muitas vezes confundida como sendo a teoria do domínio do fato em si. No entanto, trata-se de apenas uma das manifestações do domínio da vontade, sendo que depende de alguns requisitos específicos para sua configuração, os quais serão analisados mais detidamente no item 2 infra. A terceira manifestação concreta da ideia de domínio do fato é a coautoria, traduzida na cooperação de diversos autores como componente decisivo para a realização do delito. Roxin (2000, p. 307) entende que, nesse grupo de casos, o domínio do fato reside nas mãos de mais de um agente, de forma que cada um possui domínio sobre o “acontecer global”, em cooperação com os demais. Dessa forma, o resultado delitivo depende da ação conjunta dos coautores, ao mesmo tempo que um único agente pode anular o sucesso do plano conjunto ao retirar sua contribuição ao resultado. Nesse sentido: Se duas ou mais pessoas, partindo de uma decisão conjunta de praticar o fato, contribuem para a sua realização com um ato relevante de um delito, elas terão o domínio funcional do fato (funktionale Tatherrschaft), que fará

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de cada qual coautor do fato como um todo, ocorrendo aqui o que se chama de imputação recíproca (GRECO e LEITE, 2013, p. 18).

A denominação “domínio funcional do fato” se justifica pela característica particular desse tipo de autoria, em que cada componente do acontecer global possui uma tarefa ou função determinada, essencial para o sucesso do plano conjunto. Dessa forma, faz-se a distinção entre autoria e participação no concurso de pessoas, ou seja, o fundamento da coautoria também reside no domínio do fato, sendo que “desprovida deste atributo, a figura cooperativa poderá situar-se na esfera da participação (instigação ou cumplicidade)” (DELMANTO, 2007, p.114)11.

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DELMANTO, C. et. al. Código penal comentado, 7. ed. atual. e ampl., Rio de Janeiro: Renovar, 2007.  

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2. A autoria mediata por meio do domínio da organização

Conforme mencionado nas considerações introdutórias, o presente estudo direciona sua atenção específica para o critério da autoria mediata por meio do domínio de organização, o qual pode ser considerado a principal inovação da obra de Claus Roxin, tendo causado imenso impacto na doutrina e jurisprudência em todo o mundo12, gerando também inúmeras críticas. Na hipótese do domínio da vontade por meio de estruturas de poder organizadas, o sujeito de trás possui à sua disposição um maquinário de pessoas, hierarquicamente organizado, que lhe permite cometer crimes sem ter que delegar sua realização à decisão do executor. Nesse sentido, Roxin procurou transpor o conceito cotidianamente utilizado de “autor de escritório” (Schreibtischtäter) às precisas categorias da dogmática jurídica (ROXIN, 2009, p. 7013). Dessa forma, permitiu à jurisprudência em geral adotar esse conceito no julgamento de crimes praticados por meio de um aparato organizado de poder. É exemplo emblemático o caso dos atiradores do muro de Berlin, em que um membro do Conselho Nacional de Defesa do governo da Alemanha oriental foi condenado, pela Suprema Corte alemã, como autor mediato de homicídio doloso, por emitir ordens aos guardas que atuavam na vigilância do muro que separava a cidade de Berlin para que atirassem em todo e qualquer indivíduo que tentasse ultrapassar o muro. Esse entendimento, no entanto, até hoje não é pacífico na jurisprudência alemã. No âmbito internacional, a teoria foi adotada pela Junta Geral Argentina, no julgamento dos crimes praticados pelo regime militar argentino, bem como no julgamento de Alberto Fujimori, no Chile. Por fim, destaca-se que a autoria por meio do domínio da organização foi um dos critérios de autoria adotados pelo Estatuto de Roma, que institui o Tribunal Penal Internacional14.

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Destacam-se, nesse sentido, as decisões das Juntas Militares na Argentina e a sentença do caso Fujimori, no Peru. 13 ROXIN, Claus. “O domínio por organização como forma independente de autoria mediata”, Panóptica, vol. 4, n. 3, 2009, pp. 69-94.   14 Artigo 25. Responsabilidade Criminal Individual [...] 3. Nos termos do presente Estatuto, será considerado criminalmente responsável e poderá ser punido pela prática de um crime da competência do Tribunal quem: a) Cometer esse crime individualmente ou em conjunto ou por intermédio de outrem, quer essa pessoa seja, ou não, criminalmente responsável;

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Ressalta-se que a autoria mediata por meio de aparato organizado de poder foi concebida tendo em vista a insuficiência das demais figuras jurídicas de autoria para explicar os crimes de guerra, de Estado e de outras organizações criminosas. Com efeito, Roxin (2000, pp. 273-275) inspirou-se no julgamento de Adolf Eichmann15 para elaborar essa ideia, tendo identificado no caso elementos característicos dessa forma de autoria. Para o jurista alemão (ROXIN, 2000, p. 270), as figuras jurídicas de autoria, indução e cumplicidade, até então concebidas, foram elaboradas tomando como base a estrutura do delito individual, e, por isso, não são aptas a dar conta dos acontecimentos coletivos que correspondem aos crimes de guerra ou de Estado, considerados como fenômeno global. Nesse sentido: “[...] es evidente que una autoridad superior competente para organizar el exterminio masivo de los judíos o la dirección de un servicio secreto encargada de perpetrar atentados políticos dominan la realización del resultado de manera distinta a un inductor común” (ROXIN, 2000, p. 272).

Assim, levando em conta as características específicas desse tipo de delinquência, Roxin identifica fundamentos estruturais que permitem delimitar o critério do domínio da organização como definidor dessa hipótese de autoria mediata. Ao longo dos anos, levando em conta as intensas discussões doutrinárias acerca desse tipo de autoria, Roxin foi aperfeiçoando sua teoria, sendo que atualmente prevê que são três os pressupostos do domínio da organização: (i) a emissão de uma ordem por meio do poder de comando exercido pelo agente no marco da organização; (ii) a desvinculação da organização em relação ao Direito; e (iii) a fungibilidade dos executores individuais. Isso significa que o homem de trás, a partir de sua posição de comando, hierarquicamente superior aos demais integrantes da organização, possui à sua disposição uma organização que funciona automaticamente e que se encontra desvinculada do Direito, de modo que o executor não espera sofrer sanções penais, sendo ele, além disso, substituível, no sentido de que o sucesso do plano delitivo não depende de sua conduta. A seguir, analisaremos pormenorizadamente cada um dos pressupostos da autoria por domínio da organização.

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Adolf Eichmann foi um oficial do regime nazista na Alemanha, responsável pela logística de transporte dos prisioneiros dos campos de concentração para os campos de extermínio. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, Eichmann se refugiou na Argentina, tendo sido capturado pela Mossad (serviço de inteligência israelense) em 1960 e levado a Israel para seu julgamento. Foi condenado à pena de morte e executado em 31 de maio de 1962. Nesse sentido, ver: ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalem: um relato sobre a banalidade do mal, São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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2.1. Pressupostos 2.1.1. O poder de comando Em primeiro lugar, Roxin identifica uma característica especial do sujeito de trás, essencial para ser considerado autor mediato – ele deve possuir poder de comando dentro de uma organização e exercê-lo para produzir resultados típicos. Essa característica se manifesta mesmo quando o autor mediato age ele próprio em cumprimento a uma ordem superior. Isso ocorre pois, em uma estrutura de poder complexa e hierarquicamente organizada, muitos autores mediatos se posicionam sucessivamente, em diferentes níveis de comando (ROXIN, 2009, p.81). Nesse caso, cada instância hierárquica segue dirigindo gradualmente a parte da cadeia que lhe cabe (ROXIN, 2000, p. 276), repassando a ordem superior aos respectivos subordinados, de forma sucessiva, até chegar ao executor direto. Dessa forma, será possível verificar que a medida da responsabilidade aumenta quanto mais longe está o emissor da ordem daquele que cumpre, praticando o crime com suas próprias mãos, e quanto mais próximo está dos postos superiores na cadeia de comando (ROXIN, 2000, pp. 274-275).

2.1.2. A desvinculação do Direito Em seguida, Roxin analisa o pressuposto da desvinculação do Direito, característica mais evidente nos casos de organizações não estatais, como a máfia e grupos terroristas. No âmbito dos crimes estatais sistemáticos, por sua vez, o sistema deve estar desvinculado do Direito apenas no que diz respeito às atividades penalmente relevantes (ROXIN, 2012, p. 332). Dessa forma, em razão da desvinculação do Direito, o executor direto acredita que jamais sofrerá sanções penais em virtude do cometimento de algum crime e, por isso, o homem de trás possui a certeza de que não haverá resistência à sua ordem. Isso ocorre em uma situação em que já não estão vigentes as garantias do Estado de Direito. É importante reiterar que a desvinculação ao Direito diz respeito ao fato de que a organização está à margem da legalidade, ou seja, do Estado de Direito. Nesse sentido, Roxin afirma que:

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[...] los titulares de poder en Estados totalitários no estén sometidos igualmente al Derecho. Sólo manteniendo ligados a esos titulares a ciertos valores fundamentales comunes a todos los pueblos civilizados tenemos la posibilidad de declarar delictivas y punibles las acciones de los órganos supremos estatales que violan los derechos humanos. Pero la vinculación jurídica, en tanto que nadie se oponga a quienes tienen el aparato del Estado en sus manos, en la realidad no surte el efecto de contener al poder. Por eso en tales casos se mantiene asegurada la capacidad de funcionamiento del aparato (ROXIN, 2000, p. 277).

Isso se explica pelo fato de que, considerando que a direção dos órgãos executores é exercida em observância a um ordenamento jurídico independente desses órgãos, as ordens para praticar delitos só podem ser antijurídicas, uma vez que as leis são superiores. Trata-se do equivalente princípio da legalidade em direito administrativo – uma autoridade administrativa somente pode atuar em conformidade com a lei. Em um Estado totalitário, por outro lado, as autoridades atuam à margem da legalidade, de forma a criar a garantia de que o executor direto, não temendo sanção penal em virtude do cumprimento da ordem, executará o comando. Como resultado, observa-se que entre a vontade do mandante e o sucesso da empreitada criminosa não se interpõe a decisão determinante de um indivíduo. Nas palavras de Roxin: “O mesmo vale para os atos de extermínio em massa pelos nazistas, os quais jamais teriam ocorrido se indivíduos tivessem agido por transgressão e um grande aparato sistemático em todas as suas partes não tivesse proposto este fim. O sistema (por exemplo, o sistema parcial de um Estado) deve, portanto, trabalhar criminosamente (‘desvinculado do direito’) como um todo, se as instruções do homem de trás vierem para garantir o resultado que fundamenta a autoria mediata” (ROXIN, 2009, p. 82).

2.1.3. A fungibilidade do executor direto Por fim, Roxin apresenta o pressuposto da fungibilidade do executor direto, segundo o qual a organização criminosa (estatal ou não estatal) se caracteriza pela grande quantidade de indivíduos dispostos a cumprir as ordens do homem de trás, “de modo que a recusa ou a perda de um indivíduo não pode impedir a realização do tipo” (ROXIN, 2009, p. 82).

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Assim, entende-se que, considerando que os indivíduos que colaboram para a realização do plano criminoso são plenamente substituíveis, torna-se desnecessário coagir ou colocar em erro o executor direto para que o domínio do fato seja transferido ao sujeito de trás, que não se subordina ao executor direto e não precisa deixar a critério deste o sucesso do plano global (ROXIN, 2000, p. 271). Uma organização como essa funciona independentemente da “identidade variável de seus membros” (ROXIN, 2000, p. 272), de maneira automática, não importando quem é o executor da ordem. O teórico alemão reconhece que não falta liberdade ou responsabilidade ao executor direto, que deve responder como autor culpável e de própria mão. Entretanto, o agente não se apresenta ao autor mediato como indivíduo livre e responsável, mas somente como uma figura anônima e substituível (ROXIN, 2000, p. 273). Assim, entende-se que é a fungibilidade do executor direito o fator decisivo para fundamentar o domínio da vontade nos casos de aparatos organizados de poder que atuam de forma desvinculada do Direito.

2.2. O pressuposto da fungibilidade e suas críticas A teoria de Roxin, por ser inovadora, sofreu ao mesmo tempo inúmeras críticas. Um dos principais críticos do critério do domínio da organização como forma de autoria mediata foi o jurista Friedrich-Christian Schroeder. O teórico alemão entende que a fungibilidade não pode ser o critério determinante da autoria, “e que principalmente em funções decisivas não há que se tomar por suficiente”16. Assim, Schroeder entende que alguns especialistas seriam imprescindíveis enquanto executores, não podendo ser substituídos: “Isto sucede quando os executores não são fungíveis, por exemplo, quando são especialistas e insubstituíveis na aplicação de gás tóxico, falsificação de documentos, ou outra atividade. Isso não muda a responsabilidade dos participantes” (SCHROEDER, 2013, p. 26).

16

SCHROEDER, Friedrich-Christian; SAAD-DINIZ, Eduardo, FALCONE, Andrés, MARIN, Gustavo de Carvalho (organização). Autoria, imputação e dogmática aplicada no direito penal, São Paulo: LiberArs, 2013.

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Nesse sentido, Schroeder entende que o pressuposto da fungibilidade permitiria afastar a responsabilidade de alguns dos agentes inseridos em uma estrutura organizada de poder, por não ser critério determinante, ou sequer suficiente, para a autoria. No entanto, é necessário ter em mente que a teoria do domínio do fato, e o critério da autoria mediata por domínio da organização em especial, são critérios de definição de autoria e participação, sendo exterior ao seu escopo a discussão acerca da responsabilidade. Roxin esclarece, ademais, que o critério da autoria mediata por domínio da organização jamais se pretendeu universal e não se aplica a todos os delitos causados por uma organização criminosa. Isso porque, o domínio da organização se orienta por uma automatização do aparato de poder e por uma multiplicidade de delitos. Nesse sentido: “Se um serviço secreto precisa recrutar um especialista que possua, somente ele, condições de executar um determinado delito, a organização não ostenta desde o princípio o modo específico de atuação. Também um autor isolado pode se engajar como tal homem. No entanto, existe apenas uma instigação, uma vez que não é exercida nenhuma pressão coercitiva” (ROXIN, 2009, p. 83).

Tem-se, portanto, que a recusa ou a imperícia do executor direto é exceção, de forma que sua ocorrência sistemática significaria uma “pane na organização”, afastando o domínio do fato do sujeito de trás. O critério da autoria mediata por domínio da organização aplica-se a hipóteses específicas, em que os pressupostos acima elencados se verificam na prática. Conforme demonstrado no item 1 supra, a autoria mediata por meio do domínio da organização corresponde a uma das manifestações concretas da ideia de domínio do fato identificadas por Roxin. Com base nesses critérios, procura-se identificar formas de autoria, e não atribuir responsabilidade a determinada conduta. Além de não se ocupar da discussão acerca da responsabilidade criminal, se limitando apenas a diferenciar os conceitos de autoria e participação, a teoria do domínio do fato não se pretende universal. Os critérios por ela propostos são padrões que auxiliam a compreender as diversas manifestações, no plano concreto, de autoria e participação. Não constituem, portanto, pressupostos ontológicos, imutáveis e absolutos.

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Trata-se, desse modo, de instrumento teórico concebido para solucionar problemas no plano fático. Não é uma teoria que constitui um fim em si mesma. Dessa forma, é de especial relevância analisar o contexto que inspirou a concepção da teoria por Roxin. O jurista alemão elaborou os critérios acima expostos tendo como problema inspirador a questão relativa à autoria nos crimes cometidos pelo regime do nacional-socialismo na Alemanha, a partir de 1938, em especial, o julgamento de Adolf Eichmann. Nesse sentido, identificamos que os conceitos de totalitarismo e de banalidade do mal elaborados por Hannah Arendt, proporcionam uma compreensão satisfatória do citado contexto, permitindo que se verifique, na prática, o critério da fungibilidade do executor direto, e possibilitando entender o sujeito de trás em um aparato organizado de poder como autor mediato, independentemente da discussão acerca da responsabilidade do executor direto.

2.3. A elevada propensão ao cometimento do fato Considerando as diversas críticas à sua teoria, Roxin procurou aperfeiçoar suas exposições teóricas, desenvolvendo posteriormente à publicação de sua obra original o que pode ser considerado um quarto pressuposto para a configuração da autoria mediata por domínio da organização: a disposição essencialmente elevada dos executores ao fato. O jurista alemão esclarece que a fungibilidade em organizações delitivas pode se manifestar em diferentes medidas. Destarte, o indivíduo inserido em uma estrutura organizada de poder, desvinculada do Direito, quando executa o fato típico em cumprimento a uma ordem superior, se manifesta de forma diversa de um autor isolado que pratica o delito de própria mão. Isso ocorre tendo em vista que o executor direto encontra-se, nesse caso, exposto “a numerosas influências específicas da organização, que na verdade não excluem de modo algum a sua responsabilidade, mas o tornam ‘mais disposto ao fato’ que outro potencial delinquente e, visto de forma global, aumentam a probabilidade do resultado por meio de uma ordem e contribuem com o domínio do fato do homem de trás” (ROXIN, 2009, pp. 85-86). Roxin (2012, p. 334) ressalta que, no caso da autoria mediata pelo domínio da organização, a segurança do resultado não é plena, mas “é, de qualquer modo, maior que na hipótese de interposição de pessoas não responsáveis”.

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Assim, os três pressupostos acima mencionados proporcionam uma elevada propensão ao cometimento do fato, de maneira a reforçar o domínio do acontecimento por parte do homem de trás. Nas palavras de Roxin: “Esses três pressupostos ensejam uma elevada propensão ao cometimento do fato pelo autor direto, por três razões: em primeiro lugar, porque no âmbito da organização de poder a ordem exerce pressão no sentido de seu cumprimento; em segundo lugar, porque a desvinculação do sistema em relação ao direito faz com que o executor suponha que não há razão para temer conseqüências penais; e, em terceiro lugar, porquanto a fungibilidade do executor induz à idéia de que o fato não depende da sua conduta, uma vez que, mesmo sem ele, outro de todo modo o realizaria” (ROXIN, 2012, p. 311).

Ao integrar uma organização, o indivíduo passa a demonstrar uma “tendência à adaptação” (ROXIN, 2009, p. 86), que o faz aderir de maneira irrefletida a condutas que, em outras circunstâncias, não praticaria. Essa tendência decorre da percepção de que se o indivíduo não cumprir a ordem, outro o fará e, caso se recuse a cumprir, perderá sua posição na cadeia hierárquica. Ressalta-se que tais características foram identificadas por Hannah Arendt nos depoimentos de Adolf Eichmann, na ocasião de seu julgamento. Verifica-se, portanto, que essas características não excluem a culpabilidade e a responsabilidade do executor direto, mas conduzem a uma “disposição condicionada dos membros da organização ao fato” (ROXIN, 2009, p. 87).

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3. Totalitarismo e banalidade do mal no pensamento de Hannah Arendt

Os estudos de Hannah Arendt acerca do totalitarismo se inspiram no espanto da filósofa alemã em relação a esse fenômeno inédito, cuja originalidade rompeu com toda a tradição da ciência política e destruiu toda e qualquer categoria política e critério de julgamento moral até então concebidos. O espanto a que se refere Hannah Arendt corresponde aquilo que Platão entendia como o fator propulsor da atividade de filosofar. Para Platão, “o início de toda filosofia é thaumadzein, o espanto maravilhado face a tudo que é como é”17. A partir desse ponto, ao se deparar com essa nova realidade, a filósofa, em todo seu espanto maravilhado, percebe a necessidade de criar significados, como forma de compreender a novidade do totalitarismo – compreender, para Hannah Arendt, significa reconciliar-se com a realidade (SOUKI, 1998, p. 43). Assim, o esforço da filósofa, ao escrever a obra Origens do Totalitarismo, consiste em criar novos conceitos e novas categorias de pensamento para esse fenômeno inédito que acometeu a humanidade entre os anos de 1930 e 1945, e cujo aspecto mais aterrorizante é justamente sua novidade e sua capacidade de arruinar todas as categorias de pensamento. Não se trata de absolver os responsáveis pelas atrocidades e relevar os acontecimentos, mas de assimilar a sua realidade como original. Nesse sentido: “[...] compreender é uma atividade sem fim, sempre mutante e variada, pela qual nós nos ajustamos ao real, reconciliamo-nos com ele e nos esforçamos para estar em harmonia com o mundo. Hannah Arendt diz que compreender o totalitarismo não é, de forma alguma, perdoar, mas nos reconciliar com um mundo onde esses acontecimentos são simplesmente possíveis. Para ela, a maneira mais fácil de nos enganar a respeito de uma novidade histórica consiste em assimilá-la a algo já conhecido pela tradição; [...]” (SOUKI, 1998, p. 44).

Vale ressaltar que, para Hannah Arendt, o homem “vive sempre no intervalo entre o passado e o futuro”18, de modo que o tempo não configura uma linha contínua, mas é

17 18

SOUKI, Nádia. Hannah Arendt e a banalidade do mal, Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p.39. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro, São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 37.

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partido ao meio, formando uma lacuna que corresponde ao presente. Segundo LAFER19, é para essa lacuna que se volta o pensamento de Hannah Arendt: “O presente, que para Hannah Arendt gerou a consciência e a percepção da ruptura, foi o fenômeno totalitário. O totalitarismo, como uma nova forma de governo e de dominação, baseado na organização burocrática de massas, no terror e na ideologia, provou, com o genocídio, não existirem limites à deformação da natureza humana. Para este fenômeno a tradição ocidental não tinha nem categorias, nem respostas, pois o totalitarismo apareceu tanto como um desdobramento da utopia capitalista, quanto da utopia socialista, conforme nos mostram as suas vertentes nazista e stalinista. Daí o sentido profundo da ruptura que o fenômeno totalitário assinala e que Hannah Arendt examinou no seu primeiro grande livro” (LAFER, 1979, pp. 23-24).

Os novos significados, conceitos e categorias de pensamento criados por Hannah Arendt nos auxiliarão a compreender a condição do homem sob um regime totalitário e como, nesse contexto, mostra-se igualmente necessário criar novos critérios de autoria delitiva, como o fez Claus Roxin.

3.1. O totalitarismo e seus “elementos cristalizadores”: o imperialismo e o antissemitismo Nas duas primeiras partes da obra Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt apresenta o que SOUKI (1998, p. 47) denomina como uma “convergência de acontecimentos que culmina por ‘cristalizar-se’ em totalitarismo”. Tal definição se contrapõe a uma noção de evolução histórica de acontecimentos, que teriam levado à emergência do totalitarismo – porém, não é essa a proposta de Hannah Arendt. Não há uma causalidade histórica a partir de elementos que dariam origem ao totalitarismo – esses elementos “se ‘cristalizam’ em certas formas determinadas” (SOUKI, 1998, p. 47). No mesmo sentido, Norberto Bobbio afirma que é possível descrever o totalitarismo levando em conta sua natureza específica, os elementos constitutivos que contribuem para sua formação e as condições que o tornaram possível20. E é essa operação

19

LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 23. BOBBIO, N., MATTEUCCI, N. e PASQUINO, G. Dicionário de política, 13. ed. 15. reimpr., Brasília: UnB, 2010, p. 1255.

20

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que Hannah Arendt realiza nas Partes I e II de Origens do Totalitarismo, quando descreve, não em ordem cronológica, os elementos do imperialismo e do antissemitismo. Ambos os elementos, assim como o totalitarismo, representam o rompimento com a tradição, não podendo ser submetidos a paralelos históricos, sob pena de se afastar da realidade. Representam, segundo LAFER (1979, p. 25), “uma seleção histórica a posteriori de elementos aptos para iluminar o que é relevante para a compreensão da mentalidade dos nazistas e dos comunistas à época de Stalin”. O antissemitismo moderno se distingue de sua forma tradicional por se originar a partir das tensões entre Estado e sociedade, e não se resumir ao ódio contra o povo judeu de origem religiosa. Para a filósofa, esse foi o grande equívoco dos judeus à época, que não foram capazes de identificar a ruptura que essa nova forma de antissemitismo ocasionou. Até a era do imperialismo, os judeus ostentavam, na sociedade européia, uma posição de financiadores do Estado, conquistada através das relações de empréstimos bancários que ofereciam. Com a emancipação política da burguesia, os judeus perderam essa condição privilegiada, mas continuaram a ser identificados com o poder estatal. Destarte, “a hostilidade em relação aos judeus se confundia com a hostilidade à estrutura do Estado como alvo de ataque de grupos nacionais” (SOUKI, 1998, p. 49). Ainda segundo SOUKI (1998, p. 50): “O anti-semitismo, que aparece em 1870, se exerce, pois, em direção a esse grupo que conservou seus privilégios e que depois perdeu as funções públicas, o poder; seu destino é, segundo Hannah Arendt, ligado ao declínio do Estado-nação que se quebra sob o avanço imperialista”.

Ademais, segundo explana Hannah Arendt, havia à época a falsa noção de que existiria uma conspiração secreta da comunidade judaica para manipular toda a política mundial e, assim, permanecer no poder, ainda que secretamente, nos bastidores. Essa mentira era utilizada por uma pequena burguesia como forma de “[desfigurar] os fatos para ajustálos às necessidades do poder” (LAFER, 1979, p. 25). Verifica-se, portanto, que o fenômeno do antissemitismo moderno permite identificar o surgimento das ideias de “inimigo objetivo”, aquele que é definido por uma política de governo, e da mentira como instrumento de poder, tão características dos movimentos totalitários, conforme será exposto abaixo.

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O imperialismo, por sua vez, corresponde ao momento em que a burguesia conquista sua emancipação política e passa a inverter os valores que se dava à economia e à política – a política passa a estar a serviço da economia em expansão. Esse fenômeno está intimamente ligado ao declínio do Estado-nação, o qual estabeleceu a igualdade de condição para todos os cidadãos e instituiu a sociedade de classes. Conforme expõe a autora, “o sistema de classes completamente desenvolvido e maduro define a condição do indivíduo por sua associação com uma determinada classe dentro do relacionamento dela com as outras, e não por sua posição pessoal no Estado” (ARENDT, 2012, p. 38). Nesse sistema, o Estado-nação se posicionava acima e além de todas as classes, como forma de governá-las. Essa conjuntura, no entanto, impedia a máxima expansão do capital econômico burguês e prejudicava sua hegemonia. Diante de tal situação, a burguesia se emancipa politicamente e a substitui os interesses públicos pelos seus interesses privados, buscando o rompimento das fronteiras nacionais em direção à expansão do capital supérfluo, que não mais tinha espaço nos limites do Estado-nação, o que enfraquecia o motor de incessante acúmulo de cada vez mais capital. Nesse sentido: “A burguesia ingressou na política por necessidade econômica: como não desejava abandonar o sistema capitalista, cuja lei básica é o constante crescimento econômico, a burguesia tinha de impor essa lei aos governos, para que a expansão se tornasse o objetivo final da política externa” (ARENDT, 2012, p. 193).

A exportação de capital passa a ser administrada e possibilitada pela dominação imperial (LAFER, 1979, p. 25), que se dá, por sua vez, pela exportação dos instrumentos de violência, sob a noção de que “somente o acúmulo ilimitado de poder podia levar ao acúmulo ilimitado de capital” (ARENDT, 2012, p. 204). Essa expansão ilimitada como forma de garantir o acúmulo ilimitado de capital, ao gerar também um “despropositado acúmulo de força” (ARENDT, 2012, p. 205), torna impossível a constituição de novos corpos políticos, considerados obstáculos temporários ao acúmulo de poder. Consequentemente, verifica-se uma estabilização social sem precedentes, elemento essencial para garantir a dominação global característica das pretensões totalitárias. Nas palavras da filósofa: “A concentração monopolista e o acúmulo de violência no país de origem tornavam os servos agentes ativos da destruição dos povos

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dominados, até que finalmente a expansão totalitária passou a ser uma força destruidora de povos e nações” (ARENDT, 2012, p. 206). Isso se tornou possível graças ao que Hannah Arendt denomina de “aliança entre a ralé e o capital” (ARENDT, 2012, p. 225). Conforme expõe a filósofa, a burguesia conseguiu camuflar seus interesses particulares atrás de um suposto interesse comum, convencendo a todas as demais classes sociais de que a expansão do capital correspondia ao interesse da nação como um todo. Essa ideia encontra-se mais claramente traduzida na seguinte passagem de Nádia Souki: “[...o imperialismo] marca a ‘emancipação política da burguesia’ cujos interesses privados são camuflados em princípios políticos, desde que os investimentos têm necessidade de uma proteção governamental. Os homens de negócios se trasvestem em políticos, para os quais a política representa apenas uma força de polícia bem organizada. O poder apenas seguiu a intendência além das fronteiras, o que explica que o Estado apenas exportou os meios de coerção – exército, polícia e burocracia, e que o governo da força ocupou o lugar da fundação do corpo político” (SOUKI, 1998, p. 51).

Segundo a filosofia política liberal da burguesia, que consagra a divisão entre vida pública e vida privada, o bem comum equivale à soma dos interesses individuais – tratase de uma “racionalização da temeridade com que se atendia aos interesses privados sem se atentar para o bem comum” (ARENDT, 2012, p. 470), que reflete a prática comum burguesa de se utilizar das instituições públicas conforme seus interesses privados. Da experiência do imperialismo, Hannah Arendt extrai dois traços distintivos que irão se mostrar decisivos no totalitarismo: a burocracia, como mecanismo de dominação dos povos estrangeiros; e as teorias racistas, como instrumento de organização política. A burocracia permitiu organizar a expansão, separando as terras conquistadas e os povos que nelas habitavam em zonas a serem racionalmente exploradas, sempre visando ao objetivo comum de acúmulo de capital e poder. Esse instrumento tornou os administradores em “homens sem compaixão e sem lei” (ARENDT, 2012, p. 268), “instrumentos tão dóceis quanto irresponsáveis” (SOUKI, 1998, p. 51), capazes de organizar massacres administrativos, através dos quais se possibilitou a dominação dos povos estrangeiros. As teorias racistas, embora presentes no imperialismo ultramarino na idéia de dominação de um povo inferior por um povo superior, se mostraram especialmente relevantes no contexto do chamado imperialismo continental. As nações da Europa central e oriental não

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detinham a capacidade econômica de expansão ultramar dos países da Europa ocidental, de forma que sua saída para o acúmulo de poder estava na expansão territorial contínua a partir de um centro de poder. Nesse contexto é que surgiram os movimentos de unificação alemã (pangermanismo) e russa (pan-eslavismo), considerados por Hannah Arendt os precursores dos movimentos totalitários. Se sustentavam na ideia de uma “ampliada consciência tribal”, ou seja, na necessidade de povos de origem étnica semelhante se unirem (ARENDT, 2012, p. 315). Substitui-se, assim, a nação pela raça, o que resulta no surgimento de um “nacionalismo tribal”: “Do ponto de vista político, o nacionalismo tribal insiste sempre em que o povo está rodeado por ‘um mundo de inimigos’, ‘um contra todos’, e que há uma diferença fundamental entre esse povo e todos os outros. Afirma que o povo é único, individual, incompatível com todos os outros, e nega teoricamente a própria possibilidade de uma humanidade comum, muito antes de ser usado para destruir a humanidade do homem” (ARENDT, 2012, p. 319).

A partir da análise dos fenômenos do imperialismo e do antissemitismo moderno, Hannah Arendt identificou a gênese de elementos que iriam compor o que se configurou posteriormente como movimentos totalitários: o racismo, a burocracia, a propaganda (como orquestradora de uma verdade oficial baseada numa ideologia) e o terror.

3.2. Os movimentos totalitários e a propaganda como instrumento de dominação do homem de massa Ao longo de sua obra, Hannah Arendt utiliza o termo “ralé” para denominar “um grupo no qual são representados resíduos de todas as classes, [...] [que] odeia a sociedade da qual é excluída, e odeia o Parlamente onde não é representada” (ARENDT, 2012, pp. 159-160). Essa ralé, após os acontecimentos da Primeira Guerra Mundial, iria se transformar em uma enorme massa de pessoas marginalizadas, que constituíram o fermento para o surgimento dos movimentos totalitários. Conforme exposto no item 3.1 supra, o fenômeno do imperialismo se deu com a emancipação política da burguesia que, com o objetivo de acumular cada vez mais capital,

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arquitetou uma política internacional de expansão, operada pelas leis de mercado, sob a crença de que a concorrência entre os agentes internacionais possibilitaria, por si só, o equilíbrio do sistema. Porém, a burguesia não se atentou para o fato de que se tratavam de agentes armados – o resultado foi a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a qual se seguiu um período de profunda crise econômica. “A

Primeira

Guerra

Mundial

foi

uma

explosão

que

dilacerou

irremediavelmente a comunidade dos países europeus, como nenhuma outra guerra havia feito antes. A inflação destruiu toda a classe de pequenos proprietários a ponto de não lhes deixar esperança de recuperação, o que nenhuma crise financeira havia feito antes de modo tão radical. O desemprego, quando veio, atingiu proporções fabulosas, sem se limitar as classes trabalhadoras mas alcançando nações inteiras, com poucas exceções” (ARENDT, 2012, p. 369).

Assim, a Primeira Guerra Mundial foi o evento que produziu as condições para o surgimento dessas massas marginalizadas, e que significou o colapso do sistema de classes na sociedade europeia. Essas massas marginalizadas se caracterizam por uma apatia e uma indiferença singulares, que as afastam da participação política, essencialmente em razão da sociedade competitiva de consumo criada pela burguesia. Nessa sociedade, o objetivo supremo era o sucesso do indivíduo na concorrência do mercado, “de tal modo que o exercício dos deveres e responsabilidades do cidadão era tido como perda desnecessária do seu tempo e energia” (ARENDT, 2012, p. 441). As massas, aparentemente avessas à participação política, tornaram-se, dessa forma, altamente suscetíveis a novos métodos de propaganda política. Contudo, os movimentos totalitários perceberam algo que os países democráticos não se deram conta: que as massas eram politicamente indiferentes apenas na aparência, não eram verdadeiramente neutras. Em outras palavras, “os movimentos totalitários demonstravam que o governo democrático repousava na silenciosa tolerância e aprovação de setores indiferentes e desarticulados do povo” (ARENDT, 2012, p. 440). Outra importante percepção dos movimentos totalitários: com o colapso do sistema de classe, veio também o colapso do sistema partidário, uma vez que os partidos perderam sua função de representar interesses advindos das classes sociais. Os movimentos totalitários surgem, então, para preencher esse déficit de representação das massas. Em

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relação a esse contexto, são especialmente emblemáticas a seguintes afirmações de Hannah Arendt: “Assim, o primeiro sintoma do colapso do sistema partidário continental não foi a deserção dos antigos membros do partido, mas o insucesso em recrutar membros dentre a geração mais jovem e a perda do consentimento e apoio silencioso das massas desorganizadas, que subitamente deixavam de lado a apatia e marchavam para onde vissem oportunidade de expressar sua violenta oposição. A queda das paredes protetoras das classes transformou as maiorias adormecidas, que existiam por trás de todos os partidos, numa grande massa desorganizada e desestruturada de indivíduos furiosos que nada tinham em comum exceto a vaga noção de que as esperanças partidárias eram vãs; que, consequentemente, os mais respeitados, eloquentes e representativos membros da comunidade eram uns néscios e que as autoridades constituídas eram não apenas perniciosas mas também obtusas e desonestas” (ARENDT, 2012, pp. 443-444).

A crise econômica e o desemprego suscitaram no homem de massa uma sensação de fracasso individual e de queda vertiginosa da autoestima, em razão da tomada de consciência de sua própria dispensabilidade, o que resultou em um enfraquecimento de seu instinto auto-conservador. Consequentemente, verifica-se um “autoabandono em direção à massa”, momento bem identificado pelos movimentos totalitários, que perceberam uma oportunidade de acolher um número imenso de pessoas atomizadas, desorganizadas e extremamente individualizadas. Esses indivíduos isolados dentro das massas sentiam que haviam perdido seu lugar no mundo e encontravam na violência uma válvula de escape para suas frustrações. Diante de tal situação, os movimentos totalitários ofereciam o espaço para manifestação dessa violência, “uma espécie de expressionismo político que tinha bombas por linguagem, [...] e que estava absolutamente disposto a pagar com a vida o fato de conseguir impingir nas camadas normais da sociedade o reconhecimento da existência de alguém” (ARENDT, 2012, p. 464). O homem de massa, esquecido em meio a uma infinidade de pessoas na mesma situação de penúria, tenta aparecer para o mundo e encontrar seu lugar por meio da violência. O grande mérito dos movimentos totalitários foi perceber esse isolamento do homem de massa, uma versão degenerada do burguês que valoriza, acima de tudo, a sua vida privada, o que lhes permitiu organizar as massas sob seu domínio total. Nesse sentido:

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“O isolamento desses filisteus na vida privada, sua sincera devoção a questões de família e de carreira pessoal, era o último e já degenerado produto da crença do burguês na suma importância do interesse privado. O filisteu é o burguês isolado de sua própria classe, o indivíduo atomizado produzido pelo colapso da própria classe burguesa. O homem da massa, a quem Himmler organizou para os maiores crimes de massa jamais cometidos na história, tinha os traços do filisteu e não da ralé, e era o burguês que, em meio as ruínas do seu mundo, cuidava mais da própria segurança, estava pronto a sacrificar tudo a qualquer momento – crença, honra, dignidade. Nada foi tão fácil destruir quanto a privacidade e a moralidade pessoal de homens que só pensavam em salvaguardar as suas vidas privadas” (ARENDT, 2012, pp. 472-473).

As massas são conquistadas pelos movimentos totalitários por meio da propaganda, em especial a “propaganda de força” (o terror) – membros de partidos inimigos eram assassinados como forma de mostrar para as massas o perigo de pertencer a um partido. Assim, a ineficiência das instituições públicas (a polícia e os tribunais que não conseguiam sequer processar tais crimes) contribuía para a sensação de que “era mais seguro pertencer a uma organização paramilitar nazista do que ser um republicano leal” (ARENDT, 2012, p. 477). Outra característica da propaganda totalitária é o seu cientificismo, equiparável às técnicas publicitárias, por meio das quais se reafirma a superioridade de um produto com base em supostas comprovações científicas. Entretanto, conforme explica ARENDT (2012, p. 478), “tanto no caso da publicidade comercial, quanto no da propaganda totalitária, a ciência é apenas um substituto do poder. A obsessão dos movimentos totalitários pelas demonstrações ‘científicas’ desaparece assim que eles assumem o poder”. O cientificismo dos movimentos totalitários se traduz em previsões para o futuro e afirmações proféticas, altamente assimiláveis pelas massas, fundamentadas em um sistema de causalidades, que determinam o curso da história, independentemente da ação humana. É a ideia de que existiria uma causa original que determina necessariamente os acontecimentos futuros, sem que o homem possa intervir no curso causal. No caso do nazismo, por exemplo, a ideologia racial preceitua que o povo judeu, por ter nascido judeu, está necessariamente fadado à morte devido à sua inferioridade natural. Assim, sua inevitável destruição está ligada a uma causa original (a questão racial), de modo que o homem poderia interferir para, no máximo, acelerar o curso da história. Ou

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seja, “[...] o extermínio vira processo histórico no qual o homem apenas faz e sofre aquilo que, de acordo com leis imutáveis, sucederia de qualquer modo” (ARENDT, 2012, p. 483). Assim que assumem o poder, os líderes dos movimentos totalitários passam a se esforçar para que suas previsões se tornem verdadeiras, ajustando a realidade às mentiras por eles proferidas. Esses líderes se transformam, assim, aos olhos das massas, em meros intérpretes de “forças previsíveis”. Trata-se de um mecanismo que se opera em duas direções: a propaganda permite a conquista das massas e um domínio total sobre elas, domínio este que garante, por sua vez, a possibilidade de tornar reais as mentiras proferidas pelos líderes totalitários. Esse tipo de propaganda, “que orquestra uma verdade oficial baseada numa ideologia” (LAFER, 1979, p. 26), possui especial eficácia entre as massas modernas, por serem estas céticas em relação à percepção da realidade adquirida por sua própria experiência e confiarem somente na imaginação, restando altamente suscetíveis às ideologias propagadas pelos movimentos totalitários, que conferem uma esfera de certeza à instável vida do homem de massa, relegada ao acaso. Além disso, a mentira propagada pelos movimentos totalitários significa uma “fuga da realidade” para as massas privadas de um lugar no mundo. Nesse sentido: “O que as massas se recusam a compreender é a fortuidade de que a realidade é feita. Predispõem-se a todas as ideologias porque estas explicam os fatos como simples exemplos de leis e ignoram as coincidências, inventando uma onipotência que a tudo atinge e que supostamente está na origem de todo acaso. A propaganda totalitária prospera nesse clima de fuga da realidade para a ficção, da coincidência para a coerência. [...] fugindo à realidade, as massas pronunciam um veredicto contra um mundo no qual são forçadas a viver e onde não podem existir [...]” (ARENDT, 2012, p. 486).

As mentiras propagandísticas dos movimentos totalitários passam a realmente operar de maneira eficaz, condicionando a conduta dos indivíduos, quando esses movimentos alcançam o poder e substituem as instituições públicas por formas de organização totalitária.

3.3. Princípio de liderança Um importante elemento do totalitarismo que se mostrará importante para a análise da autoria delitiva no contexto de um aparato organizado de poder, como o nacionalsocialismo alemão, é o chamado “princípio de liderança”.

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Trata-se de princípio derivado do autoritarismo e da ditadura militar, mas que toma contornos específicos nos regimes totalitários. Nessas duas formas de governo, verificase a existência de uma estrutura hierárquica, em que a autoridade e o poder derivam da lei positiva. Nessa estrutura escalonada de níveis de autoridade, “o poder do comandante depende de todo o sistema hierárquico dentro do qual atua” (ARENDT, 2012, p. 500). No entanto, mesmo uma organização hierárquica de natureza autoritária ou ditatorial tende à estabilidade e acaba por constituir obstáculo ao acúmulo de poder pelo líder totalitário. Assim, o princípio de liderança adquire caráter especial no regime totalitário. Isso porque o desejo do líder do movimento é a lei suprema do Estado totalitário, sendo que a autoridade dos membros do movimento que se encontram em posições estruturalmente inferiores emana diretamente do “desejo do Führer”, o que lhe garante dinamismo e movimento característicos da organização totalitária, conforme se verificará no item a seguir. Nas palavras de ARENDT (2012, p. 510), “[...] se estabelece o princípio de que ‘o desejo do Führer é a lei do Partido’, e toda a hierarquia partidária está eficazmente treinada para o único fim de transmitir rapidamente o desejo do Líder a todos os escalões”. Esse caráter do princípio de liderança se mostrou evidente durante o julgamento de Adolf Eichmann. Durante o último ano de guerra, quando o nazismo na Alemanha já se encontrava em declínio, muitos oficiais nazistas, percebendo a proximidade da derrota, passaram a lutar para interromper a Solução Final e a emitir ordens que Eichmann considerava contrárias ao desejo do Führer, inclusive travando discussões com o próprio Himmler. Isso porque “Eichmann sabia que as ordens de Himmler iam diretamente contra a ordem do Führer” (ARENDT, 2008, p. 164). Para se justificar, Eichmann procurou explicar ao Tribunal em Jerusalém que “as palavras do Führer tinham força de lei (Führerworte haben Gesetzkaft), o que significava, entre outras coisas, que uma ordem vinda diretamente de Hitler não precisava ser escrita” (ARENDT, 2008, p. 165). Nesse contexto, qualquer ordem contrária à palavra falada de Hitler, que constituía a lei do mundo, era considerada ilegal. E, nesse sentido, Eichmann justifica suas ações pela consciência de que estava somente cumprindo a lei. O princípio de liderança significa, ademais, que o líder do movimento totalitário toma para si a responsabilidade pelos atos e crimes cometidos por membros e funcionários do movimento, que agem sempre em seu nome. Conforme explica Hannah Arendt:

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“Essa responsabilidade total é o aspecto organizacional mais importante do chamado princípio de liderança, segundo o qual cada funcionário não é apenas designado pelo Líder, mas é a sua própria encarnação viva, e toda ordem emana supostamente dessa única fonte onipresente” (ARENDT, 2012, p. 511).

Essa característica dos regimes totalitários contribui para a compreensão do critério da elevada propensão ao cometimento do fato, identificado por Roxin. Isso porque, ao estabelecer ligação direta entre o fato e o desejo do Führer e ao deslocar a responsabilidade para o líder, intensifica-se a certeza de que o autor direto irá cumprir a ordem recebida. Esse aspecto será melhor detalhado no item 5 infra.

3.4. Organização totalitária Quando alcança o poder, o principal objetivo do movimento totalitário é evitar a estabilização sob forma de um governo absoluto e a limitação de sua expansão contínua pelas fronteiras territoriais do Estado (ARENDT, 2012, p. 528). Por isso, o totalitarismo deve funcionar por meio de uma organização sempre em movimento, que esteja constantemente a serviço do objetivo último do totalitarismo: a conquista mundial. Para explicar a organização da estrutura do Estado totalitário, Hannah Arendt utiliza a metáfora da cebola: no centro se encontra a polícia secreta, que constitui o núcleo do poder, sujeita apenas à vontade do Führer, e cuja função é garantir a constante transformação da ficção criada pelo movimento totalitário em realidade; sobre esse núcleo há uma sobreposição sucessiva de camadas compostas por demais membros do movimento e simpatizantes (organizações de vanguarda), de diferentes níveis de militância; e uma multiplicidade de órgãos com a mesma função formal, que separam o núcleo do mundo exterior não totalitário. Trata-se de um mecanismo para encobrir “o poder real que reside na polícia secreta” (LAFER, 1979, p. 26) e manter verdadeira a mentira criada pelo movimento. Nesse sentido, veja: “A engenhosidade desse expediente, durante a luta do movimento pelo poder, é que a organização de vanguarda não apenas isola os membros, mas lhes empresta uma aparência de normalidade externa que amortece o impacto da verdadeira realidade de maneira mais eficaz que a simples doutrinação. [...] O choque da terrível e monstruosa dicotomia totalitária é neutralizado, e nunca totalmente percebido, graças a uma cuidadosa graduação de

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militância, na qual cada escalão reflete para o escalão imediatamente superior a imagem do mundo não totalitário, porque é menos militante e seus membros são menos organizados” (ARENDT, 2012, p. 502).

A mobilidade necessária para evitar a estabilização do movimento totalitário quando ele chega ao poder é mantida pela constante inserção de novas camadas à estrutura organizacional e pela definição de novos graus de militância, numa repetição indefinida do modelo totalitário (ARENDT, 2012, p. 504). Uma estrutura assim organizada permite que se estabeleça novos controles a todo tempo, de forma que, quando uma camada vacila e passa a perder sua radicalidade, é logo substituída pela adição de uma nova camada, mais radical, afastando a velha camada do centro em direção à periferia da “cebola”. Destarte, cada camada se torna a vanguarda da próxima camada mais militante. “A máquina estatal vira uma organização de vanguarda de burocratas simpatizantes, cuja função nos negócios nacionais é propagar confiança entre as massas de cidadãos meramente coordenados, e cujas relações exteriores consistem em burlar o mundo exterior não totalitário” (ARENDT, 2012, p. 551).

Assim, é possível estabelecer um “filtro da realidade”, que proporciona um distanciamento entre o mundo periférico e as massas e a ideologia mentirosa do movimento totalitário, “possibilitando sempre desmentir o que transpira daí” (SOUKI, 1998, p. 54). Para garantir seu objetivo de domínio total do mundo, o totalitarismo pretende incluir em sua estrutura todo e qualquer membro da sociedade não totalitária, ainda que como mero simpatizante. Assim, são criados inúmeros órgãos formais e instituições profissionais (de médicos, engenheiros, etc.), com funções idênticas, que conferem a sensação de que “todos os elementos da sociedade estão representados em seus escalões: o fim último da propaganda nazista era organizar todos os alemães como simpatizantes” (ARENDT, 2012, p. 507). Cada um desses grupos organizados, caso viesse a representar uma ameaça ao movimento totalitário, teria sua autoridade destruída por meio da criação de uma instituição idêntica, que passar a funcionar concomitantemente à primeira. Esta permanece existindo e acredita que preserva sua função, enquanto que, na realidade, é a nova instituição que está de fato operando. Dessa forma, a liderança transfere o poder para as novas organizações, sem dissolver a instituição cuja autoridade foi eliminada.

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Toda essa organização aqui descrita serve a um único propósito: manter o regime totalitário em movimento, na direção da conquista mundial e da concretização da profecia anunciada. Nas palavras de Hannah Arendt: “Não se deve esquecer que somente uma construção pode ter estrutura, e que um movimento – se tomarmos o termo tão sério e literal como o queriam os nazistas – pode ter apenas uma direção, e que qualquer forma de estrutura, legal ou governamental, só pode estorvar um movimento que se dirige com velocidade crescente numa certa direção” (ARENDT, 2012, p. 536).

Ainda, a organização totalitária favorece o princípio de liderança, na medida em que elimina os níveis intermediários entre o Führer e os governos, distribuindo-se entre eles igual nível de autoridade, mesmo que apenas em aparência. Dessa forma, garante-se que o desejo do líder totalitário seja observado em qualquer parte e a qualquer momento, independentemente de sua ligação com qualquer hierarquia. A ausência de hierarquia proporciona uma identificação direta entre o líder e os membros e simpatizantes do movimento, ao ponto de eliminar os vínculos normais de relacionamento (leis, partidos, família, classes, etc.), formando um mundo comum. Ou seja, “o totalitarismo usa o poder exatamente para disseminar essa cumplicidade entre toda a população, até que o povo sob o seu domínio esteja totalmente unido por uma só culpa” (ARENDT, 2012, p. 546). A sociedade sob o regime totalitário se transforma em um corpo único, dotada de uma só vontade. Todos esses aspectos convergem para o laboratório por excelência de dominação total: o campo de concentração. É nele que a dominação total do regime totalitário alcança sua perfeição e onde a polícia secreta exerce mais intensamente seu poder, pois está encarregada de aprisionar e liquidar certas categorias da população, conforme definido pelo desejo do líder totalitário. O campo de concentração é “o núcleo e o modelo de uma nova forma de governo e sociedade cujo telos é a fabricação do animal humano, funcional, limpo, puro, saudável”21. Segundo Hannah Arendt, o campo de concentração serve, em primeiro lugar, “à eliminação, em condições cientificamente controladas, da própria espontaneidade como expressão da conduta humana, e da transformação da personalidade humana numa simples

21

AGUIAR, Odilo Alves. A tipificação do totalitarismo segundo Hannah Arendt, doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 5, n. 2, pp. 73-88, Outubro, 2008, p. 82.

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coisa, em algo que nem mesmo os animais são” (ARENDT, 2012, p. 582). Ao eliminar a espontaneidade e individualidade do homem, permite-se, assim, dominá-lo em sua totalidade. Constitui, também, o palco de destruição do inimigo objetivo, aquele eleito por uma decisão do líder do movimento e que passa a ser o alvo de constante insultos, “até que todo mundo saiba que ela é sua inimiga” (ARENDT, 2012, p. 564), da qual necessita se defender. O conceito de inimigo objetivo ilustra o próprio caráter de mobilidade do regime totalitário – o oponente muda de acordo com as circunstâncias; e cada vez que o movimento esbarra em um novo obstáculo, concentra seus esforços em destruí-lo. Alcançada a destruição deste, passa a buscar uma nova categoria a ser liquidada, em um constante e sucessivo movimento de destruição em direção ao domínio total do mundo e à modificação da natureza humana. Por fim, o campo de concentração favorece o distanciamento entre o núcleo de poder da organização totalitária e o mundo exterior, na medida em que constitui uma cortina de ferro ao redor da ficção totalitária. Os relatos dos sobreviventes dos campos são tão absurdos que beiram à loucura e à irrealidade – estas, por sua vez, protegem “a hedionda realidade dos campos aos olhos do mundo exterior” (SOUKI, 1998, p. 58). Em outras palavras, “[...] os campos têm uma aparência de ficção, pois eles realizam, efetivamente, o absurdo; e é exatamente este absurdo que os torna invulneráveis” (SOUKI, 1998, p. 58), tendo em vista que o homem comum se recusa a acreditar em tal absurdo.

3.5. Ideologia e terror No campo de concentração, o prisioneiro representa o exemplo de intimidação da população, o que se dá por meio da proliferação do terror, que, ao lado da ideologia, constitui um dos pilares do totalitarismo. O terror permite a realização da lei do movimento que constitui a essência da organização totalitária – “seu objetivo é tornar possível à força da natureza ou da história propagar-se livremente por toda a humanidade sem o estorvo de qualquer ação humana espontânea” (ARENDT, 2012, p. 618). Ao estabilizar o homem, o terror possibilita que a história opere livremente seu curso causal. No totalitarismo, seu papel vai além: permite acelerar a seleção natural fundamentada na causa original (a questão racial), servindo de instrumento de julgamento do inimigo objetivo selecionado com base na ideologia racial totalitária. Ou seja, “o terror é a

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legalidade quando a lei é a lei do movimento de alguma força sobre-humana, seja a Natureza ou a História” (ARENDT, 2012, p. 618). Dessa forma, o campo de concentração modifica a natureza humana, por meio do terror, produzindo o animal humano adequado ao controle ideológico. Hannah Arendt entende que o terror constitui um cinturão de ferro que aproxima e pressiona os homens de massa uns contra os outros, destruindo o espaço de liberdade que existia entre eles. Recorda-se que, para a filósofa, liberdade equivale a espontaneidade, ação, elementos que retardam o curso da história e a atuação das forças da natureza. É nesse aspecto que reside a relevância do terror como destruidor da liberdade humana, uma vez que se torna instrumento acelerador do curso da história e da natureza ao retirar da cadeia de causalidade a ação humana. Nesse ponto, é de especial relevância a seguinte passagem de Origens do Totalitarismo: “O terror, portanto, como servo obediente do movimento natural ou histórico, tem de eliminar do processo não apenas a liberdade em todo sentido específico, mas a própria fonte de liberdade que está no nascimento do homem e na sua capacidade de começar de novo. No cinturão de ferro do terror, que destrói a pluralidade dos homens e faz de todos aquele Um que invariavelmente agirá como se ele próprio fosse parte da corrente da história ou da natureza, encontrou-se um meio não apenas de libertar as forças históricas ou naturais, mas de imprimir-lhes uma velocidade que elas, por si mesmas, jamais atingiriam. Na prática, isso significa que o terror executa sem mais delongas as sentenças de morte que a Natureza supostamente pronunciou contra aquelas raças ou aqueles indivíduos que são ‘indignos de viver’ ou que a História decretou contra as ‘classes agonizantes’, sem esperar pelos processos mais lerdos e menos eficazes da própria história ou natureza” (ARENDT, 2012, pp. 620-621).

A perplexidade diante dos atos de terror, em especial os levados a cabo nos campos de concentração, atinge também suas vítimas, que passam a acreditar na ficção totalitária e, dessa forma, contribuem para a sua realização. Segundo Hannah Arendt, em nenhum outro momento da história se verificou uma massa de pessoas aceitarem tão apaticamente a condução à sua própria morte. São ilustrativas as imagens de filas de indivíduos caminhando de maneira automática e em direção às câmaras de gás. Por outro lado, o campo de concentração se torna, também, local de treinamento dos agentes da SS (Schutzstaffel, ou “Tropa de Proteção”), ensinados a se abster

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de emoções e atitudes humanas, permitindo o regime a condicionar suas ações no sentido de conter qualquer resistência de maneira mais eficaz. Nesse sentido, o sistema totalitário prepara indivíduos para se adequar igualmente aos papéis de carrasco e vítima, como forma eficiente de controlar a conduta humana. Essa operação se dá por meio não somente do terror, mas principalmente pela ideologia, definida por Hannah Arendt como um sistema lógico que pressupõe que uma única ideia explica o curso causal desencadeado pela premissa racista – trata-se de uma pretensão de explicação universal dos acontecimentos históricos, baseada em “uma mentira descarada ou uma tese pseudocientífica” (SOUKI, 1998, p. 61). Dessa forma, torna-se possível “alterar a realidade segundo as afirmações ideológicas [dos movimentos totalitários]” (ARENDT, 2012, p. 627). Continuando, Hannah Arendt explica que: “O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente, tudo mais sendo deduzido dela; isto é, age com uma coerência que não existe em parte alguma no terreno da realidade” (ARENDT, 2012, p. 628).

Por meio do terror, as implicações ideológicas são levadas ao extremo da coerência lógica, permitindo a adesão irrestrita dos membros dos partidos, bem como dos meros simpatizantes, que acabavam percebendo coerência nesses absurdos – a ideologia protege o homem de massa contra o seu pavor à contradição e contra o caráter acidental e incompreensível do mundo. Isso porque, conforme SOUKI (1998, pp. 59-60), “desenraizados, sacudidos em um mundo onde eles não estão mais organicamente integrados, os homens são privados dessa segurança que lhes permitiria desembaraçar-se e se reencontrar num universo em mudança contínua”. O líder totalitário percebe na compulsão das massas pela coerência uma possibilidade extremamente fértil de mobilização, alimentando a “tirania da lógica”, vulnerável somente à capacidade do homem de começar algo novo. Essa capacidade, no entanto, é aniquilada pela força do terror quando este elimina a liberdade interior do homem, traduzida na sua espontaneidade, conforme já explicitado. Trata-se, portanto, de uma dupla operação: o cinturão de ferro do terror, que “comprime as massas de homens isolados umas contra as outras e lhes dá apoio num mundo que para elas se tornou um deserto” (ARENDT, 2012, p 631); e a força autocoercitiva da

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dedução lógica, que reafirma o isolamento do homem. Esses elementos interdependentes são responsáveis pela ruína das relações do homem de massa com seus semelhantes e com a realidade. É justamente nessa combinação entre terror e ideologia que Hannah Arendt verifica a originalidade do totalitarismo.

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4. O vazio de pensamento e a banalidade do mal

Nas últimas páginas de Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt trata das questões fundamentais relativas à condição do homem sob o regime totalitário, sua superfluidade e o conceito de mal radical. Essa questão, no entanto, permanece em aberto e continua presente na pauta de seus estudos e preocupações até sua morte. A filósofa toma como ponto de partida o conceito kantiano de mal radical, mas termina sua obra, em 1951, sem resolver completamente a questão, que é retomada em Eichmann em Jerusalém, em 1963. Hannah Arendt foi convidada pelo periódico norte-americano New Yorker para acompanhar o julgamento, em Jerusalém, do ex-oficial nazista Adolf Eichmann, experiência que culminou na publicação de uma série de artigos (reunidos na obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal). Nessa ocasião, a filósofa alemã passou a voltar sua atenção para o fenômeno da banalidade do mal, conceito que gerou uma onda de polêmicas, algumas até hoje não superadas. A questão é novamente retomada em A vida do espírito22, já ao final de sua vida, quando Hannah Arendt retorna à filosofia e transfere sua reflexão para o campo das considerações morais. Durante essa trajetória, Hannah Arendt elaborou alguns conceitos que podem contribuir sobremaneira para o estudo e a compreensão da autoria delitiva no contexto do totalitarismo.

4.1. O mal radical Hannah Arendt admite que o totalitarismo ensejou “o surgimento de um mal radical antes ignorado [que] põe fim à noção de gradual desenvolvimento e transformação de valores” (ARENDT, 2012, p. 589). Assim, apesar de avassaladoramente real, o fenômeno do chamado mal radical não pode ser explicado por nenhuma teoria filosófica pré-existente. O único filósofo que teria sinalizado a suspeita acerca da existência de um mal radical foi Kant, que o conceituou como “um ‘rancor pervertido’ que podia ser explicado por 22

ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer e o julgar, 3. ed., Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995.

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motivos compreensíveis” (ARENDT, 2012, p. 609). Ele é chamado “radical” por estar relacionado a uma propensão inata do homem para o mal, uma “perversidade enraizada na natureza humana” (SOUKI, 1998, p. 24). Isso significa que o homem tem consciência da lei moral, mas ainda assim aceita máximas que o desviam dela, por ser naturalmente mau, dentro de certos limites, determinados pelo fato de que o bem também compõe a natureza humana. No entanto, Hannah Arendt entende que o mal radical que aparece no totalitarismo ultrapassa o conceito definido por Kant, pois se trata de “um mal absoluto porque não pode ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis” (ARENDT, 2012, p. 510) e que surge em um sistema “no qual todos os homens se tornam igualmente supérfluos” (ARENDT, 2012, p. 609). A superfluidade dos homens encontra seu grau máximo, conforme já visto, com o surgimento das massas modernas em razão do declínio do Estado-nação. Trata-se de um processo que se inicia com a Revolução Industrial e o ápice da economia capitalista. Referido processo é melhor explicado em A condição humana 23 , em que Hannah Arendt afirma que a economia capitalista, em sua busca incessante pelo acúmulo de riqueza, destitui a classe trabalhadora de seus bens e posses familiares e, ao mesmo tempo, desapropria esse grupo de seu lugar no mundo, que passa a servir de fonte de exploração de trabalho. Os trabalhadores, despojados da dupla proteção da família e da propriedade, encontram refúgio, em face das exigências da vida, na sociedade que se desenvolve, “substituta muito eficaz da solidariedade natural que antes reinava na unidade familiar” (ARENDT, 2013, p. 319). O território do Estado-nação, por sua vez, se apresenta como substituto ao lar expropriado da classe dos pobres. Nesse sentido: “Porque a sociedade passa a substituir a família, supõe-se que o ‘sangue e o solo’ devam governar as relações entre os seus membros; a homogeneidade da população e seu arraigamento no solo de um dado território passam a ser os requisitos do Estado-nação em toda parte” (ARENDT, 2013, pp. 319-320).

No entanto, o declínio do Estado-nação e a superação das fronteiras territoriais pelo imperialismo resultaram no desarraigamento e na superfluidade das massas modernas, ocasionando o colapso das instituições políticas e tradições sociais, abrindo espaço para a ascensão dos movimentos totalitários. 23

ARENDT, Hannah. A condição humana, 11. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.

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Nesse contexto, o homem de massa se vê destituído de raízes e isolado em meio a uma infinidade populacional. No mundo capitalista, em que as atividades humanas se resumem ao trabalho, explorado pela elite detentora do capital, o isolamento do homem atinge seu grau máximo e se trona insuportável, transformando-se em solidão. Isso porque, no isolamento, o homem se comunica com o mundo exterior por meio da sua capacidade de criar algo novo, acrescentando algo de si ao mundo a seu redor. Porém, quando os valores são ditados pelo trabalho, a criatividade humana é destruída e, com ela, a sua esfera política. O totalitarismo destrói, dessa forma, por meio do isolamento, a capacidade política do homem, e vai além: destrói também sua vida privada – “baseia-se na solidão, na experiência de não pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter” (ARENDT, 2012, p. 634). Assim, é nesse contexto de superfluidade e desarraigamento do homem de massa que surgiria o fenômeno do mal radical. O colapso total dos valores morais até então vigentes na sociedade proporcionam que esse mal, inerente à natureza humana, venha à superfície e se manifeste nas mais chocantes atrocidades.

4.2. Eichmann como exemplo de homem supérfluo Dentre as diversas questões tratadas em Eichmann em Jerusalém, destaca-se a incongruência percebida por Hannah Arendt “entre os horrores relatados e esse homem no banco dos réus” (SOUKI, 1998, p. 82), um mero burocrata, que teria provocado o extermínio de milhões de pessoas apenas assinando memorandos e permanecendo por trás de uma mesa de escritório. A partir dessa experiência, Hannah Arendt supera a noção de mal radical e passa a admitir que o mal jamais pode ser radical, apenas o bem é inerente à natureza humana. A filósofa identifica, dessa forma, uma nova manifestação do mal – o mal banal. Adolf Eichmann foi descrito por ARENDT (1999, p. 38) como “uma pessoa mediana, ‘normal’, nem burra, nem doutrinada, nem cínica”, um burocrata que, acima de tudo, cumpria o dever e as ordens que lhe eram designadas pelo desejo do Führer. Não se tratava, tampouco, de um caso de ódio fanático aos judeus; ao contrário, Eichmann possuía razões pessoais para não odiá-los – um parente distante, judeu, lhe havia garantido um emprego na época em que mais necessitava.

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Eichmann, que fora um jovem ambicioso, não aderiu ao movimento totalitário por convicção, foi atraído pela possibilidade de fuga de uma vida rotineira, sem significado ou consequência. Conforme narra Hannah Arendt: “[...] o vento o tinha soprado para a História, pelo que ele entendia, ou seja, para dentro de um Movimento sempre em marcha e no qual alguém como ele – já fracassado aos olhos de sua classe social, de sua família e, portanto, aos seus próprios olhos também – podia começar de novo e ainda construir uma carreira” (ARENDT, 1999, p. 45).

Hannah Arendt identificou, na argumentação da acusação, o equívoco de descrever Eichmann como um “sádico pervertido”, apesar de reconhecer a tendência reconfortante dessa conclusão – seria muito melhor acreditar que somente um monstro poderia cometer os atos que Eichmann cometeu. Entretanto, a filósofa entende que o aspecto mais perigoso de Eichmann era o fato de existirem muitos outros indivíduos como ele, “terrível e assustadoramente normais”, configurando um novo tipo de criminoso “que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado” (ARENDT, 1999, p. 299). É com base na figura de Eichmann, esse sujeito medíocre, cumpridor de ordens, típico homem de massa, filisteu isolado em sua vida privada, que Hannah Arendt desenvolve o conceito de banalidade do mal. No prefácio a sua última obra, A vida do espírito, Hannah Arendt explica que o caso Eichmann foi o impulso inicial que condicionou suas preocupações a partir de então, das quais não iria se afastar até seus últimos dias. No relato do julgamento, a filósofa menciona pela primeira vez a expressão “banalidade do mal”, sem se referir a uma tese ou doutrina definida, mas com a certeza de que era uma ideia contrária a toda tradição filosófica acerca do conceito de mal, considerado como algo demoníaco, relativo à inveja, ao ódio, à fraqueza e à cobiça. Contudo, a experiência do julgamento de Eichmann revelou algo totalmente diferente. Hannah Arendt passa a contrapor, então, o mal identificado em Eichmann com a ideia de mal radical, na medida em que viu a impossibilidade de remeter o mal de seus atos às suas raízes ou motivos. A filósofa verificou, em seu comportamento, nada relativo à estupidez, mas sim à irreflexão – recusa, assim, o caráter “radical” do mal, na medida em que identifica em Eichmann uma falta de profundidade e uma ausência de enraizamento de suas intenções.

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A filósofa admite, portanto, que o mal jamais é radical. Quando é banal, por outro lado, está se referindo à aparência – o mal banal oculta o seu verdadeiro escândalo, o que está em direta sintonia com a propaganda totalitária, cuja função é camuflar a verdadeira perversidade da ideologia nazista.

4.3. A perda do senso comum e o vazio de pensamento Foi essa “ausência de pensamento – uma experiência tão comum em nossa vida cotidiana, em que dificilmente temos tempo e muito menos desejo de parar e pensar – ” (ARENDT, 1995, p. 6) que despertou o interesse de Hannah Arendt e sobre a qual debruçou os estudos que se seguiram, a exemplo das obras A vida do espírito e Entre o passado e o futuro. As questões morais que se originaram do exame do julgamento de Eichmann renovaram na filósofa as dúvidas acerca da questão “O que é o pensar?”, originadas na obra A condição humana, em que Hannah Arendt faz o contraponto entre seu conceito de vita activa e o de vita contemplativa, da tradição filosófica. Hannah Arendt percebe que é possível encarar a questão do que é o pensar de maneira diversa da tradição filosófica, afastando a ideia de quietude e passividade da vita contemplativa, segundo a qual o pensamento serve tão somente à contemplação. A filósofa parte, portanto, da distinção feita por Kant entre razão e intelecto – este seria a faculdade de apreender aquilo que é dado pelos sentidos, aquilo que é verdadeiro; enquanto a razão (que corresponde à atividade de pensar) é a faculdade de compreender o significado dessas percepções sensoriais. É o que se vê em: “[...] o intelecto (Verstand) deseja apreender o que é dado aos sentidos, mas a razão (Vernunft) quer compreender o seu significado. A cognição, cujo critério mais elevado é a verdade, deriva esse critério do mundo das aparências no qual nos orientamos através das percepções sensoriais, cujo testemunho é auto-evidente, ou seja, inabalável por argumentos e substituível apenas por outra evidência. [...] Mas esse não é o caso do significado e da faculdade do pensamento que busca o significado; essa faculdade não pergunta o que uma coisa é ou se ela simplesmente existe – sua existência é sempre tomada como certa – mas o que significa, para ela, ser” (ARENDT, 1995, p. 45).

Contudo, Hannah Arendt aprofunda a explicação, recorrendo ao conceito de senso comum. Ela parte da definição de São Tomás de Aquino, segundo o qual o senso

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comum é o “sexto sentido que ‘adéqua nossos cinco sentidos a um mundo comum’” (ARENDT, 1995, p. 63), seria a “raiz comum e o princípio de todos os sentidos exteriores”. Por meio do senso comum, o homem reúne em um mesmo objeto as diversas sensações adquiridas por cada um dos órgãos sensoriais e as reorganiza, tornando possível o compartilhamento de um mundo comum. Isso porque “a realidade do mundo é garantida aos homens pela presença do outro” (SOUKI, 1998, p. 112), ou seja, o homem, por não estar sozinho no mundo, tem a possibilidade de compartilhar com o outro as percepções sensoriais e, assim, conhecer a realidade correspondente à aparência. Nesse sentido: “Até mesmo a experiência do mundo, que nos é dado material e sensorialmente, depende do nosso contato com os outros homens, do nosso senso comum, que regula e controla todos os outros sentidos, sem o qual cada um de nós permaneceria enclausurado em sua própria particularidade de dados sensoriais, que, em si mesmos, são traiçoeiros e indignos de fé. Somente por termos um senso comum, isto é, somente porque a terra é habitada, não por um homem, mas por homens no plural, podemos confiar em nossa experiência sensorial imediata” (ARENDT, 2012, p. 635).

Para Hannah Arendt, o senso comum é o ponto de partida do pensamento, que é a atividade de se afastar do mundo e estabelecer um diálogo consigo mesmo, com o objetivo de descobrir e criar significado. Mas esse diálogo não significa a perda do contato com o mundo, uma vez que o homem carrega os outros homens representados em seu eu (a identidade confirmada pela existência de outras pessoas), com quem se estabelece o diálogo do pensamento. Assim, conforme explicita SOUKI (1998, p. 113), o pensamento “desestabiliza todos os critérios estabelecidos, valores e medidas de bem e de mal, pois ele tem o poder de dissolver toda certeza”. O pensamento é o oposto do processo compulsório de dedução e, portanto, mostra-se perigoso para o governo totalitário, que pretende impor sua ideologia. O isolamento ocasionado pelo terror e pela força autocoercitiva da ideologia, eliminando as relações normais entre os homens e destes com a realidade, significa a perda do senso comum, “única ‘verdade’ segura em que os seres humanos podem apoiar-se quando perdem garantia mútua” (ARENDT, 2012, p. 637). Sem o compartilhamento de experiências com seus semelhantes, o homem não consegue alcançar a certeza imediata da experiência sensorial e passa a acreditar “em tudo e em nada, porque pensam que ‘tudo é possível e nada é verdadeiro’” (SOUKI, 1998, p. 122).

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Na solidão, a única capacidade humana que persiste é o raciocínio lógico, que conferirá ao homem de massa alguma segurança em um mundo em que não pode mais confiar na própria experiência. Dessa forma, a perda do senso comum é substituída inteiramente pela ideologia totalitária. O movimento totalitário percebe o potencial da propaganda de explorar o desejo do homem de massa de escapar da realidade, em virtude de seu desarraigamento e incompreensão em relação ao mundo ao seu redor. Alcança, assim, seu objetivo de eliminar a capacidade humana de distinguir entre o que é verdadeiro e o que é falso, entre o que é realidade e o que é ficção, abolindo a capacidade de “sentir em comum e pensar por si mesmo”. Considerando, conforme mencionado, que o senso comum é o ponto de partida e de chegada do pensamento, sua eliminação permite que se torne realidade o “vazio de pensamento”. O homem deixa, então, de buscar o significado das coisas percebidas pelos sentidos, assimilando automaticamente a ideologia totalitária. Deve-se considerar, ademais, que, por ser o movimento o princípio absoluto do Estado totalitário, a atividade de pensar, que exige um momento de parada, torna-se incompatível com seu funcionamento, seu fluxo contínuo. Nesse sentido: “Nessa pausa onde o homem pode suspender, provisoriamente, seus juízos de valor e suas certezas prévias, ‘parar-para-pensar’ é o primeiro ato de resistência a uma imposição externa, a uma exigência de obediência. É exatamente nessa parada, momentânea mas decisiva, que o homem pode começar a realizar sua autonomia. E nesse fluxo contínuo, que interdita qualquer parada, qualquer pensamento, tem como objetivo, exatamente, o automatismo em que os homens deixam de interrogar para, prontamente, obedecer” (SOUKI, 1998, p. 124).

Hannah Arendt identifica essa condição em Eichmann. Para ela, o oficial nazista se abdicou de sua capacidade de pensar, devido às circunstâncias em que estava inserido, para obedecer de forma automática às ordens do Führer. E assim, contribuiu definitivamente para o cometimento dos atos mais atrozes até então vistos na história da humanidade. Trata-se, no entanto, de acordo com SOUKI (1998, p. 125), de um falso vazio, artificialmente forjado, preenchido pela ideologia totalitária, que produz a indiferença ao mal que a conduta humana provoca, em obediência inquestionada às leis e às ordens. Isso significa

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uma total inversão dos valores da sociedade – o mandamento moral ocidental “não matarás” é substituído pela lei “deve matar”, na ausência de qualquer questionamento. E assim o totalitarismo conseguiu levar a cabo a Solução Final e exterminar milhões de pessoas. Esse é o sentido da banalidade do mal – a possibilidade de tornar criminoso qualquer indivíduo considerado “normal”, que se torna indiferente às atrocidades que comete, sendo o fato de existirem muitos outros como ele seu aspecto mais aterrorizador.

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5. A elevada propensão ao cometimento do fato em regimes totalitários

Tanto a ideia de banalidade do mal, quanto o conceito de autoria mediata por meio do domínio da organização, são conceitos de filosofia e doutrina jurídica inéditos, ambos inspirados em um mesmo acontecimento histórico: o totalitarismo (e, mais especificamente, o julgamento de Adolf Eichmann). Roxin percebeu, a partir da experiência do nacional-socialismo alemão, que as figuras jurídicas de autoria delitiva até então concebidas não davam conta de explicar o fenômeno da criminalidade estatal nazista. Para ele, uma autoridade competente para comandar o extermínio da população judia domina a realização do resultado de maneira distinta de um indutor comum (ROXIN, 2000, p. 272). Da mesma forma, Hannah Arendt entendeu ser impossível definir o fenômeno do totalitarismo com base nas categorias políticas existente à época, de forma que recorrer a eles significaria um afastamento da realidade. Nesse contexto, é possível identificar alguns pontos de convergência entre as duas formulações teóricas. Isso porque, a organização totalitária que Hannah Arendt descreveu em sua obra Origens do Totalitarismo possui, em sua conformação, expressões dos critérios elaborados por Roxin para definir a autoria delitiva em aparatos organizados de poder. Senão, vejamos. O exercício do poder de comando necessário para produzir o resultado típico encontra sua expressão no princípio de liderança, que fundamenta a organização totalitária. Segundo Roxin, inúmeros autores mediatos se posicionam hierarquicamente em diferentes níveis de comando, de forma que o grau de responsabilidade pelos atos aumenta conforme mais se aproxima do topo da estrutura. Na metáfora da cebola, apesar de apresentar uma estrutura não piramidal, percebe-se a existência dessa sucessão de níveis de comando, que permitem a transmissão da vontade do líder totalitário às camadas periféricas. Assim, de acordo com o princípio de liderança, a responsabilidade pelos atos e crimes cometidos pelo regime, ainda que por meio de um executor direto, reduzido a instrumento de realização do tipo penal, acaba por se concentrar inteiramente no Führer. Nesse sentido: “Esse tipo de organização contribui para extirpar todo espírito de responsabilidade e reforçar a dominação total do líder, pois o desdobramento

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das instâncias de autoridade (partido ou Estado, polícia ou burocracia) e a proliferação das autoridades concorrentes, entre as quais o poder efetivo, se deslocam sem cessar” (SOUKI, 1998, p. 55).

Essa conjuntura contribui, ainda, para que o executor direto acredite que jamais sofrerá sanções penais pelo cumprimento de uma ordem que constitua um delito, ao mesmo tempo que o homem de trás tem a certeza de que não haverá resistência à sua ordem. Isso porque, segundo o princípio de liderança, a vontade do líder totalitário corresponde à lei. Em outras palavras, “o desejo do Führer pode encarnar-se em qualquer parte e a qualquer momento, sem que o próprio Führer esteja ligado a qualquer hierarquia, nem mesmo àquela que ele mesmo possa ter criado” (ARENDT, 2012, p. 543). No regime totalitário, a desvinculação do direito é evidente: o próprio governo totalitário descumpre as leis que criou, uma vez que a lei positivada não mais possui relevância perante a palavra falada do Führer – os nazistas sequer respeitavam as Leis de Nurembergue (ARENDT, 2012, p. 533). No entanto, a vontade do líder totalitário constitui a norma fundamental do sistema jurídico nazista e corresponde à fonte de autoridade de todos os outros níveis hierárquicos, de forma que legitima a ação de seus membros, proporcionando uma sensação de legalidade. É o que se verifica em: “A afirmação monstruosa e, no entanto, aparentemente irrespondível do governo totalitário é que, longe se ser ‘ilegal’, recorre à fonte de autoridade da qual as leis positivas recebem a sua legitimação final; que, longe de ser arbitrário, é mais obediente a essas forças sobre-humanas que qualquer governo jamais o foi; e que, longe de exercer o seu poder no interesse de um só homem, está perfeitamente disposto a sacrificar os interesses vitais e imediatos de todos à execução do que supõe ser a lei da História ou a lei da Natureza” (ARENDT, 2012, p. 613).

O conceito totalitário de lei está, portanto, intimamente ligado ao poder da lógica totalitária e à segurança conferida pela ideologia. É possível, no regime totalitário, dispensar qualquer consenso jurídico, de forma a desafiar as leis positivas, sem incorrer em arbitrariedade, uma vez que se apoia na certeza da lei da Natureza ou da História, insculpida no desejo do líder totalitário. Assim, a autoridade de todos os níveis hierárquicos, por emanar diretamente do desejo do líder e obter daí sua legitimidade, produz uma propensão ainda maior para que o executor direto cumpra a ordem. Nesse tipo de governo, o Estado de Direito não mais existe,

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há uma clara inversão de valores – o mandamento moral supremo “não matarás” é substituído pela lei que obriga matar. O terror desempenha papel importante nessa questão, uma vez que elimina a liberdade de ação do homem e propaga a noção de que é muito mais seguro pertencer ao movimento totalitário e cumprir as ordens do líder. Assim, o indivíduo é reduzido à impossibilidade de resistência, sendo que “um membro receia mais abandonar o movimento do que as consequências da sua cumplicidade em atos ilegais, e se sente mais seguro como membro do que como oponente” (ARENDT, 2012, p. 509). Os campos de concentração representam o exemplo último de transformação dos indivíduos em massa dócil incapaz de resistir individual ou coletivamente. Por fim, a superfluidade do homem de massa descrita por Hannah Arendt ilustra muito bem a ideia da fungibilidade dos executores diretos prevista por Roxin. Segundo o jurista alemão, o aparato organizado de poder se caracteriza por uma grande quantidade de indivíduos disposto a executar a ordem, de modo que a recusa de um único indivíduo não impede a realização do tipo. O homem de massa possui consciência dessa superfluidade e, para conquistar seu lugar no mundo, adere ao movimento totalitário, se submete à sua ideologia, num impulso constante em direção à segurança proporcionada pela força da lógica. Esse fator se potencializa pela forma como o governo totalitário se organiza. Novamente, a metáfora da cebola se mostra essencial para compreender esse fenômeno. Ao perceber a perda de radicalidade de uma camada hierárquica, o centro de poder logo a substitui por outra camada, cujo nível de militância é ainda mais alto, afastando a primeira em direção à periferia do aparato. Todas as camadas são altamente substituíveis, bastando uma única demonstração de recusa ao cumprimento de uma ordem para ser eliminada, dando lugar a uma nova camada hierárquica. Ao mesmo tempo, à medida que afasta a camada resistente do centro de poder, aprofunda-se a distância da camada substituída em relação ao absurdo da realidade totalitária, mantendo seus membros crentes na mentira criada pelo movimento. Dessa forma, o líder tem sempre certeza de que sua ordem será cumprida. Caso haja resistência de alguma instituição, esta é imediatamente substituída por outra mais radical, que irá, ao final, observar a vontade anteriormente emanada.

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Todos esses elementos contribuem para a chamada especial propensão ao cometimento do fato. O isolamento do homem de massa, desprovido da sua capacidade de pensar e transformado em autômato executor do desejo do líder totalitário, é condição que torna o indivíduo mais disposto ao fato. A perda do senso comum produz um vazio, que será preenchido pela ideologia totalitária, proporcionando uma tendência à adaptação que o faz aderir irrefletidamente a condutas que, em outras circunstâncias, não praticaria. Isso porque o indivíduo possui a certeza de que, se não cumprir a ordem, será substituído por outro que o fará. Eichmann, em seu julgamento, demonstrou possuir consciência desse fator. Afirmou que, caso não cumprisse a vontade do Führer, seria substituído por alguém que estivesse disposto a cumprir, o que prejudicaria suas pretensões de ser promovido dentro da estrutura do partido. A questão, aventada por Schroeder, do especialista técnico, que não seria substituível, pode ser refutada pela própria experiência de Eichmann. O oficial nazista, que não possuía qualquer formação acadêmica ou técnica, se tornou um perito na questão judaica em razão das contingências referentes à sua situação dentro do partido. Para se destacar e conquistar a promoção que tanto almejava, Eichmann se debruçou intensamente sobre seu ofício, com um zelo excepcional, pois sabia que, se assim não se comportasse, outro membro o substituiria rapidamente. A recusa ou a imperícia na execução da ordem é, nesse contexto, exceção, sendo que sua ocorrência de maneira sistemática configura grave falha do sistema. Em outras palavras, “nessa estrutura organizacional, o erro só pode ser uma fraude: o Líder estava sendo representado por um impostor” (ARENDT, 2012, p. 511). A seguinte passagem de Hannah Arendt bem ilustra os efeitos da disposição elevada ao cometimento do fato dos executores diretos, que se traduz na certeza do emissor do comando acerca do sucesso do plano delitivo, e sua relação com a forma de organização totalitária: “Como técnicas de governo, os expedientes do totalitarismo parecem simples e engenhosamente eficazes. Asseguram não apenas um absoluto monopólio do poder, mas a certeza incomparável de que todas as ordens serão sempre obedecidas; a multiplicidade das correias que acionam o sistema e a confusão da hierarquia asseguram a completa independência do ditador em relação a todos os subordinados e possibilitam as súbitas e surpreendentes mudanças

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de política pelas quais o totalitarismo é famoso. A estrutura política do país mantém-se à prova de choque exatamente por ser amorfa” – grifo nosso (ARENDT, 2012, p. 547).

Nesse contexto, o conceito de banalidade do mal é de extrema importância. O indivíduo que não pensa, realiza automaticamente a ordem, reduzindo a margem de erro ou de resistência. A ausência de pensamento facilita a sujeição do homem ao mundo que a ideologia totalitária constrói. O homem é reduzido à condição de marionete a serviço dos objetivos do governo totalitário, desprovido do mais leve traço de espontaneidade. Ou seja, “esse estado de não pensar ensina as pessoas a se agarrarem às regras de conduta (quaisquer que elas sejam) de uma sociedade e de uma época dadas” (SOUKI, 1998, p. 103), ainda que completamente contrárias aos princípios do Estado de Direito. Assim, os indivíduos se habituam a uma obediência às regras, sem um exame de seu conteúdo. Em resumo, o emissor da ordem criminosa possui à sua disposição um maquinário de pessoas hierarquicamente organizadas, altamente condicionadas pela força totalitária, por meio da ideologia e do terror, que executam simples reações animais e realizam funções de maneira automática e irrefletida, sendo inteiramente supérfluos aos olhos dos regimes totalitários (ARENDT, 2012, p. 605).

5.1. Autoria e responsabilidade no totalitarismo Uma das principais críticas à teoria de Roxin e sua figura de autoria mediata por meio do domínio da organização se refere ao fato de que, ao deslocar a esfera de responsabilidade ao líder totalitário, estar-se-ia permitindo a impunidade dos executores diretos. No entanto, conforme já exposto, Roxin não se ocupa, em sua obra Autoría y domínio del hecho en derecho penal, de questões relativas à responsabilidade, mas se esforça somente em estabelecer critérios de autoria delitiva, frente a essa nova forma de criminalidade estatal. Ainda assim, com base nos ensinamentos de Hannah Arendt, é possível questionar o sentido de referida crítica. Em um ensaio de 1964, intitulado Responsabilidade

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pessoal sob a ditadura24, a filósofa se ocupa da responsabilidade, moral e legal, daqueles indivíduos que, como Eichmann, não só obedeceram o governo totalitário, mas de fato aderiram ao movimento. Hannah Arendt admite a ideia de que cada integrante de um sistema burocrático representa um “dente da engrenagem”, cujo caráter descartável ilustra a ideia da fungibilidade do executor direto. Segundo afirma ARENDT (2004, p. 92), “[...] é realmente verdade o que todos os réus nos julgamentos do pós-guerra disseram para se desculpar: se eu não tivesse feito isso, outra pessoa poderia ter feito e faria”. Hitler era o único homem insubstituível na Alemanha nazista, e o único que podia tomar decisões, de forma a concentrar na sua pessoa toda a responsabilidade política. Porém, Hannah Arendt identifica que o conceito do dente de engrenagem não faz sentido no cenário do totalitarismo. Nesse sentido, o grande mérito do Tribunal de Jerusalém foi transformar o “dente de engrenagem” que se sentava no banco do réu em um homem, impedindo a transferência da responsabilidade do homem para o sistema. E como homem, Eichmann era dotado da capacidade de pensar e julgar o que é certo e errado – sendo o julgamento a faculdade de estabelecer valores sobre os significados criados pelo pensamento a partir dos elementos obtidos pelo senso comum. Entretanto, escolheu (a partir de uma posição não passiva) abdicar da faculdade de pensar e agir de maneira automática. De fato, as circunstâncias do totalitarismo proporcionavam uma alta propensão a essa tomada de posição. Quando ao homem é imposta a necessidade de decidir entre obedecer ou desobedecer, a ordem deve ser excepcionalmente ilegal para que a opção seja a da desobediência. No totalitarismo, porém, a ordem criminosa é regra, enquanto a não criminosa é exceção. Por isso Eichmann, ao final da guerra, resistiu em obedecer as ordens de Himmler para interromper as deportações, uma vez que as considerava ilegais, apesar de não criminosas. Dessa forma, agia “sob condições em que todo ato moral era ilegal e todo ato legal era criminoso” (ARENDT, 2004, p. 103). No entanto, Hannah Arendt entende que a faculdade do julgamento é independente e não se apoia na lei ou na opinião pública. Ela se opera de maneira espontânea 24

ARENDT, Hannah. “Responsabilidade pessoal sob a ditadura”, In: Responsabilidade e Julgamento, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 79-111.

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a cada novo momento que surge. Assim, Eichmann optou por seguir a vontade do Führer irrefletidamente, apesar de não acreditar nas justificações ideológicas do nazismo. Isso explica a existência de pessoas que, apesar de não resistir ativamente às ordens do governo totalitário, não colaboraram e recusaram-se a participar da vida pública, esfera em que se tornava praticamente impossível fugir à lógica da obediência à vontade do líder totalitário. Essas pessoas “se perguntavam em que medida ainda seriam capazes de viver em paz consigo mesmos depois de terem cometidos certos atos” (ARENDT, 2004, p. 107). Estavam, ao contrário de Eichmann, dispostas a se relacionar consigo mesmas e estabelecer aquele diálogo silencioso entre mim e mim mesmo que desde Sócrates e Platão se denomina o pensar. A filósofa conclui que não existe obediência em questões políticas e morais e, por isso, torna-se possível responsabilizar os novos criminosos do Estado totalitário, apesar de nunca terem cometido um crime por iniciativa própria.

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6. Considerações finais

As análises operadas no presente trabalho nos permitem chegar às seguintes conclusões e observações: 1. Partindo do princípio orientador de que autor é a figura central do acontecer típico, Roxin observa três manifestações concretas da ideia de domínio do fato, que permitem elaborar as respectivas categorias de autoria: a autoria imediata, por meio do domínio da ação; a autoria mediata, por meio do domínio da vontade; e a co-autoria, que corresponde ao domínio funcional do fato. 2. Uma das espécies de autoria por meio do domínio da vontade é a chamada autoria mediata por meio do domínio da organização, segundo a qual é autor o sujeito que, tendo à sua disposição um aparato organizado de poder, emite ordem a um terceiro, reduzido a mero instrumento de execução do tipo. 3. A autoria mediata por meio do domínio da organização depende da observância de três requisitos: (i) o poder de comando dentro do aparato organizado que o homem de trás exerce como forma de produzir resultados típicos; (ii) a desvinculação do direito, que na hipótese da criminalidade estatal significa que a organização deve estar à margem da legalidade e do Estado de Direito; e (iii) a fungibilidade do executor direto, que significa uma grande quantidade de indivíduos dispostos a cumprir a ordem, sendo eles substituíveis, e cuja vontade não se interpõe entre a ordem do homem de trás e o resultado típico. 4. As principais críticas propostas por Friedrich-Christian Schroeder em relação ao critério da fungibilidade do executor direto se referem ao fato de que tal critério não pode ser considerado determinante ou suficiente para atribuir autoria a determinado sujeito – caso contrário, resultaria na impunidade do executor direto. Ademais, o critério não explicaria a existência de especialistas e peritos que se mostram essenciais para a realização do plano delitivo, não podendo ser considerados substituíveis. 5. Roxin rebate tais críticas afirmando que a teoria do domínio do fato pretende delimitar os conceitos de autoria e participação, e não se ocupa da problemática relativa à responsabilidade penal. Além disso, é uma teoria que não possui pretensão de universalidade e constitui instrumento teórico para solucionar problemas concretos.

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6. Com base nessas considerações, para fazer frente às críticas à sua teoria, o jurista alemão elabora a ideia de que os critérios que delimitam a autoria mediata por meio do domínio da organização proporcionam uma elevada propensão do executor direto ao cometimento do fato. Isso significa que o executor direto, inserido em um aparato organizado de poder, encontra-se exposto a diversas influências, que não excluem sua responsabilidade, mas elevam significativamente sua disposição a executar o fato, de forma a reforçar o domínio do fato pelo homem de trás. 7. Essas influências da organização sobre o executor direto, genericamente mencionadas por Roxin, podem ser observadas em regimes totalitários, conforme descritos por Hannah Arendt em sua obra Origens do Totalitarismo. 8. A filósofa alemã inicia sua análise do fenômeno do totalitarismo a partir de seus elementos cristalizadores: o antissemitismo e o imperialismo. O primeiro permite identificar o surgimento do conceito de “inimigo objetivo”, que deriva de uma escolha política dos governantes. O imperialismo, por sua vez, contribuiu para a gênese dos movimentos totalitários na medida em que criou o contexto para o surgimento das massas e criou a burocracia como mecanismo de dominação e o racismo como instrumento de organização política. 9. O principal triunfo dos movimentos totalitários foi perceber nas massas, aparentemente desorganizadas e desprovidas de interesses próprios (devido ao colapso do sistema de classes), terreno fértil para a dominação total. 10. Por meio da propaganda, caracterizada pelo terror e o cientificismo baseado na ideologia racial, os movimentos totalitários lograram disseminar suas mentiras, o que lhes permitiu condicionar as condutas do homem de massa. 11. No momento em que os movimentos totalitários conquistam o poder, seu objetivo passa a ser evitar a estabilização, de modo a manter o movimento e expansão em direção ao domínio total. Nesse aspecto reside a importância da organização totalitária, que Hannah Arendt explica por meio da “metáfora da cebola”: haveria um núcleo concentrador de poder, onde se localiza a polícia secreta; ao redor desse núcleo se sobrepõem sucessivamente inúmeras camadas, que representam os diferentes níveis de militância dos membros do movimento totalitário, que separam o núcleo do mundo exterior não totalitário. Essa organização permite manter verdadeira a mentira criada pelos líderes do regime totalitário, encobrindo o poder real da polícia secreta.

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12. Esse modelo de organização garante a mobilidade necessária para que o regime totalitário se mantenha, evitando sua estabilização, por meio da constante inserção de novas camadas e novos graus de militância, que substituem aqueles membros ou grupos que demonstram perda de sua radicalidade. 13. Outra característica da organização totalitária é a ausência de uma hierarquia nos moldes de regimes ditatoriais, de estrutura piramidal (diversa do modelo da cebola) – haveria, no totalitarismo, uma identificação direta entre o líder e os membros do movimento totalitário. 14. Essa característica é reforçada pelo princípio da liderança, segundo o qual a autoridade dos membros do movimento totalitário emana diretamente da vontade do líder. No totalitarismo, a palavra do Führer é a lei suprema do Estado. Em razão desse princípio, o líder totalitário concentra em si toda a responsabilidade pelos atos criminosos praticados pelos membros em seu nome. 15. O campo de concentração é o local em que a organização totalitária alcança sua máxima eficácia e onde a dominação total alcança a perfeição, graças a potencialidade que atingem os dois elementos mais essenciais do regime totalitário: o terror e a ideologia. 16. O terror estabiliza o homem, na medida em que aprofunda o seu isolamento e destrói sua liberdade, retirando-o da cadeia de causalidade. Assim, torna-se possível acelerar o processo de seleção natural fundamentado no racismo e que impulsiona o curso da história. 17. A ideologia é o elemento que possibilita a adesão irrestrita das massas a esse racismo que constitui a “causa original da história”. Trata-se, segundo Hannah Arendt, de um sistema lógico, que tem como pressuposto uma única ideia como explicação do curso causal desencadeado pela premissa racista. A ideologia racista alimenta a compulsão das massas pela coerência e pela segurança em face do caráter acidental e incompreensível do mundo. 18. O fenômeno totalitário, conforme as passagens finais da obra Origens do Totalitarismo, compõe o contexto que possibilitou o surgimento do fenômeno do mal radical, que corresponde a uma propensão inata do homem para o mal, limitada somente pelo bem, que também compõe a natureza humana (conceito kantiano de mal radical). Essa propensão se acentua devido ao desarraigamento, ao isolamento e à superfluidade do homem de massa. 19. Hannah Arendt passa a reformular o conceito de mal radical quando se depara com o julgamento de Adolf Eichmann, descrito por ela como um homem medíocre,

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um burocrata que apenas cumpria ordens de maneira irrefletida. Eichmann não poderia ser considerado um sádico pervertido; e sua característica mais assustadora é que existiam, na Alemanha nazista, inúmeros outros homens como ele. Eichmann é o exemplo por excelência do homem supérfluo, produto do totalitarismo, e que permitiu a Hannah Arendt desenvolver a ideia da banalidade do mal. 20. A ideia de banalidade do mal decorre da perda do senso comum e o consequente esvaziamento do pensamento. O senso comum é, segundo concepção aquiniana, o sexto sentido que organiza as sensações adquiridas pelos órgãos sensoriais e torna possível o compartilhamento do mundo. Trata-se do ponto de partida para o pensamento, que é a faculdade humana de criar significados para tudo aquilo que é percebido pelos sentidos, por meio de um afastamento do mundo e o estabelecimento de um diálogo do homem consigo mesmo. 21. O isolamento do homem de massa resultante do exercício do terror totalitário e da força autocoercitiva da ideologia ensejam a eliminação das relações normais entre os homens, o que acarreta a perda do senso comum, uma vez que o homem não mais possui a possibilidade de compartilhar experiências. Como consequência, há a perda da faculdade de pensar, uma vez que o senso comum é o ponto de partida do pensamento. O vazio de pensamento é, então, substituído pela ideologia racista, imposta pelo regime totalitário por meio do terror e da propaganda. 22. O homem de massa, desprovido de sua capacidade de pensar, deixa de refletir sobre as ordens que recebe e passa a ser um mero burocrata que cumpre a lei, sem questioná-la. Esse é o significado e o alcance da ideia de banalidade do mal. 23. Diante das análises expostas, foram apresentados, no presente trabalho, os pontos de convergência entre os pensamentos de Claus Roxin e de Hannah Arendt. Em primeiro lugar, o exercício do poder de comando necessário para produzir o resultado típico encontra sua expressão no princípio de liderança – a vontade do líder é necessariamente transmitida ao longo dos níveis de hierarquia do aparto organizado de poder, ao mesmo tempo que desloca a responsabilidade pelos atos criminosos para o homem de trás, ou o líder totalitário. 24. Ademais, a ideia de que, segundo o princípio de liderança, a lei corresponde à vontade do líder, reforça a crença do executor direto de que jamais sofrerá sanções penais por seus atos de cumprimento de ordens superiores, de modo que o homem de

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trás possui a certeza que não haverá resistência à sua ordem. Trata-se da expressão máxima do critério da desvinculação ao direito – a legalidade é afastada pela força normativa da palavra do líder totalitário. 25. Nesse ponto, o terror desempenha papel essencial, uma vez que produz a noção de que é mais seguro pertencer ao partido do que se recusar a cumprir a ordem. Garante-se, dessa forma, que a vontade do executor direto não interfira no sucesso delitivo, que depende somente da vontade do homem de trás. 26. O requisito da fungibilidade é muito bem ilustrado pela superfluidade do homem de massa, bem como pelo modo que o regime totalitário se organiza. Ao tomar consciência de sua condição de supérfluo, buscando um lugar no mundo, o homem de massa adere de forma automática à ideologia totalitária. Será, dessa forma, inserido em uma das camadas da estrutura totalitária e, caso vacile e perca sua radicalidade, será facilmente substituído por outra camada mais radical, que estará ainda mais disposta a cumprir as ordens do líder totalitário. Essa organização garante a certeza do líder de que sua ordem será cumprida e a noção do executor direto de que, se ele próprio não cumprir a ordem, outro o fará. 27. Chegou-se à conclusão de que o homem de massa, isolado e desprovido da sua capacidade de pensar, transforma-se em autômato executor do desejo do líder totalitário e, portanto, mais disposto ao fato. Nesse sentido, banalidade do mal constitui fenômeno histórico que permite confirmar os critérios da fungibilidade do executor diretos e da elevada propensão ao cometimento do fato e reafirmar sua pertinência teórica, enfraquecendo a crítica de Schroeder. 28. Os conceitos e ideias apresentados por Hannah Arendt, ao lado do critério da autoria mediata por meio do domínio da organização, permitem entender que são autores tanto os líderes totalitários (ou os homens de trás), como os executores diretos, que realizam o tipo de mão própria, que são reduzidos a meros instrumentos (dentes da engrenagem) a serviço do sucesso do plano delitivo. Se estes devem ser punidos, ou não, é questionamento que foge ao alcance metodológico da teoria do domínio do fato. 29. Perceber a importância do pensamento para o exame da realidade – ao se deparar com um novo fenômeno, que desconstrói os conceitos e categorias de pensamento pré-existentes, torna-se necessário afastar-se do mundo e criar conceitos para os objetos que

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nos apresentam por meio dos sentidos, organizados pelo senso comum, e assim reconciliar-se com a realidade. 30. Realizar paralelos históricos com paradigmas anteriores nos afasta da realidade e impede que percebamos a originalidade e o perigo de certos fenômenos. Trata-se de atividade incessante, que deve sempre buscar o significado para as aparências. 31. Assim, torna-se necessário criar novos conceitos e categorias para conferir significados, desestabilizar critérios estabelecidos, valores e medidas de bem e de mal, dissolver certezas. Essa atividade é instável e provoca insegurança, mas é a garantia do homem contra sua automatização que levou ao surgimento dos fenômenos do totalitarismo e da banalidade do mal.

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