AUTORIDADE HUMANA E FUNDAMENTO DA LEI EM MARSÍLIO DE PÁDUA

June 19, 2017 | Autor: Jose Ames | Categoria: Law, Filosofía Política, Filosofía medieval, Marsilius of Padua, Estado
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CRÍTICA Revista de Filosofia Volume

12

-

Número

36

-

Outubro

2007

ISSN 1413-4004

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA Reitor Dr. Wilmar Sachetin Marçal

Diretor do Centro de Ciências Humanas Dr. Ludoviko Carnasciali dos Santos Chefe do Departamento de Filosofia Dr. José Mário Angeli

CENTRO DE ESTUDOS FILOSÓFICOS Presidente Dr. Gilvan Luiz Hansen

A Revista Crítica é uma publicação conjunta do Curso de Especialização em Filosofia Política e Jurídica da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e do Centro de Estudos Filosóficos (CEFIL).

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COORDENADOR EDITORIAL Dr. Gilvan Luiz Hansen Universidade Federal Fluminense (UFF) Centro de Estudos Filosóficos (CEFIL) CONSELHO EDITORIAL Dr. Aquiles Côrtes Guimarães Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Dr. Aylton Barbieri Durão Universidade Estadual de Londrina (UEL) Dr. Bianco Zalmora Garcia Universidade Estadual de Londrina (UEL) Dr. Bortolo Valle Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Dr. Delamar José Volpato Dutra Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Dr. Eldon Henrique Mühl Universidade de Passo Fundo (UPF) Dr. Elve Miguel Cenci Universidade Estadual de Londrina (UEL) Dr. José Luis Villacañas Universidade de Múrcia (Espanha) Dr. Javier García Medina Universidade de Valladolid (Espanha) Dr. Juan Adolfo Bonaccini Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Dr. Juan Carlos Velasco Arroyo Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC/Espanha) Dr. Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa (Portugal) Dr. Mário Antônio de Lacerda Guerreiro Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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CONSELHO DE PARECERISTAS EXTERNOS Dr. Alessandro Pinzani Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Dr. Alexandre Meyer Luz Universidade Federal do Sergipe (UFS) Dra. Ana Thereza de Cordeiro Dürmaier Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Dr. António Martins Universidade de Coimbra (Portugal) Dr. Antonio Rivera Universidade de Múrcia (Espanha) Dr. Arlei de Espíndola Universidade do Oeste do Paraná (UNIOESTE) Dr. César Augusto Ramos Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Dr. Cláudio Almir Dalbosco Universidade de Passo Fundo (UPF) Dr. Daniel Omar Perez Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Dr. Danilo Marcondes de Souza Filho Universidade Federal Fluminense (UFF) Dr. Fernando Jader de Magalhães Melo Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Dr. Fernando Longás Universidade Metropolitana de Ciências da Educação (Chile) Dr. Francisco Colom González Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC/Espanha)

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Dr. Guilherme Castelo Branco Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Dr. Hans-Georg Flickinger Universidade de Kassel (Alemanha) Dr. Jairo Dias Carvalho Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Dr. Javier Peña Echeverría Universidade de Valladolid (Espanha) Dr. Júlio César Ramos Esteves Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) Dr. Luiz Paulo Rouanet Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP) Dra. Marta de La Vega Visbal Universidade Simón Bolívar (Venezuela) Dr. Oscar Federico Bauchwitz Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Dr. Regenaldo Rodrigues da Costa Universidade Estadual do Ceará (UECE) Dr. Rui Romão Universidade da Beira Interior (Portugal) Dr. Valério Rohden Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) Dr. Vinícius Berlendis de Figueiredo Universidade Federal do Paraná (UFPR)

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Ficha Catalográfica – Biblioteca Central – UEL

Crítica / Universidade Estadual de Londrina. Vol. 1 (1995). – Londrina: UEL / CEFIL, 1995. v. ; 20cm. Semestral Descrição baseada em: Vol. 1 (1995). ISSN 1413-4004 1. Filosofia – Periódicos. I. Universidade Estadual de Londrina. CDU 1(05)

A Revista Crítica é uma publicação conjunta do Curso de Especialização em Filosofia Política e Jurídica da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e do Centro de Estudos Filosóficos (CEFIL).

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SUMÁRIO Redescrição e Estetização: Possibilidade de uma relação entre Educação e Filosofia numa perspectiva Pragmatista.................... 255 Altair Alberto Fávero

Facto da Razão: Uma Doutrina Crítica?...................................... 271 Andréa Faggion

A ampliação Apeliana do Conceito de Responsabilidade e o Problema da Justificação Ética da coerção pelo Estado de Direito.............. 285 Angelo Vitório Cenci

A Concepção Republicana de Liberdade como NãoDominação................................................................................. 301 César Augusto Ramos

Perspectivas de Moralização do Direito: Kant e Habermas......... 337 Delamar José Volpato Dutra

Bien Común, Discurso y Ética Pública........................................ 357 Dorando J. Michelini

La Obligación Moral de Recordar El debate sobre la memoria histórica de la Guerra Civil española..................................................................................... 375 Francisco Colom González

Características do Pensamento de Michele Federico Sciacca...................................................................................... 389 José Beluci Caporalini Autoridade Humana e Fundamento da Lei em Marsílio de Pádua........................................................................................ 409 José Luiz Ames

Culturas, Ciudadanía y Republicanismo........................................ 429 Juan Carlos Velasco

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“Inato”, “A Priori”, “Aquisição Originária”: Alhos e Bugalhos.................................................................................... 463 Ubirajara Rancan de Azevedo Marques

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APRESENTAÇÃO Neste número da Revista Crítica recolhemos as contribuições de trabalhos selecionados entre os apresentados no IV Congresso Internacional de Filosofia Política e Jurídica, ocorrido entre os dias 20 e 22 de agosto de 2007, na Universidade Estadual de Londrina. Nesta oportunidade, contamos com o apoio financeiro da Fundação Araucária, assim como da Caixa Econômica Federal, instituições as quais manifestamos nosso agradecimento pela sua significativa contribuição para a realização do evento. Agradecemos, uma vez mais, à Fundação Araucária pelo financiamento deste número de nossa revista. Comissão Editorial

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REDESCRIÇÃO E ESTETIZAÇÃO: POSSIBILIDADE DE UMA RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E FILOSOFIA NUMA PERSPECTIVA PRAGMATISTA1 Altair Alberto Fávero* Resumo O texto “Redescrição e estetização: possibilidade de uma ralação entre educação e filosofia numa perspectiva pragmatista” tem a pretensão de analisar, a partir dos escritos de Richard Rorty, as possíveis relações entre filosofia e sociedade num contexto pósmetafísico e pós-fundacionismo. Tendo a emergência da “estetização” como ponto de partida e propondo “a vida estética como modelo ideal”, o texto analisa o impacto que a proposta rortiana pode ter para pensar a interface entre filosofia, educação e sociedade.

Palavras-chave Redescrição, estetização, filosofia, sociedade, Rorty.

INTRODUÇÃO Nos tempos antigos esperava-se que a filosofia possibilitasse conhecer a “natureza” dos objetos, sua essência, seu lugar no cosmo. Até os tempos modernos, a idéia de um saber universal, totalizante, abrangente, arquitetônico (com o qual seria possível captar o todo, seus princípios e suas partes nas múltiplas relações) parecia ser um índice de que a filosofia tinha condições de dar conta. Contudo, com a chegada da Modernidade e, mais recentemente, com os “tempos pós-modernos”, ao introduzir a liberdade e autonomia (maioridade em Kant), a “separação das esferas culturais de valor que se autonomizaram” (Weber), a pluralidade infinita de mundos de sentido *

Doutor em Filosofia da Educação pela UFRGS, Mestre em Filosofia do Conhecimento pela PUCRS, professor e pesquisador do Curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo (UPF). Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 255 - 270, out. 2007

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(hermenêutica), a linguagem como morada do ser (Heidegger), os jogos de linguagem (Wittgenstein), a fragmentaridade e o fim das metanarrativas (Lyotard), “a unidade da razão nas múltiplas vozes” (Habermas), a desconstrução (Derrida), a “arqueologia do saber (Foucault), a utilidade (pragmatismo) etc., iniciou-se “uma época da suspeita” com relação a tudo e a todos. A sobrevivência impôs-se como valor primeiro, relegando o valor do conhecer e da verdade a um permanente processo de questionamento e refutação (Popper). A filosofia, nesse contexto, foi perdendo “seus objetos” de estudo, reduzidos a serem objetos empíricos das mais diversas ciências: a “mente” humana passou às mãos dos neurologistas e psicólogos; a “sociedade”, às dos sociólogos e dos historiadores; a “política”, às dos cientistas políticos; a “ética” passou a ser assunto de “éticas aplicadas”, nas quais os mais diferentes “profissionais” se sentem aptos a discursar sobre ela. Como a filosofia não tem nenhuma “fatia” da realidade para investigar (um objeto empírico propriamente dito), assumiu a tarefa de estudar os “valores”, porém mesmo esses, “em tempos pós-modernos”, parecem ter se evaporado na emanação invisível de suas mensagens. “O que nos resta, pois, que possamos estimar como tema aceitável de investigação filosófica?”, pergunta Ferrater Mora. E ele mesmo responde: “Não há outro remédio que concluir que o filosófico não é ‘aquilo do que se trata’, senão o modo de tratá-lo. A filosofia se converte assim em um ‘modo de ver’ e em um ‘um ponto de vista” (1996, p.120). É nesse contexto que situo a idéia de compreender a filosofia como redescrição e estetização da sociedade. A intenção do texto é analisar, a partir dos escritos de Richard Rorty, o impacto que tal concepção de filosofia pode ter diante da atual crise de legitimação da própria filosofia e de sua relação com a sociedade e com a educação. 1. A EMERGÊNCIA DA “ESTETIZAÇÃO” No início do seu texto “Estetização e estetização profunda ou: a respeito do estético nos dias de hoje”, Wolfgang Welsch declara que “é evidente que hoje a estética está em alta. Ela abarca desde as coisas mais chãs do cotidiano até as alturas da cultura e seus discursos.

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Hoje tudo se configura esteticamente, e tudo tendencialmente vem a ser compreendido como estético” (1995, p.8). Iniciando com uma “tipologia das diferentes espécies de estetização”, passando pela proposição de “uma explicação da estetização epistemológica enquanto base dos diversos processos de estetização” e, por fim, analisando as “perspectivas de uma crítica estética no interior dos processos de estetização”, Welsch ressalta que “nos últimos duzentos anos, verdade, saber e realidade foram assumindo contornos estéticos. Enquanto antes se acreditava que a estética só teria a ver com realidades secundárias, ulteriores, hoje nós reconhecemos que o estético já pertence à camada fundamental do conhecimento e da realidade” (1995, p.16). A tipologia dos processos de estetização é analisada por Welsch segundo vários aspectos. Inicialmente, ele ressalta a estetização dos fenômenos superficiais conhecidos, tais como o embelezamento dos centros comerciais, das ecologias alternativas, dos escritórios, das estações de trem, dos restaurantes etc. Trata-se de “estetização superficial”, na qual o mundo “se transforma num espaço de emoções e a sociedade, numa sociedade de emoções” (1995, p.8). Nessa estetização, considerada também uma estratégia econômica e cujo exemplo paradigmático é o marketing, o estético, de coisa secundária, tornou-se o principal; de simples adereço, tornouse o centro das atenções. Ao tratar da “estetização radical”, onde ocorre a troca de posições entre hardware e software, Welsch destaca que a emergência das “novas tecnologias”, as “simulações de computador”, a microeletrônica e a própria televisão, em suas múltiplas faces, acabaram estetizando não só a matéria, mas também a consciência, a percepção da realidade social e o próprio comportamento. Nessa estetização radical, diz ele, “a realidade torna-se, em termos de mídia, uma oferta manipulável e modelável esteticamente até o íntimo de sua substância [e onde] as fronteiras entre realidade e virtualidade tornam-se definitivamente incertas e porosas” (1995, p.10-11). A passagem da estetização superficial para a estetização radical encontra na estetização do sujeito sua completude. Trata-se da estetização do corpo, da alma e do espírito, viabilizada pelas Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 255 - 270, out. 2007

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academias de ginástica, pelos cursos de meditação e pelos seminários de espiritualização. Welsch acredita que, para as futuras gerações, tudo tende a ser ainda mais facilitado, pois até mesmo “a tecnologia genética, este novo ramo da estetização, [...] nos abre a perspectiva de um mundo cheio de manequins perfeitamente estetizados” (1995, p.11). Todas essas colocações abordadas por Welsch nos remetem a um conjunto de questionamentos: Quais as conseqüências de todo esse processo de estetização? A estetização do mundo seria uma espécie de vingança dos sentidos à opressão do intelecto e da razão praticada desde a metafísica de Platão? Qual o impacto cultural provocado pelos múltiplos processos de estetização? Que impacto está tendo a estetização do mundo para as questões tradicionais da filosofia (conhecimento, ética, ontologia, política, arte, ciência)? Como pensar a educação a partir do mundo estetizado? A estetização do mundo pode se constituir numa alternativa promissora diante dos problemas decorrentes da crise de legitimação e fundamentação das teorias educacionais? Mais especificamente, o que significa compreender, na abordagem rortiana, a “redescrição” como estetização do mundo? Em sua obra Vivendo a arte, Richard Shusterman dedica boa parte do seu último capítulo, intitulado “Ética pós-moderna e a arte de viver”, ao que ele chama de “estetização da ética”. Por essa expressão defende a idéia de que “as considerações estéticas são ou deveriam ser cruciais, talvez superiores, na determinação de como escolhemos conduzir ou moldar nossas vidas e de como avaliamos o que é uma vida ideal” (1998, p.197). O próprio Shusterman esclarece que tal posição é motivada pelo pensamento wittgensteiniano de que “ética e estética são uma só” e de que “tal estetizar é dirigido prioritariamente ao que podemos chamar de domínio privado da ética, à questão de como o indivíduo deve moldar sua vida para realizar-se completamente enquanto pessoa” (1998, p.197). Rorty é apontado por Shusterman como o expoente norte-americano mais ofensivo na defesa explícita da “vida estética como o modelo ideal”. Mas no que consiste essa “vida estética” proposta por Rorty? Como ela se articula com os outros elementos do seu pensamento? Que interlocutores são utilizados por Rorty para redescrever a “ética da estetização privada”?

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De que maneira a “vida estética” se relaciona com a tensão entre o público e o privado? Que papel a “ética estetizada” da perfeição privada possui na afirmação e aperfeiçoamento do liberalismo? De que maneira é possível articular a “vida estética” com a moralidade pública ou com a solidariedade social? Que contribuições a “vida estética” pode trazer para a educação numa perspectiva rortiana? A “estetização da vida” proposta por Rorty não desembocaria numa “fragmentação do eu”? 2. A VIDA ESTÉTICA COMO MODELO IDEAL O tema da redescrição enquanto estetização do mundo, ou “a vida estética como modelo ideal” de Rorty, está intimamente ligado com o tema da “redescrição em ética” e com a “redescrição entre o público e o privado”. A relação entre esses três temas é tão íntima no pensamento de Rorty que talvez devessem ser tratados conjuntamente. Nadja Hermann, por exemplo, em seu recente livro Ética e estética: a relação quase esquecida (2005), ao tratar da abordagem rortiana, chama-a de “ética estetizada”. “As alternativas da ética estetizada”, afirma Hermann, “são esforços que buscam prestar atenção naqueles elementos desconsiderados pela reflexão filosófica, deixando revelar de forma clara que a autocriação do sujeito está estreitamente entrelaçada com a estética” (2005, p.100). Em minha pesquisa, por razões didáticas, optei por tratar esse tema separadamente, mesmo correndo o risco de sobrepor alguns elementos. Assim como o pensamento de Freud foi apontado na seção anterior como sendo um importante movimento para “desdivinizar o eu”, revelando, dessa maneira, a “contingência da consciência moral”, também no que tange à “vida estética” ocupa um lugar imprescindível. Nas palavras de Rorty, “Freud é um apóstolo dessa vida estética, a vida da curiosidade infinda, a vida que procura expandir seu próprios limites, ao invés de encontrar o seu centro” (1999, p.204). A disponibilidade de um vocabulário mais rico, conjectura Rorty, é o que permite a emergência da vida estética e que nos tornemos mais sensíveis e criativos perante aqueles que nos antecederam ou diante de nosso passado recente. O que aumenta a sensibilidade não é o Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 255 - 270, out. 2007

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fato de termos encontrado nosso “eu central”, nosso “self verdadeiro” compartilhado com outros seres humanos, mas, sim, darmo-nos conta de que somos “uma reunião fortuita de necessidades contingentes e idiossincráticas” (1999, p.205). Rorty considera que o pensamento de Freud contrasta com a filosofia moderna, pois esta tentou, a todo custo, preservar a noção de um “self verdadeiro”, de um “self moral” que fosse livre das contingências e idiossincrasias. Tanto Descartes quanto Kant são indicados por Rorty como pensadores que utilizaram todas as artimanhas para evitar que o self viesse a ser aquilo que Freud produziu ao introduzir a abordagem do inconsciente. Diz o próprio Rorty: [Freud] nos ajudou a pensar na reflexão moral e na sofisticação como uma questão de autocriação, ao invés de como uma questão de autoconhecimento. Freud transformou em paradigma de autoconhecimento a descoberta dos materiais fortuitos a partir dos quais nós devemos construir a nós mesmos, ao invés da descoberta dos princípios aos quais nós precisamos conformar. Ele, conseqüentemente, fez com que o desejo de purificação parecesse mais auto-enganador, e a busca por autoampliação mais promissora (1999, p.205-206).

Para Rorty, a avaliação que Freud faz do autoconhecimento, do que somos moralmente obrigados a saber sobre nós mesmos, não é a nossa essência, não é “uma natureza comum” que partilhamos com outros semelhantes de nossa espécie, mas é, justamente, o que nos separa deles, ou seja, “nossas ideossincrasias acidentais, os componentes ‘irracionais’ em nós mesmos, que nos dividem em conjuntos incompatíveis de crenças e desejos” (1999, p.199). O processo de autoconhecimento segundo essa abordagem é uma espécie de conversação com nosso inconsciente, possibilitada não pela revelação do “eu central”, mas pelo estudo de detalhes concretos do nosso “eu contingente”. Entretanto, adverte Rorty, para compreender essa abordagem freudiana, é necessário distinguir dois sentidos do inconsciente:

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(1) um sentido no qual significa um ou mais sistemas bem articulados de crenças e desejos, sistemas tão complexos, sofisticados e internamente consistentes quanto as crenças e desejos conscientes dos adultos; e (2) um sentido no qual significa uma massa efervescente de energias instintivas desarticuladas, um “reservatório de libido” para o qual consistência é irrelevante (1999, p.199).

Se a abordagem freudiana do inconsciente tivesse ficado restrita ao segundo sentido (2), o inconsciente seria nada mais que o outro nome para as “paixões”. Porém, o primeiro sentido (1) possibilita compreender o inconsciente como algo criativo, parceiro conversacional de nosso eu consciente. A duplicação do inconsciente possibilita evitarmos a dualidade platônica entre “self verdadeiro” e “self animal”: o primeiro fruto da razão que busca autopurificação nas essências e na universalidade; o segundo, fruto das paixões, da bestialidade, dos instintos, das contingências, que precisa ser controlado. Na perspectiva de Freud, Id, Ego e Superego são três diferentes estórias contadas, respectivamente, sobre um mesmo tema que possibilitam compreender o autoconhecimento como “uma questão de auto-enriquecimento” e evitar, dessa maneira, o “vocabulário único”, ou o “anseio por purificação” (1999, p.201). Na leitura de Rorty, o ato de distinguir o inconsciente, “enquanto estrato mais profundo de nossas mentes, constituído de impulsos instintivos”, e o inconsciente, “enquanto parceiro sensível, extravagante, que trabalha nos bastidores e que nos nutre com suas melhores tiradas espirituosas” (1999, p.200), possibilitou a Freud realizar uma dupla humanização da tradição platônica: “humaniza o que a tradição platônica tomava como sendo os ímpetos de um animal [...]; humaniza também o que essa tradição pensava como uma inspiração divina” (1999, p.201). Todas essas iniciativas fazem de Freud, diz Rory o “apóstolo da vida estética”, pois nos fez ver narrativas alternativas e vocabulários como instrumentos de mudança, ao invés de candidatos a retratar “a forma correta de como as coisas são em si mesmas”.

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De forma resumida, Rorty sintetiza em cinco pontos (1999, p.207-208)2 as razões pelas quais Freud pode ser considerado, positivamente, o responsável por reiventar “a busca por ampliação” e por “reiventar a moralidade do caráter”. São eles: (1)

Contrariamente a toda tradição que identificava a consciência como um “self central”, como aquela que estabelece padrões e princípios gerais para a busca de verdades universais e a identificação de uma natureza humana comum, Freud transformou-a em apenas mais uma parte, não a mais central, de uma máquina homogênea mais ampla. Com isso, ele identificou o sentido do dever com a internalização de uma hoste de episódios idiossincráticos acidentais, na qual o sentido da obrigação moral limita-se a traços de encontros entre pessoas particulares e nossos órgãos corporais. Assim, a voz da consciência não é uma voz da alma que lida com generalidades, mas é, simplesmente, a memória (usualmente distorcida) de certos eventos particulares.

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Essa identificação não tomou a forma de uma afirmação reducionista, pois Freud não estava estipulando uma definição de moralidade contraposta à tradição. Não havia nenhum contraste a ser estabelecido entre o caráter “meramente” mecânico e reativo da experiência moral e o caráter livre e espontâneo de algo diverso. A identificação da consciência com a memória dos eventos idiossincráticos também não tem a pretensão de ser um substituto (“científico”) para a deliberação moral. A teoria psicanalítica não é o único instrumento requerido para a auto-ampliação.

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Freud possibilitou-nos vermo-nos como “máquinas” que precisam ser constantemente remodeladas, ou seja, uma auto-imagem que nos viabilizou a

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composição de termos de descrever mecanismos psíquicos junto com nossas estratégias de formação de caráter. (5)

Freud legou-nos a capacidade crescente do intelectual sincrético, irônico, nominalista, de oscilar para frente e para trás entre, por exemplo, vocabulários religiosos, morais, científicos, literários, filosóficos e psicanalíticos, sem se preocupar com qual deles é o mais verdadeiro. Ele nos ajudou a tratar os vocabulários antes como instrumentos do que como espelhos; quebrou algumas das últimas cadeias que nos mantinham presos à idéia grega de que nós, ou o mundo, possuímos uma natureza que, uma vez descoberta, nos dirá o que devemos fazer de nós mesmos. Deixou-nos ver que, mesmo no enclave em que a filosofia nos isolou, não há nada a ser encontrado senão vestígios de encontros acidentais; por fim, nos tornou aptos a tolerar as ambigüidades que as tradições religiosas e filosóficas esperam eliminar.

Os cinco pontos do resumo de Rorty deixam transparecer seu otimismo com a obra de Freud no sentido de que nos tornaria mais aptos a construir narrativas mais ricas e mais plausíveis para pensar a pluralidade em nosso tempo num mundo estetizado, para utilizar um vocabulário de Welsch, e em constante mudança. Tais narrativas não seriam espelhos, nem verdades absolutas, nem vocabulários finais, nem princípios universais ou máximas; seriam apenas ferramentas que nos possibilitam lidar com o mundo, de forma criativa, para nossa auto-superação. 3. A ESTETIZAÇÃO E A MORALIDADE Para compreender a “redescrição como estetização do mundo” ou “a vida estética como modelo ideal” na abordagem rortiana, tornase necessário, também, articulá-la com a tensão entre a moralidade Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 255 - 270, out. 2007

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pública e a moralidade privada. “A moralidade”, diz Rorty, “pode significar tanto a tentativa de ser justo em seu tratamento com os outros, quanto a busca de perfeição em relação a si mesmo” (1999, p.203). Enquanto a tentativa de ser justo com os outros (solidariedade humana) diz respeito à moralidade pública, a busca de perfeição (desejo de auto-realização) diz respeito à moralidade privada; a primeira fixase em máximas e estatutos, ao passo que a segunda promove o desenvolvimento do caráter. Rorty, assim como Freud, não está interessado na moralidade pública. Sua atenção está voltada à moralidade privada, ou seja, “a busca por um caráter, a tentativa dos indivíduos de reconciliarem-se consigo mesmos” (1999, p.204). Nessa busca por um caráter, Rorty identifica “duas formas antitéticas” que, de certa forma, marcaram a história da moralidade ocidental: de um lado está a busca de purificação (“o desejo de purificar a si mesmo”, a tentativa de minimizar ou expurgar tudo o que é acidental, de se tornar um ser simples e transparente); do outro está a vida estética ou o desejo de auto-ampliação (o desejo de ampliar a si mesmo, o desejo de abarcar mais e mais possibilidades, a atitude de “estar sempre aprendendo” e de se “entregar inteiramente à curiosidade”). Rorty chama esta segunda forma de moralidade privada de “vida estética”, porque possibilita a aquisição constante de “novos vocabulários de reflexão moral”. Com isso ele pretende “lançar luzes” sobre regras abstratas e sobre os princípios gerais que marcaram a história da moralidade. “A disponibilidade de um vocabulário mais rico de deliberação moral”, conjectura pragmaticamente Rorty, “é o que se tem em mente, sobretudo quando se diz que nós somos, moralmente falando, mais sensíveis e sofisticados do que nossos ancestrais ou do que nós mesmos quando éramos mais jovens” (1999, p.205). Rorty avalia que a filosofia moral tradicional acabou empobrecendo seu próprio vocabulário ao deter-se em conceitos absolutos de unidade, tais como sinceridade, autenticidade ou mesmo liberdade. Ao retrair-se, a filosofia moral tradicional acabou legando “a tarefa de enriquecer nosso vocabulário de reflexão moral para os romancistas, os poetas e os dramaturgos” (1999, p.206). Possivelmente, essa constatação nos ajude a entender melhor as

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razões que levam Rorty a afirmar, na introdução de Contingência, ironia e solidariedade, que “a etnografia, o texto jornalístico, a banda desenhada, o docudrama e, especialmente, o romance” (1992, p.19) fazem mais para o progresso moral do que os sofisticados tratados de filosofia moral; ou quando diz em Verdade e progresso que “os romances, mais do que os tratados sobre a moral, são veículos úteis para a educação moral” (2000, p.24); ou, ainda, na resposta que ele dá ao ser questionado sobre a distinção filosofia e literatura, quando diz: [...] no centro da filosofia há um esforço por encontrar uma ordem entre as coisas que são familiares, enquanto que a literatura procura romper com o familiar e nos dar-nos algo surpreendente e novo. Visto assim, a filosofia aspira à beleza, a disposições agradáveis e harmoniosas de entidades já conhecidas. A literatura, ao contrário, vista nesta ótica, almeja o sublime; quer chegar a extremos aonde nunca as palavras chegaram (2002, p.161).

Ao propor novos vocabulários como estratégia para pensar a reflexão moral e a concretização de uma “estetização do mundo” ou a proposição de “uma vida estética”, Rorty não tem a pretensão de fornecer “fundamentos filosóficos” para uma sociedade estetizada; sua intenção é apenas fornecer uma “redescrição” do mundo, ou da democracia, ou da educação, ou, ainda, da reflexão moral. “A diferença entre a procura de fundamentos e a tentativa de redescrição”, diz ele, “é símbolo da diferença entre a cultura do liberalismo e formas mais antigas de vida cultural, já que na sua forma ideal a cultura do liberalismo seria uma cultura esclarecida e secular em toda a sua extensão” (1992, p.72). Não que o liberalismo seja modelo, ou protótipo a ser imitado – se fosse dessa maneira, Rorty estaria repondo a idéia de fundamento semelhante ao mundo das idéias de Platão –, mas, sim, como um recurso analógico e metodológico para expor didaticamente o processo de redescrição. “Oferecer uma redescrição das nossas instituições e práticas correntes”, esclarece

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analogicamente Rorty, “não é oferecer uma defesa contra seus inimigos: é mais como mobiliar de novo uma casa do que escorar a casa ou colocar barreiras à volta dela” (1992, p.72). No início de Contingência, ironia e solidariedade Rorty afirma que tanto a Revolução Francesa quanto o movimento romântico foram responsáveis por inaugurar uma nova era, um novo jeito de pensar o mundo e suas instituições. “A Revolução Francesa mostrara que todo o vocabulário das relações sociais e todo o espectro das instituições sociais podiam ser substituídos quase de um dia para outro” (1992, p.23). Tal acontecimento possibilitou transformações em todos os aspectos da cultura, o que mudou radicalmente todas as concepções até então tidas como “inquestionáveis”. Algo semelhante foi realizado pelos poetas românticos quando passaram a mostrar o que acontece quando a arte deixa de ser pensada como imitação e passa a ser considerada como autocriação do artista. “Os poetas reclamavam para a arte”, diz Rorty, “o mesmo lugar na cultura que o tradicionalmente ocupado pela religião e pela filosofia, o mesmo lugar que o Iluminismo tinha reclamado para a ciência” (1992, p.23). Assim como esses movimentos foram importantes para consolidar a cultura secular e efetivar as sociedades liberais modernas, diz Rorty, “precisamos de uma redescrição do liberalismo, segundo a qual este seja a esperança de a cultura no seu todo poder ser ‘poetizada’ e não, como era esperança do Iluminismo, de poder ser ‘racionalizada’ ou tornada científica” (1992, p.81-82). Mas o que Rorty entende por “cultura poetizada”? No que consiste essa “redescrição do liberalismo”? Quem seriam os protagonistas de tal cultura? Como a cultura poetizada e seus protagonistas se articulam com a idéia de redescrição enquanto estetização do mundo? 4. EM PROL DE UMA CULTURA POETIZADA A cultura poetizada que Rorty pretende redescrever está em sintonia com a concepção wittgensteiniana de que “os vocabulários [...] são criações humanas, instrumentos para a criação de outros artefatos humanos, tais como poemas, sociedades utópicas, teorias científicas e gerações futuras” (1992, p.82). Com isso, ele adverte

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que “redescrever” o liberalismo, por exemplo, não significa justificálo racionalmente, ou que seus inimigos possam ser refutados argumentativamente, pois, metaforicamente, os argumentos não passam de “um vocabulário”, uma “cortina pintada”, uma “encenação cultural”, mais “uma maneira de descrever as coisas”. “Uma cultura poetizada”, esclarece Rorty, seria uma cultura que não insistiria para que encontrássemos a parede real por detrás das paredes pintadas, os verdadeiros critérios de verdade por oposição aos critérios que são apenas artefatos culturais. Seria uma cultura que, precisamente por reconhecer que todos os critérios são artefatos desse tipo, teria por objetivo a criação de artefatos cada vez mais variados e coloridos (1992, p.82-83).

Com isso Rorty reconhece que as escolhas que fazemos não podem “ser feitas” por critérios de verdade, ou por critérios racionais que escapam das contingências de um contexto histórico particular; são, sim, “feitas” a partir de nossa inserção no mundo, assim como escolhemos nossos amigos ou nossos heróis. Os protagonistas da cultura poetizada de Rorty, ou “os mestres da vida estética”3, são, declaradamente, a “ironista” e o “poeta-forte”. Mas quem são esses personagens na abordagem rortina? Qual o seu perfil? De que maneira tais personagens contribuem para conceber a filosofia como redescrição e estetização da sociedade? Em seu livro Vivendo a arte, Richard Shusterman faz uma síntese do perfil desses personagens da seguinte maneira: A vida estética do “intelectual curioso” ou do “ironista” é a “vida da curiosidade insaciável, a vida que anseia estender seus limites mais do que encontrar seu centro”. Seu “desejo de abraçar cada vez mais possibilidades” pela adoção de vocabulários sempre diversos para a nova autodescrição exige uma atitude “cada vez mais irônica, brincalhona, livre e inventiva” em

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relação a todo vocabulário eleito ou considerado até o momento como determinante para a autodescrição ou para sua própria identidade ética. [...] Os ironistas têm medo de se tornar prisioneiros do vocabulário pelo qual foram educados ou mesmo de qualquer outro vocabulário. Tendo abandonado a idéia de um eu essencial, de um vocabulário final ou de uma grande narração para a qual deveriam dirigir-se, eles são determinados “pela diversificação e pela novidade” da autodescrição, alargando continuamente sua “própria identidade moral pela revisão de [seu] vocabulário final”. O ironista, sempre curioso e desejando enriquecer seu eu, “lembra a si mesmo sua ausência de raízes”, tentando sempre entender os artifícios dos novos jogos de linguagem que pode aprender (1998, p.209-210).

A longa citação de Shusterman caracteriza, de modo compacto, diversos traços que foram sendo apresentados no decorrer do presente artigo. As fortes expressões de Rorty, acertadamente ressaltadas por Shusterman na citação transcrita, são indicativos importantes para percebermos a tarefa imprescindível do ironista na cultura poetizada rortiana. Nesse sentido, que perspectivas a cultura poetizada rortiana pode trazer para as crises do nosso tempo? Como se daria o processo de autocriação e auto-enriquecimento no âmbito educacional pensado com base na idéia rortiana de redescrição? Não haveria o risco de um certo “esvaziamento do eu”? Tem razão Shusterman (1998, p.210) ao dizer que “a ausência de um eu estrutural”, “a geração ilimitada de vocabulários alternativos”, a transformação do eu numa “multiplicidade inconstante de egos” e, mesmo, a “redescrição permanente de si mesmo” anulariam “o projeto de vida estética de Rorty, tornando-o sem significação”? É possível, nesse sentido, conceber a redescrição como uma utopia educacional? Que conseqüências a idéia de redescrição e estetização teriam para pensar o ensino de filosofia? São questões que não podem estar ausentes para pensarmos as possíveis conexões e interfaces entre

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filosofia e sociedade numa perspectiva rortiana. Talvez a filosofia não consiga mais ostentar a pretensão de ser um saber universal, totalizante, abrangente e arquitetônico que perseguiu no passado, mas possa, enquanto redescrição e estetização da sociedade, garantir sua presença efetiva no conturbado mundo que vivemos. NOTAS EXPLICATIVAS 1

Uma primeira versão desse texto foi apresentada em forma de conferência em 21/8/2007 no IV Congresso Internacional de Filosofia Política e Jurídica, promovido pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. 2

Rorty expõe de forma adequada o que tentei desenvolver até o presente momento sobre a contribuição de Freud para pensar a redescrição enquanto estetização do mundo. Optei por fazer uma apropriação livre, não literal do resumo, pois, do contrário, demandaria um longo espaço no meu texto. 3

Essa expressão é utilizada por Richard Shusterman em seu livro Vivendo a arte, anteriormente referido. Na leitura de Shusterman, Rorty estaria igualando os dois (o ironista e o poeta-forte) “como sendo essencialmente o mesmo em sua busca ético-estética, dado que ambos estão engajados na aspiração incerta do enriquecimento e da criação do eu, pelo uso de novas linguagens para descrevê-lo” (1998, p.209). No entanto, Shusterman discorda dessa abordagem rortiana, pois acredita que os objetivos de autocriação e de autoenriquecimento não são idênticos. Diz Shusterman: “Não apenas podemos atingir um sem atingir o outro, como os dois podem entrar em profundo conflito. A curiosidade insaciável pode ameaçar a concentração necessária para uma criação gratificante de si. O ironista curioso e o poeta criador podem representar, de fato, duas formas bem diferentes de vida estética que Rorty mistura, de maneira errônea, na mesma vida estética que preconiza” (1998, p.209). Não me deterei em analisar de forma detalhada essa crítica apontada por Shusterman, pois demandaria uma outra direção de minha pesquisa. No entanto, cabe registrar como um importante elemento para futuras pesquisas.

REFERÊNCIAS FERRATER MORA, J. La filosofia atual. Madrid: Alianza, 1996.

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HERMANN, Nadja. Ética e estética: a relação quase esquecida. Porto Alegre: Edipucrs, 2005. RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. Trad. Nuno Ferreira da Fonseca. Lisboa: Presença Editorial, 1992. _____. Ensaios sobre Heidegger e outros. Escritos filosóficos v. 2, Trad. Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999. _____. Verdad y Progreso. Escritos filosóficos v. 3, Barcelona: Paidós, 2000. _____. Filosofía y Futuro. Trad. Javier Calvo y Angela Ackermann. Barcelona: Gedisa, 2002. SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular. São Paulo: Editora 34, 1998. WELSCH, Wolfgang. Estetização e estetização profunda ou: a respeito da atualidade do estético. Trad. Álvaro Valls. Porto Alegre, Porto Alegre, v.6, n.9, p.7-22, maio 1995.

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FACTO DA RAZÃO: UMA DOUTRINA CRÍTICA? Andréa Faggion* Resumo Kant trabalhou sobre a formulação do princípio supremo subjacente aos mandamentos morais nas duas primeiras seções da Fundamentação da Metafísica dos Costumes e dedicou a última seção desta obra à prova da validade objetiva da fórmula então desvendada, um argumento nos moldes de uma dedução transcendental (cf. Faggion/ 2002). Sem dúvida, entre estudiosos dessa obra, há pouca ou nenhuma satisfação quanto à dedução contida na terceira seção. Sustento aqui a tese não exatamente polêmica de que Kant também tenha estado insatisfeito com seus próprios argumentos, a ponto de abandonar qualquer estratégia de prova semelhante e percorrer um caminho bastante original rumo ao mesmo objetivo, a fundamentação do princípio moral, na segunda Crítica. Este “caminho original” é a doutrina do facto da razão e meu trabalho sugere que ele conduz Kant a um retrocesso na filosofia crítica, quando confrontado com as exigências desta. Para tanto, levanto todas as passagens em que Kant faz referência ao facto na Crítica da Razão Prática, apontando as implicações de cada uma para a determinação do significado da doutrina. Na seqüência, aponto quais são exatamente as exigências críticas que o facto viola. Palavras-chave Facto da razão, filosofia crítica, fundamentação. EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA E LEVANTAMENTO DOS PRINCIPAIS PONTOS DA DOUTRINA Segundo o prefácio da Crítica da Razão Prática, esta obra deve “demonstrar que existe [es gebe] uma Razão pura prática [...] se ela, como razão pura, é realmente prática, prova assim a sua *

Doutora em Filosofia pela Unicamp e professora do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringá Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 271 - 284, out. 2007

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realidade e a dos seus conceitos pelo facto mesmo e é vão todo o sofismar contra a possibilidade de ela ser prática” (A 3, o último grifo é meu). Neste ponto, ainda não há referência direta ao facto da razão, porém, é a primeira indicação de que a investigação subseqüente não visará à prova da possibilidade da lei moral, mas sim à prova de sua realidade, entendida como a prova da existência da razão pura prática. Esta é a finalidade assumida no tratado. Já a partir dela, vemos uma divergência em relação à Fundamentação, obra em que se devia “buscar totalmente a priori a possibilidade de um imperativo categórico, uma vez que aqui nos não assiste a vantagem de a sua realidade nos ser dada na experiência” (II, §27, BA 49, o grifo de “possibilidade” é meu). Independentemente do modo em que a realidade da razão pura prática será dada na Crítica da Razão Prática, na experiência ou não, esta realidade passa a ser dada. Não se trata mais de buscar apenas uma possibilidade (ainda que objetiva), como na Fundamentação. Ainda no prefácio à segunda Crítica, Kant segue o caminho em direção ao facto da razão, dizendo que a razão prática “confere realidade a um objeto [Gegenstand] suprasensível da categoria da causalidade, a saber, à liberdade [...], por conseguinte, aquilo que além podia simplesmente ser pensado é confirmado por um facto [Factum]” (A 9, o último grifo é meu). Dada a relação recíproca entre moralidade e liberdade1, é natural que, se um facto confirmar a realidade da lei moral, ele também confirme a realidade da liberdade2. A questão que se nos impõe é: que facto é este, tão providencial, que vem resolver os problemas mais urgentes da filosofia moral? Deve ficar claro que, embora o facto confirme também a realidade da liberdade, não é por ela que se começa, porque não nos tornarmos diretamente conscientes da liberdade: “o seu conceito primeiro é negativo” (A 53). Pensamos a liberdade apenas em oposição à lei da natureza que conhecemos teoricamente na experiência. No que diz respeito à filosofia prática, julgamos ter liberdade para praticar uma determinada ação se antes julgamos que somos moralmente obrigados a praticá-la: “Julga, pois, que pode alguma coisa porque está consciente de que o deve e reconhece em si a liberdade a qual, sem a lei moral, lhe permaneceria desconhecida” (A 54).

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Por outro lado, defende Kant, nos tornamos imediatamente conscientes da lei moral (cf. A 53). Neste ponto, há um parêntese de Kant que pretende explicar a tomada de consciência da lei moral. Diz ele que esta consciência imediata ocorre “logo que projetamos por nós próprios máximas da vontade” (ibidem). Ora, é afirmado que temos uma consciência imediata da lei, mas, ao mesmo tempo, apontase para uma implicação da lei moral a partir das máximas. Se isto significa que a lei moral, de alguma forma, é uma condição para nos projetarmos máximas, temos uma dedução e não compreendemos o que é tomar consciência imediata da lei. Na mesma passagem, era de se esperar que Kant esclarecesse o ponto, já que ele pergunta: “Mas como é possível a consciência desta lei moral?” (ibidem). No entanto, o que se segue à pergunta é uma comparação entre a lei moral e os princípios teóricos puros que não parece explicar mais do que a consciência da pureza da fórmula da lei, não dizendo respeito à consciência da obrigatoriedade desta fórmula ou, em outras palavras, à consciência do dever. Pouco adiante, a lei moral é apresentada como um princípio de determinação que é “visto como a condição suprema de todas as máximas” (A 55). Não é à toa que Kant avisa que a “coisa é assaz estranha” (ibid. idem), pois temos novamente a impressão de estarmos diante de uma dedução. Todavia, Kant pode estar se referindo apenas ao fato de que todas as máximas devem se subordinar à lei moral, uma vez que a universalidade da legislação faz da lei moral “o fundamento formal supremo da determinação da vontade” (A 56). Assim, a passagem anterior (A 53), no mesmo sentido, indicaria apenas que não haveria consciência da lei moral, enquanto princípio supremo, se não houvessem máximas a serem julgadas. As máximas dariam a ocasião e não a fundamentação para a moralidade. Encontramos ainda que a razão é compelida por si mesma a confrontar as máximas consigo mesma, enquanto razão pura prática (cf. A 56). Poderíamos então dizer que a razão tende à moralidade? Talvez sim, uma vez que também temos a afirmação de que o princípio moral “é proclamado pela razão como uma lei para todos os seres racionais na medida em que eles, em geral, têm uma vontade [...] por conseguinte, enquanto são capazes de ações segundo princípios, portanto também segundo princípios práticos a priori” (A 57, Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 271 - 284, out. 2007

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grifos meus). Mais uma vez, parece que estamos diante de uma relação de implicação entre os princípios da vontade e o princípio moral. Entretanto, Kant recorre ao fato exatamente por descartar esse tipo de inferência, por mais clara que ela pareça na passagem citada. Justamente quando introduz pela primeira vez a expressão “facto da razão”, Kant deixa claro estar convicto da impossibilidade de uma dedução da lei: “À consciência desta lei fundamental pode chamar-se um facto da razão, porque não se pode deduzi-la com subtileza de dados anteriores da razão” (A 55-6). Logo, Kant não vê as máximas como dados anteriores a partir dos quais haveria uma inferência para a lei moral, enquanto condição desses dados, à maneira de uma dedução transcendental. Em vez disso, é dito que a lei – ou melhor, a consciência da lei, pois a consciência é que é afirmada como facto nessa passagem– “se nos impõe por si mesma como proposição sintética a priori que não está fundada em nenhuma intuição, nem pura, nem empírica” (A 56). Como Kant, na seqüência, veta também a possibilidade de uma intuição intelectual, e não poderia proceder de outro modo, é de se perguntar de que forma a consciência da lei é imposta a nós, seres racionais (se é que o somos). No lugar de uma explicação para tanto, Kant apenas faz questão de ressaltar que não se trata de recorrer à experiência em busca da fundamentação da moralidade: “importa observar, a fim de se considerar, sem falsa interpretação, esta lei como dada, que não é um facto empírico mas o facto único da razão pura, que assim se proclama como originariamente legisladora (sic volo, sic iubeo [= assim quero, assim ordeno])” (ibidem). Em primeiro lugar, há que se observar na passagem que não é mais a consciência, mas agora a própria lei que seria dada. Como é dito que o facto é único, Kant não parece dar importância à distinção entre a lei e a consciência da lei. Em segundo lugar, nossa perplexidade na tarefa de entender o significado de um facto que não é empírico, ou mesmo explicável pelo mundo sensível (cf. A 74 e também A 81), permanece e até aumenta, pois, após citar determinações negativas do facto da razão (não-empírico, não-intuitivo...), a determinação positiva oferecida levaria diretamente ao dogmatismo. Kant parece usar o termo “facto”, apenas porque a obrigatoriedade seria efetivamente dada, ou melhor, imposta por uma

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razão tirânica que, em vez de demonstrar a validade de uma tese, proclama arbitrariamente desejar tal tese. É muito sugestiva a forma como continua a citação latina, extraída de Juvenal, feita por Kant: “Hoc volo, sic iubeo; sit pro ratione voluntas” [= “É isto que eu quero, é assim que ordeno; por razão baste a minha vontade” (trad. de Guido de Almeida. Cf. 1998: p. 78)]. A favor de Kant, não devemos menosprezar o fato dele ter interrompido a citação antes do ponto em que o dogmatismo se torna evidente. Poderia ser então que as primeiras palavras tivessem sido usadas apenas para ilustrar o caráter de mandamento supremo da lei. De qualquer forma, continuamos no escuro quanto ao modo em que a lei é dada como facto, e esta obscuridade poderia depor contra Kant. A situação de Kant quanto à acusação de dogmatismo fica mais difícil perante esta passagem: “a realidade objetiva da lei moral não pode ser demonstrada por nenhuma dedução, nem por todo o esforço da razão teórica, especulativa ou empiricamente sustentada; e, por conseqüência, mesmo se se quisesse renunciar à certeza apodíctica, também não pode ser confirmada pela experiência e assim ser demonstrada a posteriori; e, apesar de tudo, mantém-se firme por si mesma” (A 81-2). A grande questão é: como mantém-se firme por si mesma? Responder a esta questão é entender de que modo a lei ou a consciência da lei é dada como um facto. É digno de nota que Kant faça restrições ao uso do termo “facto”: “A lei moral nos é dada, de certo modo, como um facto da razão pura de que somos conscientes a priori e que é apodicticamente certo” (A 81, grifo meu. Cf. também A 163). Há também que a “realidade objetiva de uma vontade pura ou, o que é a mesma coisa, de uma razão pura prática é, numa lei moral, dada por assim dizer a priori por um facto” (A 96, grifo meu. Cf. também A 187). Nesta passagem, temos ainda uma observação quanto a esse “certo modo” em que se diz que a lei moral ou a consciência dela é um facto. Kant diz que “assim [como facto] se pode chamar uma determinação da vontade, que é inevitável, embora não se baseie em princípios empíricos” (A 96, grifo meu). Uma vez que o termo “facto” seria usado tendo em vista a inevitabilidade da determinação da vontade pela lei, perguntamos agora em que sentido esta determinação é um facto ou algo inevitável. Se o Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 271 - 284, out. 2007

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arbítrio for inevitavelmente determinado pelo princípio moral, não há espaço para a culpa pela maldade ou mesmo para o mérito pela bondade, a rigor, não há mesmo algo como o bem ou o mal. Vontade deve então significar, neste contexto, apenas razão prática. Kant mesmo assimila, no início da passagem, vontade pura e razão pura prática, de modo que ele deve se referir a um reconhecimento inevitável da vigência da lei moral por parte da razão prática, e não a uma influência inevitável da lei moral nas máximas do agente. Lamentavelmente, não há nenhuma razão ulterior para que tal inevitabilidade não seja vista apenas como um apelo dogmático. Kant parece ter desistido de uma resposta ao cético moral, optando por ressaltar a suposta incontestabilidade do princípio. Seguindo a apresentação da doutrina, temos a afirmação de que se tratava “de conseguir provar num caso real, por assim dizer mediante um facto, que certas ações pressupõe uma tal causalidade (a intelectual, sensivelmente incondicionada)” (A 187). Não deveríamos entender desta passagem que o facto seja uma determinada ação que ocorre no mundo sensível e precisaria ser explicada pelo inteligível. No mínimo, esta idéia violaria a segunda analogia da experiência, apresentada na Crítica da Razão Pura, segundo a qual todos os eventos do mundo sensível, sem exceções, devem poder ser explicados por eventos precedentes no tempo. Em primeiro lugar, Kant sequer está se referindo especificamente a ações efetivas. Trata-se de ações “reais ou apenas ordenadas, isto é, objectiva e praticamente necessárias” (ibidem). Em segundo lugar, o próprio Kant estabelece que de “ações efetivamente fornecidas pela experiência enquanto eventos do mundo sensível, não podíamos esperar vir a encontrar pela frente esta conexão porque a causalidade pela liberdade deve sempre procurar-se fora do mundo sensível, no inteligível” (A 188). Neste ponto, Kant volta a estabelecer que o facto não é perceptível ou observável, pois “fora dos seres sensíveis, nenhumas outras coisas nos são dadas à percepção e à observação” (ibidem). No entanto, a consciência da lei moral é algo perceptível3. Mesmo que levemos em conta que Kant, por vezes, fale em consciência a priori, é dele próprio a seguinte afirmação: “Que esta idéia [a idéia de um puro mundo inteligível, cujo equivalente deve existir no mundo

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sensível – AF] serve realmente [...] de modelo às determinações da nossa vontade é o que confirma a mais comum observação de si mesmo” (A 75, grifo meu). Kant exemplifica a situação dizendo que “quando a máxima, segundo a qual tenciono dar um testemunho, é examinada pela razão prática, procuro sempre como ela seria, se tivesse o valor de uma lei natural universal” (ibidem). Se esta é uma explicação do facto da razão, então o facto observável de eu adotar um procedimento viria a substituir uma justificativa para esse procedimento? O que procuramos é uma resposta à pergunta: por que vige a lei moral? Kant estaria oferecendo então, no lugar de uma fundamentação da moral, a constatação de que as pessoas de fato fazem juízos morais, o que é observável? Voltando à passagem que analisávamos há pouco, parece ser esse o caso. Kant afirma que “nada mais restava senão encontrar um princípio de causalidade inconstestável” (A 188). Mais uma vez, o uso do termo “facto” parece encontrar justificativa na suposta impossibilidade de que a dúvida seja lançada sobre o princípio. Mas como uma proposição sintética pode ser evidente por si mesma? Como uma proposição discursiva pode não estar sujeita à contestação? Mais uma vez, a resposta parece consistir em um apelo ao senso comum: “Este princípio, porém, não precisa de procura e de descoberta alguma; esteve desde há muito na razão de todos os homens e incorporado na sua natureza, é o princípio da moralidade” (A 188). Como Kant completa a passagem dizendo que “assim nos foi dada a realidade do mundo inteligível, sem dúvida, sob o aspecto prático” (A 188-9); parece evidente que o princípio que rege o juízo moral comum é dado simplesmente como incontestável, sendo abandonada, sem maiores explicações, a hipótese dele ser só um “fantasma do cérebro”. Sem contar que, dizer que o princípio “esteve desde há muito na razão de todos os homens”, isto é, tem-se consciência dele há muito, parece significar que, empiricamente, é verificável que há muito os homens fazem juízos morais. No fim das contas, contra toda a precaução de Kant, resolver-se-ia um problema a priori por uma dedução empírica baseada na constatação de que fazemos juízos morais. A doutrina do facto da razão não parece se tornar inteligível de outra maneira. Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 271 - 284, out. 2007

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Se há advertências textuais contra esse tipo de leitura, também há abonos a favor. Além do que já vimos, há, por exemplo: “O Facto anteriormente mencionado é inegável. Basta apenas analisar o juízo que os homens proferem acerca da conformidade das suas ações à lei: descobrir-se-á sempre [...] que a sua razão [...] confronta em qualquer altura a máxima da vontade numa ação com a vontade pura” (A 56). O sustentáculo da demonstração de Kant é ainda mais claro nesta passagem: “que a razão pura [...] seja também prática por si mesma apenas, eis o que era preciso poder demonstrar-se a partir do uso prático mais comum da razão, ao confirmar-se que o princípio prático supremo é um princípio que toda a razão humana natural reconhece como inteiramente a priori [...] e como lei suprema da sua vontade” (A 163). Há mesmo certa insistência da parte de Kant na suficiência do apelo ao juízo comum dos homens em contrapartida a uma fundamentação filosófica do princípio moral: “a razão pura prática deve necessariamente começar por princípios que devem estabelecerse como fundamento de toda a ciência enquanto dados primeiros, e não devem dela derivar” (A 163-4). Aqui está dito claramente que não é a ciência que estabelece seus próprios primeiros princípios em questões da razão pura prática. Na seqüência, é dito que a ciência vai buscar no senso comum tais princípios: “Esta justificação dos princípios morais enquanto princípios de uma razão pura pôde, porém, levar-se a cabo muito bem e com suficiente segurança, mediante apenas o apelo ao juízo do comum entendimento humano” (A 164). Se já tínhamos dificuldades suficientes até aqui, devido à suspeita de uma incoerência entre as advertências de Kant para a interpretação da doutrina e seu procedimento efetivo, encontramos mais algumas quando nos deparamos com o seguinte subtítulo: “Da dedução dos princípios da razão pura prática” (A 72). Por si só, este título já dá ensejo a questões, como é evidente. Como negar que a lei moral seja passível de dedução, oferecer a doutrina do facto da razão justamente no contexto dessa negação, e, todavia, intitular uma seção como “Dedução”? No princípio da seção, Kant já mostra que, ao contrário do que possa sugerir o título, não haverá divergência quanto ao que já

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dissemos sobre a doutrina do facto da razão: “Esta analítica mostra que a razão pura pode ser prática [...] e mostra isso mediante um facto em que a razão pura se evidencia efetivamente em nós como prática” (A 72). Em detrimento do título, o que temos é novamente o facto. Mais do que isso, em vez de trazer uma dedução, a seção parece dar um passo atrás em relação à Fundamentação e mostrar que Kant agora se contenta com a mera defesa da moralidade levada a cabo na primeira Crítica: “não pode explicar-se mais como é possível esta consciência das leis morais ou, o que é a mesma coisa, a da liberdade, somente pode defender-se a sua admissibilidade na crítica teórica” (A 79-80). A tarefa filosófica por excelência, no que diz respeito à moral, parece se resumir então a essa defesa teórica, que demonstra a compatibilidade entre natureza e liberdade, e à exposição da fórmula do princípio, que aconteceu nas duas primeiras seções da Fundamentação e foi retomada nos §§ 1-6 da Crítica da Razão Prática: A exposição do princípio supremo da razão prática está, pois, terminada [...]. Com a dedução, isto é, a justificação da sua validade objetiva e universal, e com o discernimento da possibilidade de uma tal proposição sintética a priori, não é de esperar haver-se tão bem como aconteceu com os princípios do puro entendimento teórico (A 80).

Como Kant igualou dedução, justificação da validade objetiva de uma proposição sintética a priori e discernimento de sua possibilidade, fazendo uma comparação com o argumento em prol dos princípios do entendimento, só pode estar se referindo a impossibilidade de uma dedução “transcendental” da lei moral, como a oferecida na Fundamentação (cf. Faggion/ 2002).Contra esta conclusão, talvez alguém possa se lembrar da seguinte passagem: “o sistema pressupõe a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, mas só enquanto esta trava conhecimento provisório com o princípio do dever e indica e justifica [rechtfertigt] uma sua fórmula determinada” (A 13-4). Sendo dito que o sistema pressupõe a Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 271 - 284, out. 2007

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justificação da fórmula obtida na Fundamentação, poderíamos entender que pressupõe a dedução da III seção também. Porém, como Kant introduz uma restrição ao conteúdo da Fundamentação pressuposto e como não seria sensato pensar que algo das duas primeiras seções tenha sido rejeitado, podemos suspeitar que a III seção seja o ponto abandonado. Dessa maneira, o termo “rechtfertigt” poderia ser traduzido por “explica”. Se Kant quisesse dizer que o sistema pressupõe tanta a formulação do princípio quanto a justificação da fórmula, ele teria dito que o sistema pressupõe a Fundamentação e ponto final. De qualquer forma, o mais definitivo é que não parece haver como conciliar a passagem que estávamos analisando com a III seção. Voltemos então a essa passagem. Para entender por que não pode haver uma dedução da lei moral, ou seja, o que mudou na posição de Kant em relação à Fundamentação, a explicação sumária do procedimento de prova da primeira Crítica que Kant nos oferece é útil: “estes [os princípios do entendimento – AF] referiam-se a objetos de uma experiência possível, a saber, a fenômenos, e podia provar-se que esses fenômenos, só compreendidos sob as categorias em conformidade com essas leis [os princípios – AF], podem ser conhecidos como objetos da experiência, por conseguinte, toda a experiência possível deve ser conforme a essas leis” (A 80). Por certo, Kant resumiu seu argumento em prol dos princípios do entendimento e das categorias a ponto de se sujeitar à objeção mais trivial de um cético: onde está a prova da necessidade do conhecimento objetivo ou da experiência possível? Todavia, o que importa a Kant neste ponto é que as meras representações empíricas, o dado que constitui o ponto de apoio da dedução teórica, não depende do reconhecimento prévio da verdade dos princípios do entendimento ou da realidade objetiva das categorias. É um equivalente desse dado que Kant não encontra na filosofia moral: “Mas, com a dedução da lei moral, não posso empreender um tal trajeto. Ela não concerne, pois, ao conhecimento da natureza dos objetos, que podem ser fornecidos à razão de uma outra maneira qualquer, mas a um conhecimento que pode ser o fundamento da existência dos próprios objetos” (A 80, grifo meu).

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Kant se refere a uma diferença entre a filosofia teórica e a filosofia prática que é apontada de maneira recorrente em seu texto: “eles [os conceitos práticos – AF] produzem por si mesmos a realidade daquilo a que se referem (a disposição da vontade) – o que não sucede com os conceitos teóricos” (A 116, cf. também A 160). De fato, a disposição moral é produzida pelo reconhecimento da lei moral e, na medida em que depende do reconhecimento do princípio que está para ser provado, não pode ser usada como um dado em uma prova da legitimidade do princípio nos moldes da dedução transcendental, pois tornaria o argumento circular. Todavia, não há uma prova explícita no texto de Kant de que, em princípio, não pode haver um dado que poderia ser considerado como tal independentemente do reconhecimento do princípio moral, e, ainda assim, seria condicionado pela validade desse princípio, permitindo a inferência para ele. Kant fecha o caminho para uma dedução, parecendo reconhecer supostos defeitos lógicos da III seção da Fundamentação e generalizando-os para toda e qualquer tentativa de dedução. Oferecenos então, no lugar de uma dedução, uma obscura e, talvez, incoerente doutrina. A partir deste ponto, passo a analisar uma interpretação que procura expor o facto da razão como uma doutrina digna de um filósofo crítico, portanto, capaz de substituir a dedução transcendental. AS EXIGÊNCIAS DA FILOSOFIA CRÍTICA Não é difícil compreendermos a razão de todas as dificuldades suscitadas pela doutrina, quando examinamos em que medida o recurso ao facto da razão significa um abandono da filosofia crítica. A Crítica da Razão Pura é taxativa em suas exigências: “Não podemos servirnos com segurança de um conceito a priori se não tivermos efetuado a sua dedução transcendental [...] para que tenham algum valor objetivo, por indeterminado que seja, [...] tem de ser de qualquer modo possível a sua dedução” (A 669-70, B 697-8). A mesma obra também nos ensina que: “nunca lhe é permitido [à filosofia – AF] impor os seus princípios a priori tão absolutamente, mas deve aplicar-se a justificar a autoridade desses princípios [...] graças a uma dedução sólida” (A 733-4, B 761-2, grifos meus). Temos uma

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passagem ainda mais enfática: “postular significa dar uma proposição por imediatamente certa, sem justificação nem prova; se as proposições sintéticas, por mais evidentes que sejam, se devessem admitir sem dedução e apenas em virtude da sua exigência a uma adesão incondicionada, seria a falência de toda a crítica do entendimento” (A 233, B 285, grifos meus). Poder-se-ia argumentar que tais teses só têm validade no âmbito da filosofia teórica. Mas como não nos lembraríamos do facto da razão lendo a última passagem da primeira Crítica citada? A comparação é inevitável quando a segunda Crítica nos diz que: “a realidade objetiva da lei moral não pode ser demonstrada por nenhuma dedução, nem por todo o esforço da razão teórica [...] e, apesar de tudo, mantém-se firme por si mesma” (A 81-2). Também vimos as aproximações que Kant faz nesta obra entre a doutrina do facto da razão e o conhecimento moral comum. Sendo assim, ficamos mais convencidos de que Kant possa estar recuando em relação à primeira Crítica quando lemos a continuação da última passagem citada desta obra: “como não faltam pretensões atrevidas, de que não está isenta a crença comum (que não é todavia uma credencial), é inegável que o nosso entendimento [sem a dedução – AF] estaria exposto a todas as opiniões, sem poder recusar-se a admitir enunciados que, embora ilegítimos, reclamam ser admitidos com o mesmo tom de segurança de verdadeiros axiomas” (A 233, B 285). Ainda neste sentido temos uma passagem dos Prolegômenos: É um subterfúgio habitual, de que costumam servir-se os falsos amigos do senso comum (que ocasionalmente o celebram, mas de ordinário o desprezam), dizer: No fim das contas, é preciso que haja algumas proposições que são imediatamente certas, acerca das quais não seja preciso fornecer nenhuma prova, mas também nenhuma justificação, porque, de outro modo, nunca se poria fim aos motivos dos seus juízos; mas, para prova deste direito, nunca podem aduzir (fora do princípio de contradição, que não é suficiente para demonstrar a verdade de juízos sintéticos) como algo indubitável, que

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possam atribuir imediatamente ao sentido comum, senão proposições matemáticas (A 198, grifos meus).

Por mais que haja diferenças marcadas na segunda Crítica entre o conhecimento teórico (foco da primeira) e o conhecimento prático, nenhuma especificidade do conhecimento prático trouxe uma explicação clara e filosoficamente convincente da necessidade de atribuirmos ao princípio maior desse conhecimento, uma proposição sintética e discursiva, uma validade indubitável que o separa de “pretensões atrevidas”, contra as quais a primeira Crítica trazia como único antídoto a dedução transcendental. A conclusão que parece se impor é que o Kant crítico teria que ver com desprezo o Kant do facto da razão, tão simpático ao senso comum e tão avesso a uma dedução. NOTAS EXPLICATIVAS 1

“A liberdade e a lei prática incondicionada referem-se, pois, uma à outra” (A 52). 2

“Este facto está indissoluvelmente ligado à consciência da liberdade da vontade [...] até mesmo se confunde com ela” (A 72). 3

“a razão pura pode por si mesma ser prática e realmente o é, como o demonstra a consciência da lei moral” (A 218, grifo meu).

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A AMPLIAÇÃO APELIANA DO CONCEITO DE RESPONSABILIDADE E O PROBLEMA DA JUSTIFICAÇÃO ÉTICA DA COERÇÃO PELO ESTADO DE DIREITO Angelo Vitório Cenci* Resumo No final da década de 90, em Auflösung der Diskursethik?, KarlOtto Apel defende que o problema da complementaridade do princípio moral ideal do discurso tem de ser tratado como o problema de uma complementação dos princípios da ação moralmente responsável de pessoas. Ele reconhece que anteriormente (décadas de 70 e 80) não o tratara considerando a esfera das instituições, mas como uma questão da ação moral levada adiante entre pessoas. O problema ficava, então, circunscrito à mediação entre a racionalidade comunicativa e a racionalidade estratégica. Esse é o prisma com base no qual formulou na década de 80 seu princípio de complementação (C) enquanto mediação entre racionalidade consensual-comunicativa e racionalidade estratégica e como princípio de uma estratégia teleológico-moral pensada a longo prazo e orientado pelo princípio da moral ideal do discurso. Apel julga que essa abordagem do princípio de complementação relativa à ação moral entre pessoas acerca das conseqüências das ações é ainda justificada e necessária, mas acrescenta a ela agora a referência às instituições. Deste modo, opera uma ampliação do seu conceito ético-discursivo de responsabilidade e vincula a ela – como um de seus aspectos – a problemática da justificação ética da coerção pelo estado de direito. No caso da justificação ética da coerção jurídica, não se trata, como é o caso do político, da aplicação responsável da ação de “coação antiviolência” do indivíduo que tem de responder por um sistema de auto-afirmação. Trata-se, antes, de legitimar um poder de coerção pública, o qual tem em vista desonerar o indivíduo no que diz respeito à aplicação de violência, a qual pode ser moralmente responsabilizada. Desse modo, *

Doutor em filosofia pela UNICAMP/SP e professor da Universidade de Passo Fundo/RS. Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 285 - 300, out. 2007

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a conquista relevante do Estado de direito não se restringe apenas à garantia da paz, mas se refere, sobretudo, à necessidade política de o Estado estabelecer, no lugar do indivíduo, uma mediação responsável de comportamento consensual, moral e estratégico. Palavras-chave Ética da responsabilidade, Ética do discurso, Princípio moral, Coerção, Estado de direito Abstract By the end of the 1990’s, in Auflösung der Diskursethik?, KarlOtto Apel argued that the problem of the complementarity of the ideal moral principle of discourse must be addressed as the problem of a complementation of the principles of peoples’ morally responsible actions. He recognizes that earlier (in the 70’s and 80’s) he had not addressed it within the sphere of institutions, but rather as an issue of moral action carried out among people. The problem was, thus, restricted to the mediation between communicative rationality and strategic rationality. This is the scope upon which he formulated, in the 1980’s, his principle of complementation (C) as the mediation between consensual-communicative rationality and strategic rationality and as the principle of a teleological-moral strategy conceived in the long term and guided by the principle of the ideal moral of discourse. Apel believes that such approach to the principle of complementation related to the moral action among people regarding the consequences of actions is still justified and necessary, but now he adds to it the reference to institutions. Thus, he amplifies his ethical-discursive concept of responsibility and links to it – as one of its aspects – the problematic of the ethical justification of coercion by the Rechtsstaat. In the case of the ethical justification of juridical coercion, it does not apply, as it is the case of the political one, to the responsible application of the action of “anti-violence co action” of the individual that must respond for a system of self-affirmation. It is, instead, a matter of legitimizing a power of public coercion, which is aimed at exonerating the individual concerning the application of violence, which can be made morally responsible. Thus, the relevant achievement of the Rechtsstaat is not restricted only to the warranty of peace, but it

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refers, above all, to the State’s political need to establish, instead of the individual’s, a responsible mediation of consensual, moral and strategic behavior. INTRODUÇÃO A relação da ética do discurso apeliana com o direito é tematizada a partir da formulação da arquitetônica das partes A e B da ética e de sua posterior ampliação. O conceito de coresponsabilidade – introduzido ao lado de outras normas morais fundamentais na parte A da fundamentação da ética – coloca a exigência de complementação da parte A por princípios institucionais e sistemas sociais funcionais. Com a ampliação pragamáticotranscendental do programa de sua ética discursiva na década de 90 Apel opera, a um tempo, uma ampliação do conceito tradicional de responsabilidade e um aprofundamento de uma das dimensões fundamentais da parte B de sua ética, a saber, a relação com o direito. O direito, assim como ocorre com as demais instituições e sistemas sociais funcionais, é tematizado à luz da parte B da ética e a partir da consideração de que possui uma função de complementaridade em relação à moral ideal do discurso. Esse modo de situar o direito incluirá o esforço de dar conta de uma justificação normativa do caráter coercivo das normas jurídicas e da obrigatoriedade destas.

1. UM CONCEITO AMPLIADO DE RESPONSABILIDADE: A CO-RESPONSABILIDADE REFERIDA À HISTÓRIA Em Auflösung der Diskursethik? (1998) Apel observa que o problema da complementaridade do princípio moral ideal do discurso tem de ser tratado como o problema de uma complementação dos princípios da ação moralmente responsável de pessoas. Ele reconhece que anteriormente, sobretudo em Das Apriori der Kommunicationsgemeinschaft und die Grundlagen der Ethik (1973), não o tematizara considerando a esfera das instituições, mas como uma questão da ação moral levada adiante entre pessoas. O problema ficava então circunscrito à mediação entre a racionalidade comunicativa e a racionalidade estratégica. Esse é o prisma com base Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 285 - 300, out. 2007

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no qual Apel formulou também, na década de 80, seu princípio de complementação (C) enquanto mediação entre racionalidade consensual-comunicativa e racionalidade estratégica e como princípio de uma estratégia teleológico-moral pensada a longo prazo.1 Na década de 1990 julga que essa abordagem do princípio de complementação relativa à ação moral entre pessoas acerca das conseqüências das ações é ainda justificada e necessária, mas acrescenta-lhe agora de modo mais claro a referência às instituições.2 Apel entende que a ação responsável do indivíduo sempre mantém perante as instituições – como é o caso do Estado de direito – um espaço em aberto para a ponderação de decisões da consciência moral. Ocorre que o não-funcionamento das instituições do Estado de direito pode indicar a necessidade de um “desvio” da ação responsável em relação à norma válida em (U). (Apel, 1998, p.802) A seu juízo, esse é o caso também da política externa, dado que até hoje ainda não se estabeleceu uma ordem jurídica efetiva em âmbito internacional. Isso indica para a necessidade de dar-se atenção à relação existente entre a ação imputável, possível de ser esperada dos sujeitos, e a institucionalização do Estado de direito. Dependendo do funcionamento ou não do Estado de direito essa relação pode levar tanto a uma desobrigação do indivíduo em relação a situações de ação quanto ao desafio de assumir efetivamente a responsabilidade pessoal recíproca diante delas. Apel busca contemplar, inspirado em Max Weber, duas inovações em relação à problemática tradicional da ética da responsabilidade. A primeira delas é a necessidade de postular uma ética que vá além da responsabilidade pessoal acerca das conseqüências das ações, uma vez que já são sempre mediadas por instituições. Isso ocorre em razão de que os sujeitos envolvidos em interações pertencem já a determinadas comunidades sociais e, também, em razão de que existem normas e responsabilidades que são especificamente profissionais. No entanto, isso não significa que a ética do discurso se limitaria às instituições ou que ela somente poderia se desenvolver concomitante às instituições. Acima do nível das instituições existe um outro nível, o qual se constitui no âmbito próprio da ética da comunidade ideal de comunicação. Essa esfera deve ser levada adiante de modo a não ser reduzida a consensos

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factuais em determinadas instituições democráticas. Nesse aspecto a ética do discurso pretende ampliar e aprofundar o seu princípio de complementação (C), o qual deve contemplar, agora, de modo primordial, a relação entre a ação pessoal e as instituições. Nesse sentido, Apel observa que o aprofundamento e a ampliação da explicação do princípio primordial do discurso e do princípio da ética da responsabilidade estão numa relação de reconstrução com a abordagem levada adiante no seu programa original da ética do discurso de 1973. Neste, havia sido proposto um a priori dialético de entrecruzamento, o qual se referia à pertença de todo argumentante a uma comunidade real e a uma comunidade ideal de comunicação. Essa relação de reconstrução da abordagem original, desenvolvida agora sob o prisma da ética do discurso como ética da responsabilidade em sentido ampliado, ou seja, referida à história e à instituição, toma como ponto de partida a convicção de que a ação moral de pessoas é sempre mediada institucionalmente (a priori da facticidade). Porém, ao mesmo tempo, a exigência da antecipação contrafática das condições ideais da realização da moral do discurso (no sentido de U) implica um compromisso permanente orientado para o futuro, qual seja, o da transformação das atuais condições institucionais da ação. O a priori dialético implica tanto a realização da moral ideal do discurso no sentido de (U) quanto a permanente obrigação orientada ao futuro em transformar as condições institucionais da ação que atualmente se apresentam como incompatíveis com tal realização. A dimensão teleológica agora vinculada à ética da responsabilidade referida à história e à instituição é uma conseqüência derivada do entrecruzamento dialético dos a priori da facticidade e da idealidade. Esta dimensão teleológica é conseqüência também do telos do entendimento inerente à linguagem humana (Habermas), uma vez que sempre que o princípio da moral ideal do discurso (U) não puder ser aplicado responsavelmente esse telos não poderá ser alcançado no mundo real. Nesse sentido, a ética do discurso tem de abarcar a teleologia de uma ética da responsabilidade referida à transformação das condições institucionais de ação incompatíveis com a realização da moral do discurso no sentido de (U) (Apel, 1998, p.807). Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 285 - 300, out. 2007

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Apel introduz ainda uma segunda inovação em relação à problemática tradicional da ética da responsabilidade. Para ele, não é mais possível a ética limitar-se apenas a um conceito de responsabilidade imputável de modo individual em relação às conseqüências das ações. Para ir além dessa posição é necessário tratar da seguinte questão: “Como será possível (...) imputar pessoalmente a ´responsabilidade global do ser humano` pelas conseqüências e efeitos colaterais, cada vez mais graves, das ações coletivas na atualidade, decorrentes de atividades permanentes como as da ciência, da técnica e da economia?” (Apel, 1998, p.807-8). A ética do discurso quer chamar a atenção para a necessidade de um conceito mais abrangente de responsabilidade que alcance um âmbito pós-convencional nos termos de uma macroética da humanidade. Apel não acredita na possibilidade de que tal conceito possa ser fundamentado de modo empírico nem que o modelo de Kant seja suficiente para dar conta de tal proposta. A seu juízo, mediante o modelo de Kant seria possível fundamentar a responsabilidade dos sujeitos morais para a observância do imperativo categórico, mas não a co-responsabilidade primordial de todas as pessoas em relação à organização e as conseqüências de ações e atividades coletivas da humanidade (Apel, 1998, p.809). A pragmática transcendental procura contemplar tanto o igual direito de todos os possíveis parceiros de argumentação como a coresponsabilidade não imputável individualmente dos sujeitos que se encontram numa relação de reciprocidade solidária, bem como a busca de uma solução argumentativa a todos os problemas do mundo da vida. Quem tentasse negar essa busca não poderia afirmar nada nem levantar questão alguma aos parceiros do discurso sem se envolver numa auto-contradição performativa. Desse modo, lida à luz do conceito de co-responsabilidade primordial, a norma da coresponsabilidade simétrica de todos os possíveis parceiros do discurso complementa a norma da igualdade de direitos.3 Nesse caso, a coresponsabilidade é o que garante a relação do princípio moral primordial à função de aplicação do princípio do discurso no mundo da vida. Diferentemente do que ocorre na ética tradicional, a coresponsabilidade primordial de todos os sujeitos humanos não está vinculada somente à imputabilidade individual de pessoas e demandará

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uma dimensão contrafática. É precisamente na imputabilidade não imputável empiricamente que reside a possível relação entre a coresponsabilidade primordial e as conseqüências e efeitos colaterais das ações coletivas e das atividades humanas. Esse conceito de coresponsabilidade deve ser relacionado também ao estabelecimento, à manutenção e à transformação das instituições sociais. Uma de suas funções precípuas é cumprida justamente mediante a colaboração de todos os sujeitos no que diz respeito à responsabilidade imputável pessoalmente no sentido das instituições (Apel 1998, p.811). 2. A RELAÇÃO DA ÉTICA DO DISCURSO COM O DIREITO E O PROBLEMA DA JUSTIFICAÇÃO ÉTICA DA COERÇÃO DO ESTADO DE DIREITO Apel procura, mediante sua estratégia pragmáticotranscendental de ampliação da ética do discurso e de vinculação do problema da responsabilidade às instituições, fundamentar em sentido pós-convencional a complementaridade do princípio moral ideal do discurso por princípios institucionais. A seu juízo, as instituições e sistemas sociais funcionais, como é o caso tanto do direito quanto das instituições do poder político e da economia de mercado, precisam ser considerados à luz da parte B da ética e em termos de ética da responsabilidade. Ele avalia que as diferentes instituições e sistemas sociais possuem diversas funções de complementaridade em relação à moral ideal do discurso. É situado na parte B como instituição que exerce função de complementaridade à moral ideal do discurso – em razão de que as normas válidas em (U) nem sempre podem ser válidas para a observância de modo responsável – que o direito exerce seu papel.4 Ocorre que, julga Apel, se fosse possível pressupor sempre uma situação em que as normas morais válidas em U fossem válidas simultaneamente a serem observadas no sentido da responsabilidade recíproca, já não haveria a necessidade do direito. Como esse não é o caso, para que a validade das normas do direito vigore e se imponha, a autoridade e eficiência destas na ação dever-se-á a um poder de Estado sustentado no monopólio da força. A função exercida pelo monopólio legítimo da força pelo estado de direito deve desfazer a ilusão anarquista de um possível estado livre de dominação ou de Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 285 - 300, out. 2007

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abolição do próprio estado uma vez que é precisamente tal função o que viabiliza aos cidadãos sua proteção das estratégias de violência contra-violência (Apel, 2007a, p.157). A fundamentação da exigência de uma complementação do princípio moral ideal do discurso pelo direito corresponde, para Apel, a uma exigência colocada pelo princípio moral de uma ética da responsabilidade referida à história. Nesse sentido, o direito é considerado como instrumento da parte B da ética, uma vez que reúne condições tanto de compensar a insuficiência do princípio da moral ideal, quanto de reduzi-la. Essa possibilidade de redução da insuficiência de (U) ocorre em razão da capacidade do direito em desonerar as pessoas do denominado “comportamento estratégico de contra-estratégia” no sentido de uma “responsabilidade empírica de reciprocidade” (Apel, 1998, p.815). É evidente, no entanto, que o Estado de direito não pode basear-se somente na coerção jurídica. É preciso supor que os cidadãos possuam também um senso de justiça. Além do seu caráter coativo, as normas jurídicas precisam ter condições de serem reconhecidas como moralmente fundamentadas. Do mesmo modo que Habermas, Apel concorda com o fato de que em qualquer democracia a fundamentação de normas jurídicas não pode estar calcada apenas sobre o poder do Estado em geral. Tal fundamentação deve, antes, alicerçar-se sobre o poder comunicativo, ou seja, sobre procedimentos discursivos. Todavia, de modo diferente de Habermas, Apel não partilha da opinião de que esse problema possa ser solucionado de modo paralelo à fundamentação da moral, ou seja, a partir de um princípio do discurso moralmente neutro. Ao contrário, ele deve ser resolvido baseado num princípio do discurso que tenha teor moral, o qual, enquanto princípio de uma ética da co-responsabilidade primordial, deve reunir condições de justificar de modo normativo a vinculação do direito à moral ideal do discurso. A validade e a imputabilidade do direito baseiam-se, pois, tanto na coerção vinculada às normas jurídicas pelo poder de sanção próprio do Estado de direito quanto no reconhecimento moralmente fundamentável das normas jurídicas pelos cidadãos. Isso indica para a impossibilidade de se fundamentar um Estado de direito unicamente em torno da pressuposição do ideal de uma comunicação livre da

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dominação. O Estado de direito, argumenta Apel, deve colocar o “monopólio da violência à serviço de normas relativas a uma ação exteriormente previsível” (2001, p.75). Por essa razão, faz-se necessário fundamentar normas capazes de obter um consenso entre os cidadãos, mas ao mesmo tempo em condições – em razão da própria forma das normas jurídicas – de remeterem à autoridade de um estado definido a qual se apóia também sobre a força. A questão, então, é como é possível justificar ética e discursivamente a coerção das normas jurídicas diante da suspeita de que tal expectativa de justificação poderia resultar numa “autonegação” da ética do discurso. Em outros termos, tal justificação poderia gerar a suspeita da negação do próprio princípio procedimental da ética discursiva. Trata-se, então, de averiguar de que modo o princípio do discurso pode restringir-se em prol do reconhecimento da coação advinda do direito. Como não seria plausível supor que fora do discurso ideal toda a convivência humana poderia ser regrada sem coação, a questão acerca de em que medida a permissão para aplicar a coação seria fundamentada eticamente é tratada do seguinte modo: “em situações estrategicamente distorcidas de interação (...) poderia ser moralmente indicado aplicar coação aberta ou velada (...) como coação antiviolência e, respectivamente, como contraestratégia de estratégia” (Apel, 1993, p.46). O estabelecimento do poder de sanção do Estado de direito representa, segundo Apel, a conquista mais eficiente já obtida no âmbito da história mundial no sentido da coação política e para que a antiviolência venha a se tornar potencialmente desnecessária ou restringida. A permissão para a aplicação da coação é justificável eticamente em situações onde não houver condições de consenso imediato – ou seja, entre os parceiros reais de interação –, mas que poderia haver para os membros contrafactualmente pressupostos numa comunidade ideal de comunicação. Tais situações são aquelas em que é cumprida a condição para o exercício de coação antiviolência e também as condições para ocorrer a longo prazo a aplicação de procedimentos exclusivamente discursivos para a solução de conflitos (Apel, 1993, p.46). A ética do discurso tem de justificar num discurso livre de coação a prerrogativa de coerção do estado de direito, prerrogativa Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 285 - 300, out. 2007

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esta vinculada ao âmbito da validade de normas jurídicas. Para dar conta dessa questão Apel recorre à distinção entre as partes A e B da ética. A ampliação da arquitetônica da fundamentação última da ética do discurso decorre do reconhecimento da denominada estrutura pragmático-transcendental de entrecruzamento do a priori da comunidade real e da comunidade ideal de comunicação. A ética do discurso não procede, pois, somente da comunidade ideal de comunicação antecipada contrafaticamente, mas também do a priori da faticidade da comunidade real de comunicação, ou seja, de uma forma sociocultural de vida. Ela indica que, enquanto argumentantes, temos sempre que ponderar tanto as pressuposições de um discurso ideal – e isso implica as normas básicas de uma comunidade de comunicação antecipada contrafaticamente – quanto considerar a diferença existente entre as condições de tal discurso e as condições reais de discurso e interação de uma comunidade real de comunicação. Por conseguinte, por um lado há que se reconhecer as normas de formação de consenso sem coação e, por outro, a co-responsabilidade diante da resolução de tarefas relativas a práticas políticas resultantes da impossibilidade de responsabilização em relação às normas ideais de formação de consenso em situações de comunicação distorcidas por coação (Apel, 1993, p.56-57). A parte B de fundamentação da ética do discurso auxilia Apel em seu esforço de justificação normativa da coerção mediante as normas jurídicas. A seu juízo, assim como ocorre no caso da ampliação da ética do discurso em direção a uma ética da responsabilidade, também no caso da fundamentação da validade da coerção de normas jurídicas faz-se necessário uma auto-restrição do princípio do discurso. Tal restrição, aparentemente paradoxal, é levada adiante com o propósito de estabelecer uma mediação eficiente entre a formação não-coativa de consenso e a coação “contra-estratégica de estratégia”, coação esta que deve pretender, ela própria, ser ainda capaz de consenso (Apel, 1993, p.58). A mediação responsável entre moralidade e precaução estratégica – entendida como exigência moral – tem de ser capaz de consenso contrafático. Se o consenso não for necessariamente possível para os contraentes reais, deveria sê-lo para os membros contrafaticamente supostos de uma comunidade ideal de comunicação. Não se trata aqui de revogar a parte A da ética do

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discurso, mas de complementar ou de qualificar o princípio da formação de consenso no âmbito de uma ética da responsabilidade. Vale aqui a regra de mediação, própria de uma ética discursiva da responsabilidade, a qual indica que se empenhe tantos esforços prévios – no sentido do entendimento livre de estratégia para solução de conflitos – quanto possível e tantas reservas estratégicas – baseadas numa avaliação responsável de riscos – quanto necessário.5 Trata-se, no que diz respeito à relação da ética do discurso com o direito positivo, de uma implementação da parte B da ética. Nesse particular, as exigências colocadas pela parte A em relação à fundamentação de normas materiais, mediante discursos livres de coação, estão sujeitas a uma modificação em razão das coações funcionais próprias do direito como sistema social funcional. No caso do direito, suas coações funcionais permitem uma desoneração e uma liberação da parte A da ética. À juízo de Apel, a ajuda externa mais importante para a produção das condições de aplicação da ética do discurso advém do fato do direito positivo ter se diferenciado da moral. O estado de direito auxilia a compensar as coações funcionais da motivação empírica mediante particularidades estruturais, as quais são problemáticas do ponto de vista de uma moralidade pura como é o caso da parte A da ética. Porém, do mesmo modo que ocorre com a política, a relação da ética do discurso com o direito implica uma dupla relação de aplicação da responsabilidade moral. Por um lado, tem de se considerar as coações funcionais do sistema do direito como inevitáveis; por outro, faz-se necessário a crítica de tais coações (Apel, 2007a, p.158). No caso da justificação ética da coerção jurídica não se trata, como é o caso do político, da aplicação responsável da ação de “coação antiviolência” do indivíduo que tem de responder por um sistema de auto-afirmação. Trata-se, antes, de legitimar um poder de coerção pública, o qual tem em vista desonerar o indivíduo no que diz respeito à aplicação de violência, a qual pode ser moralmente responsabilizada. Desse modo, a conquista relevante do Estado de direito não se restringe apenas à garantia da paz, mas se refere, sobretudo, à necessidade política do Estado estabelecer, no lugar do indivíduo, uma “mediação responsável de comportamento consensual, moral e estratégico” (Apel, 1993, p.58). Por esse meio poder-se-ia chegar “à constituição Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 285 - 300, out. 2007

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recíproca do poder político do estado de Direito e do direito positivo, na base moral da capacidade de consenso desta solução do problema da contra-estratégia de estratégia, para todos os membros de uma comunidade ideal de comunicação de seres humanos co-responsáveis” (1993, p.58-9). O Estado de direito posicionar-se-ia, assim, entre a moral e a política como mediador responsável entre os dois. A justificação normativa e moral das prerrogativas da coerção por parte do Estado de direito só podem ser aplicadas, no entanto, sob a pressuposição de que ele funcione efetivamente. Apel reconhece que este é o caso típico da política interna das democracias desenvolvidas, mas não o da política externa vigente entre os estados. A seu juízo, continua a subsistir em importantes esferas do mundo da vida o conteúdo problemático da ética da responsabilidade política. Isso deve ocorrer em razão de que cada pessoa hoje é co-responsável – em termos de uma macro-ética planetária e pós-convencional, para além de todas as instituições e sistemas sociais já existentes – pelas conseqüências das atividades coletivas do seres humanos. Nesse sentido, todas as pessoas são co-responsáveis, por meios não violentos, pela promoção da institucionalização de uma ordem jurídica mundial, no sentido postulado por Kant. Para Apel, Kant teria razão em supor que a finalidade funcional do direito somente poderia ser efetivada de modo otimizado mediante uma ordem jurídica internacional e de paz. Na mesma linha, a ética do discurso deveria estar em condições de postular o estabelecimento de uma ordem jurídica dentro dos Estados nos termos de uma ordem de paz e de juridicidade de cidadania em escala mundial. NOTAS EXPLICATIVAS 1

O princípio de complementação (C) refere-se à ação política em sentido amplo, ou seja, ao sentido mediante o qual o sujeito tem de posicionar-se a favor de outras pessoas e onde a observância geral de uma norma válida em (U) não pode ser simplesmente suposta. Apel exemplifica essa situação com o caso da transgressão da proibição de matar ou mentir em legítima defesa ou mesmo a situação de um pai de família que se encontra em necessidades e não consegue ou lhe é muito difícil solitariamente, em uma situação de corrupção generalizada, desistir de práticas como o suborno e a propina (1998, p.802).

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É nessa perspectiva que ele contesta a crítica de Habermas desenvolvida em Erläuterungen zur Diskursethik (1991, p.197) de que o princípio de complementação suporia uma espécie de rei dos filósofos, o qual deveria colocar o mundo em ordem. 3

A partir da década de 1980 Apel passa a falar em três normas morais fundamentais: justiça, igualdade de direitos e co-responsabilidade. No seu programa original de 1973 ele se refere apenas à norma moral fundamental, algo próximo à norma da igualdade de direitos (vide 1999, p.400). Essa referência a três normas morais fundamentais coincide com a ampliação de sua arquitetônica da ética do discurso a partir da metade da década de 80. 4

Apel concorda com Habermas que o direito precisa reunir condições de compensar determinados déficits da moral em razão de sua maior eficácia para a ação e que os sujeitos precisam ser aliviados em relação à justificação racional dos imperativos da moral. Sua discordância para com este reside nas razões utilizadas para justificar esse papel exercido pelo direito. A seu juízo, teria faltado a Habermas, em última instância, uma justificação normativa do caráter coercivo das normas jurídicas e da obrigatoriedade destas a partir da ética do discurso (Apel, 1993, p.44). 5

A esse respeito, Apel (1993, p.36; 2007b, p.91).

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A CONCEPÇÃO REPUBLICANA DE LIBERDADE COMO NÃO-DOMINAÇÃO César Augusto Ramos* Resumo Este artigo tem por objetivo apresentar duas maneiras de compreender a liberdade: a liberdade negativa do liberalismo, definida como a esfera do livre agir do indivíduo pela ausência de impedimentos externos indevidos, e a liberdade na concepção do republicanismo neo-romamo que se define como não-dominação. Esta última concepção necessita de determinadas condições para a sua concretização: a) a dimensão social do viver político do homem; b) o reconhecimento da legitimidade do direito da liberdade e da igualdade; c) a constituição de uma comunidade política como autogoverno dos cidadãos na criação de leis que efetivam a liberdade; d) a atuação política da cidadania como atribuição de virtudes cívicas. Pretende-se mostrar que o conceito republicanismo de liberdade, sem abandonar a conquista liberal da liberdade negativa, pode contribuir para uma efetiva ampliação e garantia dos princípios democráticos de uma sociedade moderna. Palavras-Chave Liberdade, liberalismo, republicanismo, não-dominação e cidadania. INTRODUÇÃO Constitui ponto assente na filosofia política a idéia de que a liberdade, pensada e vivida segundo o paradigma clássico da antiga Grécia como inclinação humana para a realização da virtude, e como atributo ético-político dos cidadãos para participar ativamente da vida pública da koinonia politiké com vistas à instauração e defesa de um bem comum, tornou-se um ideal de difícil realização para as sociedades modernas. Reguladas pelo princípio da autonomia individual e dos direitos subjetivos, estas sociedades subordinam a esfera pública *

Doutor em Filosofia pela Unicamp e Professor do Departamento de Filosofia da PUCPR Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 301 - 336, out. 2007

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- ainda que entendida como o espaço para a constituição e defesa dos interesses comunitários - aos proveitos dos indivíduos associados em torno da societas, instituída pelo contrato social, e cujo objetivo precípuo é a defesa da liberdade de cada indivíduo e a garantia dos seus direitos. A idéia de que o interesse privado deve buscar a sua proteção na esfera pública - donde resulta uma concepção de cidadania entendida, primordialmente, como o exercício da defesa e garantia dos direitos e das liberdades individuais – limita a dimensão política à noção da representação (indireta) dos cidadãos, os quais, em troca da estabilidade do poder e da paz, delegam ao Estado as ações políticas. O valor cívico do homem é depreciado em favor das formas privadas da existência social e econômica (como proprietário, produtor e consumidor de mercadorias) que se desenvolve na esfera da sociedade civil burguesa, na qual o homo politicus é substituído pelo homo economicus e socialis. A moral e as virtudes se particularizam e a liberdade tornase auto-referencial. O viver político deixa de ter importância. A dimensão pública, na qual a comunidade política promovia a constituição de uma concepção substancial da virtude e do bem, visando ao aperfeiçoamento do homem pela realização de fins políticos e morais, não mais constitui o objetivo último e supremo dos indivíduos. Com a valorização da vida privada, que tem por corolário a defesa dos direitos individuais mediante a instrumentalização do poder do Estado como mecanismo jurídico-político de proteção desses direitos, a dimensão política da liberdade torna-se secundária. Relegada à antiguidade, esta dimensão não é mais apropriada à vida nos novos tempos que inauguram a “liberdade dos modernos”, na expressão consagrada por B. Constant no seu ensaio Da liberdade antiga e comparada com a dos modernos (1819). O liberalismo clássico incorpora estas teses, disseminadas pelos filósofos do Direito Natural Moderno. Insiste, sobretudo, na idéia de que os indivíduos somente serão livres se eles forem sujeitos das suas escolhas e das suas decisões, definidas e decididas de modo a não sofrer a interferência arbitrária de outrem. Razão pela qual, a liberdade passa a ser chamada de negativa, isto é, o indivíduo é livre

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apenas na ausência (negação de impedimentos) de ações de terceiros que podem criar obstáculos indevidos à livre atividade dos sujeitos. Apesar da prevalência do conceito liberal de liberdade (negativa) na modernidade, e do viés jurídico da sua compreensão na teoria política do liberalismo, deficiências foram apontadas a este conceito, mormente aquelas que merecem respostas face às exigências de autonomia das sociedades democráticas modernas. A partir de uma análise mais abrangente que permite compreender a liberdade num sentido mais apropriado diante do fato concreto da dominação, a crítica do republicanismo neo-romano pretende corrigir e ampliar o conceito liberal de liberdade. Comentadores da tradição republicana como Q. Skinner (The Foundations of Modern Political Thought e Liberty before Liberalism), J.W. Maynor (Republicanism in the Modern World), M. Viroli (Republicanism) e, sobretudo, P. Pettit (Republicanism. A Theory of Freedom and Government), defendem a tese da liberdade como não-dominação, próxima do chamado republicanismo “neoromano”.1 Este é o modo como o republicanismo moderno pensa a liberdade, em contraste com o republicanismo cívico ou “neoateniense”, que vincula a liberdade ao organicismo político da comunidade, nela adquirindo o sentido de um bem comum substancial. Esta forma de republicanismo remonta à concepção grega do homem como animal político. Mesmo reconhecendo que a linguagem da não-dominação recua à tradição do antigo republicanismo, a vertente neo-romana sem abandonar o apelo ao autogoverno e à condição do homem como animal político - é mais sensível às demandas da moderna individualidade, destacando a criação de mecanismos institucionais que estimulam e preservam a liberdade individual intimamente ligada à liberdade da comunidade. Assim, a análise que esta forma de republicanismo oferece à liberdade não implica o abandono da liberdade individual - adequadamente postulada na acepção liberal da liberdade negativa como ausência de impedimentos – e não há uma adesão incondicional à chamada liberdade positiva, presente no ideário político dos antigos. Contudo, o republicanismo romano pretende mostrar que a liberdade individual e os direitos subjetivos necessitam

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do investimento político que a liberdade deve ter. Se os homens, de fato, desejam realizar o valor moderno da liberdade, cuja apreciação plena é possível apenas no viver político dos cidadãos na comunidade, o conceito de liberdade que o liberalismo propõe é insuficiente diante do fato concreto da dominação nas sociedades modernas. Destarte, a nossa análise tem por objetivo apresentar duas maneiras de compreender a liberdade: a liberdade negativa do liberalismo, definida como a esfera do livre agir do indivíduo pela ausência de impedimentos externos indevidos, norteando-se pelo paradigma jurídico dos direitos individuais (I); e a liberdade política do republicanismo que se define como não-dominação e orienta-se pelo paradigma das virtudes cívicas da cidadania (II). Como terceiro objetivo, sustentamos o ponto de vista de que a concepção republicana de liberdade necessita de determinados elementos ou condições para a sua concretização. Estes elementos são: a) a dimensão social do viver político do homem; b) o reconhecimento da legitimidade do direito da liberdade e da igualdade; c) a constituição de uma comunidade política como autogoverno dos cidadãos na criação de leis que efetivam a liberdade; d) a atuação política da cidadania como atribuição de virtudes cívicas (III). Por último, pretende-se mostrar que, na análise das duas concepções de liberdade, a escolha não se dá de forma disjuntiva entre a concepção republicanismo ou liberal de liberdade, negando, assim, o que cada concepção tem de essencial para a compreensão de um conceito mais amplo de liberdade e que possa contemplar os elementos necessários, acima indicados, para a sua concretização (IV). Pretende-se, desse modo, concluir que o conceito republicanismo de liberdade, sem abandonar a conquista liberal do pluralismo e da liberdade negativa, pode contribuir para uma efetiva ampliação e garantia dos princípios democráticos de uma sociedade moderna, uma vez que a oposição entre o ponto de vista jurídicoliberal e o republicanismo não está na aceitação ou na recusa da liberdade e dos direitos individuais. A escolha, portanto, não é definida de forma disjuntiva entre uma concepção de liberdade e outra. A divergência repousa, antes, sobre a maneira pela qual essa liberdade e os direitos podem ser fundamentados: se pela via do individualismo e subjetivismo que subordina a sociedade e o direito como instrumentos

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para a realização e proteção dos direitos individuais, ou pela via comunitarista e cívica.

I. A CONCEPÇÃO LIBERAL DE LIBERDADE (NEGATIVA) Esta concepção de liberdade foi, de início, representada como um direito racional da natureza humana. Ela é um princípio razoável a todos os homens que, submetidos à lei da liberdade, necessitam encontrar uma forma elementar e racional para a preservação da vida. Para Hobbes, a liberdade é o direito básico (jus naturale) que “cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e conseqüentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim.”2 A idéia hobbesiana da liberdade tem por base a concepção mecanicista do movimento de corpos, os quais são livres quando não encontram obstáculos exteriores. Aplicada às ações humanas, ela é definida como a “ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer...”. O indivíduo é livre quando está desimpedido de exercer o seu poder e as suas capacidades para alcançar os fins que deseja, realizando, assim, uma ação que tinha intenção de fazer sem impedimento externo3. A discussão liberal contemporânea sobre a liberdade retoma esse princípio hobbesiano, a despeito das controvérsias sobre o caráter liberal das concepções do autor do Levitã. No sentido negativo, a liberdade – na classifcação de I. Berlin4 - é compreendida como ausência de impedimentos. Ser livre significa não sofrer a interferência de outrem e fazer tudo aquilo que as leis permitem. Esta liberdade pressupõe um espaço de não ingerência, de ausência de impedimentos ou de obstáculos (por isso ela é chamada de negativa) para o exercício de ações que os indivíduos deliberadamente desejam realizar. No sentido positivo, a liberdade é compreendida como a capacidade de autodeterminação do indivíduo por meio da autonomia da vontade. Ela é positiva porque indica a presença de algo (a vontade autônoma) para que o indivíduo possa seguir seus desejos ou suas preferências racionais sobre como ele deve, livremente, viver.

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Gerald MacCallum Jr., no seu conhecido ensaio “Liberdade Negativa e Positiva”, alarga a concepção dualista de Berlin, afirmando que a liberdade deve ser compreendida por uma relação que indica uma tríade. Sempre que a liberdade de algum agente ou agentes está em questão, ela é sempre liberdade de algum constrangimento ou restrição, interferência ou barreira para fazer, não fazer, tornar-se ou não tornar-se algo. Tal liberdade é, portanto, sempre de alguém (um agente ou agentes), diante de algo, para fazer, não fazer, tornar-se ou não tornar-se algo; é sempre uma relação triádica. Tomando o formato ‘x é (ou não é) livre de y para fazer (ou não fazer, tornarse ou não tornar-se) z’; x indica os agentes, y abrange ‘condições impeditivas’ como constrangimentos, restrições, interferências e barreiras, e z enumera ações e condições de caráter ou circunstância. 5

Controvérsias acerca do sentido da liberdade devem envolver a disputa sobre o adequado arranjo destas três variáveis: x, y e z. Com efeito, os críticos da concepção dualista procuram destacar, além da ausência das condições impeditivas ou conjunto de restrições para a ação livre, a presença do sujeito e as circunstâncias para a realização da liberdade. O elemento da ação do agente é levado em conta sem fazer referência à liberdade positiva, revelada pela autonomia da sua vontade. Assim, a dimensão da liberdade negativa é aprimorada mediante especificação de dois outros elementos da relação triádica: a ausência de impedimentos (constrangimentos, restrições, interferências, barreiras) e a ação de alguém para fazer (ou não fazer), tornar-se (ou não tornar-se) isto ou aquilo.6 Esta forma de entender a liberdade negativa é seguida por outros teóricos do liberalismo político. Rawls, por exemplo, diz que a liberdade deve ser explicada na referência a três itens: os agentes que são livres, as restrições ou limitações das quais eles estão livres, e aquilo para o qual eles são livres para fazer ou não fazer. “A descrição

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geral de uma liberdade, então, assume a seguinte forma: esta ou aquela pessoa (ou pessoas) está (ou não está) livre desta ou daquela restrição (ou conjunto de restrições) para fazer (ou não fazer) isto ou aquilo.”7 O significativo é que o peso maior nesta forma de liberdade recai sobre o elemento das condições impeditivas provenientes da lei que obstaculizam a ação do sujeito, de tal forma que “a liberdade só pode ser restringida para o bem da liberdade.” Assim, a prioridade da liberdade implica, na prática, que uma “liberdade básica só pode ser limitada ou negada a fim de salvaguardar uma ou várias das outras liberdades básicas, e jamais [...] em nome do bem público ou de valores perfeccionistas.”8 Rawls permanece fiel ao conceito liberal da liberdade negativa, discutindo-a (na versão triádica) em conexão com limitações legais e constitucionais: Nesses casos, a liberdade é uma certa estrutura de instituições, um certo sistema de normas públicas que definem direitos e deveres. Colocadas nesse contexto, as pessoas têm liberdade para fazer alguma coisa quando estão livres de certas restrições que levam a fazê-la ou a não fazê-la, e quando a sua ação ou ausência de ação está protegida contra a interferência de outras pessoas.[...] Um conjunto bastante intrincado de direitos e deveres caracteriza qualquer liberdade básica particular. Não apenas deve ser permissível que os indivíduos façam ou não façam uma determinada coisa, mas também o governo e as outras pessoas devem ter a obrigação legal de não criar obstáculos. 9

Tomando por base a perspectiva da liberdade negativa presente na ênfase do elemento triádico da ausência de impedimentos para que a ação de alguém possa fazer (ou não fazer), tornar-se (ou não tornar-se) isto ou aquilo, Rawls trabalha com a estratégia de demarcá-la segundo um conjunto de liberdades básicas - “definidas por direitos e deveres institucionais que dão aos cidadãos o direito de agir como desejarem e que impedem os outros de interferir”10 - que Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 301 - 336, out. 2007

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configuram uma lista, a saber: “a liberdade de pensamento e a liberdade de consciência, as liberdades políticas e a liberdade de associação, bem como as liberdades incluídas na noção de liberdade e de integridade da pessoa e, finalmente, os direitos e liberdades protegidos pelo Estado de direito.” 11 Esta enunciação das liberdades básicas se justifica pelo fato da sua consolidação ao longo da história do pensamento democrático, e que se tornaram garantias constitucionais no ordenamento jurídico dos Estados modernos. Trata-se, como se vê, do conceito liberal de liberdade negativa, compreendida como um conjunto de princípios formais, chamadas de liberdades básicas (“bens primários”), e que podem ser atribuídas a cada cidadão para lhes assegurar o desenvolvimento adequado e o exercício pleno das faculdades morais da pessoa (autonomia restrita) e do cidadão (autonomia completa). Tais liberdades estão prioritariamente presentes no primeiro princípio de justiça: “cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com um mesmo sistema de liberdades para todos.” 12 São liberdades que, definidas por direitos e deveres constitucionais, formam um conjunto articulado de meios e possibilidades legalmente protegidos que permitem aos cidadãos o direito de agir como desejam e impedem interferências indevidas dos outros ou do Estado. Destarte, o objetivo de Rawls não está voltado para a discussão filosófica sobre a natureza da liberdade, na tentativa de estabelecer um princípio filosófico fundacional. “Não se atribui prioridade alguma à liberdade como tal; se assim fosse, o exercício de uma coisa chamada ‘liberdade’ teria um valor preeminente e seria a meta principal, se não a única, da justiça social e política.” 13 Mas, nem por isso, a ênfase ao elemento prioritário da liberdade individual - entendida como a esfera de ação em que o indivíduo não está impedido por quem quer que seja de fazer ou deixar de fazer aquilo que ele deseja - deixou de ser a meta teórica do liberalismo. A filosofia política liberal sempre buscou o desenho moral e político de indivíduos designados pela característica essencial de agentes conscientes e livres, e que possuem um valor incondicional na sua individualidade e liberdade, independentemente de outros sujeitos.

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Se os homens são livres, e se a liberdade individual constitui o valor superior, qual é o papel do Estado e por que essa liberdade é negativa? Ela é negativa porque limita a atuação dos indivíduos a uma esfera de ação que a lei permite, e cuja obediência requer o poder coercitivo (legítimo) do Estado para garantir o respeito recíproco dos agentes à liberdade. Esse é o escopo da política, pois o sistema dos direitos e dos deveres preexiste à instituição da sociedade politicamente organizada sob a forma estatal. Uma vez organizado sob leis legítimas, o Estado não deve promover concepções de bem e de vida boa, pois, isto é da alçada dos indivíduos no uso da suas liberdades. O dever básico do Estado é impedir a invasão dos direitos produzida pela ingerência indevida dos cidadãos e, sobretudo, dele mesmo. Com o objetivo de garantir estes objetivos, a filosofia política do liberalismo acaba adotando um paradigma jurídico que estabelece procedimentos eqüitativos e imparciais na constituição e na defesa daquilo que é adequado (justo) para a sociedade. A lei pública constitui o meio mais adequado para assegurar a liberdade individual, o pluralismo ético, político e religioso, a diversidade das formas de vida, e a livre gestão privada dos interesses econômicos. O único “bem” possível que pode ser partilhado por todos é o direito. A ética central de uma sociedade liberal é antes uma ética do direito do que do bem. Isto é, seus princípios básicos referem-se a como a sociedade deve responder às exigências concorrentes dos indivíduos e arbitrar entre elas. Esses princípios incluiriam evidentemente o respeito aos direitos e às liberdades individuais, mas no cerne de todo o conjunto que pudesse ser chamado liberal estaria o princípio da facilitação maximal e igual. Isso não define em primeira instância que bens a sociedade promoverá, mas antes como ela vai determinar os bens a serem promovidos, dadas as aspirações e exigências dos indivíduos que a compõem. 14

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II. A CONCEPÇÃO REPUBLICANA DA LIBERDADE COMO NÃO-DOMINAÇÃO A tradição republicana caracteriza-se, em primeiro lugar, pela defesa do princípio da liberdade política, definida, sobretudo, como ausência da dependência da vontade arbitrária de um ou de alguns homens. “Poder-se-ia dizer que as explicações neo-romana e liberal clássica da liberdade incluem compreensões rivais de autonomia. Para a segunda, a vontade é autônoma desde que não seja coagida; para a primeira, a vontade só pode ser descrita como autônoma se é independente do perigo de ser coagida.”15 A independência não significa ausência de vínculos em relação às leis do Estado, mas a autonomia em relação à vontade arbitrária de outros indivíduos. Esta última não consiste apenas na opressão efetiva ou real, mas pode ser, também, potencial ou mesmo provável quando o poder de opressão de outrem é de tal monta inibidor que acaba retirando a autonomia nas relações interpessoais, em virtude do grau de dependência e de fragilidade de quem está à mercê do poder de alguém e da sua capacidade de exercer o domínio. É o caso do escravo que, segundo o direito romano, depende da vontade arbitrária de outrem, e não apenas aquele que, de fato, encontra-se oprimido. No Digesto, escravo é definido como “alguém que, contrariamente à natureza, é tornado propriedade de alguém mais.” Na discussão romana sobre a distinção entre servidão e liberdade, a “ausência de liberdade deriva do fato de estar ‘sujeito à jurisdição de alguém mais’ e estar conseqüentemente ‘dentro do poder’ de outra pessoa [...] A essência do que significa ser escravo e, portanto, a falta de liberdade pessoal, é assim estar in potestate, dentro do poder de alguém mais.” 16 A condição do escravo caracteriza-se pelo domínio que o senhor exerce sobre ele. Quando o primeiro torna-se permissivo e tolerante, mesmo assim, continua o estado de dominação sem, entretanto, haver uma efetiva e real interferência do senhor. Por mais que o escravo goze da liberdade negativa (ausência de interferência), ainda assim não se liberta da sua condição de servidão, continuando a pertencer ao seu senhor.

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A partir das análises de determinados autores inseridos na tradição republicana, o conceito de liberdade adquire um receituário cada vez mais elaborado e preciso em torno da idéia de não-dominção. O ponto central desta concepção consiste na libertação de toda situação que gere o arbítrio de outrem e a submissão à sua vontade, mesmo diante da ausência de interferências. A liberdade é definida pelo poder que os homens têm de se tornarem mestres de sua própria vida e senhores do seu destino, de não serem mais joguetes da fortuna e auto-complacentes com seu próprio destino. Ela consiste na ação de criar uma ordem ética e política que, instaurando a igualdade e a submissão de todos à lei, torna-se instrumento de proteção de todos contra o infortúnio e a servidão. Os homens são livres na medida em que eles não se encontram sob o domínio de outrem, manifestando, assim, a ausência de condições ou fatores que prejudicam a capacidade de ações efetivamente livres. Pettit observa que, enquanto os liberais assimilam a liberdade à ausência de ingerência, os republicanos a assimilam ao fato de não estarem submetidos à ingerência do outro segundo a sua vontade, ao fato de estar colocado ao abrigo de tal ingerência. A liberdade de uma pessoa, nesse sentido, equivale ao fato de ela não estar submetida ao poder que o outro tem de prejudicá-la, ao fato de não ser dominada pelo outro. A liberdade concebida como ausência de dominação – como segurança contra a ingerência arbitrária – é um ideal muito diferente da liberdade concebida como simples nãoingerência. A dominação é o tipo de relação que une, por exemplo, o senhor e o escravo ou o senhor e o empregado doméstico. [...] A nãodominação e a não-ingerência representam ideais muito diferentes. A diferença entre esses ideais manifesta-se pelo fato de que a dominação é possível sem ingerência, e a ingerência sem dominação.17

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Pettit analisa três condições na relação de dominação: “alguém domina ou subjuga o outro na medida em que: 1. tem a capacidade para interferir; 2. em bases arbitrárias; 3. sobre certas escolhas que o outro está em condições de fazê-lo.”18 Essas condições, consentidas ou não, são válidas se elas forem objeto de conhecimento das pessoas, conscientemente envolvidas na relação de dominação. Tal fato supõe aspectos subjetivos e psicológicos (apreciação e avaliação das condições acima enumeradas) e intersubjetivos (relações sociais de agentes mutuamente interagindo). “Não-dominação envolve a ausência de dominação na presença de outras pessoas: é um ideal social, pois, apesar de existir outras que poderiam ser capazes de interferir sobre outras pessoas em bases arbitrárias, elas estão impedidas de fazê-lo.” 19 Já o ideal da liberdade (liberal) da não interferência independe de uma situação social. “Ele é representado como um status que pode ser desfrutado, não propriamente na presença de pessoas, mas também na sua ausência.” 20 A concepção republicana de liberdade afirma, portanto, que a verdadeira liberdade política não se restringe apenas à presença da não-dominação (ou da sua possibilidade) que cria no sujeito uma relação de dependência pessoal em relação à vontade de outro(s) indivíduo(s) ou instituições, mas, deve haver também a ausência de interferência ou impedimentos de indivíduos ou instituições, naqueles atos em que os sujeitos desejam realizar e estão aptos para isso. A limitação da concepção positiva de liberdade consiste em não perceber que pode haver interferência sem dominação quando o agente está sujeito às restrições da lei quando comete um delito, por exemplo. Quanto à liberdade negativa do liberalismo, que afirma que somos livres na medida em que estamos livres de interferência, ou seja, quando se manifesta a ausência (negação) de impedimentos ou obstáculos que interditam a nossa ação, a liberdade política republicana diz que pode haver dominação sem interferência. Assim, somos livres na medida em que não somos dependentes num duplo aspecto: na ausência de interferência e, de forma solidária, quando não se produz a dominação. Se o domínio inexiste, o indivíduo pode exercer a sua autonomia. A liberdade é, sobretudo, ausência objetiva de domínio ou de dependência, para que

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ela possa ser, também, um direito subjetivo ancorado na autonomia da vontade. Caso contrário, a liberdade, quando tomada de forma unilateral, seja pela ausência de impedimentos externos, seja pelo simples autogoverno, torna-se frágil ou e acaba reduzindo-se à dimensão do formalismo jurídico, no primeira caso, ou ao sujeito autônomo auto-referente, na segunda situação. Duas questões surgem a partir da análise de Pettit. A primeira, diz respeito às medidas que podem ser tomadas para evitar uma situação de dominação. A segunda, refere-se às vantagens que este tipo de liberdade, como ideal político, pode oferecer.21 Quanto à primeira questão, duas estratégias são sugeridas por Pettit para alcançar a não-dominação. Uma delas refere-se à reciprocidade de poderes. A estratégia do poder recíproco consiste em tornar mais iguais os recursos de quem domina e de quem é dominado de tal modo que, idealmente, uma pessoa previamente dominada pode vir a defender-se ela mesma contra qualquer interferência por parte do dominador. Se cada um pode, efetivamente, defender-se contra qualquer interferência que um outro possa exercer, nenhum deles será dominado pelo outro. Nenhum deles vai estar sujeito à permanente possibilidade de interferência do outro em bases arbitrárias. 22

A outra estratégia diz respeito à reserva constitucional de um Estado de direito. A estratégia da reserva constitucional (constitucional provision) procura eliminar dominação, não porque possibilita às partes defenderem-se elas mesmas contra interferência arbitrária ou porque dissuade interferências arbitrárias, mas, antes porque introduz uma autoridade constitucional – um agente corporativo eleito - para a situação. A autoridade privará a outra parte da interferência do poder Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 301 - 336, out. 2007

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arbitrário e do poder de punição que surge da interferência. Desse modo, ela eliminará a dominação de algumas partes sobre outras, e, se ela própria não domina essas partes, então ela trará um fim à dominação. 23

A atração superior da liberdade como não-dominação decorre da promoção de benefícios que ela implica: “ser capaz de viver a vida sem a incerteza acerca da interferência que você tem que suportar; ser capaz de viver sem ter de permanecer submetido ao poder de deferência ao tratar com os poderosos; ser capaz de viver sem subordinação aos outros.” 24 Tudo isso constitui vantagens irrecusáveis que a liberdade como não-dominação pode oferecer. Contudo, estas vantagens devem ser políticas, pois são o resultado de ações institucionalmente constituídas que visam ao bem de todos. Não pela imposição de uma única forma de vida – por mais agradável e pacífica que ela seja – mas porque elas permitem levar uma vida que se deseja, no respeito à pluralidade das opções, quando se tem segurança da ausência da dominação. O ponto central desta concepção consiste, portanto, na libertação do poder abusivo ou da capacidade de interferência de alguém, a partir da qual se produz submissão à vontade arbitrária de quem, real ou potencialmente, detém esse poder e o exerce por atos de domínio ou de ingerência indevida. A liberdade é definida pela prerrogativa de que o homem pode tornar-se mestre de sua própria vida, de não ser mais joguete da fortuna e complacente com seu próprio destino. O problema é que depender da vontade arbitrária de outros indivíduos gera medo em relação àquelas pessoas que têm poderes arbitrários; o medo, por sua vez, produz uma falta de ânimo e de coragem que alimenta comportamentos servis, leva a manter os olhos baixos, a calar ou a falar para adular os poderosos. A condição de dependência gera em suma um ethos totalmente incompatível com a mentalidade do cidadão. Por isso, ela deve ser

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combatida como o mais perigoso inimigo da liberdade.25

III. IMPLICAÇÕES DA TEORIA REPUBLICANA DA LIBERDADE a) A dimensão social do viver político do homem Por mais que a concepção de liberdade como nãodominação possa representar um ideal plausível, ela necessita de determinadas condições - teóricas e práticas, subjetivas e objetivas para a sua efetivação conceitual e realização. A primeira delas é que a liberdade é sempre social, seja sob o aspecto da ausência de impedimentos, seja na sua compreensão mais abrangente como nãodominação. Se a perspectiva da liberdade como não-dominação é plausível, a liberdade não pode ser analisada como um ato solitário do indivíduo no quadro da sociabilidade do atomismo.26 A tese de que a liberdade repousa sobre condições sociais tem por base a idéia de que as aspirações à autonomia e à direção da própria vida dos homens são concebíveis no diálogo com os outros ou mediante a compreensão comum de práticas sociais que sustentam o viver junto. Trata-se do princípio de que a identidade de indivíduos livres, que se opõem ao domínio, exige uma matriz social. Assim, constitui um pressuposto decisivo para o desenvolvimento afirmativo da teoria republicana da liberdade a incorporação do princípio aristotélico de que o homem é um animal naturale sociale e politicum. Se a essência do homem é social e política, ele necessita de uma específica forma de associação para a realização dos seus mais altos propósitos em sociedade, e será livre se ele realmente exercitar a sua capacidade social e política. Por essa razão, o republicanismo critica o fundamento jusnaturalista da teoria dos direitos naturais - peça fundamental na defesa da liberdade individual como direito subjetivo que o liberalismo herda do jusnaturalismo moderno, e leva adiante como sua bandeira teórica. Para o republicanismo, os direitos são sociais e históricos. Direitos são, de fato, somente direitos se o costume ou a lei os reconhecem como tais e Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 301 - 336, out. 2007

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são, desse modo, sempre históricos, nãonaturais; e se eles não são históricos e nem reconhecidos pela lei, então eles são apenas aspirações morais, inquestionavelmente muito importantes, mas nada mais do que aspirações morais.27

O sentido republicano da liberdade é político, deduzido não da idéia tradicional de que a liberdade deve ser vista como autonomia de uma vontade auto-referente ou constituída a partir do vazio de atos de ingerência, mas como poder que o indivíduo tem de auto-afirmação na sua capacidade de resistência à dominação e ao perigo de domínio. Isso é possível, sobretudo, pelo fato dele ser considerado como pessoa e cidadão – na qualidade de membro de uma comunidade. Ora, o viés estreito - embora necessário - dos direitos individuais e a sua representação constitucional, é insuficiente para realizar essa liberdade como auto-afirmação social. O problema, para o republicanismo, passa a ser não tanto a questão dos fundamentos da liberdade (e dos direitos subjetivos a ela conectados) – já que o fato social da vida humana é uma evidência histórica e antropológica, e que atesta o crescente valor de práticas sociais livres da dominação –, mas a sua realização através da constituição de formas e mecanismos institucionais (políticos) que permitem e asseguram essa realização. b) O reconhecimento da legitimidade do direito da liberdade e da igualdade Uma conseqüência correlata da dimensão social do viver político do homem consiste na propositura de uma segunda condição do conceito republicano de liberdade: a presença de um campo de reciprocidade (inter-subjetividade) em relações de mútuo reconhecimento. A partir da perspectiva do viver social do ser humano, o direito à decisão autônoma de cada um para deliberar sobre o seu destino e interesses só tem consistência se for reconhecido como algo passível de ser outorgado a todos, e cuja atribuição intersubjetiva permite a legitimidade moral e jurídica da liberdade individual. A liberdade só existe onde os outros estão presentes, e as relações entre

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os indivíduos são institucionalizadas de maneira a tornar possível a coexistência dos sujeitos sem dominação. Vivemos com os outros que têm a obrigação de respeitar a nossa ação e, reciprocamente, cada um de nós reconhece que deve agir de forma semelhante. Sem a dimensão do reconhecimento público de que todos dispõem da liberdade, a livre convivência humana privar-se-ia do elemento intersubjetivo como condição essencial para a constituição e afirmação da própria liberdade individual e dos direitos subjetivos; o que, de resto, tornaria essa convivência um contra-senso. Assim, a própria liberdade, embora individual, está atrelada à presença constitutiva e positiva do outro numa relação de reciprocidade. Ser livre significa estar protegido pela lei numa forma de vida social, na qual o reconhecimento da liberdade é possível porque todos pertencem a uma sociedade que tem como valor social a proteção das ações dos sujeitos, e que reconhecem a legitimidade destas ações e se abstêm de interferências.28 Dessa relação de reciprocidade e de mútuo reconhecimento da liberdade, quando então os sujeitos vivenciam uma situação de não-dominação como sendo razoável para todos, decorre o fato do dever que os outros têm de não interferir; ou seja, o reconhecimento da legitimidade dos direitos de cada um e o respeito recíproco a eles. Temos o direito de agir como queremos agir e, nessa ação, o outro reconhece os limites da sua ação. O republicanismo pensa a liberdade na presença dos outros, com os quais a independência recíproca dos sujeitos pode ser efetivada, porque todos têm a consciência do dever de abstenção face à legitimidade dos direitos de outra pessoa. O conceito de liberdade política publicamente reconhecida implica um outro conceito a ele conexo: o da igualdade formal e material. Tanto quanto a liberdade, a igualdade não existe sob a forma de um direito natural pré-político. Ela é o resultado da posição de simetria de todos os sujeitos na comunidade política, e como tal eles são reconhecidos. Não só em relação às prerrogativas formais dos direitos e liberdades individuais, mas, também, em relação às condições sociais e econômicas da sociedade. O republicanismo não define a liberdade como um atributo humano produzido pela natureza, mas como uma forma de ação propiciada pelas instituições políticas, pelas quais a garantia contra a interferência dos outros se torna possível. A Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 301 - 336, out. 2007

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eficácia da liberdade é produzida por um sistema social e político republicano igualitário que garante leis impeditivas à ação abusiva do poder político, social ou econômico. Assim, a igualdade diz respeito, antes de tudo, à garantia da não interferência que está associada à proteção legal (formal). Cada indivíduo sabe e reconhece de que todos possuem, igualmente, possuem o direito a essa garantia. Na tradição republicana, um homem só é livre, pois, se as seguintes condições são satisfeitas: que ele dispõe, em relação a todos os seus concidadãos, da mesma área de liberdade e da mesma garantia jurídica de não-interferência; que ele tenha uma consciência clara de sua própria igualdade com o conjunto dos seus concidadãos sobre esse plano; e, enfim, que todos seus concidadãos reconheçam explicitamente que ele é igual, quer dizer, que ele se beneficia deste estatuto a mesmo título e nas mesmas proporções que eles. 29

Em segundo lugar, a igualdade material requer ações e políticas de equalização dos meios de subsistência e das condições sociais e econômicas dos indivíduos na sociedade. Esta igualdade é indispensável a uma sociedade de homens livres, pois, sem ela não é possível realizar a reversibilidade das ações, e certos indivíduos ficam submetidos à ação unilateral e dominadora dos outros. Destarte, a pobreza ou as condições impeditivas do efetivo exercício da capacidade de trabalho do homem, como o desemprego ou a doença, representam restrições à liberdade daqueles que sofrem estes impedimentos. O reconhecimento formal da liberdade e da igualdade destas pessoas obriga o poder político a remover estes obstáculos. “Na tradição liberal, esta consideração da igualdade é excluída da problemática da liberdade e os dois valores devem permanecer nitidamente distintos [...] sempre que o poder de outrem cresce sem que o meu cresça em proporção, o desequilíbrio que se cria aumenta meu grau de vulnerabilidade.” 30 Ser livre significa estar ao abrigo de toda vulnerabilidade e medo de outrem. A ação econômica de terceiros

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não pode representar uma ameaça ao equilíbrio da igualdade, possível pela redução das diferenças econômicas, as quais, se excessivas, ameaçam a própria liberdade.31 c) A comunidade política como autogoverno dos cidadãos na criação de leis que efetivam a liberdade Em terceiro lugar, a liberdade política do republicanismo implica, também, a ação de criar uma ordem ética e cívica que, instaurando a igualdade e a submissão de todos à lei, torna-se instrumento de proteção de todos contra o infortúnio e a servidão. Uma característica essencial da liberdade política é o autogoverno, possível nas repúblicas como forma de poder político sob o qual uma comunidade pode obter grandeza e garantir aos seus cidadãos suas liberdades individuais. O oposto da dependência, para os escritores políticos republicanos, como por exemplo Cícero, Sallustio, Livio, Maquiavel, Harrington e Rousseau, não é a liberdade do Estado de natureza, mas, sim, a dependência das leis não arbitrárias que valem para todos [...] se a lei é entendida como uma vontade não arbitrária que se aplica a todos, então a lei me torna livre, uma vez que me defende da vontade arbitrária dos outros indivíduos.32

A concepção republicana de liberdade afirma que esta só se sustenta para os indivíduos em um governo que se define como a expressão da soberania dos súditos. A idéia hobbesiana - reiterada por Berlin quando diz que é um engano supor que existe alguma “conexão necessária entre liberdade individual e regime democrático” 33 - de que pouco importa a natureza ou a forma de exercício do governo é estranha à concepção de liberdade do republicanismo. Esta idéia está incorporada na teoria política do liberalismo quando se afirma que o que é decisivo para a liberdade é a extensão da liberdade de ação do indivíduo, portanto, o espaço inviolável de ação do destinatário, e não a fonte ou quem exerce o governo. Para a teoria política Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 301 - 336, out. 2007

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republicana, deve existir um vínculo indissolúvel entre a fonte legítima e popular do poder (a res publica) e a liberdade individual do cidadão. Sem esse vínculo, o cidadão corre perigo na sua liberdade individual, mesmo num governo que respeita o espaço da liberdade negativa dos súditos. Costuma seguir-se que, se você deseja manter sua liberdade, deve assegurar-se de que vive sob um sistema político no qual não há elemento de poder discricionário, e, portanto, nenhuma possibilidade de que seus direitos civis possam ser dependentes da boa vontade de um governante, ou grupo governante, ou qualquer outro agente do Estado. Você deve viver, em outras palavras, sob um sistema em que o poder único de fazer leis permanece com o povo ou seus representantes autorizados, e em que todos os membros do corpo político – governantes e cidadãos igualmente – permanecem do mesmo modo sujeitos a quaisquer leis que escolheram impor sobre si mesmos. Se, e apenas se, você vive sob um tal sistema autogovernante, seus dirigentes estarão privados de quaisquer poderes discricionários de coerção, e, em conseqüência, privados de qualquer capacidade tirânica de reduzi-lo e aos seus concidadãos à condição de dependência à sua boa vontade e, portanto, ao status de escravos.34

A liberdade não consiste, pois, tão somente em realizar uma ação na ausência de impedimentos externos, impedimentos esses que são proibidos por lei. Mais que isso, ela consiste em realizar uma ação - que os indivíduos reconhecem que não têm o direito de criar obstáculos - porque a lei impeditiva da interferência dos outros, e que permite a livre efetividade dessa ação, emana da vontade comum e, por causa da sua legitimidade, o seu poder não é dominador, mas compatível com aquilo que mais desejamos quando vivemos em conjunto: a liberdade (autogoverno), o fato do homem ser senhor do seu destino.

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d) A atuação política da cidadania como atribuição de virtudes cívicas Em quarto lugar, coloca-se a condição de um conceito de cidadania compatível com a noção republicana de liberdade como não-dominação. Para o liberalismo, a participação do cidadão na administração da política para a promoção do bem comum e de uma ordem justa na busca do melhor regime da liberdade política é abandonada em benefício do ganho da liberdade individual, possível pela renúncia à idéia do viver político que vincula a proteção e a realização da liberdade com a idéia da participação ativa na coisa pública pela presença de cidadãos virtuosos. Para o liberalismo, a liberdade não implica ações virtuosas da cidadania voltadas para o bem comum, pois a sociedade realiza no conjunto, como conseqüência da busca dos benefícios individuais dos seus agentes, o interesse coletivo. Se as ações dos indivíduos são interesseiras e egoístas, não há nenhum sentido em dirigi-las com vistas à realização do bem comum. A “virtude” pública deste bem será alcançada no conjunto como o resultado das ações individuais, quando os sujeitos realizarem práticas virtuosas adequadas aos seus interesses.35 Apesar da prevalência da concepção liberal de cidadania compreendida como intitulação de direitos -, o republicanismo manteve-se fiel a certos valores da tradição como a liberdade política, o autogoverno da comunidade, o civismo, a soberania popular e a participação ativa na comunidade política. Nesse contexto, o republicanismo compreende a cidadania como atribuição de virtudes cívicas. Por esta razão, ela passa a adquirir um valor normativo substancial, condição indispensável para a afirmação dos direitos e liberdades individuais e para o viver bem da comunidade, e não pode ser vista como instrumento ou meio para alcançar determinados fins, mesmo que politicamente legítimos como o reconhecimento dos direitos individuais. O republicanismo defende uma concepção forte de cidadania que visa à defesa cívica do bem público, cujo valor ultrapassa a mera soma dos interesses individuais. Muito mais que o simples valor de instrumentalização da cidadania a serviço da liberdade

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negativa do indivíduo, o cidadão deve cultivar virtudes cívicas, mormente se a comunidade política for entendida no sentido republicano, definida por Cícero como res publica: coisa que pertence ao povo (res publica res populi). IV) REPUBLICANISMO OU LIBERALISMO - UMA ESCOLHA DISJUNTIVA? Diferentemente do universo ético aristotélico (e medieval) da eudaimonia, os escritores republicanos não propõem fins morais específicos para a realização da liberdade. Ao contrário, sugerem fins variados segundo as diversas disposições e humores dos indivíduos; pois, a realização desses fins depende da ação humana definida por motivações e interesses individuais. Fins que são possíveis apenas pela presença dos direitos subjetivos e pela proteção jurídica da liberdade diante das interferências indevidas de terceiros. A intenção de Maquiavel, segundo Skinner, não é buscar uma norma única da perfeição humana inspirada na concepção aristotélica de um bem último que realiza o homem como animal político. Resiste, assim, ao predomínio de uma única idéia substantiva de bem, permitindo a presença do pluralismo, o qual tem sido o aporte irrenunciável do liberalismo à democracia moderna.36 Contudo, sem renunciar à definição negativa de liberdade, Skinner quer apresentar um Maquiavel que, rompendo com a idéia aristotélica de um bem objetivo ao qual o homem deve tender, apresenta uma outra possibilidade para a liberdade na modernidade. Mas, ainda assim, valoriza a virtude cívica e a constituição de um bem público, e que são necessários para a preservação da independência da cidade e da liberdade pessoal. Assim, é possível acatar a idéia liberal da liberdade negativa como não-interferência e, diferentemente dos liberais, deve-se deslocar o peso do sistema abstrato dos direitos para as virtudes cívicas, com o objetivo de assegurar essa liberdade. O que Skinner pretende denunciar é a forte tendência procedimental do liberalismo político que destaca, sobretudo, os direitos, estabelecendo a ideologia de que a regulação justa da liberdade e dos interesses individuais constitui garantia suficiente para mantê-la. Para Skinner, a permanência do ideal da liberdade republicana exige mais que o simples controle do

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interesse egoísta dos indivíduos. A sua preocupação é mostrar que virtude e participação cívica podem coexistir com a concepção liberal negativa de liberdade política e, mais, que esta concepção encontra a forma mais adequada da sua proteção no republicanismo, uma vez que o seu exercício e a sua manutenção como valor individual exigem a prática de virtudes. Contrariamente a I. Berlin, Skinner tenta pôr às claras que não há incompatibilidade entre a concepção republicana clássica de cidadania, baseada no conceito positivo de liberdade, e a concepção liberal de liberdade negativa, presente também no republicanismo, particularmente em Maquiavel. Se isso é verdadeiro, então é possível postular um tipo de cidadania que possa defender, de um lado, um bem comum vinculando os cidadãos num compromisso ético-político de defesa dos interesses da comunidade política, resgatando, desse modo, o lado público e cívico da vida política, sem sacrificar, de outro lado, a dimensão individual e pluralista da sociabilidade privada, marcada pelos direitos individuais. De igual modo, Pettit - na mesma linha dos defensores do chamado republicanismo neo-romano - compreende a liberdade como um valor instrumental, e não um bem em si mesmo. Afirma que os fins de uma sociedade liberal serão mais bem realizados pela intervenção dos valores políticos do liberalismo. Assim, a inclusão desses valores promove e consolida os direitos subjetivos e o conceito de liberdade negativa, pois estes dois aspectos não são incompatíveis com a concepção republicana de liberdade. 37 CONCLUSÃO Parece ser razoável a tese de que um modelo de liberdade mais adequado às sociedades modernas não pode ser constituído em termos de escolha disjuntiva entre liberalismo ou republicanismo. Um conceito de liberdade deve ser suficientemente amplo para reunir os aspectos positivos no modelo liberal e republicano e ser compatível com as sociedades democráticas modernas marcadas pelo pluralismo de grupos, muitas vezes divergentes e antagônicos, e pela diversidade dos interesses individuais que buscam a proteção dos seus direitos.

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Tal perspectiva permite incluir no conceito republicano de liberdade como não-dominação a idéia liberal da liberdade como ausência de interferência. Esta parece ser a proposta dos comentadores do chamado republicanismo neo-romano. Contudo, essa reunião de elementos liberais e republicanos não tem a pretensão de conciliar as duas teorias. O propósito teórico desses comentadores parece ser de outra ordem: o de mostrar que a teoria republicana da liberdade, por ser mais ampla, pode comportar e realizar de forma mais adequada o propósito liberal da liberdade negativa. Se o ideal republicano de liberdade é a não-dominação, qual a diferença com a concepção liberal que argumenta, justamente, a não ingerência como elemento principal para eliminar a dominação? O que separa a compreensão da liberdade neo-romana da liberal? No confronto com a tese liberal da liberdade como ausência de impedimentos, ou da liberdade negativa entendida como o uso de uma área de ação própria à livre atividade do sujeito sem interferências de outrem – indivíduo ou Estado -, a concepção republicana de liberdade tem uma relação de proximidade crítica. Certamente há diferenças e que não podem ser desprezadas na constituição de uma sociedade que deve se regular pelo ideal da democracia. Essas diferenças são, em primeiro lugar, aquelas que decorrem das condições para que uma teoria republicana da liberdade como não-dominação possa ser plausível, tanto teórica como praticamente, isto é: a liberdade como valor social, e não como uma propriedade do indivíduo isolado, auto-referente e alijado das relações com outros homens; o reconhecimento da legitimidade do direito da liberdade e da igualdade; a idéia da comunidade política como autogoverno dos cidadãos na criação de leis que efetivam e garantem a liberdade; a atuação política da cidadania como atribuição de virtudes cívicas. Em segundo lugar, a diferença entre a tese republicana da liberdade como não-dominação e a liberal da liberdade negativa consiste no modo de fundamentação da liberdade. A concepção liberal vincula-se a uma visão “juridicista” da liberdade, baseada no pressuposto de uma sociabilidade atomizada do individualismo autoreferente do sujeito. Para o liberalismo, a liberdade tem uma justificação

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pré-política, seja em princípios normativos da racionalidade, seja no ideal dos direitos subjetivos (naturais ou racionais). Estes direitos constituem um elemento fundamental na defesa da liberdade individual, mas são suscetíveis de uma deficiência ou fraqueza teórica apontada pelo republicanismo: direitos são de fato direitos mediante o assentimento da lei, cuja expressão cultural e histórica é dada por uma comunidade que os legitima como politicamente importantes e eticamente relevantes. Sem essa conformação comunitária, eles não passam de meras aspirações morais abstratas. A teoria da liberdade do republicanismo, ao defini-la como não-dominação - no sentido de que o indivíduo não é livre se vive à mercê de outrem e que tal situação representa uma dependência real ou potencial, em virtude do grau de vulnerabilidade que alguém tem em relação a outrem por estar submetido ao seu poder -, permite a realização efetiva da liberdade como ausência de impedimentos, mas não se limita ao aspecto jurídico da liberdade como direito subjetivo. Na concepção republicana de inspiração maquiaveliana não há direitos naturais, pois a natureza não é fonte de direitos, mas da vontade de domínio. A coerção da lei não se justifica com vistas à proteção de direitos pré-existentes e independentes dela. Ao contrário, a criação de direitos não existe sem a lei civil. Fora da ordem legal própria às sociedades constituídas, existe apenas um jogo de vontades que procuram dominar. No entanto, o conflito não deve ser expurgado das práticas políticas da sociedade, mas regulado pela atuação de forças democráticas hegemônicas. Afastando a tendência, sempre presente, da dominação, estas forças defendem a liberdade como espaço político vital para a democracia. Uma terceira diferença consiste na compreensão forte do espaço público como esfera decisiva para a defesa e ampliação da liberdade. O republicanismo moderno compreende a liberdade individual como ausência de domínio (da constante possibilidade da interferência), para cuja proteção é requerido um Estado democrático de obediência à lei. No entanto, para que isso seja efetivamente viável há necessidade do recurso à idéia forte de um bem comum – como alternativa à primazia liberal dos direitos subjetivos – que congrega os indivíduos em torno do ideal político da cidadania virtuosa. Se a

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questão da liberdade for analisada pelo lado da concepção liberal, por si só, ela não se sustenta diante da necessidade de realização dos valores democráticos no espaço público. Somente leis justas e legítimas de um Estado republicano constituem a condição de possibilidade para a existência das liberdades individuais e dos direitos subjetivos. NOTAS EXPLICATIVAS 1

“O republicanismo encontra suas origens na Roma clássica, onde ele é associado em particular ao nome de Cícero. [...] Ele reapareceu no Renascimento, figurando em lugar destacado no pensamento constitucional de Maquiavel, e desempenhou um papel importante na concepção que as repúblicas do norte da Itália tinham delas mesmas – estas foram na verdade as primeiras politerai européias da era moderna. O republicanismo forneceu um pensamento e uma linguagem que dominaram a política do Ocidente moderno, de maneira particularmente marcada na república holandesa, durante a Guerra Civil Inglesa, e durante o período que precedeu a Guerra da Independência americana e a Revolução Francesa. As grandes figuras que ilustram essa concepção republicana mais moderna são Harrington, Montesquieu e talvez Tocqueville [...] e, nos Estados Unidos, os Federalist Papers. Rousseau e Kant, bem entendido, aproximam-se também da tradição republicana, mas, tendo inscrito as idéias com uma nova visão, não são autores representativos dessa tradição.” (CANTO-SPERBER. Monique (org.) Dicionário de ética e filosofia moral, v. 2, São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p. 55, 56) 2

HOBBES, T. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e Maria B. N. da Silva, 2ª ed, Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, cap XIV, p. 78.

3

Tal conceito envolve outras conseqüências, apontadas pelo autor do Leviatã, e que irão, de algum modo, interferir na concepção liberal de liberdade negativa. A primeira diz respeito à rejeição da presença da liberdade como fenômeno do livre arbítrio da vontade. Hobbes diz que este nada mais é do que “a última apetência na deliberação”, de tal modo que liberdade e necessidade são compatíveis. Em segundo lugar, a liberdade natural pode ser legitimamente regulada pelo Estado, quando então a liberdade do súdito pode ser “limitada e restringida pela lei civil”, condição fundamental para a paz. A liberdade civil depende do “silêncio da lei,” e o sujeito permanece livre como súdito enquanto não legalmente coagido. Em terceiro lugar, a liberdade do súdito não é descaracterizada pela natureza do poder político, pouco

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importando a forma como o governo é exercido: “quer o Estado seja monárquico, quer seja popular, a liberdade é sempre a mesma.” (Leviatã, op. cit. cap. XXI. p. 130). 4

O tema do alcance e sentido político da liberdade foi definido de forma paradigmática por I. Berlin, no ensaio Dois conceitos de liberdade. 5

MACCALLUM, G. Jr. Negative and Positive Freedom. In: MILLER. C. (ed.) Liberty. New York: Oxford University Press, 1991, p. 102. 6

Os que defendem a posição díade argumentam que a importância do ponto de vista de Berlin - para quem o decisivo está na compreensão da liberdade como não-restrição de opções - consiste na distinção de duas perspectivas de se entender a liberdade, e não propriamente de diferentes conceitos que podem ser desdobrados numa variante triádica, mas que não nega a clivagem dualista entre liberdade negativa e positiva. Sobre a crítica a MacCallum ver J.N. Gray, On Negative and Positive Liberty. In: PELCZYNSKI, Z. e GRAY, J.N. (eds.) Conceptions of liberty in political philosophy, London: Athlone Press, 1984. 7

RAWLS, J. Uma Teoria da justiça. Trad. Almiro Piseta e Lenita M.R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 219. 8

RAWLS, John. Justiça e democracia. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p 150. 9

RAWLS, J. Uma Teoria da justiça, op. cit., p. 219.

10

RAWLS, John. Justiça e democracia, op. cit., p. 176.

11

Idem., p. 145.

12

RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 60. 13

RAWLS, John. Justiça e democracia, op. cit., p. 145. Apesar da proposta rawlsiana de trabalhar com as liberdades básicas no sentido da liberdade negativa, a presença do componente da liberdade positiva não é desprezada quando o autor discute a noção de autonomia da pessoa (parceiros) na “posição original” e do cidadão na sociedade bem ordenada. Rawls afirma

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que é pela “capacidade de formular reivindicações de maneira autônoma que a liberdade é representada.” (Justiça e democracia, op. cit., p. 100). “As pessoas são fontes autônomas de reivindicações no sentido de que estas têm um valor próprio, que não deriva de deveres ou de obrigações anteriores em relação à sociedade ou a outras pessoas, nem é determinado por seu papel social específico.” (Ibid., p. 93). A liberdade, enquanto vinculada às escolhas dos indivíduos, significa, em primeiro lugar, que eles consideram apenas a si mesmos (na condição de pessoas racionais e razoáveis) como fontes apreciadoras das regras. Em segundo lugar, são responsáveis por seus interesses e por seus objetivos, podendo revisar, controlar suas necessidades e desejos. A liberdade, aqui, é vista pelo lado de que é racional compreender escolhas que derivam exclusivamente da autonomia dos sujeitos. A liberdade das pessoas, definidas como “fontes autônomas de reivindicações fundamentais” é atribuída aos parceiros (pessoas representantes) na “posição original” para formular reivindicações que desejam fazer, caracterizando, assim, a da autonomia racional dos parceiros. Nessa medida, na compreensão da liberdade dos agentes que têm independência em relação aos seus fins, Rawls partilha do conceito de liberdade positiva, presente na idéia de autonomia de inspiração kantiana. E isso vale tanto para a posição original como para a sociedade bem ordenada, quando, então, a autonomia se completa. 14 TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. Trad. Adail Ubirajara Sobral, São Paulo: Loyola, 2000, p. 203.

15

SKINNER, Q. A liberdade antes do liberalismo. Ttrad. Raul Fiker, São Paulo: Editora UNESP, 1999, p. 72, nota 57.

16

Idem., p. 43.

17

CANTO-SPERBER. Monique (org.) Dicionário de ética e filosofia moral, v. 2, op. cit., p. 57. 18

PETTIT. P. Republicanism. A Theory of freedom and government. New York: Oxford University Press, 1999. p.52. 19

Idem., p. 272.

20

Idem., p. 72.

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21

Alguns críticos observam que, apesar da análise detalhada de Pettit na tentativa de fazer uma hermenêutica da liberdade como não-dominação, ele acaba omitindo um elemento fundamental na ação livre do sujeito que é, precisamente, a realização do indivíduo quando ele não se vê sob a interferência do domínio de outrem. A rigor, ser livre significa a consecução de fins que o sujeito, agente livre, avalia como necessários à sua própria realização, os quais são possíveis se não há dominação. Este aspecto da análise da liberdade – a da realização de capacidades do sujeito –, marginalizado por Pettit, é sublinhado com traços fortes pela análise comunitarista de C. Taylor. Este autor observa, também, que os termos que tornam a dicotomia entre liberdade negativa, definida como ausência de toda interferência, e a liberdade positiva, quando entendida simplesmente como auto-governo, é muito esquemática. A questão torna-se mais complexa se for introduzido, nesta última concepção, o conceito de realização. “As doutrinas da liberdade positiva se prendem a uma concepção da liberdade que implica, antes de tudo, que nós exercemos um poder de controle sobre a nossa própria existência. Nessa concepção, nós somos livres na medida em que nós mesmos somos efetivamente determinados, na medida em que nós mesmos damos forma à nossa própria vida. O conceito de liberdade é, pois, um conceito de realização.” (TAYLOR, C. La liberté des modernes. Trad. Philippe de Lara. Paris: PUF, 1997, p. 258). Ele requer a idéia de que nós somos seres que perseguem fins, e que, dentre os diversos desejos que almejamos, alguns são mais significativos, merecendo de nossa parte aquilo que C. Taylor chama de “avaliação forte”. Ser livre implica, no entendimento de Taylor, capacidade de identificar e de avaliar de maneira adequada finalidades essenciais, bem como a capacidade de superar os obstáculos externos e internos (os desejos que são entraves) para a realização do agente livre. 22

PETTIT. P. Republicanism. A Theory of freedom and government. op. cit., p. 67. 23

Idem, p 67,8.

24

Idem, p. 90.

25

BOBBIO, Norberto. VIROLI, Maurizio. Diálogo em torno da república. Os grandes temas da política e da cidadania. Trad. Daniela B. Versiani, Rio de Janeiro: Campus, 2002, p. 36.

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Segundo C. Taylor, “atomismo’ é um termo utilizado de modo amplo para caracterizar as doutrinas do contrato social que floresceram no século XVII, de modo que as doutrinas posteriores sem fazer uso, necessariamente, da noção de contrato social, delas herdaram a idéia que a sociedade é constituída, em um sentido, pelos indivíduos com vistas a realizar seus fins que são primeiramente individuais. [...] O termo aplica-se igualmente às doutrinas contemporâneas que se voltam à teoria do contrato social, ou àquelas que querem defender, de um modo ou de outro, a prioridade do indivíduo e dos seus direitos sobre a sociedade, ou àquelas que apresentam uma concepção puramente instrumental da sociedade.” (TAYLOR. C. La liberté des modernes, op. cit., p. 223). À doutrina atomista da “primazia dos direitos” dos indivíduos associados pelo contrato social (derivada de Hobbes, Locke) se contrapõe a doutrina da pertença social que remonta a Aristóteles. Para a primeira, a obrigação de pertencer à sociedade é derivada do princípio mais fundamental de ser um sujeito de direitos, segundo o paradigma da auto-referencialidade do homem individual. Para a segunda, as capacidades propriamente humanas são desenvolvidas apenas em sociedade, “condição necessária para o desenvolvimento da racionalidade, [...] ou uma condição necessária para tornar-se um agente moral no sentido pleno do termo, ou para tornar-se um ser autônomo e plenamente responsável.” (Idem, p. 228). Os que defendem a teoria da primazia dos direitos ignoram o valor moral da formação dessas capacidades, sob o argumento de que o que importa é a liberdade de escolha daquilo que eu quero e daquilo que me pertence. Taylor contesta esse argumento dizendo que mesmo essa livre escolha não é neutra, ela também possui um valor social moral. Se a tese social relativa à aquisição e ao desenvolvimento das capacidades humanas é verdadeira, então tal tese nos obriga a uma outra não contratualista: a do pertencer social. Ambas são importantes para a afirmação dos direitos.

27

VIROLI, M. Republicanism, New York: Hill and Wang, 2002, p. 60.

28

A questão do reconhecimento como um aspecto importante na teoria republicana é destacado por Habermas. “Enquanto a interpretação liberal vê o sentido de uma ordem jurídica no fato de ela permitir constatar, no caso concreto, quais direitos competem a quais indivíduos, a visão republicana considera que esses direitos subjetivos resultam de uma ordem jurídica objetiva, a qual não somente torna possível, como também garante a integridade de uma convivência autônoma, com iguais direitos e que repousa no respeito mútuo. No primeiro caso, a ordem jurídica é construída a partir de

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direitos subjetivos; no segundo, atribui-se um primado a seu conteúdo jurídico objetivo.” (HABERMAS, J. Direito e democracia. Entre facticidade e validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 335/6). Habermas entende que, na dicotomia – direito subjetivo versus direito objetivo –, deixa de existir o “conteúdo intersubjetivo de um sistema de direitos” da teoria do discurso, na qual os civis se reconhecem reciprocamente. Nessa perspectiva, é possível estabelecer direitos e deveres em relações recíprocas de reconhecimento. O republicanismo possibilita, no julgamento de Habermas, esse conteúdo intersubjetivo. “O republicanismo vem ao encontro desse conceito de direito, uma vez que valoriza tanto a integridade do indivíduo e de suas liberdades subjetivas, como a integridade da sociedade na qual os particulares podem reconhecerse, ao mesmo tempo, como indivíduos e como membros.” (Idem, p. 336). 29

SPITZ, Jean-Fabien. La liberté politique. Paris: PUF, 1995, p. 203.

30

Idem, p. 196.

31

Mesmo para o liberalismo político de Rawls, a igualdade se constitui em elemento essencial, pois a sua concepção da “justiça como eqüidade” inclui a idéia de uma sociedade que, se pensada como um sistema justo de cooperação social, deve considerar os cidadãos como pessoas livres e iguais, bem como promover uma relação eqüitativa entre as gerações. Assim, o ideal da justiça deve contemplar a igualdade por meio do segundo princípio de justiça, formulado na seguinte proposição: “as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (o princípio de diferença)” (RAWLS, J. Justiça como eqüidade.Uma reformulação, op. cit. p. 60). Esse princípio deve orientar a política econômica e fiscal de uma sociedade já que o “objetivo político é eliminar a injustiça e orientar a mudança para uma estrutura básica eqüitativa.” (RAWLS, J. Justiça e democracia, op. cit. p. 37). Assim, é importante impedir a acumulação excessiva de riquezas e garantir possibilidades de educação para todos. Contudo, mesmo reconhecendo a importância da igualdade, para o liberalismo econômico ela se coloca, na ordem de prioridade para a compreensão e realização dos princípios de justiça, abaixo das liberdades básicas e da igualdade de chances (igualdade eqüitativa de oportunidades). Já para o republicanismo, a relação entre liberdade e igualdade é mais próxima, pois são conceitos conexos. De tal sorte que, se a idéia rawlsiana de liberdade for corrigida pela noção republicana de nãoCrítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 301 - 336, out. 2007

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dominação, a prioridade da liberdade permanece, mas essa prioridade exige, à moda de um juízo analítico, o corolário da igualdade. 32

BOBBIO, Norberto. VIROLI, Maurizio. Diálogo em torno da república. Os grandes temas da política e da cidadania, op. cit., p. 36.

33

BERLIN, I. Dois Conceitos de Liberdade. In: HARDY, H. et al. (ed.) A Busca do ideal. Uma antologia de ensaios. Trad. Teresa Curvelo, Lisboa: Editorial Bizâncio, 1998, p. 254. Hobbes pretende criticar o argumento da teoria republicana da necessária conexão entre o estabelecimento de Estados livres e a manutenção da liberdade individual. A liberdade republicana “não é a liberdade de homens particulares”, ela é simplesmente a “liberdade da comunidade”, diz Hobbes. O que importa não é a fonte da lei mas a sua extensão, isto é, até onde ela pode legitimamente constranger, deixando tudo o mais como campo para a ação livre (desimpedida) dos agentes. “Até hoje se encontra escrita em grandes letras, nas torres da cidade de Lucca, a palavra libertas, mas ninguém pode daí inferir que qualquer indivíduo lá possui maior liberdade, ou imunidade em relação ao serviço do Estado, do que em Constantinopla. Quer o Estado seja monárquico, quer seja popular, a liberdade é sempre a mesma.” (Leviatã, op. cit., cap. XXI, p. 132) No comentário de Skinner, “uma vez percebido que a liberdade é mais bem compreendida como ausência de interferência, podemos ver que a preservação deste valor depende não de quem exerce autoridade, mas simplesmente de quanta autoridade é posta nas mãos de alguém. Isso mostra que a liberdade negativa ‘não é incompatível com alguns tipos de autocracia, ou de todo modo com a ausência de autogoverno.” (A liberdade antes do liberalismo, op. cit. p. 92.) 34

SKINNER, A liberdade antes do liberalismo, op. cit. p. 65.

35

A idéia de B. Mandeville de que vícios privados fazem o bem público, a noção da mão invisível de A. Smith e mesmo o conceito hegeliano da astúcia da razão são expressões que traduzem o dinamismo da sociedade liberal mercantil moderna, a qual, animada pelo princípio transformador do trabalho e do intercâmbio de bens, de mercadorias e de idéias, realiza, no movimento natural dos interesses privados, um arranjo coletivo virtuoso. 36

Skinner entende que há em Maquiavel o valor moderno da liberdade pessoal, apenas entendida no sentido de que “cada cidadão permanece livre de qualquer elemento constrangedor (especialmente aqueles que decorrem da dependência pessoal e da servidão) e, em conseqüência, permanece livre

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para perseguir seus próprios fins escolhidos.” (SKINNER, Quentin. The republican ideal of political liberty. In: BOCK, G., SKIINNER, Q., VIROLI, M. (ed.) Machiavelli and republicanism. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 302). Este comentador baseia-se no pressuposto de que quando Maquiavel afirma, por exemplo, que os Estados que defendem a liberdade individual têm mais êxito na sua constituição e são mais estáveis, está propondo uma concepção que é compatível com o princípio liberal da liberdade individual. “A população é mais numerosa, porque os casamentos são mais livres e desejáveis; cada um tem todos os filhos que pode manter, porque não teme perder o patrimônio, e sabe que eles não serão escravos, mas sim homens livres, capazes de chegar, pelas suas qualidades, às posições mais elevadas. Multiplicam-se então as riquezas: as que a agricultura produz e as que derivam da indústria. Todos se empenham em aumentar os seus bens, seguros de que poderão gozá-los; em conseqüência, empenham-se em conseguir o que vai favorecer a cada um em particular e a todos de modo geral, crescendo assim cada vez mais a prosperidade pública.” (MAQUIAVEL, N. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. Sérgio Bath, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1979, 2ª ed., 1982, Livro II, cap. 2, p. 200). 37

Esta não é a posição de Spitz. Segundo este autor, deves-se, sim, discutir o valor intrínseco da liberdade como um bem. Ao enfatizar que a liberdade política é um instrumento para a liberdade civil, “Skinner cede ao canto de sereia da síntese liberal quando ele renuncia a mostrar que a liberdade é um bem em si mesmo [...]” (La liberté politique, op. cit. p. 170). “Instrumentalizando a virtude, Skinner simplesmente recusa compreender que é um bem ser livre, de se determinar a si mesmo, de ser senhor do seu destino ao invés de ser determinado por ele; ou, se é um bem ser livre e se esta liberdade tem necessariamente a forma de uma vida coletiva na qual os homens tentam coletivamente se tornarem senhores dos elementos da fortuna e da mecanização que procura dominá-los, deve-se concluir que é, também, um bem viver entre homens livres numa sociedade política que possui uma forma republicana.” (Ibid. p. 171,2). Apesar dessa crítica ao flerte de Skinner a algumas posições do liberalismo, Spitz afirma que “a concepção republicana da liberdade é ao mesmo tempo profundamente diferente do liberalismo e violentamente crítica a seu respeito; mas ela é, também, próxima a ele, uma vez que compartilha com ele o caráter incontestável da intuição pluralista.” (Spitz, p. 229). Maynor, de certo modo, concorda com Spitz, pois entende que o projeto republicano tem o seu próprio valor que se opõe, inclusive, às teses do liberalismo, e que, portanto, ele não pode ser reduzido aos ideais

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deste último ou instrumentalizado para revigorar a política liberal, enfraquecida pela ausência das virtudes cívicas e da participação democrática do republicanismo. Apesar da concordância com as principais teses defendidas por Pettit, Skinner e Viroli, este autor observa que a alternativa republicana moderna “deve ser significativamente diferente da abordagem liberal contemporânea.” (MAYNOR, John W. Republicanism in the modern world, Cambridge: Polity Press, 2003, p. 20).

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PERSPECTIVAS DE MORALIZAÇÃO DO DIREITO: KANT E HABERMAS Delamar José Volpato Dutra* Resumo O direito porta uma conexão com a moral ou ao menos o direito que se pretende legítimo porta tal conexão. Essa é uma tese claramente sustentada por Habermas: “através dos componentes de legitimidade da validade jurídica, o direito adquire uma relação com a moral”. Habermas concebe tal relação ao modo negativo, ou seja, segundo ele “uma ordem jurídica só pode ser legítima, quando não contrariar princípios morais”. Kant, no entanto, parece ter defendido uma relação muito mais estreita entre a validade jurídica e a validade moral, tanto que Habermas o acusa de deduzir o direito ao modo da limitação da moral, implicando uma subordinação daquele a esta, que ele epiteta, inclusive, de platônica. Guido de Almeida chega a sustentar que para Kant as leis jurídicas são uma subclasse das leis morais. Pretende-se avaliar, neste estudo, essa interpretação de Kant, bem como as objeções de Habermas a ela. Palavras-chave Moral, direito, Kant, Habermas, legitimidade O ENCLAUSURAMENTO MORAL DA CORREÇÃO JURÍDICA O direito porta uma conexão com a moral ou ao menos o direito que se pretende legítimo porta tal conexão. Como afirma Habermas, “através dos componentes de legitimidade da validade jurídica, o direito adquire uma relação com a moral”1. Habermas concebe tal relação ao modo negativo, ou seja, segundo ele “uma ordem jurídica só pode ser legítima, quando não contrariar princípios morais”2. Kant, no entanto, parece ter defendido uma relação muito *

Doutor em Filosofia pela UFRGS e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 337 - 356, out. 2007

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mais estreita entre a validade jurídica e a validade moral, tanto que Habermas o acusa de deduzir o direito ao modo da limitação da moral, implicando uma subordinação daquele a esta, que ele epiteta, inclusive, de platônica: Na sua Introdução à metafísica dos costumes, Kant procede diferentemente. Ele parte do conceito fundamental da lei da liberdade moral e extrai dela as leis jurídicas seguindo o caminho da redução [Einschränkung]. A teoria moral fornece os conceitos superiores: vontade e arbítrio, ação e mola impulsionadora, dever e inclinação, lei e legislação, que servem inicialmente para a determinação do agir e do julgar moral. Na doutrina do direito, esses conceitos fundamentais da moral são reduzidos a três dimensões. Segundo Kant, o conceito do direito não se refere primariamente à vontade livre, mas ao arbítrio dos destinatários; abrange a relação externa de uma pessoa com outra; e recebe a autorização para a coerção, que um está autorizado a usar contra outro, em caso de abuso. O princípio do direito limita o princípio da moral sob esses três pontos de vista. A partir dessa limitação, a legislação moral reflete-se na jurídica, a moralidade na legalidade, os deveres éticos nos deveres jurídicos, etc. Subjaz a essa construção a idéia platônica segundo a qual a ordem jurídica copia e, ao mesmo tempo, concretiza no mundo fenomenal a ordem inteligível de um “reino dos fins”3.

Pretende-se avaliar, neste texto, essa interpretação de Kant. Para Kant, o que caracteriza a Filosofia do Direito é o estudo do direito sob o ponto de vista da justiça. Essa matriz própria da disciplina pode ser percebida já no início da Doutrina do direito. De fato, nos §A, B e C da Introdução a essa obra, Kant distingue lei [Gesetz] de direito [Recht]. Assim, ele pode diferenciar uma doutrina do direito positivo - ou seja, uma doutrina do direito cuja preocupação

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é a lei [Gesetz, ius] no sentido da lei positiva, - de uma doutrina do direito que tem por objeto o direito justo [Recht, iustum]. O especialista da primeira [iurisconsultus] seria o conhecedor do que “dizem ou disseram as leis [Gesetz] em um certo lugar e em um certo tempo” (quid sit iuris). O especialista da segunda seria o filósofo, visto que este buscaria o fundamento [Grundlage], ou seja, “o critério universal com que se pode conhecer em geral tanto o justo quanto o injusto (iustum et iniustum)”. Como se pode perceber, há uma relação entre ius e iustum que os termos latinos deixam perceber. Se pensarmos que ius, Gesetz, seja, para além do direito positivo, “o conjunto das leis para as quais é possível uma legislação externa”, então, pode-se inferir que a relação entre Gesetz/ius e Recht/iustum, é de gênero e espécie. Assim, Kant salvaguarda tanto a possibilidade de leis positivas que possam não ser justas, quanto a possibilidade de leis justas que possam não estar positivadas ainda. Umas e outras serão sempre ius no sentido mencionado neste parágrafo; no entanto, o importante para a Filosofia é a espécie iustum, ou melhor, a busca de critérios universais para tal determinação. Kant pensou encontrar o critério de justiça na universalidade da lei. Assim, segundo ele, “o direito [das Recht] é, pois, o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser reunido com o arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade”, sendo “justa [recht] toda ação segundo a qual ou segundo cuja máxima a liberdade do arbítrio de cada um pode coexistir com a liberdade de qualquer um segundo uma lei universal, etc.”. Na Introdução à Metafísica dos Costumes Kant parece mais incisivo na relação da metafísica dos costumes com a moral. Ele preceitua no texto a relação que a lei moral pode ter com a liberdade humana. Se a lei moral incidir sobre a conduta externa, sobre a liberdade no seu uso externo, ela será jurídica; se incidir sobre a liberdade também no seu uso interno, será ética: Estas leis da liberdade chamam-se morais, à diferença de leis naturais. Na medida em que incidem apenas sobre ações meramente externas e sua legalidade, elas se chamam jurídicas; mas, Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 337 - 356, out. 2007

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se exigem também que elas (as leis) sejam mesmo os fundamentos de determinação das ações, elas são éticas, dizendo-se então: a concordância com as primeiras é a legalidade, a concordância com as últimas, à moralidade das ações4.

A clivagem kantiana opera de dois modos. Primeiro, exclui do âmbito jurídico deveres – se houver algum5 - que não tenham qualquer reflexo externo. Segundo, torna a ação ética, gênero capaz de abarcar em si também as ações do uso externo da liberdade: A legislação ética, ao contrário, embora também torne deveres ações internas, não o faz com exclusão das externas, incidindo, sim, sobre tudo em geral que é dever. No entanto, porque a legislação ética inclui em sua lei o móbil interno da ação (a idéia do dever), determinação essa que não tem de influir de maneira alguma na legislação externa, justamente por isto a legislação ética não pode ser externa (nem mesmo a de uma vontade divina), ainda que assuma como deveres, em sua legislação sobre móbeis, os deveres que dependem de uma outra legislação, a saber, a externa. Pode-se ver, assim, que todos os deveres, pelo simples fato de serem deveres, pertencem à ética; mas sua legislação não por isso se encontra sempre na ética, mas, para muitos deles, fora da mesma6.

Esse passo na diferenciação kantiana do direito e da moral permite-lhe, depois, tornar, - justamente no que lhe interessa, a fundamentação do direito –, este um caso daquela. No presente contexto, interessa como Kant teoriza o conceito de coação. Tal conceito determina que ele tenha que diferenciar a legislação moral da jurídica. Uma diferenciação, aliás, já prefigurada na distinção entre ações por dever e conforme o dever. O problema, nesse caso, é dar conta de ações externamente concordantes com a

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lei moral, mas não internamente concordantes, ou seja, trata-se de “quando a ação é conforme ao dever e o sujeito é, além disso, levado a ela por inclinação imediata”7. No caso do direito, a coerção é bem mais palpável do que a coerção das inclinações, posta à base daquela distinção primeva, pois, embora não seja incompatível com a moral, o direito pode não só estatuir uma legislação contrária à moral, como obrigar à força um dado comportamento. De fato, o conceito de coerção é fundamental, pois Kant parte dele em sua análise do direito. Na verdade, o conceito de direito é definido pela coerção, o que determina que não se possa apresentar a regra do direito prioritariamente como um dever moral8. Cabe aqui a observação de que “o conceito de dever é já, em si mesmo, o conceito de uma coerção (coação) do livre arbítrio pela lei; essa coação pode ser uma coação exterior ou por si mesmo” 9. Assim, “todos os deveres envolvem um conceito de coerção pela lei; os deveres éticos envolvem uma coerção que não pode advir senão de uma legislação interna, ao passo que os deveres de direito envolvem uma coerção que pode também advir de uma legislação externa. Encontra-se, portanto, nos dois casos, o conceito de coação, quer se trate de uma coação sobre si ou de uma coação por um outro”10. O direito, naturalmente, porta uma coerção no sentido externo, pois “direito e autorização [Befugnis] para coagir são uma e a mesma coisa”11. Kant pretende que ao direito esteja ligada, pelo princípio de contradição, uma autorização para a coerção. A dedução que ele apresenta quer, mais do que mostrar que ao direito esteja ligada a coerção, mostrar que essa coerção seja justa. Nessa dedução12, ele parte do princípio de que “a resistência oposta ao obstáculo de um efeito é um auxiliar desse efeito e concorda com ele” 13 . Se considerarmos que a liberdade definida a partir do princípio do direito é um efeito desejado, então, todos os possíveis atos de liberdade visando a impedir este efeito serão considerados como um obstáculo a ele, sendo justo coibir este obstáculo à liberdade, definida daquela forma. Assim, o direito estrito pode se abster de qualquer consideração a respeito de móbiles, tratando-se de uma exterioridade regida a partir de uma coação externa14. A coação, como se pode perceber, toca na questão da motivação, ou seja, no momento do acatamento da lei, quando ela é Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 337 - 356, out. 2007

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incorporada numa máxima: “o conceito positivo de liberdade consiste no poder da razão de ser por si mesma prática”15. A razão prática pura, como poder legiferante a partir da universalidade, estabelece leis, as quais, neste caso, são morais. Uma ação tem valor moral quando a própria lei se constitui em princípio determinante da ação. Quando o princípio determinante da ação não for a lei moral, então, o comportamento terá legalidade. Assim, “a liberdade à qual se referem as leis jurídicas só pode ser a liberdade no seu uso exterior, mas aquele a que se refere as leis éticas é a liberdade em seu uso interno e externo do arbítrio”16. Ou seja, no caso moral, a lei diz respeito tanto ao exterior, quanto ao interior, podendo, dessa forma, constituir-se, também, em princípio interno de determinação. Em suma, “a doutrina do direito e a doutrina da virtude, se distinguem, então, bem menos por deveres diferentes que pela diferença de legislação que associa à lei um móbil antes que um outro”17. A moral tem deveres particulares, como para consigo mesmo, e outros ela tem em comum com o direito, mas ela se distingue, na verdade, é no modo de obrigação. Moral e direito são, portanto, conceitualmente distintos sob o ponto de vista da motivação [motivação interna e externa], mas não são, em princípio, incompatíveis, tanto sob o ponto de vista da justificação [leis morais] quanto, também, da própria motivação. Tal compatibilidade/incompatibilidade tem como fundamento o fato de que para “leis idênticas às máximas dos agentes podem ser muito diferentes”18. Esta caracterização do direito a partir da moral parece colocálo numa posição inferior, normativamente, àquela da moral, já que haveria, na formulação de Heck, uma primazia normativa desta sobre aquele19. Como complemento da legitimidade do direito, a moral é necessária, “pois uma ordem jurídica só pode ser legítima, quando não contrariar princípios morais”20. Mas, essa condição negativa de validade das normas jurídicas não esgota todo o âmbito da legitimidade jurídica. Aqui, Habermas se distingue de Kant, já que, para este, toda a legitimidade jurídica advém da possibilidade de converter qualquer dever jurídico em dever moral. Assim, a legitimidade jurídica fica devedora, completamente, de uma legitimidade que a precede e que lhe é anterior21. Nas palavras de Heck, “Kant possui um conceito

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moral de direito e um princípio jusnaturalista de direito [...] O conceito moral de direito contém uma obrigatoriedade (Verbindlichkeit) comum à Doutrina do direito e à Doutrina da virtude”22. Sendo assim, “a possibilidade de haver obrigações jurídicas se deve, em Kant, ao fato de haver uma efetiva obrigatoriedade moral”.23 De fato, Kant fala de um conceito moral de direito24, que pode ser entendido, radicalmente, no seguinte sentido: “Nós só conhecemos nossa própria liberdade (de que procedem todas as leis morais, portanto também todos os direitos tanto quanto os deveres) através do imperativo moral, que é uma proposição que ordena um dever, a partir do qual pode ser desenvolvida posteriormente a faculdade de obrigar os outros, i. e., o conceito do direito”25. Dessa forma, todos os deveres são deveres éticos, mas nem todos podem ser deveres jurídicos: a todo dever corresponde um direito considerado como capacidade (facultas moralis generatim), o que não quer dizer que a todo dever correspondem direitos de outro (facultas juridica) coagir todos; isto só se aplica aos deveres ditos de direito [...] O dever de virtude se distingue essencialmente do dever de direito na medida em que para este é possível uma coação exterior, ao passo que aquele repousa unicamente sobre uma livre coação sobre si26.

Por isso Heck conclui aparentemente com razão: “deveres de direito não passam, para Kant, de uma subclasse da categoria dos deveres morais”27. Em suma, há uma certa plausibilidade, em Kant, da tese da subsunção do direito à moral. De fato, Kant sustenta que “a doutrina do direito e a doutrina da virtude, se distinguem, então, bem menos por deveres diferentes que pela diferença de legislação que associa à lei um móbil antes que um outro”28. Ademais, ele faz afirmações como as seguintes: (a) “o conceito do direito, enquanto relacionado a uma obrigação correspondente (i. e., seu conceito moral), diz respeito [...]”29; (b) “o direito como faculdade (moral) de obrigar outros, i. e., como um fundamento legal para os últimos (titulum), tem por divisão superior aquela entre direito inato e adquirido”30. Guido de Almeida, Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 337 - 356, out. 2007

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como já mencionado, chega a sustentar que para Kant as leis jurídicas são uma subclasse das leis morais 31 . Bem como uma certa plausibilidade da tese do conhecimento moral da liberdade: “mas por que a doutrina dos costumes (moral) é ordinariamente (particularmente por Cícero) intitulada a doutrina dos deveres e não também dos direitos, dado que uns se referem aos outros? – O fundamento é este: Nós só conhecemos nossa própria liberdade (de que procedem todas as leis morais, portanto também todos os direitos tanto quanto os deveres) através do imperativo moral, que é uma proposição que ordena um dever, a partir do qual pode ser desenvolvida posteriormente a faculdade de obrigar os outros, i. e., o conceito do direito”.32 Habermas tem reservas contra estas duas teses. Com relação à tese da subsunção, Habermas afirma: “subjaz a essa construção a idéia platônica segundo a qual a ordem jurídica copia e, ao mesmo tempo, concretiza no mundo fenomenal a ordem inteligível de um ‘reino dos fins’”33. No mesmo diapasão Heck conclui: “deveres de direito não passam, para Kant, de uma subclasse da categoria dos deveres morais”34. Com relação à segunda tese, Habermas propugna um autêntico conhecimento jurídico da liberdade, como já avançado acima. CONTUSÕES DA CORREÇÃO JURÍDICA NA CLAUSURA DA MORAL Como já mencionado, Kant tem clara, no início de seu texto, não só a conexão do direito com a justiça, mas também a conexão entre direito e coerção. Apesar de ter distinguido Recht de Gesetz, ou seja, iustum de ius, o uso do termo Recht guardará certa ambigüidade no texto kantiano, na medida em que o direito porta uma conexão necessária com a coerção. Tal ambigüidade se mostra no fato que a coerção pode estar ligada também a uma lei injusta [iniustum], sendo que Kant parece estar preocupado, no início da Doutrina do Direito, somente com a conexão entre coação e normas justas. Neste caso, um uso justo da coerção ocorre, nos termos do § D, quando ela impede um uso incorreto, injusto, da liberdade. Mas, ela poderia ser usada também para impedir um uso justo da liberdade. Pode-se pensar, por exemplo, que a coerção obrigava os servidores públicos do regime

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nazista a executar judeus. Ora, este é um uso da coerção que impede um uso da liberdade justa, ou seja, em acordo com uma lei universal. Essa ambigüidade ocorre porque não há uma correspondência biunívoca entre a caracterização do direito como uma legislação externa e a caracterização do direito como iustum. Aquela caracterização pode incluir, não só normas injustas, mas também um uso injusto da coerção. Ou seja, na definição da externalidade da conduta jurídica Kant elimina toda característica própria da ação moral, ou seja, qualquer relação com a motivação moral, sendo possível tal conduta ocorrer somente por motivos heterônomos. Isso é o que é dito no § E, onde ele deixa de pensar o direito – ou ao menos o direito puro - como um sistema de obrigação pela lei/faculdade de coagir à obrigação e passa a pensá-lo por fundamentos meramente externos, sem nenhuma mescla ética ou de virtude. Ele continua a sustentar que o direito se “fundamenta certamente na consciência da obrigação de cada qual segundo a lei” – o que seria o seu fundamento moral, conforme preceitua o § B35 –, no entanto, a determinação do arbítrio não deve e não pode recorrer a esta consciência, mas à coerção externa, portanto, para exemplificar, o credor não vai lembrar ao devedor que a sua própria razão o obriga ao pagamento, mas vai coagi-lo; daí a sua conclusão: “direito e faculdade de coagir significam, portanto, a mesma coisa”. Tanto que autor chega a afirmar que “não é tanto o conceito do direito, mas a coação geralmente igual e recíproca, concordante com ele e universalmente submetida a leis, que torna possível a exibição daquele conceito”. Tal estaria até mesmo presente na própria formulação do princípio do direito, o qual inclui em si a universalidade como critério. No entanto, é bom remarcar que, por um lado, admitida tal subordinação, Kant não vai ao ponto de descaracterizar normas injustas como sendo não jurídicas36 – como faz Alexy37; por outro lado, a independência normativa da legitimidade jurídica defendida por Habermas não vai ao ponto de tornar legítimas normas jurídicas que contrariem a moral, como visto acima. Interessantemente, o mais aferrado à moral, Kant, nega um direito de desobediência, honrando sobremaneira a norma jurídica e o menos aferrado, aparentemente, à moral, Habermas, afirma um direito de desobediência, honrando sobremaneira a moral. Portanto, o que parece mesmo haver é uma Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 337 - 356, out. 2007

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disputa de família sobre o modo como a legitimidade jurídica deva ser entendida – sendo inevitável, nessa tarefa, o confronto com a moral , de tal forma que Kant defende uma relação mais próxima com a moral do que aquela de Habermas. Na arquitetônica de ambos isso já se mostra, no primeiro, pela passagem que Kant faz da legislação moral para a jurídica, ao passo que Habermas neutraliza moralmente o princípio do discurso, ficando já bem clara a separação entre o princípio de universalização e o princípio da democracia, este último o procedimento básico para a legitimidade jurídica. O problema, é que parecem existir pontos no kantismo que tornam difícil a sua interpretação. De fato, Kant parece estatuir um poder legislativo forte como fonte de produção do direito: O poder legislativo somente pode caber à vontade unificada do povo. Pois, uma vez que deve proceder dele todo direito [ênfase acrescentada], não deve ele por sua lei poder ser injusto pura e simplesmente com ninguém. Ora, se alguém decide algo em relação a um outro, sempre é possível que assim ele seja injusto com ele, mas nunca naquilo que ele decide acerca de si mesmo (pois volenti non fit injuria). Assim, somente a vontade concordante e unificada de todos, na medida em que cada um decide o mesmo sobre todos e todos sobre um, portanto somente a vontade universalmente unificada do povo é legisladora38.

Ao mesmo tempo ele estabelece fortes reservas contra tal poder, começando por dividi-lo: “um governo que fosse ao mesmo tempo legislador teria de ser chamado de despótico”39; “das três formas de Estado, a democracia é, no sentido próprio da palavra, necessariamente um despotismo, porque funda um poder executivo em que todos decidem sobre e, em todo caso, também contra um (que por conseguinte, não dá o seu consentimento), portanto, todos, sem no entanto serem todos, decidem – o que é uma contradição da vontade geral consigo mesma e com a liberdade”40. Depois, em razão da impossibilidade de se decidir por unanimidade, obrigando ao que o princípio legislativo seja a maioria, ele preceitua:

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Se, por conseguinte não se pode esperar unanimidade de um povo inteiro, se, portanto, apenas se pode prever como alcançável uma maioria de votos e, claro está, não a partir dos votantes diretos (num povo grande), mas apenas dos delegados enquanto representantes do povo, então, o próprio princípio que consiste em contentar-se com esta maioria, e enquanto princípio admitido com o acordo geral, portanto, mediante um contrato, é que deverá ser o princípio supremo do estabelecimento de uma constituição civil41.

Em função dessas reservas, ele pontua a conformidade da legislação com a justiça, leia-se, com a moral, cuja harmonia com a mesma parece ter sido resumida em três princípios extremamente abstratos, os quais decorrem do fato do homem possuir direitos inalienáveis que não pode abandonar e sobre os quais pode julgar, de tal forma que, “o que um povo não pode decidir a seu respeito também o não pode decidir o legislador em relação ao povo”42. Tais princípios Kant os enumera do seguinte modo: “Por isso, o estado civil, considerado simplesmente como situação jurídica, fundase nos seguintes princípios a priori: 1. A liberdade de cada membro da sociedade, como homem; 2. A igualdade deste com todos os outros, como súdito; 3. A independência de cada membro de uma comunidade como cidadão”43. Pode ser objeto de litígio saber se Kant pensava que a aplicação de tais princípios na verificação de certa legitimidade a priori das normas jurídicas era ou não uma operação simples. Ele parece sugerir que seja simples quando da análise da correção de um tributo: se, numa guerra, “certos proprietários fossem importunados por contribuições, enquanto outros da mesma condição eram poupados, fácil é de ver que um povo inteiro não poderia consentir em semelhante lei, e é autorizado a fazer pelo menos protestos contra a mesma, porque não pode considerar justa a desigual repartição dos encargos”44. No entanto, ele parece ter errado na análise da independência e igualdade com relação à mulher, o que pode apontar para uma dificuldade de aplicação, isso na medida em que ele sustentou uma fundamentação natural para sustentar a posição Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 337 - 356, out. 2007

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inferior daquela, pois para votar, ao lado de necessidade de ter alguma propriedade, - sobre o que ele confessa “difícil determinar os prérequisitos para se poder reclamar o estado de um homem que é o seu próprio senhor”45 - acosta a qualidade natural de não ser mulher ou criança46, sobre o que não manifesta dúvida. Do mesmo modo, o senhorio do homem no casamento não conflitaria com a igualdade, pois “este domínio se baseia apenas na superioridade natural da faculdade do homem sobre a da mulher na realização do interesse comum da família e no direito do comando fundado nesta superioridade, o que se pode, por isto, derivar mesmo do dever da unidade e da igualdade em vista do fim”47. Ademais, ele não concebeu um órgão político competente para verificar da compatibilidade das leis com tal princípio, mas concedeu tal à liberdade de escrever, como se confiasse isso a todos os cidadãos ou a todos os homens: “a injustiça de que, na sua opinião, ele é vítima só pode, segundo aquele pressuposto, ter lugar por erro ou por ignorância do poder soberano quanto a certos efeitos das leis [...] Com efeito, admitir que o soberano não pode errar ou ignorar alguma coisa seria representá-lo como agraciado de inspirações celestes e superior à humanidade. Por isso, a liberdade de escrever (...) é o único paládio dos direitos do povo”48. No entanto, segunda a letra, Kant parece negar a possibilidade do controle de constitucionalidade. Ele afirma na Doutrina do Direito: “aliás, mesmo na constituição não pode haver nenhum artigo que tornasse possível a um poder no Estado, no caso da transgressão das leis constitucionais pelo comandante supremo, opor-se a ele e assim restringi-lo. Pois aquele que deve restringir o poder no Estado tem de possuir certamente mais ou ao menos igual poder do que possui aquele que é restringido”49. A razão que Kant parece apontar para o que se poderia chamar de um tribunal constitucional, como ele diz, um “poder restritivo” dos “guardiões de sua liberdade”, é o despotismo - justamente a acusação que fez Jefferson ao controle de constitucionalidade -: “mas, então, o comandante supremo não é aquele, e sim esse, o que se contradiz. O soberano procede então, através de seu ministro, ao mesmo tempo como regente, portanto despoticamente”50. E conclui: “portanto a assim chamada constituição moderada, como constituição do direito interno do Estado, é uma quimera, e, ao invés de pertencer ao direito, é tão-somente um princípio prudencial, não tanto de dificultar ao

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poderoso transgressor dos direitos do povo sua influência arbitrária, mas de ocultá-la sob a aparência de uma oposição permitida ao povo”51. Uma voz poderosa discordante ao exposto até o momento é aquela de Höffe. Embora ao comentar o texto de Ak VI 230: “o direito é, pois, o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser reunido com o arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade” ele afirme que “Kant derives right from morals”52, ele, tomando por base uma outra passagem desta mesma página, onde se lê: “pode-se, portanto, pensar uma legislação externa que contivesse somente leis positivas”, comenta taxativamente: “This speaks against Habermas’s thesis that Kant´s ‘subordination of right under morals’ (not morality!) is ‘incompatible with the autonomy realized in the medium of right itself’. Kant´s subordination is in fact a minimal condition placed on all right, namely, the prohibition of naked force. It also demonstrates the first instance of justice that defines right: Without a minimal element of justice, right cannot be defined as right”53. Em conclusão, os pontos de Habermas contra Kant poderiam ser resumidos do seguinte modo:  a formulação do princípio da liberdade, em Kant, parece excluir simplesmente qualquer questão concernente à felicidade da esfera política. De fato, Kant afirma que o direito não concerne à felicidade, sendo que esta não deve absolutamente mesclar-se com o direito, pois este não tem nada a ver com tal fim. A razão que ele aponta para tal é a diversidade de pensamento a respeito da matéria, impossibilitando um princípio comum 54 . Habermas está disposto a aceitar a possibilidade de o direito legislar em questões de felicidade, no que ele nomina de razões éticas, ou ao menos está a sustentar que o limite entre a vida privada e pública deva ser objeto de deliberação pública;  Kant não formula um critério próprio para o direito legítimo com alguma marca distinta do princípio moral. Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 337 - 356, out. 2007

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O critério de legitimidade é ainda para Kant o critério moral da universalidade, apenas restrito ao uso externo da liberdade. O procedimento legislativo sustentando por Kant se define pela exigência moral da aceitabilidade ou possibilidade de aceitabilidade por todos, segundo o critério da universalidade. Em razão dessa exigência do procedimento jurídico, Kant teria dificuldade para explicar uma validade mais complexa própria do direito, que tem que legislar inclusive sobre questões para além da daquelas de justiça que Kant retira tout court da competência de sua doutrina do direito. Veja o que Habermas afirma “a complexa pretensão de validade de normas jurídicas pode ser entendida como a pretensão de levar em conta, em primeiro lugar, os interesses parciais afirmados estrategicamente, de modo que estes se combinem com o bem comum; em segundo lugar, de recuperar os princípios universalistas de justiça no horizonte de uma forma de vida cunhada por constelações particulares de valores”55;  que o direito porte uma conexão com a moral é acorde nos dois pensadores. Há uma discordância com relação à extensão de tal conexão, bem como com relação ao modo como deva ser concebida. Para Kant, parece, a racionalidade jurídica, sob o ponto de vista justiça, é indiferente da correção moral, implicando a necessidade da confusão dos procedimentos respectivos. Do enclausuramento moral da racionalidade jurídica decorre, portanto, a feitura moral, ou quase-moral, do procedimento democrático, mormente com a formulação do princípio da liberdade de buscar sua própria felicidade. Habermas, ao diferenciar a correção jurídica da moral, pode também diferenciar dois procedimentos respectivos, sem desmerecer o devido tributo que o direito deve prestar à ética discursiva. Neste caso, os produtos do procedimento moral, por ser mais exigente, é vinculante para o procedecimento democrático, assim como uma norma

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constitucional é vinculante em relação a uma ordinária, em razão do procedimento diferenciado daquela. NOTAS EXPLICATIVAS 1

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 141. 2

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 141-2. 3

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 140. Embora esteja suficientemente claro o sentido do termo platonismo aqui usado, ou seja, como hierarquia de normas, é necessário, porém, esclarecer que o ajuizamento da ética kantiana como um certo platonismo, de forma alguma implica uma concepção substancial do bem, até porque Habermas tende a interpretar Kant, na linha de Rawls, como um processualista. 4

Ak VI 214. As citações de Kant serão feitas tomando como referência a paginação da edição da academia, abreviada por Ak, seguidas do número do volume, em caracteres romanos, e da página, em caracteres arábicos. As traduções são tomadas de publicações no vernáculo. 5

Para Kant, mesmo com relação aos deveres de virtude podem ser ordenadas ações externas que conduzam a eles [Ak VI 239]. 6

Ak VI 219.

7

Ak IV 397.

8

Cfr. Ak VI 231.

9

Ak VI 379.

10

Ak VI 394.

11

Ak VI 232. Definir o que seja o direito é muito importante porque o princípio supremo do direito é analítico [cfr. Ak VI 396], ou seja, decorre do próprio conceito do direito. Se o direito for coercitivo no sentido externo, entende-se Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 337 - 356, out. 2007

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por que o princípio do direito se deva entender como limitação da liberdade. Coagir é limitar. E como se trata de uma limitação sobre as possibilidades dos projetos de felicidade, a medida da limitação tem que ser dada pela exata necessidade de compatibilização de arbítrios: “o conceito de um direito exterior em geral provém inteiramente do conceito de liberdade nas relações externas dos homens entre si, e não tem nada a ver com o fim que naturalmente todos os homens têm [a busca da felicidade] e com o preceito concernente aos meios para alcançá-la” [Ak VIII 289]. O direito restringe o espaço da ação e libera o espaço da motivação. Não se pode negar, porém, que a limitação para compatibilizar os arbítrios assegure condições para serem realizados projetos de felicidade individuais [cfr. Ak IV 399]. 12

Para uma análise detalhada dessa dedução, ver: GUYER, Paul. Kant’s Deduction of the Principles of Right. In TIMMONS, Mark [ed.]. Kant’s Metaphysics of Morals: interpretative essays. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 23-64. 13

Ak VI 231.

14

Cfr. Ak VI 232.

15

Ak VI 214.

16

Ak VI 214.

17

Ak VI 220.

18

Ak VI 225.

19

Cfr. HECK, José N. Direito e moral: duas lições sobre Kant. Goiânia: EDUFG/ EDUCG, 2000, p. 21s. 20

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 140-1.

21

“Deveres de direito não passam, para Kant, de uma subclasse da categoria dos deveres morais, a saber: a subclasse de obrigações para cuja observância o agente pode também ser forçado por meios externos” [HECK, José N. Direito e moral: duas lições sobre Kant. Goiânia: EDUFG/EDUCG, 2000. p. 61].

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22

HECK, José N. Direito e moral: duas lições sobre Kant. Goiânia: EDUFG/ EDUCG, 2000. p. 24. 23

HECK, José N. Direito e moral: duas lições sobre Kant. Goiânia: EDUFG/ EDUCG, 2000. p. 25. 24

Ak VI 230.

25

Ak VI 239.

26

Ak VI 383.

27

HECK, José N. Direito e moral: duas lições sobre Kant. Goiânia: EDUFG/ EDUCG, 2000. p. 61. 28

Ak VI 220.

29

Ak VI 230.

30

Ak VI 237.

31

ALMEIDA, Guido Antônio de. Sobre o princípio e a lei universal do Direito em Kant. Kriterion. N. 114, 2006, p. 209-222. Passin. 32

Ak VI 239.

33

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 140. Embora esteja suficientemente claro o sentido do termo platonismo aqui usado, ou seja, como hierarquia de normas, é necessário, porém, esclarecer que o ajuizamento da ética kantiana como um certo platonismo de forma alguma implica uma concepção substancial do bem, até porque Habermas tende a interpretar Kant, na linha de Rawls, como um processualista. 34

HECK, José N. Direito e moral: duas lições sobre Kant. Goiânia: EDUFG/ EDUCG, 2000, p. 61. 35

Ak VI 237.

36

“O fundamento do dever do povo de suportar mesmo um abuso do poder supremo considerado insuportável encontra-se nisto: que sua resistência à Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 337 - 356, out. 2007

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própria legislação suprema nunca pode ser pensada senão como ilegal e mesmo como destruindo o todo da constituição legal” [Ak VI 320]. 37

ALEXY, Robert. Begriff und Geltung des Rechts. Freiburg: K. Alber, 1994.

38

Ak VI 313-4.

39

Ak VI 316.

40

Ak VIII 352.

41

Ak VIII 296.

42

Ak VIII 304.

43

Ak VIII 290.

44

Ak VIII 297.

45

Ak VI 295 nota.

46

Ak VIII 295.

47

Ak VI 279.

48

Ak VIII 304.

49

Ak VI 319.

50

Ak VI 319.

51

Ak VI 320. “uma constituição política feita de maneira tal que o povo, através de seus representantes (no parlamento), pode resistir legalmente à constituição e a seu representante (o ministro)” [Ak VI 322]. 52

HÖFFE, Otfried. Kant’s Cosmopolitan Theory of Law and Peace. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 110. 53

HÖFFE, Otfried. Kant’s Cosmopolitan Theory of Law and Peace. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 96.

354

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54

Ak VIII 289-290.

55

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 351.

REFERÊNCIAS

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BIEN COMÚN, DISCURSO Y ÉTICA PÚBLICA Dorando J. Michelini* Resumen Cuando en momentos de crisis política y conflictos sociales se recurre al concepto de bien común, como a un slogan salvador, con la expectativa de restablecer un acuerdo básico entre los ciudadanos, parecería que todos saben a qué contenidos, expectativas y procedimientos se está remitiendo. Sin embargo, la mera apelación al concepto tradicional de bien común no suele producir los resultados esperados. El artículo presenta algunas deficiencias de la conceptualización tradicional del bonum commune, y muestra cómo puede ser rehabilitado, desde una perspectiva dialógico-comunicativa, para la interacción ciudadana en contextos democráticos pluralistas e interculturales. Palabras clave Bien común, teoría discursiva, ciudadanía participativa, ética, política. INTRODUCCIÓN En momentos de conflictos sociales graves y de crisis política suele apelarse al concepto de bien común del mismo modo en que se recurre a una barca salvadora en medio de un naufragio. En tales casos, pareciera ser que basta con remitir al concepto de bien común para que todos los ciudadanos entiendan qué tenemos que hacer para no sucumbir en el borrascoso mar de la conflictividad social y política. El concepto de bien común suele ser utilizado como un slogan salvador, por medio del cual se busca no sólo hacer tomar conciencia de una situación social, política e institucional crítica, sino también señalar un fundamento para la reorganización de la vida social. *

Doutor em Filosofia pela Westfälische-Wilhelms-Universität, WWU, Alemanha, professor da Universidad Nacional de Río Cuarto, Argentina e Investigador do CONICET, Fundación ICALA. Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 357 - 374, out. 2007

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Sin embargo, el concepto de bien común no es tan “claro y distinto” como para que, con su mera mención, todos los ciudadanos interpreten la realidad de modo similar, estén de acuerdo con las medidas que se habrán de tomar para salir de la crisis y asuman su responsabilidad de forma eficaz y solidaria. Es por ello que es necesario preguntar: ¿Qué se quiere decir, cuando se dice que todos debemos obrar en un determinado sentido para salir de la crisis o, simplemente, perseguir el bien común? ¿Se pretende indicar que sólo hay una salida válida y que se acabaron las opciones? ¿O, quizá, que al tomar una determinada decisión se acabarán los disensos y los conflictos? El concepto de bien común se utiliza en diversos ámbitos como, por ejemplo, en el ecológico, el bioético, el social, el político, etcétera- para hacer referencia a cuestiones más o menos generales sobre el bienestar de todos, y a puntos de vista que, supuestamente, serían compartidos por todos los ciudadanos o por la mayoría de ellos. En este sentido, también es posible preguntar: ¿Qué se pretende alcanzar cuando se pone en juego el concepto de bien común? ¿Se sabe ya de antemano qué se busca y sólo se necesita incentivar a todos y cada uno de los ciudadanos para que tengan a la vista el bienestar general y aporten a su realización? ¿Se tiene, en fin, la idea de poner en práctica o de restablecer una forma determinada de “vida buena” para todos? Estas últimas cuestiones no son sencillas de resolver. En vista de contextos heterogéneos, pluralistas e interculturales de interacción, cabe preguntar sobre la posibilidad de una definición unívoca y universal del bien común en cualquier circunstancia social y política: por ejemplo, ¿es posible realizar el bien común en el marco de una dictadura o en contextos de extrema pobreza y de exclusión?; ¿O es que, para la consecución del bien común hace falta un ordenamiento social y político determinado, democrático y pluralista? En este sentido, otra pregunta que se presenta a la reflexión es la que refiere a la forma por la cual sería posible alcanzar el bien común en vista de la pluralidad, la diversidad e, incluso, del antagonismo de las distintas concepciones del bien. Por todo ello, no parece un asunto sencillo precisar, en definitiva, de qué se trata cada vez que se apela al bien común, ni determinar con claridad si toda vez que se recurre a este

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concepto se están persiguiendo los mismos fines y se pretenden alcanzar los mismos resultados. Después de muchos debates y congresos internacionales sobre el bien común, en la actualidad parece claro que no es sencillo precisar de qué estamos hablando concretamente cuando hablamos de bien común, ni por qué es necesario el bien común para comprender las complejas sociedades actuales. Tampoco es fácil mostrar en qué consiste el bien común ni precisar cómo puede alcanzarse o delimitar su contenido concreto en el marco de las formas de vida diversas y heterogéneas de las sociedades democráticas actuales. Por último, cabe preguntar asimismo qué puede aportar de significativo para las sociedades modernas la rehabilitación de un concepto que proviene de la organización política de sociedades tradicionales. Es por ello que la tarea de precisar qué se entiende por “bien” y qué se entiende por “común” en el contexto de sociedades democráticas -pluralistas, complejas y conflictivas- aparece como un emprendimiento arduo y de dudoso éxito. No obstante, el objetivo de este trabajo es mostrar, al menos esquemáticamente, en qué sentido puede seguir siendo no sólo posible, sino también significativo, hablar de bien común en el marco de una sociedad democrática. En otros lugares me he referido críticamente al concepto tradicional de bien común (Michelini, 2007a) y, en vista de las sociedades democráticas, pluralistas y heterogéneas de la actualidad, he mostrado en qué sentido puede ser rehabilitado un concepto de bien común que haga justicia con las exigencias de un ordenamiento político justo y solidario. (Michelini, 2007b) En lo que sigue, pretendo mostrar algunas deficiencias conceptuales de la noción tradicional de bien común (1), como así también precisar dos ámbitos de aplicación diferentes, pero complementarios, del concepto de bien común (2), y, finalmente, cerrar con unas observaciones metodológicas (3). 1. DEFICIENCIAS DEL CONCEPTO TRADICIONAL DE BIEN COMÚN El “concepto tradicional” de bien común no puede ser rehabilitado sin más en las sociedades modernas, democráticas y Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 357 - 374, out. 2007

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pluralistas, ya que adolece de notables deficiencias de tipo epistemológico, político, filosófico y metodológico. Por “concepto tradicional” de bien común se entiende la interpretación del bien común que proviene de la tradición griega y medieval, cuyos principales representantes son Platón, Aristóteles y Santo Tomás. 1.1

PROBLEMA EPISTEMOLÓGICO

El concepto tradicional de bien común está asentado sobre bases metafísicas que implican un determinado concepto de objetividad y de naturaleza, el cual ya no es comprensible de suyo en el marco de las reflexiones filosóficas actuales. A partir de la Modernidad, y con el auge del conocimiento científico, comienzan a cuestionarse fuertemente las ideas gnoseológicas clave de la metafísica. El conocimiento científico muestra la extrema complejidad no sólo del universo, sino también de lo que tradicionalmente se conoce como “naturaleza humana” y, correlativamente, de lo que ha de entenderse por vida, por muerte y por dignidad humana. Los aportes de la neurociencia, de las ciencias humanas y de la filosofía muestran no sólo el alcance y la complejidad, sino también los límites del conocimiento humano. (Martínez Miguélez, 2007) Las teorías metafísicas son deficitarias en cuanto a la fundamentación filosófica de la moral, en la medida en que sostienen que el orden moral surge “de forma inmediata de la esencia del hombre y del mundo circundante” y puede ser obtenido “de la experiencia, mediante la abstracción” (Irrgang, 1995: 199) o leído objetivamente en la naturaleza de las cosas (Jonas, 1995: 35). Por lo demás, ya no es posible hablar de objetividad en términos meramente metafísicos (ni tampoco positivistas o esencialistas). Lo “objetivo” dice relación intrínseca a lo “intersubjetivo” y el conocimiento depende de la interacción interpretativa en una comunidad de comunicación. (Habermas, 1997) También el concepto de naturaleza humana ha sido fuertemente criticado y ya no es posible tener una definición cabal de lo que se entiende por ello. La conciencia ya no es interpretada como “espejo” de la naturaleza; “ya los filósofos medievales fueron conscientes de esta realidad, y la cristalizaron en un lema famoso:

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‘quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur’ “ (Martínez Miguélez, 2007). Al déficit de fundamentación se suma la identificación de la metafísica antigua, esencialista, con el “poder”. Vattimo sostiene que la metafísica antigua “ha sobrevivido porque ha sobrevivido la antigua estructura de poder” (Vattimo, 2006: 95). En este mismo sentido es posible interpretar que “ponerse fuera del logos metafísico es casi lo mismo que cesar de buscar el poder” (Rorty, 2006: 86). Ante la debilidad de las fundamentaciones metafísicas es necesario buscar otras fuentes de legitimación y fundamentación del bien común, acordes con el giro pragmático, lingüístico y comunicativo de la reflexión filosófica actual. 1.2 PROBLEMA POLÍTICO El concepto de bien común está estrechamente relacionado con lo político. Cada vez que hay una crisis social o política seria se suele recordar a la ciudadanía que los gobernantes tienen una responsabilidad especial en relación con el servicio a la sociedad y que toda la actividad política tiene que estar orientada, en última instancia, al bien común. Se suele sostener, sin mayores precisiones, que la finalidad de la acción gubernamental, tal como se enmarca en la constitución argentina, es el bien común, y se supone que éste constituye una dimensión ética de la política. En este sentido, existiría cierta circularidad en la noción de bien común y la noción de “buen” ciudadano: sólo podría denominarse buen ciudadano y buen político a aquel que busca el bien común, y viceversa, el bien común sólo podría ser alcanzado por buenos gobernantes (es decir, gobernantes competentes, eficaces y honestos) y por buenos ciudadanos (esto es: por ciudadanos responsables y solidarios). Es por ello que, ante esta serie de supuestos que consideran al bien común como una noción obvia y comprensible de suyo, algunos de los problemas que surgen son los de determinar en qué consiste el bien común y cómo se alcanza. Desde un punto de vista no sólo histórico-político, sino también teórico-sistemático, hay que destacar la gran diferencia que existe, por ejemplo, entre la concepción del

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bien común en la polis griega y la comprensión del bien común en una sociedad moderna democrática, compleja, pluralista e intercultural. En la tradición griega platónico-aristotélica, la reflexión sobre el bien común sólo se refería a los ciudadanos de la polis (se estima que eran unos 40 mil); de ella quedaban excluidos los esclavos, los extranjeros y los demás habitantes libres, como las mujeres. La comprensión del bien común, en el contexto de la polis, estaba así limitada no sólo por restricciones geográficas, sino también ideológicas y de género. Además, el bien de los individuos era concebido como equivalente al bien de la polis, y viceversa. El concepto “común” remitía asimismo a una comunidad particular, sustentada étnicamente en las costumbres y los ideales griegos. En las sociedades modernas, por el contrario, no es sencillo determinar en qué consiste el bien común, dada la diversidad de tradiciones y la heterogeneidad de formas de vida que la componen, y dado que las interpretaciones de lo que es considerado “bueno” o “un bien” son frecuentemente, aún dentro de la propia comunidad, no sólo diversas sino también divergentes. Por lo demás, en las sociedades modernas, el bien de los individuos y el bien de la sociedad no son percibidos ya como equivalentes. El concepto “común” tampoco puede ser comprendido, en sentido restrictivo, sólo sobre la base ideológica o étnica de una comunidad particular, sino que requiere ser interpretado como articulador de diversas comunidades. Desde otro punto de vista, el bien común ha sido interpretado no pocas veces como una responsabilidad de la autoridad. Así, por ejemplo, en el ámbito de la reflexión cristiana sobre política y fe se insiste, desde los tiempos fundacionales, en la necesidad de orar por los gobernantes y respetar a las autoridades, ya que ellos son los que tienen que conducir al bien a los ciudadanos. Según San Pablo, por ejemplo, hay que respetar a toda autoridad humana “porque no hay autoridad que no esté puesta por Dios; y las que existen, por Dios han sido puestas. Así el que se opone a la autoridad se opone al orden puesto por Dios; [...] pues para ti es la autoridad un instrumento de Dios para llevarte al bien” (Rom. 13). De acuerdo con el mensaje cristiano, el respeto que tiene que darse a la autoridad humana se fundamenta en la idea de que, en última instancia, el poder y la autoridad

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provienen de Dios. Desde esta perspectiva, todo poder humano tiene como fundamento último la denominada “ley natural”, la cual, según Santo Tomás de Aquino (Collationes in decem praeceptis, 1) “no es otra cosa que la luz de la inteligencia puesta en nosotros por Dios; por ello conocemos lo que es preciso hacer y lo que es preciso evitar. Esta luz o esta ley, Dios la ha dado a la creación”. Y el Catecismo de la Iglesia Católica enseña que el Decálogo es una “expresión privilegiada de la ‘ley natural’ “ (CIC, 1993: 2070). Siendo una “ley divina” y “obra de la sabiduría divina” (CIC, 1993: 1950), la ley natural es interpretada como perteneciente a la “naturaleza humana” (CIC, 1993: 1955) y, por consiguiente, como base universal para la orientación moral y política. En resumen: si bien se reconoce que la elección del régimen de gobierno y de los gobernantes es una cuestión que compete a la libertad y la voluntad de los ciudadanos, no se pretende afirmar con ello que basta con el “consenso de los afectados” o con la “decisión de una mayoría” para legitimar un régimen político, puesto que las decisiones democráticas y todo derecho positivo que sean contarios a la ley natural no son legítimos y deben ser rechazados, porque “los regímenes cuya naturaleza es contraria a la ley natural, al orden público y a los derechos fundamentales de las personas, no pueden realizar el bien común de las naciones en las que se han impuesto” (CIC, 1993: 1901). En la idea de ley natural, la comunicación entre los afectados y la solución consensuada de los problemas políticos, jurídicos y morales no es un elemento relevante: puesto que toda norma encuentra su fundamento último en una instancia trascendente, los afectados se limitan a asentir o no el orden preestablecido. Por el contrario, para la teoría habermasiana de la moral, de la política y del derecho (Habermas, 1998: 169), la competencia comunicativa y el desempeño discursivo efectivo de los afectados son decisivos, en razón de que el asentimiento que los afectados dan o rehúsan a las normas de convivencia proviene exclusivamente de la autonomía de los individuos. 1.3 PROBLEMA FILOSÓFICO El problema filosófico tiene que ver, en todo intento de una reinterpretación actual del bien común, con una reflexión que esté a Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 357 - 374, out. 2007

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la altura de los distintos aspectos fundamentales que caracterizan a la reflexión filosófica contemporánea. En este contexto no puedo detenerme en la enumeración y la explicitación de cada uno de estos aspectos, pero, al menos, quisiera mencionar los tres siguientes: a) El “giro lingüístico-pragmático” de la filosofía contemporánea En general, las formas metafísicas tradicionales de fundamentación filosófica -y, especialmente, de fundamentación éticaestán devaluadas. (Rorty, 2006: 47) Además, después de los fenómenos del “historicismo”, de los giros “pragmático”, “lingüístico” y “comunicativo” y, en general, del antiesencialismo de la reflexión filosófica de las últimas décadas, en la actualidad ya no es posible filosofar “monológicamente” y “al margen del lenguaje”. (Maliandi, 2003) La superación de las dicotomías esencialistas (como entre lo aparente y lo real, entre alma y cuerpo, etcétera), la centralidad de un concepto no instrumentalista del lenguaje, de la historicidad y de la intersubjetividad son características centrales del quehacer filosófico actual. El disloque de la metafísica en el contexto de la reflexión filosófica de los últimos tiempos se sustenta en la idea de una experiencia humana lingüística e históricamente condicionada, que se desarrolla como interpretación y en la que “no hay otros hechos que los hechos lingüísticos” (Zabala, 2006: 20). Reinterpretar el concepto de bien común desde esta perspectiva histórica y lingüístico-comunicativa implica no sólo evaluar críticamente las fundamentaciones metafísicas tradicionales, sino también sugerir de qué forma el concepto de bien común puede ser legitimado desde los presupuestos lingüístico-comunicativos de interacción y en el contexto de comunidades históricas signadas por la interculturalidad, el poder y la exclusión. b) La crítica radical de la razón y la problemática de la fundamentación filosófica de las normas morales El problema de una legitimación racional del bien común no puede soslayar los desafíos que provienen del debilitamiento de la razón humana como instancia de legitimación y justificación del

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conocimiento. Junto con la devaluación de los sistemas tradicionales de orientación y legitimación de las normas morales, aparece un fenómeno que puede denominarse “crítica radical de la razón”. Con esta expresión se busca señalar que la comprensión moderna de la razón es deficiente: la razón, lejos de estar orientada al conocimiento de la verdad, está intrínsecamente articulada con los intereses y el poder, por lo cual debe ser radicalmente cuestionada: aparece en escena “lo otro de la razón”. En el ámbito de la filosofía práctica, del derecho, de la política y, muy especialmente, de la ética, surge no sólo la ardua cuestión de saber hasta qué punto la crítica a la razón es sostenible y razonable, sino también el interrogante acerca de si es necesario y posible fundamentar normas universales, intersubjetivamente vinculantes. Las concepciones tradicionales de bien común están sustentadas en pretensiones de verdad y de corrección que no pueden ser resueltas exclusivamente a través de la razón, del diálogo y del entendimiento mutuo, puesto que remiten a instancias últimas articuladas con una determinada visión del mundo. Ahora bien, dado que en toda sociedad democrática hay diversas y divergentes pretensiones de validez, también en relación con la idea de bien común, es necesario indagar si es posible una fundamentación de la idea de bien común sobre una base de cuño exclusivamente racional. c) Los desafíos de la ciencia, la técnica y la interculturalidad Tanto el “giro aplicado” de la filosofía práctica en general y, de la ética, en especial, como la ciencia, la técnica y la interculturalidad presentan al quehacer filosófico diversos desafíos que tienen que ver con la responsabilidad y la solidaridad, y, por consiguiente, con la aceptabilidad de las consecuencias que acarrean las normas bien fundadas en el mundo de la vida. En este sentido, la “aplicación” de las normas morales no puede remitir sino a una interacción social histórica e intercultural concreta que tenga como idea regulativa la consecución del bien común. Desde hace algunas décadas, la filosofía se ha tornado “práctica”: Particularmente en el ámbito de la ética es posible advertir Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 357 - 374, out. 2007

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que ya no se trata sólo de tener principios “bien fundados”, sino también “aplicables”, es decir, articulables con las exigencias del mundo de la vida. La reflexión filosófica busca legitimar no sólo normas teóricas, sino también normas prácticas que sean eficaces en el contexto y en las situaciones, sin caer en el contextualismo y el situacionismo. En relación con la problemática del bien común, se trata de precisar cómo puede determinarse lo bueno o el bien, de forma que sea legítimamente “común”, pero también cómo puede asegurarse que lo que se decida en forma común sea un “bien”. 2. LA ÉTICA DEL DISCURSO COMO ÉTICA PÚBLICA Para explicitar en qué sentido puede seguir siendo utilizado el concepto de bien común en el marco de sociedades democráticas y pluralistas recurro al marco conceptual teórico y metodológico de la Ética del Discurso. (Apel, 1985; Habermas, 1998, 2000; Michelini, 1998, 2000) Frente a los desafíos que presentan las consecuencias del desarrollo científico-tecnológico, como así también la debilidad de los sistemas tradicionales de orientación y legitimación de las normas morales y la crítica radical de la razón, la Ética del Discurso se propone una doble tarea: por un lado, fundamentar racionalmente normas morales intersubjetivamente válidas, y, por otro, fundamentar su aplicación a la realidad histórica, situacional y contextual. (Apel, 1995; Habermas, 1990) En lo que respecta a la fundamentación filosófica éticodiscursiva de la ética, la idea clave es la de discurso. Habermas expresa que, cuando se interrumpe la acción comunicativa en el mundo de la vida, la única forma ética de restablecer la interacción comunicativa es recurriendo al discurso, en el cual es posible solventar las pretensiones de validez cuestionadas. La fundamentación ética, desde una perspectiva filosófica, consiste justamente en una reconstrucción reflexiva de lo que presuponemos performativamente siempre que argumentamos. Los presupuestos de la argumentación son instancias racionales irrebasables y constituyen lo que Apel denomina la meta-norma o norma básica de la Ética del Discurso.

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Esta norma expresa la exigencia de que los conflictos de intereses se resuelvan a través de “discursos prácticos” -esto es: a través de un diálogo racional, en el cual se analizan y, eventualmente, se resuelven las pretensiones de validez cuestionadas. En los discursos prácticos tienen que tenerse en cuenta no sólo los intereses de los participantes en el discurso, sino también los intereses de los posibles afectados; sólo está permitido aportar argumentos racionales, y todos los afectados por un problema o conflicto deben participar en su tratamiento y solución en forma libre, sin coacciones y en igualdad de condiciones. El criterio ético de la solución racional de conflictos es el consenso. La ética del discurso se autocomprende como una transformación lingüístico-comunicativa del principio deontológico kantiano de universalización (el imperativo categórico). La resolución racional y legítima de conflictos depende de un entendimiento concreto que tiene como idea regulativa la inclusión de todos los afectados. (Habermas, 1998: 88; Maliandi, 1994: 52) En tanto que teoría ética, la tarea central de la ética del discurso no consiste en prescribir normas u ofrecer motivos para la acción, sino en fundamentar normas intersubjetivamente vinculantes (tarea que es desempeñada por la pragmática universal y la pragmática trascendental respectivamente), mediante una reflexión radical sobre los presupuestos inevitables de la argumentación, y en fundamentar la articulación entre los principios bien fundados y las exigencias situacionales y contextuales de la acción social. Entre estos presupuestos se cuentan tanto la idea de una situación ideal de habla o comunidad ideal de comunicación, que en cada acto de habla hace posible inteligir el sentido de lo expresado, como así también la exigencia práctica de una resolución argumentativa de los conflictos. (Apel, 1995, 2007; Habermas, 2000) La Ética del Discurso -en la medida en que se autocomprende como una teoría procedimentalista, anclada en el lenguaje y la comunicación- puede ofrecer un marco filosófico, teórica y metodológicamente adecuado, para pensar las exigencias normativas de una ética pública y una rehabilitación justificada de un concepto discursivo de bien común.

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3. CONSECUENCIAS PARA UNA TEORÍA ÉTICODISCURSIVA DEL BIEN COMÚN Las sociedades contemporáneas se enfrentan no sólo a grandes transformaciones, provocadas en gran medida por el desarrollo de la ciencia y la técnica, sino también a enormes desafíos, como los de la supervivencia de la especia humana y el de la exclusión. Pareciera ser que ya no se trata de alcanzar la felicidad y la vida buena, sino de sobrevivir: la escasez, el poder y la pugna por los intereses particulares consolidan el dominio de la racionalidad estratégica frente a la racionalidad ética y comunicativa. A su vez, la globalización, las nuevas tecnologías de la comunicación y el afloramiento de una innumerable diversidad de formas de vida, tradiciones y culturas no parecen contribuir, al menos a primera vista, a un mayor entendimiento entre los seres humanos. En este contexto histórico-epocal de enormes contradicciones y conflictos, cabe preguntar: ¿Tiene sentido seguir hablando de bien común? ¿Qué puede entenderse por “bien” y por “común” en el contexto de sociedades complejas y pluralistas? Algunos de los problemas que se presentan con la interpretación y consecución del bien común, pueden ser graficados de la siguiente forma: Si se interpreta “la barca del bien común” como la posesión de determinados bienes primarios, indispensables para vivir, hay que constatar que en las diversas formas de organización actual de la convivencia humana a nivel global, y muy especialmente en los momentos de crisis, no todos los ciudadanos pueden acceder al barco salvavida: en semejante barco no caben todos, hay excluidos. A esto se suma que algunos desconfían que esta nave del bien común pueda ofrecer una solución realista a los problemas de convivencia y, confiando más en las propias fuerzas y en el interés propio, renuncian libremente a embarcarse. Por lo demás, en el barco no todos los tripulantes están de acuerdo en la ruta que habría que seguir para llegar a buen puerto o en las medidas que habría que tomar para evitar el naufragio. Y mientras algunos discuten sobre la conveniencia o no de embarcarse, hay quienes no pueden o no quieren intervenir en las deliberaciones. Otros, en fin, lejos de interesarse por la situación

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y ofrecer algún aporte de solución sobre la base de la deliberación y el entendimiento mutuo, confían ciegamente en el capitán y dejan en sus manos la decisión última, puesto que en el barco, se argumenta, el capitán es el que sabe y el que manda. ¿Pero qué hacer cuando los tripulantes no confían en el capitán, o cuando éste pierde su credibilidad y, con ello, su autoridad? El núcleo teórico-filosófico y metodológico de la Ética del Discurso permite esbozar una idea peculiar de cómo puede abordarse la cuestión del bien común en el contexto de sociedades democráticas, en las cuales se expresan diferentes y divergentes concepciones de vida buena. Para finalizar, quisiera mencionar sintéticamente los aspectos más importantes de un concepto comunicativo-discursivo de bien común: a) Desde el punto de vista de una teoría ética comunicativodiscursiva, la idea regulativa de una sociedad sin exclusión es un concepto clave en esta concepción del bien común. En consecuencia, lo que ha de ser considerado un “bien” y lo que debe ser considerado “común” sólo puede determinarse, de forma legítima, por medio de la participación efectiva de todos los argumentantes. Esto implica que lo que en cada caso ha de ser considerado como un “bien” y como “común” no podrá ser establecido en contra o al margen de la aceptación libre de todos los afectados (no sólo de los participantes en el diálogo), ni podrá ser determinado legítimamente sin discursos públicos, o en contra o al margen de ellos. b) Desde la concepción de la Ética del Discurso es posible fundamentar un concepto procedimental de bien común. Pensar el bien común desde una perspectiva procedimental ético-discursiva implica no excluir del discurso argumentativo a ningún argumentante en ningún tema que sea públicamente relevante y afecte sus intereses. El supuesto primordial de un concepto ético-comunicativo de bien común es que las personas -en tanto individuos corporales lingüística y

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comunicativamente competentes- puedan participar en igualdad de condiciones en un diálogo “en serio” sobre todos aquellos asuntos que les afectan en el ámbito público. Sobre esta base de intervención directa e insustituible de las personas en todo aquello que les concierne, compete y afecta en el ámbito público es posible eliminar paulatinamente las asimetrías que dificultan o, incluso, imposibilitan un diálogo en serio sobre la base del reconocimiento mutuo como seres libres y autónomos, y consolidar de forma corresponsable y solidaria lo que en cada caso sea considerado como bien común por todos los argumentantes. c) La diferencia y complementación entre lo formal y lo sustantivo en relación con el concepto de bien común tiene que ser comprendido aproximadamente de la siguiente manera: desde el punto de vista procedimental, el bien común fundamental es la no exclusión del discurso de ningún argumentante; en este sentido, el bien común no es “algo sustantivo” o un bien concreto que tiene que ser distribuido de forma justa, equitativa y solidaria, sino un asunto formal: una idea regulativa para la determinación de lo que ha de valer como “bien” y como “común”. El concepto de bien común, entendido como “idea regulativa”, implica la renuncia a imponer una concepción particular del bien a todos los demás argumentantes, y la disposición a examinar con todos los posibles afectados qué ha de valer como “bueno” y como “común”. Desde el punto de vista del contenido, el bien común puede ser determinado legítimamente por los afectados. Nadie puede determinar, de modo dogmático y acrítico, lo que deba ser el bien común para el otro. La inclusión de todos los afectados es así un requisito necesario no sólo para determinar qué puede ser querido como bien y como común, sino también para comprobar si las consecuencias que se derivan del seguimiento general de lo que en cada caso sea considerado como bien común puede ser efectivamente aceptado por todos y cada uno de los afectados.

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La inclusión de todos los afectados es así un requisito necesario no sólo para determinar qué puede ser querido como bien y como común, sino también para comprobar si las consecuencias que se derivan del seguimiento general de lo que en cada caso sea considerado como bien común puede ser efectivamente aceptado por todos y cada uno de los afectados. d) En consecuencia, y acorde con lo expresado hasta aquí, bien común no significa primeramente nada sustantivo, sino, más bien, un ideal regulativo: crear, mantener y desarrollar las condiciones que hagan factible la realización de la comunidad de comunicación supuesta idealmente en cada acto de habla. Se trata, por lo tanto, de contribuir solidaria y responsablemente en la tarea de adquisición y desarrollo de las competencias lingüísticocomunicativas supuestas contrafácticamente en la comunidad ideal de comunicación, y de hacer los aportes correspondientes para crear y asegurar las condiciones materiales, institucionales y culturales de supervivencia de la comunidad real de comunicación. El bien común, entendido en un sentido procedimental y concebido como idea regulativa, puede ser ilustrado siguiendo con esta imagen náutica- no tanto como un barco al que se debe acceder para evitar el naufragio, sino como la creación de condiciones generales para la navegación: fundamentalmente, crear condiciones sociales, materiales y culturales que permitan embarcarse sin restricciones, y crear condiciones comunicativas para que el barco tenga una orientación aceptada por todos y aceptable para todos los navegantes. Ahora bien, crear condiciones sociales materiales, culturales y comunicativas es una tarea que nos compete primordialmente a todos y a cada uno de los ciudadanos. No es tarea exclusiva o prioritaria de terceros: de un capitán, de una autoridad, de una institución especial o de una ideología. Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 357 - 374, out. 2007

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LA OBLIGACIÓN MORAL DE RECORDAR El debate sobre la memoria histórica de la Guerra Civil española Francisco Colom González* Resumen Durante el período de transición española a la democracia hubo un consenso entre los protagonistas de derecha e izquierda en el sentido de superar la dictadura franquista sin buscar las responsabilidades y sin que se pidiera perdón tanto por las atrocidades cometidas por ambos bandos durante la Guerra Civil como por la represión de los años de dictadura. Sin embargo, la función terapéutica de la memoria sólo permite la reconciliación del pasado con el futuro cuando no se alimenta el resentimiento o el deseo de venganza, pero, cuando se hace justicia: identificar a los verdugos, compadecer y compensar a las víctimas, reparando su dignidad, y ubicándolas en la memoria. Palabras clave Memoria, reconocimiento, guerra civil, dictadura, transición. El 18 de julio de 2007 se cumplieron setenta años del inicio de la guerra civil española. Coincidiendo con este aniversario el gobierno español prepara la promulgación de una ley para la extensión de derechos a los afectados por la guerra civil y la dictadura, más conocida popularmente como Ley de Memoria Histórica, dirigida a reparar el honor y el recuerdo de las víctimas de la contienda de 1936-39 y del franquismo. Previamente se había declarado el año 2006 como Año de la Memoria Histórica mediante otra ley que reconocía en la Segunda República española (1931-1939) “el antecedente más inmediato y la más importante experiencia democrática que podemos contemplar al mirar nuestro pasado”. Esa ley declaraba necesario recordar “con todos sus defectos y virtudes -con toda su complejidad y su trágico desenlace-, buena parte de los valores y principios políticos y sociales que presidieron ese período *

Doutor em Filosofia pela Universidad Complutense de Madrid e Investigador do Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC-España) Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 375 - 388, out. 2007

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[republicano] y que se han hecho realidad en nuestro actual Estado social y democrático de Derecho”.1 La nueva Ley de Memoria Histórica contiene un apartado económico destinado a compensar a quienes se vieron excluidos de medidas anteriores (a los que fueron sometidos a trabajos forzados durante la dictadura, por ejemplo), pero es éste un capítulo menor y de escaso significado político. Al fin y al cabo los supervivientes son ya pocos. La importancia de esta ley estriba más bien en su dimensión simbólica, ya que se ha justificado aludiendo a la dignidad de las víctimas y a la recuperación de la memoria histórica: a la manera, en definitiva, en que la sociedad española debe enfrentarse con su pasado. Se trata de un asunto espinoso que, como era de esperar, ha levantado ampollas en determinados sectores de la opinión pública española. Su interés, sin embargo, trasciende el ámbito español, pues apunta en última instancia a la función moral de la memoria, una cuestión fundamental para las sociedades privadas de inocencia histórica, lo que es tanto como decir toda sociedad humana. Es sabido que la transición española a la democracia iniciada en 1977 se basó en un acuerdo tácito entre las fuerza políticas que la guiaron. La creación de una nueva institucionalidad que superase la dictadura se hizo sin mirar atrás, sin exigir responsabilidades y sin que nadie pidiese perdón. A diferencia de otras experiencias internacionales posteriores, en España no hubo comisiones de la verdad, ni informes sobre los crímenes cometidos por la dictadura, ni reparaciones simbólicas a las víctimas de un período que abarca casi medio siglo de su historia contemporánea. El temor a una involución política impidió que se incluyese en el proceso de democratización una reflexión terapéutica sobre el pasado. No sólo existía un hiato generacional entre las víctimas y los protagonistas de la transición. La izquierda estaba impaciente por consolidar unos cambios que le permitiesen acceder al poder y era consciente del soporte sociológico que con el tiempo se había procurado la dictadura franquista. Reivindicar justicia hacia el pasado no parecía tan urgente como consolidar una alternativa para el presente. Por su parte, la derecha consideraba el régimen del general Franco como un producto colateral de la guerra civil, y ésta y sus atrocidades como una consecuencia inevitable del caos de la Segunda República. Esta es una vieja tesis que la literatura revisionista sobre las causas de la guerra ha rescatado con gran éxito editorial

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durante los últimos años.2 Sus connotaciones ideológicas son claras: se justifica el franquismo por la guerra y ésta por el contexto político previo. Puesto que ambas partes cometieron atrocidades durante la contienda, no habría nada que ganar escarbando en el pasado, salvo el peligro de resucitar los viejos demonios familiares. Mejor dejar las cosas como están y, de paso, permitir que la historia oficial elaborada por el franquismo siga imperando públicamente en los lugares de la memoria. Todo ello ha llevado a que se hable a menudo de la existencia de un pacto de olvido o de una amnesia programada como trasfondo de la transición española a la democracia. Los datos demuestran, sin embargo, que la rememoración y estudio de la guerra civil han sido una constante en la vida cultural y académica durante el período democrático.3 Desde la muerte del dictador en 1975 la abundancia de estudios históricos, películas y monografías divulgativas sobre la guerra civil, y en menor medida sobre el franquismo, han creado una montaña de material en la que resulta difícil desenvolverse. Esta avalancha ha pasado, además, por distintos ciclos: desde el interés inicial por el propio desarrollo de la guerra al énfasis en la represión de postguerra, pasando por las condiciones de la vida cotidiana bajo el franquismo y, en la actualidad, al debate con los revisionistas de derecha sobre las causas e, implícitamente, sobre la justificación del estallido de la guerra. Sin embargo, semejante abundancia de documentación coincide con una creciente sensación pública de falta de memoria histórica sobre este decisivo período de la España contemporánea. Algunos críticos de esta percepción, como el historiador Santos Juliá, han denunciado la existencia en la base de la misma de una confusión epistemológica entre las funciones cognitivas de recordar y conocer tras la que latiría un prejuicio organicista sobre la concepción de la sociedad. En realidad, añade Juliá, no se puede tener memoria más que de aquello que personalmente se ha vivido. Por lo tanto, estrictamente hablando, ningún individuo puede tener memoria histórica, sino tan sólo recuerdos personales. Sólo la historia en cuanto disciplina científica puede recuperar el pasado como conocimiento. La historia se aprende, no se recuerda. La dimensión social de los recuerdos, su institucionalización en un relato público, está mediada políticamente e implica una relación afectiva con el pasado: Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 375 - 388, out. 2007

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mientras el conocimiento histórico tiende a la objetividad por el uso de instrumentos propios de la crítica, hay tantas memorias como individuos, por más que grupos de individuos puedan compartir (a base de celebraciones o de adoctrinamiento) idénticas memorias de un acontecimiento que les haya afectado; sólo en este sentido podría hablarse de memoria colectiva.4

De acuerdo con interpretaciones como las de Juliá, no hubo silencio ni olvido en la transición española, sino un pacto político para no pedir cuentas por el pasado a fin de construir un modelo de convivencia orientado hacia el futuro. La Ley de Amnistía del 14 octubre de 1977, consensuada en las Cortes españolas tras las primeras elecciones democráticas, junto con el indulto concedido por el nuevo Rey a la muerte del dictador, habrían clausurado un pasado de guerra y dictadura. Así, no sólo los luchadores por la democracia en la clandestinidad, sino también los acusados de crímenes terroristas durante el último período del franquismo y los funcionarios del régimen responsables de abusos contra los derechos humanos se vieron beneficiados e igualados por las medidas de gracia durante la transición. A diferencia de las contestadas leyes de amnistía y punto final en Chile y Argentina, la cancelación de las responsabilidades políticas por el pasado se realizó en España con un notable consenso social o, cuanto menos, en ausencia de protestas significativas. Pero si esto realmente fue así, ¿por qué el actual repunte del interés en la sociedad española por la recuperación de la memoria histórica sobre la guerra civil y el franquismo? Hay una coincidencia general en señalar al relevo generacional como uno de los principales responsables de este cambio en la actitud hacia el pasado. No sólo han desaparecido los condicionantes políticos que marcaron la transición a la democracia en España: las nuevas generaciones han perdido el temor que embargaba a sus antecesores, de manera que son ahora los nietos de los muertos y represaliados, no los hijos, quienes reivindican la memoria y la dignidad de sus abuelos. No se trata, pues, de una carencia de estudios históricos sobre ese pasado, ni de negar el evidente incremento del conocimiento sobre

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hechos acaecidos durante la guerra y la dictadura. Asistimos más bien a una nueva sensibilidad pública sobre el reconocimiento simbólico que la democracia española les debe a todas las víctimas de la guerra civil, que lo fueron de ambos bandos, y a las víctimas del franquismo, que lo fueron estrictamente de los responsables del bando vencedor. Porque si bien la transición a la democracia canceló las responsabilidades penales de la etapa anterior y no han existido trabas insuperables para la investigación histórica de ese período, no es menos cierto que el acuerdo de no hacer del pasado una cuestión política partía de una desigualdad evidente: los crímenes cometidos en la zona republicana durante la guerra fueron extensamente investigados por la denominada Causa General informativa, creada por decreto del Ministerio de Justicia el 26 de abril de 1940 con la intención de averiguar “los hechos delictivos y otros aspectos de la vida en la zona roja desde el 18 de julio de 1936 hasta la liberación”. El propósito de este informe, no exento de manipulaciones y utilizado como coartada de la propia violencia del bando nacionalista, era investigar “cuanto concierne al crimen, sus causas y efectos, procedimientos empleados en su ejecución, atribución de responsabilidades, identificación de las víctimas y concreción de los daños causados, lo mismo en el orden material que en el moral, contra las personas, contra los bienes, así como contra la religión, la cultura, el arte y el patrimonio nacionales”. Este inmenso expediente, completado con los informes remitidos desde cada uno de los pueblos de España, nunca llegó a publicarse en su totalidad. En su lugar lo fue un documento titulado Causa General: la dominación roja en España,5 en el que se destacaban los aspectos más relevantes de la represión republicana. En cualquier caso, las víctimas de la derecha fueron en general públicamente reconocidas y honradas como caídos por Dios y por España tras el final de la contienda y sus familiares compensados con los medios que permitía la situación del país en aquellos momentos. Por el contrario, las víctimas republicanas, así como los miles de fusilados durante los años de brutal represión en la postguerra, sufrieron una doble muerte -física y simbólica-, pues no sólo fueron sus nombres omitidos del recuerdo público, sino que en muchos casos sus cuerpos y lugar de sepultura ni siquiera llegaron a ser identificados. Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 375 - 388, out. 2007

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Irónicamente España, un país que se enorgullece en la actualidad de su contribución a los organismos y campañas internacionales en favor de la paz, cuenta con miles de desaparecidos anónimamente enterrados en cunetas y campos por todo el país. Obviamente, quienes sufrieron en silencio la pérdida de seres queridos jamás olvidaron, pero el temor instaurado en la sociedad española, particularmente en las zonas rurales, donde los mecanismos de control social suelen ser más estrechos, impidió durante largo tiempo que ese duelo privado se transformase en reivindicación pública. La inhibición de la memoria quedó así especialmente instalada en aquellos sectores sociales más directamente afectados por la represión franquista. Durante los últimos años ese velo de temor y pudor ha ido desapareciendo. Las nuevas generaciones retoman con curiosidad aquello que sus mayores decidieron que era mejor no remover. Los síntomas son numerosos y reveladores. Los seriales televisivos que recrean la vida cotidiana durante el franquismo han batido índices de audiencia. Uno de los mayores éxitos editoriales de los últimos años en España ha sido una novela, Soldados de Salamina, que relata con estilo de indagación histórica los ficticios avatares de uno de los fundadores de la Falange, Rafael Sánchez Mazas, tras su fallido fusilamiento en los últimos días de la guerra.6 También, cada verano, la apertura de viejas fosas comunes por grupos de voluntarios y organizaciones de la sociedad civil ha venido concitando una mayor atención.7 Sin embargo, no se trata a estas alturas de reclamar responsabilidades, sino de restituir la dignidad de los muertos y su memoria entre los vivos. No hay evidencias de que sea el revanchismo lo que mueve tales iniciativas, como denuncian los voceros de la derecha más recalcitrante, ni existen en cualquier caso vías jurídicas que pudieran darle un cauce penal a esa supuesta intención vengativa. En realidad, la iniciativa legislativa sobre la memoria histórica había quedado empantanada en el parlamento español tras el debate de su totalidad en diciembre de 2006. Fue sólo el 20 de abril de 2007 cuando un nuevo pacto entre el gobierno socialista y sus aliados parlamentarios dio un giro al proyecto de ley, que incluye ahora la declaración como ilegítimos de las sentencias y los tribunales políticos franquistas.8 No obstante, el gobierno ha advertido que esta declaración genérica de ilegitimidad no tendrá efectos jurídicos ni dará derecho a

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indemnizaciones, pero podrá ser utilizada para reclamar la nulidad de las condenas decretadas por la dictadura. Por todo lo visto, nos encontramos ante una reivindicación eminentemente simbólica, ante un deseo de reconciliación con el pasado asentado en la compasión y en el recuerdo, no en la represión de la memoria. Sus connotaciones políticas son, sin embargo, innegables, porque se trata al fin y al cabo de interrogarse por la función social y moral de la memoria en sociedades carentes de inocencia histórica. La inabarcable bibliografía sobre el genocidio judío durante la Segunda Guerra Mundial, sobre su significado moral, político y cultural, es un ejemplo que viene a desmentir el relativismo histórico de quienes se sienten cómodamente instalados en la conveniencia política de la desmemoria. Ante la desaparición de los últimos testigos del Holocausto se considera más necesario que nunca recordar un crimen que se ha erigido en hito de la barbarie moderna. Es significativo que incluso el revisionismo más reaccionario haya tenido que recurrir a la relativización histórica de ese genocidio para camuflar su afinidad con algunos de los elementos ideológicos que lo propiciaron, ya que hoy en día no es posible reivindicar abiertamente un hecho de esas características, entre otras razones por el contexto político creado por la derrota incondicional de las potencias del Eje en la Segunda Guerra Mundial.9 Pero tan importante como la rememoración misma es la forma en que se recuerda. La tradición humanista greco-latina tendió a presentar el estudio del pasado como una fuente de sabiduría política para el presente. Posteriormente, la fe positivista en el progreso confirió un viso secularizado a la escatología cristiana. En la actualidad, la historiografía post-positivista ha contribuido a deconstruir las estructuras conceptuales con que se narra la historia. Por ello, aunque las concepciones histórico-filosóficas son un elemento inherente a la imaginación utópica, una concepción post-metafísica de la historia no tiene por qué recurrir a ellas para ganar una perspectiva moral sobre el presente. El pasado jamás volverá y no se repite ni como farsa ni como tragedia, pero las nuevas generaciones se socializan mediante una recepción del pasado que condiciona su percepción del futuro. Ni siquiera las sociedades más volcadas en la innovación y el cambio pueden prescindir de la elaboración de una memoria compartida. Esto Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 375 - 388, out. 2007

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es así porque en cuanto sujetos insertos en redes sociales compartimos un sentido cultural del tiempo, pero no necesariamente su significado concreto. Ernest Renan llegó a reivindicar el olvido, o más bien la memoria selectiva, por su funcionalidad estratégica para los forjadores de naciones.10 Se comprende así que los intentos por imponer interpretaciones hegemónicas de la historia hayan llevado a algunos autores a rechazar la conversión del pasado en una fuente de referencia moral. Como mantuvo John Harold Plumb, el pasado no es más que una construcción normativizada de la historia con el fin de aherrojar el futuro: La historia no es el pasado. El pasado es siempre una ideología creada con un propósito. Está diseñado para controlar a los individuos, motivar a las sociedades o inspirar a las clases. Nada ha sido usado de manera tan corrupta como los conceptos del pasado. El futuro de la historia y de los historiadores estriba en limpiar el relato de la humanidad de esas engañosas visiones de un pasado con finalidad.11

La interpretación del tiempo pretérito, ya sea a través del conocimiento historiográfico o de la recreación mítica, se inscribe, como todas las referencias socio-culturales, en ámbitos susceptibles de conflicto y disenso. Esta evidencia antropológica tiene sin embargo un importante correlato filosófico, y es que nuestra competencia moral depende en buena medida de nuestro sentido del tiempo. Ese sentido tiene sin duda una dimensión individual, como percepción subjetiva de la vida propia, pero también una proyección colectiva, tal y como se refleja en las prácticas y rituales conmemorativos de carácter religioso o cívico. Lo que está en cuestión en un caso como el que traemos aquí es, pues, la función moral de la memoria. Podemos preguntarnos así si los antecedentes de la joven democracia española provienen exclusivamente de un pacto autofundante, el de la transición, que permite ignorar el período más conflictivo de su reciente historia política. En tal caso el actual régimen democrático se presentaría como un portentoso y espontáneo proceso de innovación política, más

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que como una restauración histórica de la interrumpida legalidad democrática. Pero si se asume que la legitimidad de la actual democracia española logró salir de la ciénaga del franquismo como el barón de Münchhausen, tirando de su propia coleta sin apoyos ni vínculos con el pasado, no se explica la dificultad general con que se encuentra la exportación del pluralismo democrático como fórmula política. Lo cierto es más bien que los sistemas democráticos arraigan en procesos sociales que les conceden una determinada idiosincrasia institucional y cultural. Por esta razón el conocimiento de los orígenes, los hitos y los fracasos de un régimen democrático, la identificación en definitiva de sus mitos fundacionales, constituye un elemento central de su identidad política. Son cuestiones de este tipo, y no sólo el duelo personal o la reparación simbólica, las que planean en última instancia sobre el debate español en torno a la memoria histórica. Por ello no debe sorprender la dificultad para alcanzar un consenso sobre la interpretación de las divisiones sociales que ocasionaron en su día una contienda civil. La memoria histórica es necesariamente un terreno conflictivo, ya que en ella se expresan ideas distintas no sólo del pasado, sino también del presente y del futuro. Pero la voluntad de no repetir los errores y horrores del pasado no equivale a difuminar su trascendencia histórica en una abstracta equiparación de responsabilidades. Esa fue precisamente la ideología hegemónica durante la transición española: no fue posible la paz; todos fueron culpables. Quizá sea la Iglesia católica quien más rápidamente haya sacado conclusiones al respecto. La Conferencia Episcopal Española anunció en el mes de abril de 2007 la beatificación de 498 nuevos mártires de la guerra civil (2 obispos, 24 sacerdotes, 462 religiosos, 1 diácono, 1 subdiácono, 1 seminarista y 7 laicos). Su secretario general y portavoz, Juan Antonio Martínez Camino, señaló que la medida “no va contra nadie, ni tiene que ver nada con el gobierno. La intención de la iglesia es promover el espíritu del perdón. La memoria de los mártires no es para buscar culpas a nadie, pero no es que no las haya”.12 Más allá de que esta medida concreta, promovida en su día por Juan Pablo II, pueda interpretarse como una respuesta de la conservadora y beligerante Iglesia española a la Ley

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de la Memoria Histórica, la idea que transmite es clara: una cosa es la voluntad de perdón y reconciliación; otra, la difuminación histórica de las responsabilidades. Ambos principios obedecen a lógicas distintas, pero no son incompatibles. Cada actor social, individual o colectivo, fue responsable de sus propios actos. También la Iglesia, como el Ejército y las fuerzas sociales y políticas de los años 30, tiene su propia cuota de culpa, y no sólo de sufrimiento, en la tragedia española del siglo XX. Tales responsabilidades no pueden diluirse en un abstracto horizonte histórico tan sólo porque resulte incómodo o poco útil para las necesidades políticas del presente. Canceladas sin embargo las consecuencias penales y jurídicas de la guerra y la dictadura, no es preciso incurrir en lo que Max Weber calificó como la clerical manía de querer tener siempre razón: nos queda la obligación moral hacia el pasado y la compasión por las víctimas. Hay quien ha llegado a hablar en este sentido de los derechos de los muertos. Se trata sin duda de una deformación provocada por la jerga legalista que inunda el discurso político contemporáneo. Salvo que se crea en la resurrección de los difuntos o en la salvación de las almas, el único derecho que afecta a los muertos es el de habitar nuestra memoria, y las condiciones de su rememoración constituyen un derecho de los vivos que trasciende el mero ámbito de la memoria privada. Necesitamos pues la memoria, y no el olvido, para reparar el daño de quienes todavía sufren por el pasado, pero también para intentar elevar la calidad moral de nuestra vida colectiva. La naturaleza de una sociedad puede medirse de muchas maneras: por ejemplo, por la capacidad de sus ciudadanos para reconocerse históricamente en sus instituciones, pero también por la forma en que trata a sus víctimas. Un ejemplo reciente y muy distinto al de 1936 lo tenemos en el abandono que han padecido las víctimas del terrorismo en el País Vasco. En el enrarecido ambiente de una sociedad tan dividida y sometida al chantaje del terror como la vasca, las víctimas tuvieron menor presencia mediática, y a menudo menos apoyos sociales e institucionales, que los logrados por el entorno político de los victimarios. Tanto es así que el propio presidente del Gobierno Vasco, el Lehendakari Juan José Ibarretxe, en un acto institucional de homenaje a las víctimas del terrorismo celebrado el 22 de abril de 2007, reconoció la necesidad de la sociedad vasca de

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saldar la deuda moral histórica que teníamos contraída con las víctimas de ETA [...] No estuvimos a la altura de las circunstancias como sociedad frente a las penurias y sufrimientos, […] pero creemos que aún estamos a tiempo de pedir perdón por ello y entonar un ‘lo siento’”.13

En los estertores de la contienda civil española, Manuel Azaña, el último presidente de la derrotada república, expresó la imperiosa necesidad de que los españoles se perdonasen. Intelectual más que político, las palabras de Azaña en un famoso discurso ante las Cortes reunidas en Barcelona el 18 de julio de 1938 son capaces aún de conmovernos: Es obligación moral, sobre todo de los que padecen la guerra, cuando se acabe como nosotros queremos que acabe, sacar de la lección y de la musa del escarmiento el mayor bien posible, y cuando la antorcha pase a otras manos, a otros hombres, a otras generaciones, que se acordarán, si alguna vez sienten que les hierve la sangre iracunda y otra vez el genio español vuelve a enfurecerse con la intolerancia y con el odio y con el apetito de destrucción, que piensen en los muertos y que escuchen su lección: la de esos hombres, que han caído embravecidos en la batalla luchando magnánimamente por un ideal grandioso y que ahora, abrigados en la tierra materna, ya no tienen odio, ya no tienen rencor, y nos envían, con los destellos de su luz, tranquila y remota como la de una estrella, el mensaje de la patria eterna que dice a todos sus hijos: paz, piedad y perdón.

Pero lo que siguió al fin de la guerra fue, como todos sabemos, el ejercicio implacable de la victoria. Todo ello no implica reducir el papel de la memoria histórica a una mera función aleccionadora. La función terapéutica de la memoria corre en un sentido más bien Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 375 - 388, out. 2007

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inverso. No estriba en suspender el juicio histórico ni en alimentar el resentimiento o la venganza, sino en reconciliarse con el pasado cuando se dan las condiciones adecuadas para ello: cuando se hace justicia. Identificar a los verdugos, compadecer y compensar a las víctimas, reparar su dignidad, ubicarlas en nuestra memoria. Esta es una ecuación variable que cada sociedad debe aprender a resolver autónomamente. No es posible mejorar el pasado, pero tampoco hay esperanza de futuro sin hacerle justicia. NOTAS EXPLICATIVAS 1

Ley 24/2006, de 7 de julio, sobre declaración del año 2006 como Año de la Memoria Histórica. 2

Véase, por ejemplo, Pio Moa, Los mitos de la Guerra Civil, Madrid, La Esfera de los Libros, 2003 3

Para una perspectiva general sobre esos trabajos de investigación y divulgación, véase Santos Juliá: “Memoria, historia y política de un pasado de guerra y dictadura”, en Ibíd. (Dir.): Memoria de la guerra y del franquismo, Madrid, Taurus, 2006, pp. 27-77 4

Santos Juliá, “Presentación”, Ibíd., p. 18. Como si respondiese a esas inquietudes, el proyecto de ley reconoce que “no es tarea de las normas jurídicas en general fijarse el objetivo de implantar una determinada ‘memoria histórica’ [ni] le corresponde al legislador construir o reconstruir una supuesta ‘memoria colectiva’. Pero sí es deber del legislador, y cometido de la ley, consagrar y proteger, con el máximo vigor normativo, el derecho a la memoria personal y familiar como expresión de plena ciudadanía democrática”. “Exposición de motivos”. Proyecto de ley por la que se reconocen y amplían los derechos y se establecen medidas a favor de quienes padecieron persecución o violencia durante la guerra civil y la dictadura (28 de julio de 2006). 5

Ministerio de Justicia, Causa general: la dominación roja en España. Avance de la información instruida por el Ministerio Público. Madrid, Ministerio de Justicia, 1942 6

Javier Cercas, Soldados de Salamina, Bacelona, Tusquets, 2001.

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Véase el portal de la Asociación para la Recuperación de la Memoria Histórica: 8

Así, el nuevo articulado incluye los siguientes puntos: “Se declara la ilegitimidad de los tribunales y cualesquiera otros órganos penales o administrativos que, durante la Guerra Civil, se hubieran constituido para imponer, por motivos ideológicos o políticos, condenas o sanciones de carácter personal, así como sus resoluciones [...] Por ser contrarios a derecho y vulnerar las más elementales exigencias del derecho a un juicio justo, se declara en todo caso la ilegitimidad, por vicios de forma y fondo, del Tribunal de Represión de la Masonería y el Comunismo, los tribunales de responsabilidades políticas de la Junta de Defensa Nacional, de la Junta Técnica del Estado y el Gobierno y el Tribunal de Orden Público, así como todos los consejos de guerra realizados por motivos ideológicos o políticos [...] Se declaran ilegítimas las condenas y sanciones dictadas por motivos ideológicos o políticos por cualesquiera tribunal u órganos penales o administrativos durante la dictadura contra quienes defendieron la legalidad institucional anterior, pretendieron el restablecimiento de un régimen democrático en España o intentaron vivir conforme a opciones amparadas por derechos y libertades hoy reconocidos por la Constitución [...] Se reconoce el derecho a obtener una declaración de reparación y reconocimiento personal a quienes padecieron los efectos de las resoluciones anteriores. Este derecho es compatible con el ejercicio de acciones ante los tribunales de justicia”. 9

Sobre el denominado “debate de los historiadores” en la >República Federal Alemana a mediados de los años 80, véase: Rudolf Eigstein et al.: Historikerstreit: die Dokumentation der Kontroverse um die Einzigartigkeit der nationalsozialistischen Judenvernichtung. Munchen, R. Piper, 1987. 10

Ernest Renan : Qu’est-ce qu’une Nation? et autres écrits politiques, Paris, Imprimerie Nationale, 1996 11

John H. Plumb: The Death of the Past. London, Penguin Books, 1973, pg. 16 12

El País, 28 de Abril de 2007, p. 40

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Juan José Ibarretxe, Acto Institucional de Homenaje y Reconocimiento a las Víctimas del Terrorismo, Discursos y conferencias, 22-04-2007 Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 375 - 388, out. 2007

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CARACTERÍSTICAS DO PENSAMENTO DE MICHELE FEDERICO SCIACCA José Beluci Caporalini* Resumo Procura-se, nesse artigo, apresentar as principais características do pensamento filosófico do pensador italiano Michele Federico Sciacca. Ele foi um pensador do século passado, um verdadeiro erudito, um homem que sabia muito e em profundidade. O seu campo de interesse especulativo é muito amplo, tornando-se assim difícil classificá-lo em uma determinada corrente filosófica. Contudo, alguns aspetos característicos destacam-se em seu interesse especulativo, dentre os quais sobressaem o problema do homem, a alma, Deus, o compromisso, a paixão, a busca da verdade, do absoluto, em poucas palavras, temas claramente metafísicos, que herda particularmente de Platão e de Agostinho, além de Rosmini. Contra o Existencialismo, afirma que o ser do existente não pode ser pura possibilidade ou o nada; tem que ser o Ser. O fundamento imanente do sujeito e de toda existência é um ser transcendente, não abstrato, mas mais concreto e existencialmente real que o sujeito, a saber, Deus. Ao afirmar a existência de Deus, o sujeito também afirma o próprio ser, o mais íntimo caráter de seu ato existencial. É uma concepção metafísica que se caracteriza, sobretudo, como procura interior, comprometida e ardente (paixão) bem na linha platônico-agostiniana. Da presença da verdade no pensamento à permanência final do sujeito na Verdade que o constitui, o discurso de Sciacca permanece sempre decisivamente especulativo, no sentido de se fundar na verdade conquistada racionalmente, ainda que aquela aponte para a Verdade, a qual constitui, para ele, o sentido integral do viver. Obstinado advogado da metafísica, Sciacca é, ao mesmo tempo também e, sobretudo, um pensador do concreto, da pessoa humana, e por outro lado um impetuoso aliado de quem quer que seja que combatesse aqueles que, com mote platônico, chamava de os cavernículos. *

Doutor em Filosofia pela Universidade Gama Filho e Professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringá, PR. Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 389 - 408, out. 2007

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Sentia-se próximo a Agostinho não somente na ordem do pensamento metafísico, mas também nas ordens da expressão e da procura; possuía a fineza apaixonada de certas análises introspectivas, a sutileza da argumentação junto com a eloqüência convincente do conteúdo. Esse pensamento também se caracteriza como sendo da integralidade, no sentido de não sacrificar o sujeito ao objeto nem vice-versa, o corpo à alma nem ao contrário. Palavras-chaves Deus, interioridade, homem, alma. INTRODUÇÃO Procura-se neste artigo apresentar as principais características do pensamento filosófico do pensador italiano Michele Federico Sciacca. Ele foi um pensador do século passado, um verdadeiro erudito, um homem que sabia em extrema profundidade o muito que sabia. O seu campo de interesse é muito amplo, tornando-se difícil classificálo em uma determinada corrente filosófica. Contudo, alguns aspectos característicos aparecem em sua especulação teórica, os quais, entre outros, são o problema do homem, a alma, Deus, o compromisso, a paixão, a busca da verdade, do absoluto, em poucas palavras, temas claramente metafísicos, que herda particularmente de Platão e de Agostinho. Houve, contudo, vários pensadores que influenciaram o seu pensamento, mas, Platão, Agostinho e Rosmini foram os principais, como se pode ver abaixo. A seguir procura-se mostrar como se articulam estes aspectos de seu pensamento, de seu interesse intelectual, de sua inquietação filosófica. I - APRESENTAÇÃO GERAL DE MICHELE FEDERICO SCIACCA Michele Federico Sciacca nasceu em 1908 em Giarre, Catânia, e faleceu em Gênova em 1975, aos 67 anos de idade. Cedo descobriu o seu desejo de buscar a verdade capaz de lhe dar sentido à vida. Estudou, entre outros, Leopardi, Demócrito e Epicuro, bem

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como Kant e Fichte, os quais apesar de não lhe responderem a todas as aporias morais, encaminham-no temporariamente para o idealismo transcendental. Estudou na Universidade de Nápoles com o idealista Antonio Aliotta onde conseguiu o posto de livre-docente em história da filosofia na mesma universidade com o apoio do famoso helenista Aurelio Cavotti. A partir de 1938 foi professor de história da filosofia em Pavia e sucessivamente, a partir de 1947, até a sua morte, professor de filosofia na Universidade de Gênova. Grande estudioso de Rosmini foi presidente e animador do Centro Rosminiano de Stresa, ao qual dedicou tantas das suas mais apaixonadas fadigas. Animador incansável de Congressos e Reuniões Internacionais, Diretor da Revista de Cultura Humanitas (1948) e do famoso e importante Giornale di Metafisica, além de assíduo colaborador da Rivista Rosminiana e de muitas outras; dirigiu várias coleções de distintas casas e editoras. A revista Giornale di Metafisica tornou-se o órgão principal do espiritualismo cristão e assumiu desde o começo uma posição decisiva a favor da metafísica contra toda negação dela por parte do imanentismo moderno em geral, e, particularmente, contra o atualismo, o historicismo e o problematicismo. Começou como historiador das idéias e escreveu importantes trabalhos sobre Reid (1935), Platão (1939) e Santo Agostinho (1939) e uma sólida obra sobre o pensamento italiano, Il XX secolo, dois volumes, e outra sobre o pensamento europeu contemporâneo, La filosofia oggi, 1945.1 II - CARACTERÍSTICAS GERAIS DE SEU PENSAMENTO Apesar de Sciacca ter estudado com Antonio Aliotta, o seu maior estímulo proveio de Giovanni Gentile, de quem ele deriva o seu axioma básico segundo o qual o ser concreto deve ser o ato, não o fato.2 Sciacca desenvolveu este princípio a seu modo sob a influência de Platão, Santo Agostinho, Antonio Rosmini e Maurice Blondel. Sciacca moveu-se para uma posição de “integralismo”, ou seja, passou de um período atualista e idealista a um espiritualismo cristão ou, como ele mesmo chamou, a uma “filosofia dell’integrità” Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 389 - 408, out. 2007

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ou idealismo realista de influência agostiniano-rosminiana. Ou seja, procura harmonizar o seu pensamento com o teísmo cristão-católico. A noção central de seu integralismo está na interioridade, de acordo com a qual o fundamento de todas as formas de ser e existir está na atividade do sujeito. Sciacca afirma que o existente, ou ato, não pode ser um fato entre fatos; a sua existência reside totalmente em sua própria atualidade autogerativa. Contra o Existencialismo ele afirma que o ser do existente não pode ser pura possibilidade ou o nada; tem que ser o ser. Para Sciacca este ser é a interioridade objetiva, cuja exposição teórica encontra-se em seu livro Interiorità oggetiva. A interioridade é o colocar-se a si mesmo como ato por parte do existente. Definida assim, ela não pode ser concebida como puramente imanente, à maneira de Gentile. Deve pôr-se com referência a este horizonte. O princípio básico estrutural da interioridade é a verdade, ou a afirmação do fundamento do sujeito, de sua existência no mesmo ato de existir. O fundamento imanente do sujeito e de toda existência é um ser transcendente, não abstrato, mas mais concreto e existencialmente real que o sujeito, a saber, Deus. Ao afirmar a existência de Deus, o sujeito também afirma o seu próprio ser, o mais íntimo caráter de seu próprio ato existencial.3 Pertenceu à família espiritual agostiniana, matriz da Igreja Ocidental e fermento de renovação do Catolicismo. Foi um homem do seu tempo e eterno ao mesmo tempo como seu mestre Agostinho. Sofreu as angústias dos problemas epocais; a eles procurou trazer a solução teorética de sua filosofia vitalizada por sua fé cristã. Transcendeu, porém, seu tempo e como mostra dessa ligação ao eterno, manteve-se sempre imune à tentação da política, comum no intelectual do século vinte; em uma sugestiva passagem de sua autobiografia intitulada A Clepsidra escreve: “A política, mal necessário, é intrinsecamente atividade de homens inferiores, ainda que os chamemos de “gênios”; o particular, o empírico, o contingente instrumenta os princípios e os valores e por isto aquela não é uma atividade criadora ou reveladora de universalidade e do valor, como a poesia, a arte, a filosofia. Quem tem o gosto do verdadeiro, do belo, e do bem não faz política.”4

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III - ETAPAS DO SEU ITINERÁRIO INTELECTUAL E OBRAS CORRESPONDENTES No começo, sob a influência de Aliotta, estava imbuído do idealismo atualista de Gentile e, portanto, longe da fé cristã já que aquele é incompatível com esta. Sciacca sente-se insatisfeito com tal conceito de interioridade, vazio para ele. Move-se, aos poucos, para um espiritualismo crítico; Deus é visto como eterna atividade criadora; o mundo é coeterno com Deus, co-criação de Deus e do espírito humano. Os seus primeiros ensaios são ecos destas teorias: Studi di filosofia analítica, Nápoles, 1934; Filosofia medievale e moderna, Nápoles, 1935; Thomas Reid, Nápoles, 1935 e Linee di uno spiritualismo critico, Roma, 1936. A nova fase, que ele chama “dallo spiritualismo critico allo spiritualismo Cristiano” dá-se a partir de 1936 com um aprofundamento da vida moral e da consciência moral, vivamente sentida por Sciacca. Todo ato da vontade é um ato de amor, que implica a aspiração imanente da autoconsciência dos sujeitos limitados a uma totalidade que os transcende, e que postula, além da experiência, uma realidade absoluta na qual possam saciar-se. Esta espécie de conversão a uma “metafísica moral cristãcatólica” reclama a integração teológica. Estudou as doutrinas platônicas e Rosmini. Os escritos deste período são: Metafisica di Platone, Roma, 1938; La filosofia morale di A. Rosmini, Roma, 1938 e, também de inspiração rosminiana, Teoria e pratica della volontà, Nápoles, 1938. Escreveu ainda: Pascal, Brescia: 1944; S. Agostino, 1949 e Dialogo con M. Blondel. Nas suas obras teóricas, como Filosofia e metafisica, Brescia, 1950; L’interité objetive, Milão, 1951; L’uomo, questo squilibrato, Roma, 1956; Atto e essere, Roma, 1956; Morte ed immortalità, Milão, 1959 até La libertà e il tempo, Milão, 1956, Sciacca caracterizou o seu modo de pensamento como “filosofia della integralità”, que implica uma antropologia integral e espiritual. Há também a importante obra deste período intitulada Il problema di Dio e la religione nella filosofia attuale, Brescia, 1944 e Como se comprova a existência de Deus e a imortalidade da alma, São Paulo: Mundo Cultural, 1977. Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 389 - 408, out. 2007

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A contribuição de Sciacca à história da filosofia é extremamente importante. La filosofia nel suo sviluppo storico, Roma, 1941. (Edição portuguesa: História da Filosofia, São Paulo: Mestre Jou, 1967, 3 volumes); Il secolo XX, Milão, 1941; La filosofia oggi, Milão, 1945; La filosofia italiana nella età del Risorgimento, Milão, 1948, etc. E, por fim, as suas preocupações como pensador cristão, em que à erudição filosófica une-se o domínio do conhecimento teológico: Gli arieti contro la verticale, La Chiesa e la civiltà moderna, L’oscuramento dell’intelligenza, L’ora di Cristo. Estas e outras obras encontram-se na monumental edição de suas Opere complete, com quarenta volumes já editados. Concluindo: ainda que seja difícil classificá-lo em uma corrente filosófica, pode-se, talvez, dizer que o Prof. Michele Federico Sciacca foi um eminente membro do chamado espiritualismo cristão (uma das correntes neo-agostinianas da filosofia atual, na sua dimensão metafísica da interioridade), porém o seu pensamento não se restringe apenas a esta corrente. A sua visão filosófica das correntes, dos sistemas e dos filósofos prioriza salientar o que têm de profundamente humano e espiritual, pois ele está convencido que a filosofia é reflexão sobre o homem e sondagem das suas profundidades.5 Ubiratan Borges de Macedo, depois de ressaltar a vasta plêiade de discípulos que Sciacca deixou na Itália, nos E.U.A, e na América Latina afirma: Há que assinalar em Sciacca o seu caráter ‘clássico’; é um continuador de Agostinho, Pascal, Rosmini e Blondel, para quem a filosofia é uma Reflexão sobre Deus, a Liberdade, a Pessoa, a Existência, a Morte e o sentido da História. E considera uma logomaquia a engenhosa discussão sobre signos lingüísticos tão cara a certas correntes contemporâneas. A outra característica marcante é sua ‘contemporaneidade’ da abordagem daqueles clássicos temas, o último livro do corpus é uma filosofia da História, onde se aborda de frente o

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problema do mal sob a forma de estupidez, sobretudo da estupidez historizada ou o ocidentalismo, que surge sob a forma de niilismo de tecnocracia e de impiedade religiosa.6

IV - A CONCEPÇÃO METAFÍSICA DE MICHELE FEDERICO SCIACCA Battista Mondin, em sua monumental Storia della Metafisica, 2000 páginas, mostra de modo assaz feliz, claro e profundo o pensamento do escritor italiano, que abaixo se expõe:7 Depois de um breve período de adesão à filosofia de Gentile, Sciacca orientou-se para o espiritualismo cristão e tornou-se, na Itália, o mais válido e resoluto representante do espiritualismo de direção agostiniana, e ao mesmo tempo um dos mais convictos e mais ardorosos defensores da metafísica. Sciacca pode ser considerado um poeta da metafísica. Sobre a importância, a qualidade, o valor do saber ele escreveu muitas páginas líricas. Eis um trecho que documenta bem o “lirismo” da sua metafísica: O homem é sempre fermentado, farinha que se faz pão, sempre novo pão: a fome do ser é levedura inexaurível. Todo ente é dado, mas é isto que se faz, se constrói no espírito, mas só porque se constrói no e sobre o ser: o fermento de hoje emerge sempre ao nível do amanhã: levedura e levedação perene. (sic) É a tensão da vida espiritual na sua integralidade. Tensão que não teme ruptura, porque a tensão do ser ao Ser é o ‘tônico’, o ‘reconstituinte’ do espírito (...). O ontólogo, o metafísico verdadeiro, não ‘fala’ do ser, ‘vive’ do ser e no ser assumindo o problema total do significado do seu ser integral, desde as suas profundas e abissais raízes espirituais.8

Três são as principais fontes da metafísica de Sciacca: Platão, Agostinho e Rosmini; duas outras fontes importantes são Aristóteles Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 389 - 408, out. 2007

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e Tomás de Aquino. Mas seu objetivo é propor de novo aos nossos dias o agostinismo perene. E para Sciacca Agostinismo significa querer conhecer antes de tudo duas coisas: Deus e a alma, a minha alma que ama Deus, que aspira por Deus. Logo humanismo e espiritualismo cristão; centralidade do problema da alma humana perante Deus, que fala nela; descoberta da consciência do homem e das coisas; sentido da criação, que se surpreende como tal na aspiração perene pelo Criador e, pois, sentido profundíssimo, interior, da transcendência.9

A metafísica de Agostinho é, como se sabe, uma metafísica da interioridade centrada sobre a verdade. A verdade habita no coração do homem: in interiore homine habitat veritas. Mas a verdade não se identifica com o homem: a verdade é superior ao homem, e é a medida de tudo o que o homem pensa, quer e cumpre. Tal verdade transcendente não pode ser senão Deus. Sciacca volta a propor, atualizando-a, a metafísica agostiniana da interioridade, e a julga capaz de resolver em si as duas metafísicas opostas ‘do ser’ e do ‘pensamento’, conservando ao pensamento e ao ser toda a sua validez e positividade. E, com isto, ele presta um bom serviço ao pensamento moderno bem como ao tradicional, um bom serviço qual se destina a filosofia, de avanço no caminho da verdade.10 Radicados na tradição queremos pensar o futuro,11 foi o mote de Sciacca. Com Agostinho, Sciacca define a filosofia como procura da verdade. Quem filosofa é chamado à verdade, tem a vocação pela verdade. A verdade não conhece e busca, mas já tem fé na verdade. Fé na verdade e nos seus desígnios, mesmo malgrado tudo. 12

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Quem filosofa põe-se a caminho para encontrar a verdade. 13 A inspiração da filosofia é o amor incondicionado pela verdade, que é, pois, ainda quando não se tem consciência, amor a Deus que é a verdade.14 Entre as características tipicamente agostinianas que Sciacca sublinha na procura filosófica figuram: - a interioridade, como se mencionou acima; - o empenho: diversamente da ciência, a qual não comporta nenhum compromisso existencial, a filosofia é comprometida (...) o filósofo identificase com a sua filosofia, com a sua verdade, que é a sua vida. Cada filósofo é uma fórmula, mas a sua fórmula não é uma abstração, é toda a riqueza, radicalmente, da sua vida; a fórmula é a cruz, na qual ele crucifica-se e pela qual renasce perenemente; 15

- a paixão: ‘a filosofia é Eros’; a filosofia é vontade de sacrifício: quem filosofa está consciente de ser vítima da Verdade. Por isto é renúncia de tudo que impeça o amor e a posse interior do unum necessarium; renúncia dolorosa às vezes, e, pois ainda humaníssima. Provocadora dela, a filosofia é choque, sacudidela de todo o ser humano, ruptura de tudo que não é essencial ao ser e de todo impedimento à obtenção da verdade. O seu objeto é Deus; procura-o, quer conhecê-lo, possuí-lo. A filosofia é charitas, natural, que se exercita com a luz da razão, luz essa que nos foi concedida por Deus como a única coisa que nos faz desejosos dele e é condição para conhecê-lo.16 - a humildade: esta virtude, muito rara, mas assaz preciosa, é indispensável ao filósofo verdadeiro. Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 389 - 408, out. 2007

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É-lhe, pois essencial à humildade, raiz e guia da ascese filosófica: humildade de sentir-se criatura e de amar em si o criador, de sentir que é testemunha do Ser e do Bom e do Bem, que procura e ama; de amar a própria existência como dom e, portanto como ato de amor. A humildade, que é lei de amor, faz morais o intelecto e a vontade e eficaz o compromisso de vencer as nossas paixões e as nossas debilidades; dá-nos o sentido do sacrifício purificador ao qual somos chamados para subir ou para filosofar. Portanto é sacrifício que acrescenta a humanidade do homem, como a poda da árvore frutífera adorna e vigora a planta.17

Todas estas características singulares que Sciacca sublinha na filosofia reencontram-se aumentadas na sua concepção da metafísica: é, sobretudo a metafísica que se qualifica como procura interior, comprometida, humilde e ardente (paixão). Como para todo metafísico, em geral, também para Sciacca a metafísica está orientada em direção à transcendência: é um caminho à transcendência; e é, portanto procura de Deus, que é o Transcendente por antonomásia. A interioridade, segundo Sciacca, é verdadeiramente tal só se se abre à transcendência: ela tem significado se refere a uma realidade transcendente e objetiva em cujo horizonte define-se e consiste. Explicitando melhor a natureza da metafísica, Sciacca a faz consistir essencialmente na distinção entre o relativo e o absoluto, entre o particular e o universal, entre o ‘físico’ e o ‘metafísico’, entre o ‘sensível’ e o ‘ideal’.18 Estas distinções introduzidas por Platão, e retomadas por Aristóteles, constituem a espinha dorsal de toda metafísica. Nós, pois cremos que haja um platonismo essencial e perene que é a própria alma de toda metafísica: a aspiração pelo mais além do físico (trans-physica), o divino Eros, que é sede de imortalidade da alma na contemplação beatificante do Ser absoluto eterno; platonismo

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essencial que implica distinção e dualidade de mundos: ‘este’ e ‘o outro’ mundo em um relacionamento relativo e absoluto, de contingente e necessário, de temporal e eterno. Platonismo, que é nosso, se transposto em termos agostinianos de uma metafísica da experiência interior finalizada no diálogo perene da alma com Deus, de todo homem com toda verdade que é; interioridade que não suprime o mundo, ao contrário, desde dentro, reconquistao na sua verdade e realidade, que é o ato criador de Deus, do qual todas as coisas quae facta sunt são prova e testemunho. 19

Deus é o tema capital e conclusivo de toda metafísica. E este é também o tema sobre o qual Sciacca prodigalizou todo o seu empenho especulativo. Presente nas Linee di uno spiritualismo critico (1936) que se concentra sobre o problema de Deus, a pergunta sobre Deus é posta de novo nos Problemi di filosofia (1940), nas Lettere dalla campagna e em Filosofia e metafisica (1950), onde o autor dedica metade da obra à questão da existência de Deus (p. 124-266). Sabe-se que se ascende a Deus especulativamente por muitíssimas vias. Não existem somente as “cinco vias cosmológicas” de Tomás de Aquino, mas também as vias ontológicas de Anselmo, Cartésio, Spinoza, Malebranche, Rosmini, Gioberti; além das vias “antropológicas” de Kant, Lotze, Blondel, Scheler, Maritain. Praticamente cada metafísica é uma subida ou uma navegação, ou melhor, uma luta intelectual do pensador em direção a Deus. Já se observou que toda a especulação filosófica de Sciacca nutre-se de uma forte paixão teológica. Para ele uma metafísica que não fale de Deus e que não conduza a Deus é uma metafísica estéril: é uma metafísica que fracassa em seu objetivo principal. Para chegar a Deus Sciacca percorre três vias: a via da criatura, a via da existência e a via da verdade. A existência de Deus não é evidente, como pretendem os ontologistas, mas é demonstrada, até certo ponto. São, ao contrário, evidentes os dados, os fenômenos que tornam possível a demonstração Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 389 - 408, out. 2007

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da sua existência. São fenômenos que tornam impossível eliminar a “hipótese de Deus”. O primeiro fenômeno sobre o qual Sciacca elabora a existência de Deus é o fenômeno da “criaturalidade”. Contra a pretensa “criatividade” do espírito tanto exaltada pela filosofia moderna, Sciacca opera uma “inversão metafísica” e sublinha a “criaturalidade” do ser e do espírito humano. Escreve ele: A ‘criaturalidade’- o sentir-se criaturas – é o ato primordial da consciência: no próprio momento que percebo (ainda que confusamente) de ser, percebo que sou por mim mesmo, que sou ‘existente’, isto é, por outros. Percebo, portanto, através dos limites do meu ser, que um (o) ser ‘não limitado, fez-me’ ‘existir’. A presença de mim para mim mesmo implica a ‘presença’ mediata (analógica) em mim do Ser, sem a qual jamais perceberia o meu limite (e pois o ser pelo qual sou) e também eu mesmo saberia que sou (...). O ato de pensar implica uma dupla ontologia: realidade dos seres e realidade do Ser, como implica o intuito fundamental da verdade, que funda o pensar. Há, portanto o ser como idéia, os seres como existentes, finitos e relativos e o Ser como existente infinito e absoluto.20

Com o argumento da “criaturalidade” entrelaça-se o argumento da “existência”. A existência humana não só não é não causada como é doada: é um dom que lhe é dado por outros e ultimamente pelo ser primeiro; mas há mais: é uma existência transitória, é uma existência destituída de consistência e de estabilidade. Isto significa que o existente não é perfeito mas perfectível, portanto é incompleto em qualquer estado e grau da sua atuação. A imperfeição do existente põe o problema de sua conclusão e ao mesmo tempo atesta o Incondicionado (omne movetur ab alio movetur, segundo a fórmula que é comum a Agostinho e a Tomás). O existente é em cada momento a sua consistência, mas em cada

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momento não é nunca toda a sua consistência: a sua é uma aspiração infinita, porque é uma aspiração total. Interioridade de si a si, como tal, interioridade de algo diverso, de outrem, como esforço perene de interiorização, de conquista de si no Outro. A subjetividade profunda não é um dado, mas o realizar-se de si mesma, a conquista de si no abandono de Deus.21

Mas a via que Sciacca não se cansa nunca de percorrer continuamente, procurando torná-la sempre mais sólida e segura, para evitar qualquer armadilha ou escorregões perigosos, é a via da verdade. É a celebérrima “via agostiniana”, que se afina perfeitamente com uma metafísica da verdade, como pretende ser a metafísica de Sciacca. Eis uma das tantas formulações que ele apresenta desta via: A verdade é uma realidade inteligível, ou seja, objeto de um pensamento ou de uma inteligência: não há verdade sem um pensamento que a pense, uma inteligência que a entenda. No caso da mente humana finita, isto não significa que a mente humana faça a verdade ser (‘a ponha’), mas somente que a descobre em si, a intui. O que conta é que onde há verdade há pensamento, inteligência. Ora a verdade que a mente humana intui é independente da própria mente: não é verdade de ontem e de hoje, mas de sempre como toda verdade é extratemporal e por isso necessária, eterna. Portanto sempre foi verdade: por conseguinte era antes que a mente humana a pensasse e o será ainda que nenhuma mente humana não exista amanhã. Por outro lado, se é verdade, objeto da inteligência, não pode ser tal sem que uma inteligência a pense; mas assim como não pode não ser, precisamente porque eterna, logo há uma Mente ou um Pensamento que a pensa, eterna como ela. Mas

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se Pensamento eterno então é da própria natureza da verdade: Pensamento eterno e absoluto ou Verdade eterna e absoluta são unívocos; portanto a Mente absoluta e infinita (à diferença daquela humana mutável e finita) é ela mesma a verdade, e não, pois, que apenas participe, (da verdade) como um ente racional finito. Portanto existe a Mente absoluta infinita que é a Verdade absoluta e infinita, a Verdade em si e da qual procede toda verdade: é a Verdade criadora (Deus).22

O exame das várias provas da existência de Deus confirma, pois a primazia da prova “da verdade”, daquela prova que colhe no próprio ato do pensar a razão do transcender o pensar humano. A hipótese Deus cessa de ser uma hipótese e se torna verdade, e assim, bem ao contrário, que Deus não exista, será a hipótese impossível. O procedimento natural e crítico da razão leva onde se une a sabedoria secular dos homens: conclui em um Deus que, precisamente pelo procedimento da interioridade e o convergir das instâncias reais diversas do homem, não pode ser puro princípio cosmológico, mas deve ser um princípio personalístico. A solicitação mais profunda do homem é a de unir-se ao Deus da consciência religiosa, assim como o fim do filósofo cristão é o de provar a existência de Deus no qual ele crê por fé, pensa Sciacca. V - C ONSIDERAÇÕES FINAIS Da presença da verdade no pensamento, à permanência final do sujeito na Verdade que o constitui: o discurso de Sciacca permanece sempre decisivamente especulativo, no sentido de fundar na verdade conquistada racionalmente, porém que aponta para a Verdade o sentido integral do viver. Obstinado advogado da metafísica, Sciacca era ao mesmo tempo também e, sobretudo um pensador do concreto, da pessoa humana, e por outro lado um impetuoso aliado de quem quer que seja que combatesse aqueles que com mote platônico chamava de os “cavernículos”. Sentia-se próximo a Agostinho não somente na ordem

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do pensamento (na concepção da busca da verdade, da interioridade, do absoluto, do homem, da alma e de Deus), mas também nas ordens da expressão e da procura; possuía a fineza apaixonada de certas análises introspectivas, a sutileza da argumentação junto com a eloqüência convincente do conteúdo. Isto dito, claro, não quer dizer que sempre se possa concordar com as suas tentativas teóricas como as que ele usa para “provar” a existência de Deus. De fato, não há argumento teórico que possa “provar” a existência de Deus, pois todos eles partem do pressuposto de sua existência e esta se dá porque para o cristão ele primeiro já se manifestou por fé, daí a vacuidade de toda suposta prova meramente teórica, racional, incluindo aí a de Sciacca. O seu pensamento também se caracteriza como sendo da integralidade, no sentido de não sacrificar o sujeito ao objeto nem vice-versa, o corpo à alma nem ao contrário e no sentido que o existente, o homem, não pode ser pura possibilidade ou o nada; tem que ser o ser. Uma palavra final: à semelhança de Hannah Arendt ou José Ortega y Gasset, Michele Federico Sciacca é um pensador difícil de ser catalogado, de ser inquestionavelmente classificado em uma corrente de pensamento bem definida, como ele mesmo afirmou: (...) há pensadores que vivem de renda ou se repetem, outros que crescem sobre si mesmos; para compreendê-los é necessário conhecer bem o seu itinerário crítico de indagação. Provavelmente pertenço a estes últimos.23

NOTAS EXPLICATIVAS 1

GUALCO, Fabrizio e FUSARO, Diego. In: Michele Federico Sciacca, www.filosofico.net/Sciacca.html acesso em 17/07/2007. D. CAPONIGRI, A. Robert. SCIACCA, Michele Federico. In: Paul Edwards, Ed. The Encyclopedia of Philosophy, London-New York: Macmillan, 1972. Vol. VII, p. 337. MORA, José Ferrater. Diccionario de Filosofia. Nueva ed. act. bajo la dir. de JosepMaría Terricabrás. Barcelona: Ariel Referencia, 1994, p. 3209-3211. Vol. IV.

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URDANOZ, Teófilo. Historia de la Filosofia: siglo XX: neomarxismos. Estructuralismo. Filosofía de inspiración cristiana. Madrid: BAC, 1985, Vol. VIII, p. 412-416. CRIPPA, R. SCIACCA, Michele Federico. In: Enciclopedia Filosofica. 2.ed. int. rielaborata. Gallarate: G. C. Sansoni, Ed., 1967, p. 11351138. Vol. V. MACEDO, Ubiratan Borges de. Metamorfoses da liberdade. São Paulo: IBASA, 1978. (Biblioteca Filosofia e Religião; 4), p. 165ss. MONDIN, Battista. Storia della Metafísica. Bologna: Edizioni Studio Domenicano, 1998, Vol. III. Artigo: Il ritorono a S. Agostino: Michele Federico Sciacca, p. 726ss. 2

CAPONIGRI, A. Robert, art. cit., p. 337.

3

Id. ib.

4

MACEDO, Ubiratan Borges de, op. cit., p. 165-166. Há que se notar, contudo, que neste ponto, Sciacca destoa de Platão, o qual, na República e na Carta VII, não vê incompatibilidade entre o filósofo e o político. Cf. CAPORALINI, José Beluci. O conceito de homem em Fidelino de Figueiredo. Londrina: EDUEL, 2001, Cap. IV, p. 139-164. 5

Cf. A orelha de seu livro História da Filosofia, V. I.

6

Idem, op. cit., p. 168. Que diria Sciacca em face de tantas formas de mal perpetradas, no começo do século XXI, supostamente em nome de visões religiosas? 7

Op. cit., p. 726-732.

8

SCIACCA, M. F. Filosofia e metafisica, Brescia: 1950, p. 234-235.

9

IDEM, ibid., p. 27.

10

Ibid., p. 10-11. Cf. também CAPORALINI, José Beluci. Reflexões sobre o essencial de Santo Agostinho. Maringá: Clichetec, 2001, especialmente p. 35-64 e 65-74. 11

Ibid., p. 25.

12

Ibid., p. 20.

13

Ibid., p. 29.

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14

Ibid., p. 234.

15

Ibid., p. 27.

16

Ibid., p. 44.

17

IDEM., ibid.

18

Ibid., p. 66.

19

Ibid., p. 67. Cf. nota 10.

20

Ibid., p. 82-83.

21

Ibid., p. 116.

22

Ibid., p. 161-162.

23

SCIACCA, Michele Federico, In: Ontologia triadica e trinitaria, Palermo: L’Epos, 1990, apud, GUALCO, Fabrizio e FUSARO, Diego, Michele Federico Sciacca, www.filosofico.net/Sciacca.html, entrada em 17/07/2007.

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IDEM. Santo Agostino Essenziale. In: Publicações do Instituto de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul. Boletim nº , 1956(?). IDEM. El hombre, este desequilibrado. Barcelona: 1958 IDEM. (Dir.) Las Grandes Corrientes del Pensamiento Contemporáneo. Milán: 1958-64. 6 Volúmenes. IDEM. (Dir.) Grande Antología Filosófica. Milán: 1958. 12 Volúmenes. IDEM. Acto y ser. Barcelona: 1961. IDEM. La libertad y el tiempo. Barcelona: 1967. IDEM. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Média. Trad. de Luís Washington Vita. 3.ed. São Paulo: Mestre Jou, 1967. 3 Vols. IDEM. La Chiesa e la civiltà moderna. Milano: Marzorati, 1969. IDEM. L’ interiorità oggettiva. Palermo: L’Epos, 1989. IDEM. Pascal. Palermo: L’Epos, 1989. IDEM. Dialogo con Maurizio Blondel. Palermo: L’Epos, 1990. IDEM. Platone. Palermo: L’Epos, 1990. IDEM. Ontologia triadica e trinitaria. Discorso metafisico teologico. Palermo: L’Epos, 1990. IDEM. La filosofia morale di A. Rosmini. Palermo: L’Epos, 1990. IDEM. Morte e immortalità. Palermo: L’Epos, 1990.

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IDEM. L’ estetismo, Kierkegaard, Pirandello. Palermo: L’Epos, 1990. IDEM. Il chisciottismo tragico di Unamuno. Palermo: L’Epos, 1990. B – TEXTOS DE OUTROS AUTORES CAPORALINI, José Beluci. Reflexões sobre o essencial de Santo Agostinho. Maringá: Clichetec, 2001. CRIPPA, R. SCIACCA, Michele Federico. In: Enciclopedia Filosofica. 2.ed. int. rielaborata. Gallarate: G. C.Sansoni, Ed., 1967, p. 1135-1138. Vol. V. D. CAPONIGRI, A. Robert. Sciacca, Michele Federico. In: Paul Edwards, Ed. The Encyclopedia of Philosophy. London-New York: Macmillan, 1972. Vol. VII, p. 337. GUALCO, Fabrizio e FUSARO, Diego. In: Michele Federico Sciacca. www.filosofico.net/Sciacca.html, entrada em 17/07/2007. MACEDO, Ubiratan Borges de. Metamorfoses da liberdade. São Paulo: IBASA, 1978. (Biblioteca Filosofia e Religião; 4) MONDIN, Battista. Storia della Metafísica. Bologna: Edizioni Studio Domenicano, 1998, Vol. III. Artigo: Il ritorono a S. Agostino: Michele Federico Sciacca, p. 726ss. MORA, José Ferrater. Diccionario de Filosofia. Nueva ed. act. bajo la dir. de Josep-María Terricabrás. Barcelona: Ariel Referencia, 1994, p. 3209-3211. Vol. IV. URDANOZ, Teófilo. Historia de la Filosofía: siglo XX: neomarxismos. Estructuralismo. Filosofia de inspiración cristiana. Madrid: BAC, 1985, Vol. VIII, p. 412-416.

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C - SCIACCA NA INTERNET www.Lepos.it/collane/collane.htm www.disspe.unige.it/pag4.htm www.Lib.berkeley.edu/Collections/Romance/ita11001 www.unige.it/strutture/ou/staff/DISSPE www.rosmini.altea.it/rosm2b.htm www.tilgher.it/meta.html www.filosofico.net/Sciacca.html

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AUTORIDADE HUMANA E FUNDAMENTO DA LEI EM MARSÍLIO DE PÁDUA José Luiz Ames* Resumo Marsílio de Pádua desenvolve a doutrina que situa a raiz de toda criação política na vontade popular, que se torna a fonte exclusiva de todo ordenamento civil. Com isso, o lugar da lei natural é ocupado pela vontade do legislador humano. Deste modo, a fonte da autoridade não é mais Deus, mas a vontade dos homens, aos quais cabe decidir acerca da justeza de uma lei unicamente em vista de seus fins políticos. A autoridade política do povo, devido ao seu poder legislativo, se estende sobre toda a organização civil, inclusive a parte clerical. Tendo atribuído a autoridade absoluta de fazer as leis aos cidadãos, este passa a ser o detentor real de todos os poderes civis. Para Marsílio, o governo permanece sempre e unicamente um executor da vontade do povo concretizada na obrigação emanada das leis por este promulgadas. Palavras-chave Marsílio de Pádua, lei, autoridade, política, Estado. Abstract Marsilius of Padua develops a doctrine which places the roots of all political creation into the popular will; so it becomes the exclusive source of all civil ordainment. With this move, the place of natural law is now occupied by the human legislator will, and the source of authority is not God any more but men’s will. It is up to them now to decide about the righteousness of any single law in regard of its political aims. The people’s political authority, due to its legislative power, stretchs out over all civil organization, including clerical lots. Once attributed to the citizens the absolute authority to make their own *

Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 409 - 428, out. 2007

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laws, they become the real trustee of all civil powers. To Marsilius of Padua the Government remains, always and solely, an executor of people’s will accomplished through the obligations emanated from the laws promulgated by itself. Keywords Marsilius of Pádua, law, authority, politics, State. Marsílio de Pádua1 é autor de uma teoria política singular, especialmente considerando a época em que foi desenvolvida, pois desvincula a organização política da dependência teológica, como era praxe no período medieval. Enquanto na discussão acerca do Estado, durante este período, a autoridade divina estava na base de qualquer instituição secular, com Marsílio a raiz de toda criação política está na vontade popular, que se torna à fonte exclusiva do ordenamento civil. A passagem na qual Marsílio manifesta expressamente esta posição é a seguinte: O legislador ou a causa eficiente primeira e específica da lei é o povo ou o conjunto dos cidadãos ou sua parte preponderante [...]. Declaro que é desta primeira autoridade, não de uma outra qualquer, que as leis e tudo o mais que se estabelece por intermédio da eleição devem obter sua ratificação necessária [...] (Defensor da Paz I, 12, § 3).2

A afirmação, para ser adequadamente compreendida, pressupõe a definição de lei. Marsílio toma o cuidado de distinguir claramente a noção de lei humana das demais acepções do termo. Lei, no sentido estrito da palavra, diz o paduano, “[...] indica a ciência, a doutrina ou o julgamento universal acerca do que é útil e justo para a cidade e dos seus contrários” (Defensor da Paz I, 10, § 3). Semelhante definição levanta algumas dificuldades, a primeira delas quanto ao significado de “justo” e “útil”: em relação a que ou a quem um preceito pode ser considerado justo ou útil? A resposta de Marsílio representa uma ruptura radical com o pensamento medieval: a justeza

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da lei não é mais extraída de algo fora dela, mas nasce da própria lei aprovada pelo legislador humano, pois este é a “causa eficiente primeira e específica da lei”. A autoridade para definir o justo e útil para a comunidade é, portanto, o legislador humano. Para dizê-lo de modo mais preciso: a justeza de um preceito não é encontrada fora da comunidade política, em uma esfera moral ou teológica ou no direito natural, mas nela mesma. Uma norma legal é “justa” quando resulta da vontade legisladora da coletividade ainda que ela, eventualmente, contrarie um sistema de valores teológicos ou princípios naturais. O que torna, pois, uma lei “justa” é a vontade legisladora humana e nada mais. Para compreendermos a ruptura provocada pelo paduano com esta compreensão, comparemos sua posição com a do filósofo que expressa de modo mais característico o pensamento tipicamente medieval: Tomás de Aquino. O aquinate, do mesmo modo que Marsílio, faz residir no povo, quer dizer no conjunto dos cidadãos que constituem o corpo social, a fonte primeira da autoridade política. No entanto, a vontade do povo não é autônoma do modo como é para o paduano, mas está limitada à conformidade com a lei natural.3 Para Tomás, a fonte da justeza da lei humana está na lei natural. Todo preceito que se distancie dela não passa de uma perversão da lei: “[...] toda lei humanamente imposta tanto tem razão de lei, quanto deriva da lei natural. Se, pois, em algo discorda da lei natural, já não será lei, mas corrupção da lei” (Suma Teológica I-II, q. 95. Art. 2). A validez da lei positiva está em sua relação com a lei natural corretamente interpretada pela razão humana. Assim, pois, enquanto Tomás tem na lei natural a medida do justo e do útil, Marsílio a encontra na vontade legisladora da comunidade humana. Somente esta tem o direito exclusivo de fazer leis concernentes à regulação da vida em sociedade e cuja transgressão implica uma punição temporal. É, precisamente, este último aspecto o traço distintivo da lei: somente um preceito capaz de coagir pode ser considerado lei. Nas palavras do paduano, “a dimensão exata do que é justo e útil para a cidade não se constitui em leis, a menos que tenha sido estabelecido um preceito coercivo impondo sua observância” (Defensor da Paz I, 10, § 5). Esta é a razão pela

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qual Marsílio recusa a lei natural: ela está destituída de força coerciva.4 É o que se pode chamar de doutrina, mas não de lei. Nas palavras de Aznar (2005, p. 137), [...] a vontade humana, não Deus, é a única causa eficiente da lei civil. É lei o que decide o legislador humano, sem mediação da lei natural, nem de uma minoria particularmente especializada (ou particularmente interessada). Não existe um direito natural distinto do direito humano estabelecido.

A lei é sempre positiva, isto é, deve ser escrita e promulgada. Estas condições são preenchidas somente pela lei humana e pela lei divina. Apesar desta similaridade, Marsílio estabelece uma diferença essencial entre as duas espécies de lei, diferença esta determinada pela autoridade da qual ambas emanam e do tempo e lugar da aplicação de sua força coerciva. No caso da lei humana, a punição é aplicada pela autoridade temporal e é cumprida na sociedade terrena. A punição da transgressão da lei divina, por sua vez, muito embora se trate de ações cometidas neste mundo, é imposta pelo Cristo depois da morte corporal no momento em que o indivíduo se apresenta diante do Senhor. Assim, ainda que a lei divina esteja dotada de coercividade, esta não é utilizada na comunidade humana, pois “[...] ela foi dada para que nós nos guiemos imediatamente por seu intermédio quanto ao que é necessário para obter a salvação eterna e evitar a perdição” (Defensor da Paz II, 9, § 13). A lei humana, pelo contrário, tem em vista a solução dos conflitos sociais inerentes à vida humana terrena para garantir o bem-estar da coletividade. Esta diferença em relação à finalidade da lei é o motivo pelo qual a transgressão de um preceito divino será punida pela autoridade humana somente se o legislador humano a tiver reconhecido como uma violação ao bem-estar terreno. Em outras palavras, a violação de uma lei divina não acarreta, necessariamente, uma punição temporal. Além disso, a punição neste mundo, mesmo em relação à violação de preceitos da lei divina, compete exclusivamente à autoridade estatal e jamais à autoridade religiosa.

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Esta posição fica particularmente clara no caso dos heréticos: “[...] se a lei humana proibir que um herege [...] fique na região, aquele que foi denunciado como tal terá de ser punido neste mundo [...] pelo juiz [...] por meio da autoridade do legislador” (Defensor da Paz II, 10, § 3). A ação do presbítero está limitada exclusivamente à admoestação dos fiéis acerca do risco da perdição eterna, jamais de punição pelo delito cometido: [...] o presbítero ou bispo deve neste mundo ensinar, repreender e convencer o pecador de sua culpa, exortá-lo para que se arrependa e incutir-lhe na mente o temor face ao julgamento ou sentença acerca e sua glória futura ou de sua condenação eterna, mas absolutamente não deverá constrangê-lo a fazer isso [...](Defensor da Paz II, 10, § 2).

Com esta posição, Marsílio subtrai do clero o direito de exercer a força coerciva sobre os cidadãos e o submete à legislação civil. Em conseqüência disso, suprime o privilégio que permitia ao clero um domínio sobre a esfera temporal com o qual rivalizava com o poder civil, ao mesmo tempo em que permitia que este corpo social tivesse um foro privilegiado para o julgamento de seus delitos. As leis, pondera Marsílio, devem ser feitas por aqueles que possuem a capacidade de emanar regras ótimas: o conjunto dos cidadãos (universitas civium) ou a sua parte preponderante (pars valentior). Ele ampara sua afirmação em três argumentos principais. O primeiro argumento postula que a autoridade legislativa pertence àqueles que podem fazer as melhores leis para a comunidade: “[...] a autoridade humana primeira indiscutivelmente capaz de legislar ou estabelecer leis compete somente à pessoa de quem provirão com exclusividade as melhores leis. Tal é o caso do conjunto dos cidadãos ou de sua parte preponderante que o representa” (Defensor da Paz I, 12, § 5). Marsílio apresenta duas razões para fundamentar este princípio: (1) “[...] um maior número de pessoas tem condições de apontar com mais exatidão uma falha numa proposição legal a ser estabelecida do que qualquer um dos seus grupos sociais”; (2) “[...] a

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comum utilidade de uma lei é melhor percebida pela totalidade dos indivíduos, porque ninguém se prejudica conscientemente” (Defensor da Paz I, 12, § 5). Assim, da necessária utilidade social da lei se deduz que quem melhor pode satisfazer o interesse comum dos cidadãos são eles próprios. O segundo argumento se baseia na garantia do cumprimento da lei: “[...] a autoridade para legislar compete somente à pessoa que atua de modo que as leis estabelecidas sejam melhor cumpridas ou simplesmente observadas. Ora, isto só compete à totalidade dos cidadãos” (Defensor da Paz I, 12, § 6). Marsílio oferece deste argumento igualmente duas explicações: (1) “[...] uma lei é melhor cumprida por qualquer um dos cidadãos quando julga tê-la imposto a si mesmo”; (2) “[...] o poder de fazer cumprir as leis compete só à pessoa que dispõe de força coerciva para empregá-la contra seus transgressores [algo que] compete ao conjunto dos cidadãos ou à sua parte preponderante” (Defensor da Paz I, 12, § 6). Uma lei que não se cumpre é ineficaz, e para ser cumprida é necessária a concordância da coletividade, o que se obtém unicamente através da participação do conjunto dos cidadãos. Esta participação é, para Marsílio, efetiva, real, e não meramente aparente ou formal. O terceiro argumento está ligado à finalidade prática da lei: pelo fato de os homens haverem se reunido em comunidade, “[...] tudo o que se refere aos seus benefícios ou aos seus prejuízos deve ser submetido ao conhecimento e à apreciação de todos, de maneira que possam assegurar para si mesmos os benefícios e repelir os prejuízos” (Defensor da Paz I, 12, § 7). Este argumento justifica a inconveniência de delegar a tarefa de legislar a uma só pessoa ou a um grupo, pois poderiam “[...] estatuir uma lei iníqua, tendo em mente apenas seu próprio interesse ao invés do comum, de modo que ela seria tirânica” (Defensor da Paz I, 12, § 8). É preciso ressaltar que a “parte preponderante”, muito embora seja uma “parte” e não o “conjunto”, é legítima fonte da lei porque representa a totalidade da comunidade e não um determindado segmento dela, como o clero, os nobres ou alguma corporação de ofício. Conseqüentemente, não se refere a uma parte produto da divisão social, e sim a uma representação da totalidade dos cidadãos. Marsílio admite, pois, a

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concessão do poder legislativo a um grupo de pessoas, mas deixa claro que quem delega esse poder é o conjunto dos cidadãos, única fonte originária da lei.5 Os três argumentos aduzidos por Marsílio em favor da tese da soberania popular na promulgação da lei expressam a convicção de que a eficácia das leis está intimamente ligada ao modo de sua aprovação. A observância da lei, pondera ele, depende do consentimento universal. Este, por sua vez, só é possível de ser alcançado quando a lei é imposta voluntariamente. Quando esta concordância falta, ainda que as leis “[...] fossem boas [...], protestariam contra elas e, devido a não terem sido convocados a legislar, simplesmente não as observariam” (Defensor da Paz I, 12, § 6). Pela mesma razão, uma lei menos útil, mas “[...] promulgada mediante a consulta ou consenso de toda multidão [...] será observada e suportada facilmente por qualquer dos cidadãos” (Defensor da Paz I, 12, § 6). O ponto de partida de Marsílio é, pois, a convicção de que o corpo inteiro dos cidadãos (e não apenas alguns dentre eles) deseja a vida suficiente visada pela comunidade política e, igualmente, que repelem tudo o que é contrário a ela. Se, pois, a multidão quer viver em sociedade, “[...] deseja igualmente tudo aquilo de que ela necessita para se manter, isto é, precisamente a regra sobre o que é justo e útil, estabelecida mediante um preceito denominado lei” (Defensor da Paz I, 13, § 2). A contestação desta afirmação, sob o argumento de que nem todos desejam a lei, implicaria em admitir “[...] uma anormalidade na natureza e na arte [...], o que é um fato impossível de acordo com a ciência natural” (Defensor da Paz I, 13, § 2). Todos são, portanto, capazes de julgar acerca da justeza e da utilidade social de uma lei. Marsílio chega a essa conclusão porque não deriva mais a capacidade de julgar da capacidade intelectual nem da virtude universal, e sim do desejo biológico, inerente aos indivíduos, de satisfazer suas necessidades econômicas. Marsílio se antecipa em relação às objeções que poderiam ser levantadas com respeito à sua tese de que a única autoridade legítima para legislar é o corpo inteiro dos cidadãos. Organiza estas objeções em quatro pontos principais e as refuta uma a uma. Podemos agrupá-las em dois argumentos principais. Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 409 - 428, out. 2007

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O primeiro argumento contrário à tese da soberania popular sustenta que a multidão é afetada pela ignorância e pela malícia, o que comprometeria a sua capacidade legisladora em favor do bem comum. Marsílio rebate a afirmação dizendo que a ignorância ou a malícia podem atingir algumas pessoas, mas não a maioria, “[...] que é sadia mental e intelectualmente” (Defensor da Paz I, 13, § 3). Admite que, efetivamente, nem todos os cidadãos são capazes de descobrir ou inventar as leis. No entanto, está convencido de que todos estão em condições de avaliar a utilidade e justeza delas e ainda de “discernir o que deve ser acrescentado, suprimido ou alterado” (Defensor da Paz I, 13, § 3). O segundo argumento contrário à sua tese afirma que seria quase impossível alcançar o consenso no grande número e, por isso, seria preferível incumbir os sábios, que são poucos, da tarefa de legislar. Marsílio, partindo do princípio de que “[...] o todo é maior do que a parte”, extrai dois argumentos que refutam a pretensão citada. Primeiro, uma lei aprovada pelo conjunto dos cidadãos é superior àquela feita por uma parte, porque corresponde aos interesses de todos e não aos de um pequeno grupo; depois, delegando-se a tarefa de legislar a um pequeno número, “[...] haveria o risco de o mesmo tomar em conta só o próprio bem [...], esquecendo-se completamente do bem comum” (Defensor da Paz I, 13, § 5). Para bem compreender a posição de Marsílio é preciso ter presente que ele distingue dois momentos principais no processo de instituição de uma lei: (1) a descoberta; e (2) a aprovação. Reconhece que é mais eficiente encarregar um pequeno grupo de especialistas da tarefa de inventar a lei e explicá-la aos demais, pois se encarregassem disso os menos esclarecidos, “[...] não somente não obteriam êxito, mas se prejudicariam no desempenho das tarefas que lhes são necessárias, causando dano a si mesmos e aos demais cidadãos” (Defensor da Paz I, 13, § 8). No entanto, depois de elaboradas, devem ser submetidas à apreciação da assembléia geral dos cidadãos para a aprovação: “É somente após tal aprovação, nunca antes, que as sobreditas regras tornam-se leis e merecem efetivamente tal denominação” (Defensor da Paz I, 13, § 8). E Marsílio conclui: “Portanto, a autoridade para legislar ou estabelecer leis e para dar um preceito coercivo no tocante à sua observância, é apenas da

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competência do conjunto dos cidadãos ou de sua parte preponderante” (Defensor da Paz I, 13, § 8). Estamos diante de um pensador lúcido e realista. Apesar de não abdicar, sob hipótese alguma, da autoridade exclusiva do corpo dos cidadãos para estabelecer a lei, sabe que sua formulação pressupõe conhecimentos teóricos, “técnicos”, diríamos na linguagem de hoje, que poucos detêm. Assim, pragmaticamente, delega a tarefa de elaborar, de dar a forma escrita adequada ao preceito legal, a um grupo de peritos. Com isso, evita a apreciação de propostas incongruentes com outras já aprovadas, além de garantir um rigor “técnico” na escrita. No entanto, não renuncia ao direito do corpo dos cidadãos de apreciar as propostas de lei. A delegação de elaborar a proposta não implica na alienação do dever cívico da determinação do bem comum pelo conjunto dos cidadãos. Estes, e somente estes, têm a competência necessária para conhecer o “justo e o útil”.6 Na tradição interpretativa, a tese da “soberania popular” defendida por Marsílio também não passou incólume. As críticas que ela mereceu podem ser captadas na seguinte posição de Barani (1979, p. 268-9): [...] dizer que todos devem ser primeiro informados sobre aquilo que será objeto de sua aclamação [...], não é suficiente para investir o povo de uma autônoma e democrática faculdade de intervenção nas tarefas da civitas, [pois a tarefa de] inventar as leis [...] diz respeito, de fato, aos prudentes e aos sábios [de modo que] o povo, embora capaz (teoricamente) de avaliar as propostas de quem governa, permanece, no entanto, um simples objeto passivo, um espectador, um súdito, a partir do momento em que, concretamente, não se oferecem a ele instrumentos para ser um real protagonista da vida pública.

O que dizer desta crítica? Parece-nos que falha por deduzir uma conclusão para a qual o texto não oferece amparo. Com efeito, se tomarmos suas afirmações por verdadeiras, fica difícil explicar Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 409 - 428, out. 2007

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porque Marsílio teria proposto sua doutrina da soberania popular de modo tão categórico no Primeiro Discurso. Por exemplo, por que teria ele insistido que era favorável a que as leis fossem feitas e aprovadas pela autoridade do povo, o conjunto dos cidadãos “e não de uma outra qualquer” (Defensor da Paz I, 12, § 3)? Por que teria ele enfatizado que “é somente após tal aprovação, nunca antes”, pelo corpo inteiro dos cidadãos ou pelos representantes eleitos, “que as sobreditas regras tornam-se leis e merecem efetivamente essa denominação” (Defensor da Paz I, 13, § 8)? Note-se que estas são exigências exclusivas (“e não de outra qualquer”; “nunca antes”) e que elas excluem definitivamente a idéia de que a autoridade legislativa possa pertencer ao imperador, aos nobres ou a qualquer grupo particular. Quanto à observação de Barani, de resto também endossada por Quillet,7 de que não se oferecem ao povo os “[...] instrumentos para ser um real protagonista da vida pública”, de que reclamaria ao “[...] populus ou à universitas civium o poder exclusivo de aprovar as leis [...], mas se cala sobre o ‘modo’ concreto segundo o qual o povo pode efetivamente encontrar-se, exprimir-se, confrontar a própria opinião acerca da lei que está por aprovar” (BARANI, 1979, p.269), parece ignorar por completo a passagem na qual Marsílio exige que as leis propostas por peritos [...] devem ser apresentadas à totalidade dos cidadãos reunidos, os quais terão a incumbência de aprová-las ou recusá-las, e se lhes parecer que algo deva ou ser acrescentado ou suprimido ou modificado ou ainda rejeitado poderão fazer isso claramente, de modo que a regra possa vir a ser estabelecida com muito mais proveito. Como tivemos ocasião de falar, os cidadãos menos esclarecidos podem, muitas vezes, notar algo a ser corrigido no tocante à lei proposta, mas não seriam capazes de formulá-la (Defensor da Paz I, 13, § 8).

É flagrante a oposição entre o texto de Marsílio e a interpretação de Barani e Quillet. Longe de tratar o povo como “um

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mero espectador”, dotado de um poder “meramente teórico”, Marsílio defende enfaticamente que o controle final e continuado da lei pela assembléia dos cidadãos seja efetivo, estendendo-se inclusive sobre o soberano. A exigência da participação de todos os cidadãos na formulação da lei é referida por Marsílio ao princípio segundo o qual a totalidade orgânica tem sempre precedência em relação às partes individuais: “[...] o conjunto dos cidadãos ou sua parte preponderante pode discernir com mais clareza o que se deve escolher ou rejeitar do que qualquer um de seus grupos sociais separadamente” (Defensor da Paz I, 13, § 2). O homem individual não está, pois, em condições de encontrar sozinho o justo e o útil para a comunidade estatal: “[...] o que um homem apenas tem condições de saber ou descobrir por si mesmo, tanto a respeito da ciência que trata do que é justo ou útil para a cidade, como no tocante aos objetos considerados pelas demais ciências, é muito pouco ou irrisório” (Defensor da Paz I, 11, § 3). Marsílio é enfático na rejeição da idéia de que a autoridade legislativa possa pertencer a “uma ou a algumas pessoas”. Sirva a seguinte passagem para concluir esse argumento: A autoridade dos cidadãos para legislar compete somente ao conjunto dos cidadãos [...] ou apenas a um, ou a alguns poucos homens. Ora, isto não pode ser da competência exclusiva de uma só pessoa [...]. Tal pessoa, levada pela ignorância ou pela malícia, ou por ambas, poderia estatuir uma lei iníqua, tendo em mente apenas seu próprio interesse ao invés do comum, de modo que ela seria tirânica. Por motivo semelhante, não compete a um número pequeno de cidadãos legislar, pois igualmente poderiam errar promulgando leis iníquas como na situação anterior, leis essas que visassem somente o interesse de uns poucos indivíduos e não o geral, conforme acontece nas oligarquias (Defensor da Paz I, 12, § 8).

A fixação de fins terrenos projetados no Estado proposto por Marsílio encontra a mais duradoura expressão em sua concepção Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 409 - 428, out. 2007

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de legislador humano. O caráter humano da lei aponta para o fato de que ela, como norma e medida da comunidade estatal, não toma sua origem nem na instância sobrenatural divina, nem é devida a um soberano elevado a uma posição semelhante à divina. A lei resulta do esclarecimento da vontade dos cidadãos unidos no Estado. Condição prévia para tanto é a constituição de um consenso entre aqueles que participam da vida política e a colaboração dos cidadãos na formulação da lei. Esta formalização na criação da lei é devida à necessidade de garantir a formação da vontade política dos cidadãos através da criação de regras procedimentais universalmente obrigatórias. Portanto, a discussão pública coloca a forma segundo a qual a vontade dos cidadãos é capaz de ser articulada. Por meio da discussão pública a voz do povo alcança uma valorização nova e sua utilização cria a condição prévia para uma participação da totalidade dos cidadãos na vida política. Não se trata de uma participação exterior, “meramente teórica”, como interpretam Quillet e Barani, mas de uma ativa participação na formação da vontade pública. A caracterização da lei feita por Marsílio mostra uma quase inquebrantável confiança na razão humana. A razão fornece o meio que liga os cidadãos uns aos outros na comunidade estatal e possibilita dessa maneira a formação de uma vontade política comum. Graças à concordância dos cidadãos em torno da lei a razão como que toma forma. A lei não representa para Marsílio outra coisa senão razão concretizada. Ela é, em sua opinião, idêntica com a razão: “[...] a lei é a razão sem a influência do apetite, isto é, desprovida de qualquer sentimento” (Defensor da Paz I, 11, § 4). O caráter de universalidade da lei faz compreender porque para Marsílio todos os homens, sem distinção de nobreza ou riqueza, estão submetidos a ela. Graças à rigorosa separação do âmbito de validade da lei humana (restrita ao mundo terreno) da lei divina (dirigida ao mundo celeste), Marsílio consegue incluir o clero no universo da soberania do Estado terreno. Ele identifica o corpo clerical, inclusive o papa, como cidadãos comuns e os considera unicamente em base ao exercício da função sacramental de “mestres e médicos da alma”. Na condição de cidadãos, não compete nem ao clero nem ao papa qualquer poder coativo, seja no âmbito terreno ou espiritual. O clero, à semelhança de qualquer corporação, deve sua instituição a um

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legislador humano e a regulação de sua conduta é estabelecida por meio da lei civil. Não são, porém, apenas as corporações que estão submetidas à lei, mas o próprio soberano. Partindo da proposição aristotélica, segundo a qual aquele que determina a forma deve também determinar o sujeito, Marsílio faz depender a instituição do soberano da legitimação pelos cidadãos: Considerando que compete ao conjunto dos cidadãos engendrar a forma, isto é, a lei, a lei por meio da qual todos os atos civis devem ser regulados, [...] é igualmente de sua alçada determinar o sujeito ou a matéria desta forma, quer dizer, escolher o príncipe, a quem cabe ordenar, segundo aquela forma, as ações dos seres humanos (Defensor da Paz I, 15, § 3).

O conjunto dos cidadãos não determina o soberano apenas através da eleição. Deve velar igualmente por sua manutenção, censurá-lo em suas faltas graves e, inclusive, no caso de graves violações, destituí-lo: O legislador ou o conjunto dos cidadãos é a causa eficiente da escolha ou do estabelecimento do governante, da mesma forma que lhe cabe o poder legislativo [...], como também é da sua competência representar contra o governante e ainda depô-lo, se tal medida for útil ao bem comum (Defensor da Paz I, 15, § 2).

O risco de um poder excessivo do soberano em relação às demais partes do Estado deve ser controlado por meio de uma sistemática limitação de seu poder de coação, particularmente de sua força militar: O legislador deverá fixar não apenas o número de soldados à disposição do príncipe, mas também o dos que exercem as demais atividades civis. Esse contingente terá de ser bastante Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 409 - 428, out. 2007

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numeroso de modo a exceder tanto o poder individual de cada cidadão como o de grupos dos mesmos tomados em conjunto, entretanto, não deverá extrapolar o poder de toda a coletividade ou de sua parte preponderante, a fim de que não aconteça que o governante presuma que pode ou violar as leis, ou governar à sua margem ou ir contra as mesmas, como se fosse um déspota (Defensor da Paz I, 14, § 8).

O soberano não pode reivindicar diante da lei tratamento diferente de qualquer outro cidadão: “[...] cabe ao legislador ou àquela ou àquelas pessoas indicadas por ele o mister de julgar o príncipe delinqüente, face aos seus deméritos ou à violação da lei, e ordenar a execução de qualquer medida punitiva contra ele” (Defensor da Paz I, 18, § 3). Numa semelhante organização do Estado, o soberano é, na realidade, a totalidade dos cidadãos. A pessoa física do soberano, ao invés disso, desempenha unicamente o papel de executor da vontade da totalidade, estando subordinado, na realização, a um órgão cuja função é garantir a manutenção da lei pelo uso da força coativa. A totalidade dos cidadãos age através do soberano. Ao colocar a questão nestes termos, Marsílio põe, de fato, o conjunto dos cidadãos como personalidade jurídica autônoma em relação ao soberano. Estas considerações mostram como é pouco plausível a interpretação de Barani (1979, p. 271) de que em Marsílio encontraríamos [...] uma realidade política dirigida a uma forma centralizada e despótica de poder [...]. A defesa da paz e do Estado torna-se para Marsílio, antes de qualquer coisa, a defesa de um governo ‘forte’, ao qual deve ser restituída a plenitude de seu poder supremo e com o qual dirige qualquer ‘parte’ da cidade.

Colocando o legislador humano como “causa eficiente primária”, Marsílio livra o Direito da transitoriedade a que estaria submetido se dependesse unicamente do soberano: como ter certeza de que a plenitude do poder resultante da lei conseguiria sobreviver

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ao tempo de vida do soberano? O legislador humano, ao invés disso, sobreviverá necessariamente, pois a multiplicação do gênero humano não acaba jamais. Livre da dependência do caráter mortal do soberano, o Direito está subtraído do destino da transitoriedade. Assim, conclui Tilman Struve (1980, p. 376-7), [...] graças à concepção do legislador humano como a geração de persona ficta, o Estado alcança uma continuidade transpessoal. [...] O soberano aparece, de acordo com isso, no papel de um órgão temporal governado pelo legislador humano. Deste modo, Marsílio consegue oporse eficazmente ao perigo da transitoriedade do Estado, que surge inevitavelmente da sua concepção organicista.

Marsílio reconhece à lei duas finalidades: uma principal, que é “concorrer para o bem comum e para o que é justo na cidade” (Defensor da Paz I, 11, § 1); e outra secundária, que “[...] consiste em proporcionar uma certa segurança e estabilidade governamental” (Defensor da Paz I, 11, § 1). A importância da distinção está em apontar que a lei está em função dos interesses da coletividade antes de existir para a segurança de quem a governa. A primeira finalidade da lei alcançada na medida em que os julgamentos estiverem preservados da malícia e da ignorância. Ora, argumenta Marsílio, não há como assegurar a retidão do sentimento do juiz se este puder guiar-se unicamente por seu arbítrio, pois poderá ser levado “[...] ou pelo ódio ou pelo amor ou ainda pela avareza” (Defensor da Paz I, 11, § 1). No entanto, se o julgamento for orientado pela lei, seu ato estará livre de tais injunções, “[...] pois não é elaborada para favorecer a um amigo ou prejudicar a um inimigo, mas para ter uma aplicação universal” (Defensor da Paz I, 11, § 1). O mesmo vale em relação à necessidade de um verdadeiro conhecimento das coisas que devem ser julgadas. O julgamento orientado pela lei supre a eventual ignorância do juiz, “[...] porque nela está quase perfeitamente determinado o que é justo ou injusto, útil ou pernicioso, no que se refere a todas as ações dos cidadãos” (Defensor da Paz I, 11, § 3). Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 409 - 428, out. 2007

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A segunda finalidade, de proporcionar segurança aos governantes, é alcançada na medida em que estes proferirem seus julgamentos orientados pela lei e não segundo seu arbítrio: “[...] os governantes regulados em seus atos e perante os súditos correrão menos risco de enfrentar sedições, de maneira que seu governo não será perturbado. Mas se agirem conforme a sua vontade, se portando mal, acontecerá justamente o contrário” (Defensor da Paz I, 11, § 5). O monarca marsiliano jamais se identifica com a lei, mesmo se, por hipótese, possa estar privado de ignorância e sentimentos perversos. Marsílio é cético em relação à existência de homens perfeitos. Todos, por natureza, apresentam as mesmas paixões, que devem ser moderadas pela lei. O realismo marsiliano aconselha que “[...] os governantes, ao proferirem julgamentos civis, estejam mais circunscritos àquilo que está determinado pela lei do que atuem segundo o próprio arbítrio” (Defensor da Paz I, 11, § 7). Marsílio estabelece uma estreita ligação entre a lei e o governante: ninguém, colocado no governo da coisa pública, pode considerar-se desobrigado das leis. São estas que guiam a conduta e o julgamento do governante, que deve recorrer a elas toda vez que for necessária sua intervenção civil, e agir unicamente segundo a previsão delas. Governar, para Marsílio, não é ditar leis conforme sua própria vontade, mas agir segundo a lei estabelecida. A obediência que os súditos devem é muito antes à lei que à pessoa do soberano. O soberano não é fonte de lei: ainda que possa e até mesmo deva adaptála às circunstâncias concretas, é sempre e unicamente interpretação e não criação de lei. A própria interpretação da lei não é deixada em aberto, mas Marsílio se apressa em fornecer quatro critérios principais para sua correta efetivação: prudência, justiça, eqüidade e amor cívico (Defensor da Paz I, 14). O governante, ressalta Toscano (1981, p. 165), [...] não é mais o guardião do moralmente justo, mas do que é legal, e personifica o poder coercivo das leis positivas. Não é o ministro de Deus, mas o instrumento executivo da vontade do povo. As limitações que lhe são impostas não derivam de uma teórica e indefinida lei

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racional, mas da norma positiva da comunidade, e nela deve inspirar todos os seus julgamentos e a execução das sentenças.

O governante não é escolhido por virtudes teológicas, mas por qualidades essencialmente políticas para a solução de problemas sociais concretos. Sobretudo, não está acima do ordenamento legal do Estado, mas está subordinado à lei humana. Se a figura do governante está limitada pela lei, nenhum limite conhece a vontade popular na perseguição do interesse comum. Na escolha popular se exprime sempre o melhor da racionalidade humana, seja quando se trata de escolher um soberano, seja quando se trata de adotar uma lei. Marsílio tem o grande mérito, entre outros pontos certamente, de haver antecipado a discussão moderna do conceito de autoridade do Estado, que não é divisível entre dois poderes (temporal e espiritual). Toda autoridade terrena, que a tradição clerical queria derivada de Deus, passa com o paduano ao povo. A autoridade política do povo, no Defensor da Paz, devido ao seu direito legislativo, se estende sobre toda a organização civil, inclusive a parte clerical. Tendo atribuído aos cidadãos a autoridade absoluta de fazer as leis, às quais o governo está constantemente obrigado no desenvolvimento das suas funções, o povo é o detentor real de todos os poderes civis. Os cidadãos não renunciam nunca à sua autoridade basilar delegando ao governo a distribuição e supervisão das funções sociais. Para Marsílio, o governo permanece sempre e unicamente um executor da vontade do povo concretizada na obrigação emanada das leis da comunidade civil. NOTAS EXPLICATIVAS 1

Marsílio Mainardini nasceu entre 1284 e 1287 em Pádua, na Itália. Filho de família plebéia, seu pai, Bonmatteo, foi notário da Universidade de Pádua. Marsílio foi médico de profissão e teve formação em Direito e Filosofia. Sua obra principal, O Defensor da Paz, publicada em 1324, foi escrita em conjunto com João de Jandum. Além desta, é autor de outros trabalhos como Defensor Menor, Da Transferência dos Impérios e Sobre a Jurisdição do Imperador em Questões Matrimoniais. Em 1327 foi denunciado junto à Cúria Romana

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em virtude das teses defendidas em O Defensor da Paz. Convocado a apresentar-se para defesa, decidiu, em vez disso, refugiar-se, juntamente com João de Jandum, na corte do príncipe alemão Luís da Baviera a quem a obra fora dedicada. Na seqüência do processo, foi acusado de heresia e excomungado pelo papa João XXII. Morreu, provavelmente, em 1343. 2

Para a citação das passagens extraídas desta obra, o número em romano que segue ao título indica o livro e os números em arábico correspondem ao capítulo e ao parágrafo, respectivamente. 3

Esta posição está em flagrante oposição à tese de J. Quillet (1970, p. 84 e seguintes). Procuraremos fundamentar a pertinência de nossa interpretação, contrária a de Quillet, na seqüência do texto. 4

Para Aznar (2005, p. 137), “[...] o abandono do direito natural constitui uma das maiores novidades de Marsílio e expressa uma aposta pelo significado político da lei humana”. Para este intérprete, a negativa de Marsílio de atribuir ao direito natural a fonte da determinação do justo tem por motivação evitar conceder “[...] aos seus doutos intérpretes, padres e bispos, a função de estabelecer o limite da lei humana, quer dizer, de limitar o poder civil”. 5

Esta posição de Marsílio evoca, ainda que de modo incipiente, a concepção moderna de representação política: o Parlamento (a pars valentior) constituise na representação legítima da vontade geral dos cidadãos (universitas civium), designada por meio do voto universal. 6

Para além das diferenças relacionadas às distintas épocas em que viveram, podemos notar semelhanças em uma série de elementos entre Marsílio de Pádua e Jean-Jacques Rousseau quanto à importância que ambos conferiram ao povo na tarefa legislativa. Nos dois autores nos encontramos diante da postulação de uma instância suprema que age como fundamento da ordem política: a universitas civium marsiliana e a vontade geral rousseauniana. Ambas são identificadas com o “povo” como sede originária da soberania e correspondem com a suprema autoridade legislativa da qual emanam as normas que regulam a ordem política. Dubrá (2000) analisa três aspectos a partir dos quais estabelece uma analogia entre os dois pensadores. Primeiro, “o caráter secundário-instrumental do governo [...] em relação à assembléia legislativa popular”: em Marsílio, a “parte governante”, encarregada de regular a vida civil, é instituída pela universitas civium; em Rousseau, os magistrados, encarregados da execução das leis, são simples oficiais do

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Soberano e em seu nome exercem o poder. Segundo, “alta qualificação da instância legislativa suprema e sua invariável orientação ao bem comum”: em Marsílio, a universitas civium é concebida como a única instância da qual podem provir as melhores leis; em Rousseau, a vontade geral é “sempre reta e sempre tende à utilidade pública”. Terceiro, a “concepção da legislação como a obrigação que o todo se impõe sobre si mesmo”: para Marsílio, conceder à universitas civium a tarefa de legislar é a melhor maneira de garantir o cumprimento das leis; para Rousseau, a essência da lei, enquanto ato da vontade geral, reside em seu caráter auto-legislativo. 7

Com efeito, sustenta que “[...] a doutrina da soberania popular não é mais, no tempo de Marsílio, uma novidade. Santo Tomás faz igualmente residir sempre no povo, quer dizer, no conjunto dos cidadãos que constituem o corpo social, a fonte primeira da autoridade política” (QUILLET, 1970, p. 83). Um pouco adiante, arremata: “Como se vê, a afirmação da soberania popular permanece nos limites de uma declaração de princípio, conforme aos fundamentos filosóficos que tem presidido a definição da cidade. Mas esta coerência permanece puramente formal uma vez que, na prática, semelhante autoridade está delegada aos representantes escolhidos em razão de suas funções e de suas competências. Igualmente, a aprovação pelo conjunto dos cidadãos das leis a promulgar permanece inteiramente teórica, pois, de fato, é igualmente a um pequeno número de representantes do conjunto dos cidadãos, escolhidos por eles, que será atribuída esta função” (QUILLET, 1970, p. 84).

REFERÊNCIAS AZNAR, Bernardo Bayona. El significado ‘político’ de la Ley en la filosofía de Marsilio de Padua. Anales del Seminario de Historia de la Filosofía. Vol. 22(2005), p. 125-138. BARANI, Francesco. Il Concetto di laicità come chiave interpretativa del pensiero politico: Marsilio da Padova. Medioevo: Rivista di storia della filosofia medievale. Padova: Antenore, vol. V, 1979, p. 259-78. DUBRÁ, Julio Castelo. La ‘universitas civium’ de Marsilio de Padua y la ‘voluntad general’ de Rousseau. Disponível em >http:/

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/www.salvador.edu.ar/vrid/publicaciones/revista/dubra.htm< Acesso em 02 de julho de 2007, 10:14h GEWIRTH, Alan. Republicanism and Absolutism in the thought of Marsilius of Padua. Medioevo: rivista di storia della filosofia medievale. Padova: Antenore, vol V. 1979, p. 23-48. MARSÍLIO DE PÁDUA. O Defensor da Paz. Tradução de José Antônio Camargo Rodrigues de Souza. Petrópolis: Vozes, 1997. QUILLET, Jeannine. La Philosophie politique de Marsile de Padoue. Paris : Vrin, 1970. STRUVE, Tilman. Die Rolle des Gesetzes im “Defensor Pacis” des Marsilius von Padua. Medioevo: Rivista di storia della filosofia medievale. Padova: Antenore, Vol. VI, 1980 p. 355-378. TOMÁS DE AQUINO. Escritos Políticos de Santo Tomás de Aquino. Tradução de Francisco Benjamim de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1997. TOSCANO, Antonio. Marsilio da Padova e Niccolò Machiavelli. Ravenna: Longo Editore, 1981.

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CULTURAS, CIUDADANÍA Y REPUBLICANISMO1 Juan Carlos Velasco* Resumen Este artículo explora la cuestión de la diversidad cultural desde la concepción republicana de la ciudadanía en cuatro aspectos: en el primero, se presenta el sentido polisémico de la noción de ciudadanía y la acelerada evolución que ha experimentado en los últimos tiempos; en un segundo paso, se ofrecen los rasgos generales que caracterizan el enfoque neo-republicano; en un tercer momento, se da cuenta de las virtualidades que ofrece una relectura de los tópicos republicanos para integrar la pluralidad de culturas y formas de vida que conviven en las complejas sociedades contemporáneas a raíz de los procesos migratorios; y, finalmente, se argumenta a favor de la alternativa cívica representada por el republicanismo. Palabras-clave Ciudadanía, pluralismo cultural, republicanismo, democracia, liberalismo, identidad, políticas migratorias, políticas migratorias. El título de este artículo sugiere ya de entrada la idea de que los problemas suscitados por la diversidad cultural poseen relevancia cívico-política. Esta presuposición se apoya –al menos implícitamente– en el reconocimiento de la pluralidad de culturas en las sociedades contemporáneas no sólo como constatación empírica de un rasgo estructural de las mismas, sino también como un hecho ineludible para cualquier reflexión significativa sobre la política. Éste es también el punto de partida del liberalismo preconizado por el «segundo Rawls»: el reconocimiento del hecho del pluralismo, esto es, de la existencia de discrepancias irreductibles entre los ciudadanos de una misma sociedad sobre asuntos cruciales, tales como las concepciones del mundo o los códigos culturales (cf. Rawls 1996). *

Doutor em Filosofia pela Universidad Autónoma de Madrid e Científico Titular do Instituto de Filosofía do Consejo Superior de Investigaciones Científicas CSIC (Madrid). Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 429 - 462, out. 2007

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No obstante, el dato desnudo del pluralismo no resulta en sí mismo novedoso: culturas en contacto e incluso compartiendo un mismo territorio se han dado siempre a lo largo de la historia. Aunque la circunstancia de que en un mismo espacio social convivan individuos portadores de diversos valores y concepciones, de que existan sociedades heterogéneas cultural, nacional y étnicamente, es casi tan antigua como la propia humanidad, y a pesar de que esa diversidad se haya relevado con frecuencia como fuente de riqueza y progreso, a nadie se le esconde que este hecho también puede darse conformando un escenario de tensiones y riesgos: “riesgo de que cada una de las comunidades culturales cancele, desde su interior, la libertad de sus propios individuos; riesgo también de que las comunidades de mayor fuerza y tradición cierren la posibilidad de desarrollo de las más débiles; finalmente, de que la cultura nacional, que es el cemento que une a la sociedad más amplia, se debilite y llegue a la desintegración total” (Salmerón 1996, 70). Es esta percepción negativa la que ha pasado ahora a ocupar la primera línea, haciendo de la diversidad cultural objeto de reiterada preocupación. A la hora de tratar esta forma de diversidad mucha es la confusión engendrada, a veces de manera interesada, pues en un mismo debate se entrecruzan con harta frecuencia la inmigración, la convivencia intercultural, el choque de civilizaciones y hasta la posibilidad de la desmembración de las sociedades, por aludir tan sólo a algunos de los tópicos más habituales. En todo caso, los riesgos y tensiones señalados son tan relevantes que no pueden ser escamoteados en un planteamiento político global. No es entonces casualidad que la filosofía política de las últimas décadas haya convertido la diversidad cultural en uno de los temas centrales de su reflexión. Y no sólo desde la filosofía política en general, sino desde las diferentes corrientes de pensamiento político se ha tratado de dar respuesta a esta cuestión. Las aproximaciones más conocidas son las efectuadas desde el pensamiento demócrata-liberal, que no en vano oficia en la actualidad como pensamiento dominante (aunque no único, por más que algunos deseen considerarlo así). Otros planteamientos políticos, que pretenden presentarse como alternativas, o al menos como correcciones a la ortodoxia dominante, también tienen algo que decir sobre el tema. Éste sería el caso del republicanismo,

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cuyas propuestas son precisamente las que se quieren analizar a lo largo de este artículo. Al hablar de republicanismo es inevitable la referencia a aquella corriente de pensamiento político surgida en algunas municipalidades italianas del renacimiento que confirió nuevo sentido a las tradiciones ciudadanas griegas y romanas, animó gran parte de los debates políticos de la Inglaterra de los siglos XVII y XVIII, influyó sobre los padres fundadores de la independencia estadounidense y, tras casi dos siglos de discreto silencio, ha llegado hasta nuestros días como soporte de los clásicos ideales del vivere libero 2. Tras protagonizar un inesperado renacer, las contribuciones de numerosos filósofos políticos y iusfilósofos neorrepublicanos contemporáneos han tenido la virtud de volver a plantear la cuestión de la libertad republicana –y el correspondiente rechazo de cualquier forma de servidumbre– no sólo como un problema histórico, sino también como un asunto filosófico de relevancia no coyuntural. No obstante, es preciso advertir que el nuevo republicanismo, al menos el que aquí se reivindica, representa una reconstrucción selectiva de esa tradición (una tradición que, por otro lado, nunca generó una ortodoxia escolástica, ni constituyó un conjunto coherente y sistemático de postulados políticos), de la que conscientemente se resaltan ciertos motivos y se desechan otros. En todo caso, y al no tratarse de una concepción cerrada, se parte del convencimiento de que “para los republicanos contemporáneos, la tarea no se reduce a escarbar”, pues “la historia no nos provee de concepciones de la vida política que puedan trasladarse mecánicamente a los problemas actuales” (Sunstein 2004, 137). Hacen por ello una lectura parcial de la historia de la propia tradición republicana, una lectura que puede acaso ser tildada de reflexión desmemoriada y de que toma los conceptos en abstracto, sin atender a su contexto de formación ni a su encarnación histórica, pero no de rememoración meramente historicista. Tampoco ha de extrañar que desde lecturas plurales de una rica tradición, los diversos teóricos políticos contemporáneos conocidos como republicanos –Quentin Skinner, Philip Pettit, Cass Sunstein, Maurizio Viroli, Jürgen Habermas y un largo etcétera– presenten perfiles bien diferenciados y no siempre conciliables (cf. Ferrara 2004). Si bien es cierto que la actual revitalización del republicanismo adolece, pese a su innegable aire Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 429 - 462, out. 2007

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academicista, de una notable imprecisión conceptual, sus diversos representantes poseen un cierto aire de familia que los hace reconocibles en la medida en que tienden a rescatar de esa tradición política su compromiso con ciertos tópicos, entre los que descuellan los siguientes: la igualdad política, la deliberación pública, el combate de la corrupción y, de forma eminente, la reivindicación de la ciudadanía. En este artículo se aborda la cuestión de la diversidad cultural desde la perspectiva propia de la concepción republicana de la ciudadanía en cuatro pasos consecutivos: en el primero, se presente el sentido polisémico de la noción de ciudadanía y la acelerada evolución que ha experimentado en los últimos tiempos (1); en un segundo paso, se ofrecen los rasgos generales que caracterizan en enfoque neorrepublicano (2); en el tercero, se da cuenta de las virtualidades que ofrece una relectura de los tópicos republicanos para integrar la pluralidad de culturas y formas de vida que conviven en las complejas sociedades contemporáneas sobre todo a raíz de la intensificación de los flujos migratorios (3); y, en la última sección, se articulará una defensa de una ciudadanía de corte republicano que sirva de base para una nueva forma de identidad colectiva en sociedades plurales (4).

1. LA CIUDADANÍA EN EL DEBATE CONTEMPORÁNEO La recuperación de la noción de ciudadanía experimentada en las últimas décadas ayuda a explicar en una gran medida el renovado interés por la tradición republicana. Cuando hoy se invoca esta tradición política como portadora de un robusto modelo normativo de ciudadanía resulta evidente que con ello se está pretendiendo conceder una base teórica respetable a los repetidos llamamientos dirigidos a alentar el espíritu participativo y solidario en las sociedades contemporáneas. La vinculación entre ciudadanía, por un lado, y republicanismo y participación cívica, por otro, no es, sin embargo, la única relación que cabe establecer. Con la noción de ciudadanía se evoca habitualmente la pertenencia de un individuo a una determinada comunidad política.

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Esta acepción fundamental ya estaba incluida en el vocablo latino cives, del que proviene etimológicamente, y que designaba un status integrado por un núcleo compacto e indivisible de derechos y deberes que definían la posición de las personas libres, en primer lugar, en la civitas romana y posteriormente, en el mundo romano en su conjunto. Partiendo de este significado básico, su campo semántico se ha ido ampliando de tal modo que el término sirve también para calificar una “relación política fundamental y sus principales articulaciones, esto es, las expectativas y exigencias, los derechos y deberes, las modalidades de pertenencia y los criterios de diferenciación o las estrategias de inclusión y de exclusión” (Costa 2006, 35). El contenido eminentemente jurídico que se derivaba de esas evocaciones clásicas que se acaban de señalar ha sido así, pues, ampliamente sobrepasado. En su significación actual, la ciudadanía se presenta como una categoría multidimensional que simultáneamente puede hacer las veces de concepto legal, de ideal político igualitario y participativo, así como de referencia normativa para las lealtades individuales y colectivas (cf. Colom 1998, 235). Implica, en principio, una relación de pertenencia con una determinada politeia (o comunidad política), una relación asegurada en términos jurídicos (libertades y obligaciones legales), pero también denota una forma de participación activa en los asuntos públicos. Dado su carácter por así decir transversal respecto a las diferentes dimensiones de la vida en sociedad, la ciudadanía se convierte “en un concepto denso de significados, que involucra especialmente los criterios de adhesión subjetiva a un ordenamiento: identidad y participación, derechos y deberes de «geometría variable»” (Mezzadra 2005, 95). Su significado no se reduce, sin embargo, al aspecto subjetivo de una relación política, pues de la ciudadanía se derivan unos contenidos objetivos e implicaciones institucionales concretas: “En su acepción normativa, la ciudadanía es un conjunto de derechos, ejercidos por los individuos que son titulares de tales derechos y distribuidos universalmente y equitativamente dentro de una comunidad política. También incorpora el conjunto de instituciones garantes del ejercicio de tales derechos” (Bauböck 2006, 137). Un dato empírico para mostrar el dinamismo y –todo hay que decirlo– también el cierto grado de confusión con el que se ha presentado la reflexión sobre la ciudadanía: sólo en el intervalo comprendido entre Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 429 - 462, out. 2007

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1989 y 1999 se presentaron en el ámbito anglosajón al menos diez sofisticadas propuestas para replantear el concepto: ciudadanía diferenciada (Young 1989), ciudadanía postnacional (Soysal 1994), ciudadanía neorrepublicana (van Gunsteren 1994), ciudadanía cultural (Turner, 1994), ciudadanía multicultural (Kymlicka 1995), ciudadanía transnacional (Bauböck 1995), ciudadanía cosmopolita (Held 1997), ciudadanía extraterritorial (Kastoryano 1998), ciudadanía democrática (Gutmann 1999) y ciudadanía mundial (Nussbaum 1999). http:// www.ortegaygasset.edu/circunstancia/numero10/art6_imp.htm. Desde entonces este inventario no ha dejado de aumentar. De alguna manera, “todos estos nuevos lemas apuntan hacia la propagación de la idea clásica de ciudadanía social defendida por Thomas Marshall y la exploración de nuevos significados de la participación en los procesos de toma de decisiones públicas” (Baumann 2001, 172). Precisamente por ello el grado de dispersión semántica es algo menor que lo que en una primera impresión pudiera parecer, pues la remisión a Marshall resulta prácticamente obligada y de alguna manera ayuda a unificar los términos de la discusión3. No obstante, esta común referencia no nos debe hacer olvidar que, como se acaba de apuntar, en el debate sobre la ciudadanía confluyen y se enfrentan al menos dos lenguajes políticos diferentes: bien como ‘condición legal’ (la plena pertenencia a una comunidad política particular) o bien como ‘actividad deseable’ (vinculada a la participación en el destino de la comunidad política). La primera lectura como visión básica del asunto es la que el liberalismo ha propiciado tradicionalmente. Derechos y ciudadanía constituyen dos ingredientes básicos de la concepción liberal de la política: la ciudadanía representaría en este caso el estatuto jurídico que sirve de soporte para el conjunto de derechos que pueda disfrutar un individuo. Por su parte, el tratamiento de la segunda acepción deviene a menudo en un lenguaje de las virtudes públicas o, lo que es lo mismo, en un discurso republicano sobre las virtudes del buen ciudadano, definidas éstas como un conjunto de predisposiciones hacia el bien común necesarias para otorgar estabilidad y vigor a las instituciones democráticas. Desde una perspectiva en parte confluyente con la anterior, como es la expresada por autores como Hannah Arendt o Maurizio Viroli, la ciudadanía se identificaría también

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con el autocontrol democrático, esto es, con la capacidad de autogobierno de los sujetos mediante la participación activa en la esfera pública. Sea de una manera o de otra, el interés que los filósofos políticos contemporáneos reservan a las cuestiones relativas a la ciudadanía viene a cubrir un importante vacío dejado por la teoría rawlsiana. En el nivel teórico, la atención prestada a este tema desde hace un par de décadas puede entenderse como una derivación de la polémica que mantuvieron durante años liberales y comunitaristas: “se trata de una evolución natural del discurso político, ya que el concepto de ciudadanía parece integrar las exigencias de justicia y de pertenencia comunitaria, que son respectivamente los conceptos centrales de la filosofía política de los años setenta y ochenta. El concepto de ciudadanía está íntimamente ligado, por un lado, a la idea de los derechos individuales y, por el otro, a la noción de vínculo con una comunidad particular” (Kymlicka y Norman 1997, 5). Sea cierto o no, eso es lo de menos, los comunitaristas habrían tenido éxito al difundir la sospecha de que tras las pretensiones de una ética universalista como la rawlsiana se escondería la quiebra de las lealtades particulares en aras de un vaporoso cosmopolitismo4. Frente a la ingenua convicción liberal de que una concepción compartida de la justicia aporta los necesarios vínculos de cohesión social, desde otras perspectivas no completamente opuestas se niega que esto sea una consecuencia necesaria y consideran aún menos evidente que el participar de dicha concepción genere “una identidad ciudadana compartida que supere las identidades rivales basadas en la etnicidad. Parece claro, pues, que éste es un punto donde necesitamos una teoría de la ciudadanía y no solamente una teoría de la democracia o de la justicia” (Kymlicka y Norman 1997, 32-33). El retorno de la figura del ciudadano se encuentra conectado con la revitalización experimentada casi de forma simultánea por el discurso sobre la sociedad civil y su conversión en objeto de intenso debate académico e ideológico. Aunque no se puede negar que en el renacer de dicho discurso hubo, sin duda, un componente de moda intelectual provocada en gran parte por los procesos de democratización en el Sur de Europa en los años setenta, en América Latina en los ochenta

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y en Europa del Este a partir de la caída del muro de Berlín, también es cierto que conecta con una potente tradición de pensamiento político (cf. Cohen y Arato 2000). La apelación a la sociedad civil se produce también en al menos otros dos escenarios contemporáneos: por un lado, en las consolidadas democracias liberales donde su invocación responde a un anhelo por fomentar un tejido social dinámico capaz de afrontar los crecientes intentos de repliegue hacia una privacidad abúlica e indiferente; por otro, gana espacio entre las respuestas a la crisis no sólo del Estado de bienestar, sino incluso del propio Estado ante el fenómeno de la globalización. El sentido del término ciudadanía ha ido evolucionando a lo largo del tiempo a un ritmo parejo al que iba transmutándose la naturaleza del vínculo político. En el mundo actual, el Estado, concebido como entidad política soberana de base territorial y forma organizativa básica, ha sido reiteradamente cuestionado por procesos de integración supranacional y transnacional, por un lado, y por procesos de descentralización y fragmentación, por otro. De modo similar, la nación en tanto que tipo particular de comunidad política y en tanto que modo singular de lealtad también ha sido puesta en cuestión por la irrupción de formas de identidad nuevas y más complejas, particularmente formas postnacionales, multinacionales y poliétnicas. La transformación del Estado-nación y la emergencia de nuevos modos de lealtad representan desafíos ineludibles que han de ser encarados desde la teoría política con el objeto de pensar nuevas fórmulas de vivir en común. La enorme difusión de la noción de ciudadanía en las ciencias sociales y en la agenda política va unida en gran medida a un intento de extender su campo de aplicación. El concepto ha demostrado poseer un carácter enormemente dinámico, en continua adaptación a situaciones y contextos diversos. La historia jurídico-política de la humanidad es, en gran medida, la historia de la lucha por la ciudadanía, de su reconocimiento y extensión a todos los seres humanos. En esta línea se han dado pasos importantes en los últimos siglos, sobre todo a partir de las revoluciones del XVIII, pero la universalización de la condición de ciudadanos –y con ella de la condición a ser titular del «derecho a tener derecho»– aún dista mucho de ser completa y esta carencia origina no pocas veces situaciones de injusticia. A este respecto, no puede ocultarse que el

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status de ciudadanía de determinados Estados (principalmente, de las ricas democracias occidentales, aunque no sólo) se han convertido en un bien cada día más apreciado, en un título anhelado por los habitantes de los países desfavorecidos que aguardan junto a sus fronteras la oportunidad de acceder y residir en esos territorios de presunta promisión. La historia de la ciudadanía se revela entonces también como la historia de la dialéctica de la inclusión y la exclusión por medio de la cual se va delimitando el demos constitutivo de una determinada comunidad política. La construcción social del ciudadano y del extranjero son respectivamente la cara y la cruz de un mismo proceso. Esta ambigüedad constitutiva del término no puede ser pasada por alto. De ahí que hablar, por ejemplo, de la ciudadanía como una garantía frente al atropello y la arbitrariedad suene para muchos a amargo sarcasmo, precisamente para aquellos que al verse desprovistos de sus beneficios comprueban que se ha convertido en un factor de exclusión social. Para estas personas, la ciudadanía no es más que una máscara, en el sentido de engaño, pero también en el de velo o disfraz, pues no pueden dejar de ver en las promesas contenidas en ese ambicionado status los ropajes con el que el nuevo racismo de nuestro tiempo se viste de Estado de derecho. El trato que los Estados soberanos territoriales dispensan a los extranjeros que se afincan en el interior de sus fronteras es la piedra con la que con mayor frecuencia se tropieza a la hora de dar respuesta cabal a la reivindicación de una ciudadanía igual para todos los individuos, sea cuál sea su sexo, religión, cultura, ideología o procedencia. Con la ciudadanía va unida el reconocimiento de derechos, cuya cantidad y calidad ha ido ampliándose paulatinamente, pero resulta profundamente descorazonador observar cómo con ciertos derechos se hacen excepciones y algunos de ellos van cayéndose de la nómina establecida y sancionada: el derecho a inmigrar (y no sólo a emigrar), la libre elección de la residencia, el derecho a la naturalización, el derecho de elegir nacionalidad, etc. Todos éstos son derechos con los que cada vez se regatea más, restringiéndose de manera discreta y paulatina. Sin duda, esta tendencia regresiva no ayuda ni a integrar a los inmigrantes ni a dar cabida política e institucional a la diversidad cultural que con ellos aflora, tal como se examinará en el apartado tercero. Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 429 - 462, out. 2007

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2. SOBRE LA CONCEPCIÓN REPUBLICANA DE LA POLÍTICA La rehabilitación y recomposición del ideal republicano llevada a cabo en los últimos años “es, después de los trabajos de John Rawls, uno de los acontecimientos teóricos más importantes ocurridos en el dominio de la filosofía política”, cuya relevancia estribaría en su cualidad para presentarse como “eje privilegiado de una problematización fecunda de los principios de la modernidad liberal” (Savidan 2003, 150-151). Desde la publicación de los trabajos de Wood, Skinner o Pocock, la modernidad política ya no puede seguir concibiéndose como hechura exclusiva del liberalismo. Aportaron datos y razones suficientes para pensar que algunos de los mecanismos que hoy tildamos de liberales son, en realidad, de genuina prosapia republicana; esta hipótesis se torna aún más plausible si aceptamos el siguiente punto de partida: el republicanismo representa “una vía de pensamiento que no sólo precede al liberalismo moderno, sino que también fue exitosamente solapada por su triunfo” (Skinner 1996, 142). O, dicho de otro modo: la tradición republicana “ha sufrido durante mucho tiempo el hecho de que ha sido recubierta por la reescritura liberal” (Sadivan 2003, 136). Por lo demás, resulta difícil negar una progresiva convergencia entre ambas tradiciones. Los principales representantes contemporáneos del republicanismo (especialmente, Pettit y Sunstein) pueden ser tildados, sin ejercer violencia alguna, de republicanos liberales5. Sin cuestionar radicalmente la democracia liberal, modelo político predominante en los países desarrollados, el republicanismo de corte liberal propone adaptar la democracia representativa a un modelo de ciudadanía mucho más participativa, asumiendo incluso algunos elementos de la democracia directa. Tanto republicanos como liberales reivindican igualmente el ideal de un «gobierno de las leyes» (y no de los hombres), concebido como forma más adecuada de evitar la arbitrariedad y garantizar la libertad como no dependencia de la voluntad de nadie. En consecuencia, para algunos no se trataría de proponer el republicanismo como una forma

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alternativa al liberalismo, sino de postular un liberalismo corregido (cf. Ferrara 2004, 6). Las diferencias entre liberalismo y republicanismo no son empero nimias y se ponen en evidencia en sus divergentes concepciones de la ciudadanía. En la tradición liberal se adopta un lenguaje juridicista y la ciudadanía se asocia a la posesión de derechos individuales. En la tradición republicana se adopta más bien un lenguaje político y la ciudadanía se vincula con la participación en la esfera pública. En este sentido, resulta significativo que los derechos de sufragio –tanto activo como pasivo– hayan sido considerados tradicionalmente como el núcleo de la ciudadanía republicana: ciudadanos en sentido propio son aquellos que participan en el gobierno colectivo bien sea de manera directa bien sea votando a sus representantes. Mientras que el sociólogo británico Marshall describía la ciudadanía como el bucle que entrelazaba los derechos civiles, políticos y sociales, filósofos políticos desde la época de Aristóteles, pasando por Rousseau, hasta nuestros días, como Habermas o Walzer, han entendido la ciudadanía esencialmente como un status de plena pertenencia a una politeia libre y autogobernada6. Sin embargo, dentro de la tradición republicana se dan cita corrientes diversas que se relacionan con el pensamiento democrático de maneras incluso contrapuestas, que van desde un elitismo político hasta un radicalismo democrático. Así, muchos republicanos comprometidos con la independencia norteamericana no ocultaban su recelo frente a las asambleas populares y preconizaban medidas institucionales contramayoritarias. Republicano, y de tan pura cepa o más, era también el pensamiento de un Rousseau que concebía la libertad republicana como autonomía pública, esto es, como autogobierno activo ejercido participativamente por todos los ciudadanos. El autogobierno –la autonomía política de los ciudadanos– como noción clave de la noción republicana de libertad se completa, no siempre armoniosamente, con la idea del «gobierno de las leyes» frente al poder arbitrario de los hombres, pues se entiende que sin ley no hay libertad. Pero no se trata tampoco de cualquier ley, sino tan sólo de aquella para cuya elaboración se ha contado con la participación de todos los afectados. Estos dos principios no son incompatibles, pero

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mantienen una relación de tensión, y dependiendo del extremo del que se estire más se explicarían esas variantes republicanas apenas esbozadas. Como el liberalismo, también el republicanismo hace de la libertad y la autonomía el núcleo normativo de su propuesta, pero mientras que para el liberalismo la libertad es sinónimo de ausencia de coerción o de no interferencia, el republicanismo la concibe como ausencia de dependencia (Skinner) o de dominación (Pettit): una persona no es libre si depende de la voluntad de otros o si otros restringen sus posibles cursos de acción. En palabras de unos máximos renovadores contemporáneos del republicanismo: Mientras los liberales equiparan la libertad con la ausencia de interferencia, los republicanos la equiparan con estar protegidos contra la exposición a la interferencia voluntaria de otro: estar seguros contra tal interferencia. Libertad en este sentido equivale a no estar bajo el poder que tiene otro de hacernos daño, a no estar dominado por otro. (Pettit 2004, 119).

Pero más allá de esta cuestión conceptual, desde el republicanismo se entiende la libertad de manera no meramente individual: sea lo que signifique la libertad, no cabe concebir ser libre sin una sociedad libre (cf. Skinner 2004, 103). Es por ello por lo que vinculan la libertad con el autogobierno, esto es, con la capacidad de la comunidad política para tomar control de sus propios destinos. La distancia entre la tradición republicana y la liberal se pone igualmente de manifiesto en el divergente tratamiento dado a la noción de virtud cívica. La vida social, la convivencia política, precisa que sus miembros – miembros activos – presenten una fuerte disposición a poner la propia existencia al servicio de la cosa pública. Esta convicción republicana puede enfocarse conforme a los diversos autores de dos maneras básicas: al modo utilitarista (la virtud cívica es una condición imprescindible del buen funcionamiento de la democracia) o bien al modo perfeccionista o aristotélico (la virtud cívica eleva el carácter de los individuos e incluso representa la plenitud

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de la vida humana). Mientras que el liberalismo o bien asume la virtud cívica de modo utilitarista o bien ignora su papel, entre los actuales republicanos es común conjurar los peligros del perfeccionismo y buscan activar ciertas energías básicas para el debate democrático. Esto vuelve a ser bastante claro en el caso de Pettit y Sunstein, pues ambos rechazan que el republicanismo esté vinculado con concepciones concretas del bien. En todo caso, la tradición republicana aboga por una concepción de la ciudadanía que coloca el acento en el valor de la participación política y en la noción del bien común; subraya también el hecho de que el ejercicio de la ciudadanía permite generar y mantener vínculos capaces de unir a una comunidad política. Sus impulsores teóricos tienden a ser mucho más conscientes que los liberales de que el individuo ha de disponer de vínculos afectivos, identitarios, emotivos, porque entienden que la mera razón no es suficiente móvil para la acción política, en general, y, menos aún, para el ejercicio de la solidaridad social, en particular. Consideran que las condiciones concretas de acción de los actores políticos forman parte de la teoría democrática. Todo ello contribuye a poner el énfasis en la relevancia de configurar «buenos ciudadanos», cumplidores de sus deberes públicos. Aunque la idea liberal avanzada por Kant (en La paz perpetua) de que el problema del buen gobierno “puede ser resuelto incluso en el caso de un pueblo de demonios [con tal de que tengan entendimiento]” tiene hoy en día multitud de partidarios, no cabe duda de que la vida en sociedad se ve facilitada con el ejercicio de las virtudes públicas. El componente subjetivo de la acción política debe completarse en todo caso con un adecuado diseño institucional. Es por eso que para los republicanos también resulte crucial, por ejemplo, tratar de evitar que unos pocos acumulen una indebida y desproporcionada influencia política7. Con frecuencia se le imputa al republicanismo y a la concepción de la ciudadanía impulsada por él un carácter particularista y excluyente, así como una actitud de desinterés con lo que acontece extramuros de la propia comunidad (cf. Peña 2003, 18). El republicanismo presentaría así una faceta igualitaria y comprometida hacia dentro, mientras que hacia fuera mostraría su cara insolidaria y excluyente8. Aunque históricamente hay numerosos datos que avalan dicha apreciación (tanto en la república romana como en las ciudades Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 429 - 462, out. 2007

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renacentistas del norte de Italia), el republicanismo contemporáneo opta por recuperar otros aspectos de esta tradición. Así, y lejos de sustentarse sobre raíces étnico-culturales irrepetibles, o postular una comunidad de sangre y suelo (Blut und Boden), pone el énfasis en el componente democrático de su pensamiento. Éste sería el caso de Cass S. Sunstein o de Jürgen Habermas. En particular, el filósofo alemán ha mostrado no sólo su sintonía con el republicanismo kantiano, sino que defiende explícitamente una “lectura del republicanismo realizada desde la teoría de la comunicación” (Habermas 1999, 118). No se trata ciertamente de un republicanismo anti-liberal, pero sí que pretende enmendar los excesos del liberalismo: considera que “la «libertad de los antiguos» no puede ser sacrificada en el altar de la «libertad de los modernos»” (Habermas 2006, 276). Remontándose a Rousseau, por una parte, y coincidiendo, por otra, con el renovado republicanismo contemporáneo, Habermas reivindica un «concepto de libertad ampliado intersubjetivamente» que sirva para equilibrar ese mencionado sacrificio de la «libertad de los antiguos» en aras de la «libertad de los modernos» (cf. Habermas 2006, 276277). De este modo haría suya también la convicción republicana de que si no se ejercen las libertades positivas se fragilizan y se ponen en peligro las libertades negativas. Esto, sin embargo, no le impide apelar a mecanismos de control que hoy consideramos de factura liberal. El caso de Habermas no constituye un fenómeno aislado en el pensamiento republicano, pues como sostiene Ferrara (2004, 11), “el republicanismo tiene una clara afinidad electiva con las concepciones deliberativas de la democracia”. Esta tradición política concede un valor intrínseco a la vida pública y a la participación política: el ciudadano ha de implicarse activamente en algún nivel en el debate político y en la toma de decisiones, ya que ocuparse de la política es ocuparse de la res publica, esto es, de lo que atañe a todos. De clara raigambre republicana sería la obligación de discutir y deliberar las normas jurídicas y las decisiones políticas entre todos los posibles afectados por las mismas: “Quod omnes tangit ab omnibus tractari et approbari debet”, tal como rezaba una secular máxima del derecho romano medieval (cf. Luhmann 1993). En todo caso, y frente a la lectura comunitarista que concibe a la sociedad republicana como una sociedad cerrada, estrecha en sus horizontes, principios como el

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que se acaba de formular no sólo posibilitan, sino que alientan una praxis política mucho más abierta e inclusiva. Al acentuar la condición de posible afectado por una decisión política o una resolución jurídica se dejan oportunamente al margen los rasgos culturales característicos de cada individuo, ya sean étnicos, religiosos, de género o de herencia, de modo que éstos dejan de ser relevantes como criterios de inclusión/ exclusión. Por otro lado, el propio ideal de deliberación parte de la constatación de que no hay razones absolutas a las que recurrir en caso de disenso. Su práctica requiere también de ciertos supuestos que incitan la intercomunicación entre los individuos, como, por ejemplo, la conciencia de que uno no posee toda la razón y, sobre todo, de que el otro también puede tenerla. Por eso, la concepción de la política deliberativa –el ideal de la discusión abierta y pública– implica que los ciudadanos deben asumir el pluralismo y la diversidad presentes en la sociedad y, en consecuencia, enfrentarse a ideas diferentes a las propias. De este modo, tienen la posibilidad de enmendar y depurar sus propias opiniones, así como alterar el orden de sus preferencias. Todas estas actitudes y capacidades subjetivas, estimuladas en un marco público, resultan sumamente recomendables, cuando no imprescindibles, para la convivencia pacífica en una sociedad compleja y plural9. 3. LA CIUDADANÍA REPUBLICANA EN UN CONTEXTO PLURICULTURAL Una gran parte de los conflictos políticos del mundo contemporáneo giran, tal como he indicado al inicio de este trabajo, en torno a la organización y gestión política de la diversidad de sentimientos de pertenencia y a la convivencia entre diferentes formas de vida y de concebir el mundo. Incluso el indeclinable debate social –en torno a la persistencia de injustificadas desigualdades económicas entre los individuos– se ha visto absorbido y desplazado injustificadamente por las tensiones identitarias y culturales. En este contexto, la reciente revitalización del pensamiento republicano podría resultar inane si se mostrara incapaz de dar respuesta al reto que representa el fenómeno de la multiculturalidad y la multietnicidad en el seno de nuestras ciudades y países. Dar respuesta implica afrontar Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 429 - 462, out. 2007

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políticamente tanto las transformaciones sociales y culturales generadas principalmente por la inmigración como la articulación de la convivencia entre comunidades con formas múltiples de identidad. Las intensas corrientes migratorias están en el origen de transformaciones de enorme calado tanto en lo demográfico, como en lo político, lo social y lo cultural. Sus efectos se tornan especialmente visibles en los ricos países occidentales, en donde se asiste a un acelerado proceso de constitución de sociedades de corte multicultural impulsado por la llegada de inmigrantes de las más variadas procedencias. Las migraciones constituyen sin duda el principal factor de multiculturalidad y sin ellas nunca hubiera surgido un espacio social realmente pluricultural. La respuesta política ante la diversidad política ha de empezar con la elaboración de una política migratoria articulada. Una política migratoria digna de dicho nombre debe incluir un conjunto de normas y medidas que permitan abordar coherentemente una serie de cuestiones diversas que, no obstante, están íntimamente conectadas entre sí: la regulación del acceso, la circulación, la estancia, condiciones laborales, así como la previsión de las diferentes irregularidades en la residencia y el trabajo, entre otros muchos asuntos. En este listado nada exhaustivo falta un instrumento central de toda política migratoria, a saber: la regulación de la adquisición de la ciudadanía. Este punto es crucial pues marca el horizonte de expectativas que se le ofrece al inmigrante dentro de una política de integración. Afrontar el reto de la emigración y, a la postre, el de la diversidad cultural resultante implica enfocar la pertenencia y la lealtad política –vinculadas ambas con la noción de ciudadanía– de un modo diferente al habitual en los Estados nacionales. La ciudadanía es un principio constitutivo propio de cada comunidad política particular. La ciudadanía, por tanto, no es un principio universalista. A lo sumo, podría decirse, parafraseando libremente al Sartre más hegeliano, que es un «universal concreto», esto es, una institución que recoge principios y exigencias universales que, sin embargo, se aplican en un ámbito y en condiciones particulares. Aunque se presente de una u otra manera en cada sociedad, la ciudadanía siempre acaba determinando quién constituye la comunidad política en cuestión, quién pertenece a la misma y quién no. Es también un «universal concreto» porque supone una toda determinación

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concreta de la idea universalista de igualdad de trato: señala quiénes son los que deben ser tratados de igual manera. Por eso, y en la misma medida en que es un principio político constitutivo, resulta también ser “un principio de inclusión que genera exclusiones colaterales” (Colom 2002, 36). O, como dice también magistralmente Amartya Sen (2007,25), “la desgracia de la exclusión puede ir de la mano del don de la inclusión”. Siendo esto así, lo cierto también es que no todas las concepciones de la ciudadanía poseen los mismos efectos prácticos. Difieren entre sí en virtud del mayor o menor peso otorgado a los atributos o rasgos identitarios requeridos para su concesión. Una comunidad política cohesionada en torno a valores culturales densos dificulta enormemente el logro de la plena inclusividad democrática: cuanto mayor y más exigente sea el componente identitario de la ciudadanía, menor será su capacidad de inclusión; rasgos densamente definidos son instrumentos potenciales de discriminación y obstaculizan la integración social. Siendo esto así, lo cierto también es que no todas las concepciones de la ciudadanía poseen los mismos efectos prácticos en este particular. Difieren entre sí en virtud del mayor o menor peso otorgado a los atributos o marcadores identitarios requeridos para su concesión. Cuanto mayor y más denso sea el componente identitario de la ciudadanía, menor será su capacidad de inclusión. Rasgos densamente definidos son instrumentos potenciales de discriminación y dificultan por ende la integración social de los inmigrantes. En todo caso, la ciudadanía es bastante más que un mero instrumento formal, pues se trata de una institución que, sobre todo a lo largo de la historia moderna y contemporánea, ha estado estrechamente vinculada al significado de esa vaporosa categoría política llamada «identidad nacional». Dentro de este eje que iría desde el polo de la inclusión al de la exclusión social, ¿dónde ser ubicaría la noción de ciudadanía preconizada por el nuevo republicanismo? Hay que situarla, más bien, cerca del primer polo, pues resulta sumamente exigente en su componente político, pero está exenta en principio de atributos étnicos y culturales, de tal modo que posee un poderoso potencial inclusivo. Por ello mismo cabría pensar que la mera ciudadanía, por su universalidad, no singulariza y que, por tanto, la definición republicana de nación de ciudadanos adolecería de tal grado de universalismo – Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 429 - 462, out. 2007

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pues, a la postre, todas naciones estarían constituidas por ciudadanos– que sería incapaz de acoger la singularidad que toda comunidad política encarna. Sin embargo, la ciudadanía es siempre, como acaba de señalarse, un universal concreto. Al respecto puede aducirse un par de razones más: por una parte, el sentido político de la ciudadanía incluye un cierto grado de identificación con un conjunto determinado de valores sin los que el mantenimiento de un orden social democrático se hace insostenible; por otra, una nación de ciudadanos no niega la territorialidad, la ubicación en un espacio preexistente, elemento que, sin duda, singulariza a una comunidad política. El principal problema que genera definir la nación en términos étnico-culturales es la dificultad para acomodar la pluralidad de registros identitarios que de hecho portan los ciudadanos que habitan en un determinado territorio. La opción cívico-territorial permitiría, por el contrario, la coexistencia de afiliaciones e identidades sin tener que renunciar a todos los rasgos singulares encarnados en el territorio. Ante el pluralismo cultural e identitario cada vez más patente en las sociedades contemporáneas, y sin negar las indudables dificultades que siempre se presentan en la práctica política diaria, la ciudadanía republicana tiene en principio la enorme virtud de convocar al entendimiento entre pueblos e identidades, entre lenguas y culturas. En particular, el tipo de identidad colectiva característico de la tradición republicana, dado que no reposa sobre componentes étnico-culturales privativos como pudieran ser los lazos de sangre, lengua o religión, estaría bien posicionado a la hora de proporcionar las bases que aseguren el mínimo de lealtad política necesaria para mantener la integración de las sociedades plurales. Asegurar la lealtad y la cohesión en tales circunstancias representa un reto sobrevenido difícil de eludir: La considerable diversidad cultural de la sociedad moderna plantea problemas nunca antes enfrentados por la filosofía política tradicional. Algunos autores anteriores supusieron comunidades culturales homogéneas, donde los principios generales que desarrollaban podían ser aplicados a todos sus ciudadanos. [...] Por ejemplo, suponían que cualquier tipo de obligación política que

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propusieran [...] podía aplicarse de la misma manera a todos los ciudadanos y como más o menos autoridad moral. Hoy ya no podemos sostener la misma suposición. (Parekh 1996, 2021).

Las fuentes normativas y emotivas de la obediencia y la lealtad política se ven con frecuencia alteradas por la proliferación de la diversidad. Si la lealtad política es una variable derivada en gran parte de las formas de pertenencia al orden sociopolítico, la emergencia y progresiva acentuación de formas plurales de pertenencia – compartidas e incluso divididas dentro de una misma comunidad política– debilita sin duda dicha lealtad. La respuesta más adecuada al advenimiento de este posible déficit no puede consistir, sin embargo, en potenciar una forma determinada de identidad colectiva cargada de elementos etnoculturales, aunque sean los propios del tronco mayoritario de la sociedad. El republicanismo (en particular, el ideal republicano de inclusión equitativa de todos los ciudadanos) tiene de partida la ventaja de que posibilita un marco de acción e identificación no exclusivo ni cerrado. Eso no significa, sin embargo, que represente una solución definitiva al problema. Que se señale que el republicanismo representa un marco de referencia aceptable, no deja ser un planteamiento controvertido. Hasta hace poco se le consideraba como una respetable tradición política, digna de estudio, pero anquilosada y obsoleta. De ahí que más de un lector pueda revolverse incómodo al ver que se apela al republicanismo para dotar a la vida política de un mínimo armazón intelectual y de un cierto cimiento normativo, así como para solventar algunos de los escollos con los que se tropieza en las complejas y pluralistas sociedades modernas a la hora de encontrar un marco identitario aceptable para todos sus miembros. ¿Qué elementos de la tradición republicana podrían valer para dar respuesta a este difícil reto? El énfasis en lo público, el aprecio de la participación, la valoración de la deliberación y, particularmente, su noción de la ciudadanía constituyen un poderoso capital político aportado por dicha tradición que cabría recuperar para dicho fin.

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El individuo es visto por el republicanismo, como ya se ha señalado, fundamentalmente desde el prisma de la ciudadanía: “alguien que se defina por su vinculación a la ciudad y entiende que la garantía de su libertad estriba en el compromiso con las instituciones políticas y el cumplimiento de sus deberes para con la comunidad” (Peña, 2004, 123). La ciudadanía es el ámbito por excelencia de la autorrealización del individuo: la participación política y la vita activa en la res publica. La tradición republicana promueve una noción robusta de ciudadanía y propugna una adhesión a la ley y al conjunto de instituciones públicas que hacen posible el ejercicio de la libertad civil. No en vano, una destacada convicción republicana es que “el no ejercicio de las libertades positivas lleva a una fragilización de las libertades negativas” (Sadivan 2003, 157). Mediante la generalización del status de ciudadano se busca en definitiva configurar una identidad colectiva basada en la participación activa y responsable de los individuos en los asuntos públicos. El enfoque republicano pretende configurar la esfera pública poniendo el énfasis especialmente en aquello que puede ser compartido por todos, en aquello que resulta común, dejando de lado las diferencias que separan para concentrarse en las similitudes y coincidencias que unen a los integrantes de cada sociedad. En esos elementos es en donde se halla el fundamento común de la legitimidad de la politeia, los principios de la justicia política. En consecuencia, el republicanismo respondería a los problemas políticos generados por el pluralismo cultural no atendiendo a una concepción culturalista (que deriva la individualidad de la pertenencia a una cultura particular), sino primando la solución política. El punto crucial consiste al final en que “la identificación del ciudadano con la empresa común sea obtenida por medios políticos” (Del Águila 2004, 55).Ya el republicanismo clásico, de Cicerón a Maquiavelo, buscaba y priorizaba la identificación de los ciudadanos con las leyes que hacían posible la libertad. Pero quizás sea Tocqueville quien mejor haya planteado la cuestión al preguntarse por las fuentes de estabilidad de una sociedad de inmigrantes y de elevada movilidad como era ya la estadounidense de su época: ¿cómo es posible que allí donde los habitantes pisaron el suelo que les pertenece apenas ayer y en donde difícilmente puede haber un

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sentimiento patriótico arraigado cada uno se ocupe de los asuntos públicos como si fueran suyos propios? La respuesta que encuentra para ello es enormemente clarificadora: la participación real de los ciudadanos en la conducción de la sociedad. Dicho con sus propias palabras: “el medio más poderoso y quizá el único que nos queda para interesar a los hombres en la suerte de su patria, es el de hacerlos partícipes de su gobierno. En nuestros tiempos, el espíritu cívico me parece estar ligado inseparablemente al ejercicio de los derechos políticos” (Tocqueville 1989, vol. I, 233). En una línea similar, más recientemente, Habermas ha postulado la identificación de los ciudadanos con el valor intrínseco del pluralismo de formas de vida en el marco de la república común que las hace posibles. Frente a nociones etnicistas y sustancialistas de la identidad política, esta variante republicana –que bebe de las fuentes de Rousseau y Kant– posee virtudes incluyentes: “La autodeterminación democrática no tiene el sentido colectivista y al tiempo excluyente de la afirmación de la independencia nacional y la realización de la identidad nacional. Más bien tiene el sentido inclusivo de una autolegislación que incorpora por igual a todos los ciudadanos” (Habermas 1999, 118). Si eso es así, entonces desde el republicanismo se podría ensayar una respuesta política adecuada al reto de integrar la diversidad cultural: “Desde luego, el patriotismo republicano tiene una dimensión cultural, pero es primariamente una pasión política basada en la experiencia de la ciudadanía, no en elementos prepolíticos comunes derivados del haber nacido en el mismo territorio, pertenecer a la misma raza, hablar la misma lengua, adorar a los mismos dioses o tener las mismas costumbres” (Viroli 2001, 7). Así, de acuerdo con una concepción republicana de la ciudadanía, su titularidad no se vincularía a una determinada relación de pertenencia, sea ésta un linaje o una etnia, ni al dominio de una lengua, ni a un lugar de nacimiento, sino que se asocia fundamentalmente a la condición de residente en el territorio de una comunidad política y, sobre todo, al hecho de compartir una vida en común (cf. Peña 2003, 25-26). En concordancia con ello, se rechazaría el denominado ius sanguinis como principio preferente de asignación de la ciudadanía y, por el contrario, habría que adoptar un ius soli, aunque cualificado: al requisito

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habitual de la residencia acreditada habría que añadirle la implicación activa en la vida de la sociedad (o al menos, la certificación de las condiciones y capacidades que habiliten para ello). La referencia no sería entonces la pertenencia a una nación (entendida en su sentido prepolítico de comunidad de historia, lengua y tradiciones culturales), sino, como ya se ha indicado, la integración en una politeia o, en términos modernos, el Estado: “La nación representa el ‘medio’ en que el hombre nace, una sociedad cerrada a la que se pertenece por derecho de nacimiento. El Estado […] es una sociedad abierta, que rige sobre un territorio en que su poder protege la ley y la hace. Como institución legal, el Estado sólo conoce ciudadanos, no importa de qué nacionalidad; su orden legal está abierto a todo el que dé en vivir en su territorio” (Arendt 2005, 257).

La tradición política del republicanismo siempre ha preconizado este tipo de identidad colectiva abierta basada en la participación y en la responsabilidad de todos individuos. No es la pertenencia a una etnia o la adscripción a un credo religioso o ideológico lo que reúne o identifica al miembro de la comunidad política. El ideal de la autodeterminación de los ciudadanos es, sin duda, la intuición central del republicanismo, un ideal que cabe describir así: “El corazón del autogobierno democrático es el ideal de la autonomía pública, a saber, el principio de que quienes están sujetos a la ley también deberían ser sus autores” (Benhabib 2005, 154). La utilización de la ciudadanía como mecanismo de cohesión social constituye, sin embargo, una cuestión abierta a debate. La tesis de que conceder la ciudadanía equivale a integrar no siempre está convalidada por la práctica social, por más que sea recomendable normativamente. Es cierto que la implementación de políticas de inclusión cívica dirigidas a extender el estatuto de ciudadanía a los inmigrantes ya establecidos tiene una indudable ventaja en aras de su integración social y política: impide la consolidación de una categoría, perpetuada de padres a hijos, de residentes no ciudadanos, de metecos.

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No es, con todo, un instrumento milagroso, pues el mero hecho de conceder el status de ciudadanía a los inmigrantes tras un período razonable de asentamiento no equivale automáticamente a integrarlos (en ello tendría razón Sartori, 2001), pero, por el contrario, también es cierto que mantenerlos apartados de la participación política y excluidos de la función pública, por mencionar tan sólo dos aspectos onerosos que habitualmente la privación de la ciudadanía comporta, no ayuda nada en este sentido. No puede negarse, en todo caso, que atribuir un estatuto definido de derechos y obligaciones evita formas flagrantes de marginación (laboral, civil, tributaria, etc.). La concesión de la ciudadanía constituye una condición necesaria para la integración social plena, aunque, desde luego, no es condición suficiente. Si los derechos de sufragio son centrales en la concepción democrática de la ciudadanía, resulta relevante observar de qué modo se les reconoce y se les extiende tales derechos a dos colectivos bien diferenciados de individuos: los ciudadanos no residentes (o residentes en el extranjero) y los residentes no ciudadanos (extranjeros residentes). Las diversas formas de reaccionar ante estas situaciones retratan con bastante exactitud modelos de comunidad política bien diferenciados (cf. Bauböck 2005, 765-766). Pero si importantes son los derechos de participación política, tanto o más son los derechos civiles, económicos y sociales, al menos en la apreciación de los inmigrantes. En los Estados democráticos liberales, los derechos civiles y sociales –apuntados por Marshall como soporte de las primeras fases de la evolución de la ciudadanía en la edad contemporánea– hace tiempo que se han desconectado del status formal de ciudadanía. El disfrute de las libertades civiles básicas se entiende cada vez más como un derecho humano universal. La educación pública, la asistencia sanitaria y las prestaciones de la seguridad social se consideran beneficios derivados bien de la condición de residente o bien del status de trabajador y contribuyente. El término denizenship –acuñado por Tomas Hammar (1990)– describe ese nuevo y difuso status legal de los extranjeros residentes de larga duración por el que en la práctica disfrutan de la mayoría de los derechos de ciudadanía. Sin llegar a ser titulares de la condición de ciudadanía, tales individuos ocupan un lugar intermedio entre extranjeros y ciudadanos, una posición que en muchos aspectos resulta mucho más próxima a la de estos últimos. Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 429 - 462, out. 2007

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De este modo se invertiría el esquema secuencial de Marshall: la ciudadanía social de los inmigrantes antecede y se detiene en el umbral de la ciudadanía política. Es cierto que, contemplado desde la óptica exigente del republicanismo, que persigue la equiparación legal de todos los individuos, tal status no deja de constituir una zona gris de transición. Pero, por otro, desde una perspectiva más indulgente y quizás más realista, constituye una respuesta razonable para conceder algún tipo de acomodo a los nuevos vecinos procedentes de los flujos migratorios. 4. LA ALTERNATIVA REPUBLICANA: LA IDENTIDAD CÍVICA Una comunidad política definida en términos estrictamente monoculturales implica la negación más o menos explícita tanto de la diversidad cultural del tejido social como del carácter compuesto, múltiple y modificable de las identidades. El tipo de identidad así proyectada se convierte, más que en fuente de estabilidad, en origen de constantes conflictos10. Y si bien es cierto que la cohesión interna de una sociedad puede verse amenazada por procesos de fragmentación cultural sin límites, una estructura cultural monolítica que niegue la radical hibridación de las identidades conduce a la asfixia de la espontaneidad y expresividad ciudadana. De ahí lo inadecuado de instituciones y normas estatales que reflejan única o primordialmente los rasgos de la identidad cultural propia del grupo mayoritario (léase, si así se prefiere, nación mayoritaria), como suele ser práctica habitual. Sin renunciar a la autonomía personal ni relegar los derechos individuales, las pluralistas y atomizadas sociedades democráticas tienen aún por resolver en muchos casos la necesidad de fortalecer la esfera de los valores comunes, de afianzar la confianza cívica en las instituciones públicas y de engrasar los mecanismos de cooperación11. El desafío estriba entonces en cómo articular una concepción de la identidad colectiva y un modelo de ciudadanía que sirvan de marco capaz de acoger el radical pluralismo de las sociedades contemporáneas. No en vano, cada vez resulta más sentida la necesidad de dotarse de modelos y patrones colectivos que resulten

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funcionalmente integradores e inclusivos, de modo que los individuos puedan asumir sin trabas externas su propia diversidad y puedan entenderse a sí mismos como la suma de sus plurales pertenencias, en vez de confundirse con una sola, erigida en pertenencia suprema y en instrumento de exclusión, cuando no de enfrentamiento. A lo largo de este trabajo se ha defendido que la concepción republicana está en principio bien dotada para dar cabida a la diversidad cultural. Ello, sin embargo, no significa que una política republicana haya de plegarse acríticamente a todas las demandas realizadas en su nombre. Hay buenas razones para no dejarse arrastrar por cualquier reivindicación de carácter culturalista, pues la cultura siempre es un valor subordinado, tal como afirma Habermas: “Una cultura como tal no posee las cualidades necesarias para ser un sujeto de derecho, pues no puede satisfacer por sí misma las condiciones de su reproducción, sino que depende de la apropiación constructiva por parte de intérpretes” (Habermas 2006, 305). Y esta primacía del individuo, que es el que porta e interpreta la cultura, también se hace valer frente a la identidad: “Con ser legítima, difícilmente se puede decir que la defensa de la identidad está justificada de manera incondicional” (Greppi 2006, 74). Además, también en este terreno la vigencia del momento democrático ha de ser incuestionable. Las reclamaciones y exigencias de las minorías culturales –tanto de las minorías etnonacionales asentadas en determinadas regiones del territorio estatal o de los grupos de inmigrantes dispersos por ese mismo territorio– no son el punto de llegada de la política democrática, sino un punto de partida. Las reivindicaciones en nombre de las peculiaridades culturales o de las identidades no están por encima del escrutinio democrático. Si un Estado con una estructura interna plurinacional y pluricultural pretende recabar lealtad política de sus ciudadanos para lograr la necesaria estabilidad institucional debería asumir alguna forma institucionalizada de gestión democrática de la diferencia. Sólo si el Estado, y su correspondiente ordenamiento institucional, se muestra comprometido con el mantenimiento de la pluralidad cultural, los individuos participantes en diferentes formas de vida podrán mostrar lealtad el Estado sin entrar en conflicto con sus identidades propias.

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Sin reconocimiento difícilmente cabe recabar lealtad. A duras penas, por ejemplo, un ciudadano con lengua materna diferente de la mayoritaria y oficial podrá identificarse afectivamente con un Estado para el que no existiera otra forma de expresión lingüística admisible en el ámbito de lo público que la oficial. Dicho ahora en negativo: “La negación a un grupo del derecho a expresar y practicar su identidad y el agregado de sanciones negativas y privaciones a los portadores de las marcas de identidad propias del grupo son injusticias que se interponen en el camino de la consolidación de un estatus de ciudadanía homogénea, que es, a vez, precondición de la estabilidad democrática” (Offe 2004, 208). El reconocimiento de la identidad cultural incluye, entre otros elementos diversos, asegurar a todos los individuos el respeto de sus festividades religiosas, requisitos de dietas y códigos de vestimentas. La duda estribaría en saber si para asegurar estas libertades es preciso fijar una serie de derechos grupales o basta con garantizar la libertad de religión, dieta y vestimenta12. En todo caso, desde una perspectiva democrática y republicana, la prioridad se encuentra en la aplicación estricta de los derechos de ciudadanía y del principio de igualdad de oportunidades, del que se deriva ciertamente la oportunidad de perseguir una gran variedad de valores, estilos e identidades (cf. Offe 2004, 206). Las cuestiones concretas relativas a la conducción de la vida personal no constituyen en sí mismas objeto de regulación política, pero sí que lo son las condiciones formales y materiales que las posibilitan. Hacer posible la diferencia no implica, sin embargo, dar por buena esa extendida tendencia, que se ha incorporado a la llamada ‘corrección política’, consistente en tildar cualquier crítica, por fundada que esté, a una práctica o costumbre cultural determinada, de inaceptable ataque a la ‘identidad cultural’, categoría ahora asimilada a la dignidad humana y convertida en refugio a la moda del dogmatismo, del fundamentalismo o incluso del peor oscurantismo. La meta de una república no es la imposición de un modelo preconcebido de vida buena, ni tampoco de una forma de vida particular, ni el fomento de una determinada cultura, sino posibilitar que los ciudadanos puedan discutir libremente sobre los modelos de vida que prefieren y habilitar las condiciones para que puedan practicarlos. Ello no implica necesariamente indiferencia ante la

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diversidad cultural, de modo que, aunque una salida puede ser la mera neutralidad ante la misma, otra opción en principio igualmente válida es el compromiso con su preservación. En todo caso, los modos de vida concretos a que dé lugar la convivencia intercultural es algo que no cabe predecir de antemano. Con un cierto realismo sí que cabe anticipar que tal convivencia devendrá en formas diferentes a las de partida: “A diferencia del multiculturalista, el teórico democrático acepta que la incorporación política de nuevos grupos en sociedades ya establecidas dará probablemente por resultado la hibridación de los legados culturales de ambas partes” (Benhabib 2006, 10). En el fomento de la dimensión política de la ciudadanía y del carácter participativo y asociativo de la esfera pública se encuentra una de las virtualidades más encomiables del republicanismo. En ello estribaría quizás la principal prestación que esta tradición política pudiera ofrecer a una sociedad plural en términos culturales y de identidad nacional: “El liberalismo fragmenta. El comunitarismo aísla. El republicanismo, en cambio, relaciona. El primero nos concibe como voluntades soberanas y egoístas; el segundo, como seres tribales. Sólo el tercero, sin rechazar la autonomía del individuo ni el fuero de cada comunidad, hace hincapié sobre la naturaleza esencialmente interactiva de toda vida social” (Giner 2000, 171). No parecería entonces descabellado presentar al pensamiento republicano como una «tercera vía» entre el comunitarismo y el liberalismo, “en la medida en que parece ser capaz de conjugar la vinculación comunitaria que reclaman unos y los derechos civiles de los ciudadanos que reclaman los otros” (Peña 2004, 121). NOTAS EXPLICATIVAS 1

Este trabajo se ha realizado en el marco del Proyecto de Investigación Políticas migratorias, justicia y ciudadanía (HUM2006-1703/FISO), financiado por el Plan Nacional I+D+i del Ministerio de Educación y Ciencia de España. 2

Pocock (2002, 75) restringe algo más genealogía del republicanismo (del humanismo cívico, en realidad): “es la historia de un cierto patrón de pensamiento político e histórico, primero italiano, luego inglés y escocés, y finalmente americano”. Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 429 - 462, out. 2007

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El texto de referencia no es otro que el de T.H. Marshall “Ciudadanía y clase social”, publicado en 1950 (Marshall y Bottomore 1998). He aquí su ya clásica definición: “La ciudadanía es aquel estatus que se concede a los miembros de pleno derecho de una comunidad. Todo el que lo posee disfruta de igualdad tanto en los derechos como en las obligaciones que impone la propia concesión” (Marshall 1998, 37). La ciudadanía equivale, pues, al status legal que recopila los derechos que el individuo puede hacer valer frente al Estado. En la concepción de Marshall, los derechos sociales serían aquellos que posibilitan que los sujetos más desfavorecidos se integren en la corriente principal de la sociedad y ejerzan plenamente sus derechos civiles y políticos. Esta idea contribuyó enormemente a la reconciliación del pensamiento socialdemócrata con la noción liberal de los derechos. 4

No sólo desde presupuestos comunitaristas se cuestiona la aspiración de universalidad del primer Rawls. Así, p. ej., Rorty propone describir la noción de ‘justicia’ como el nombre que recibe la ‘lealtad ampliada’ más allá de nuestros grupos primarios de parentesco y pertenencia (Rorty 1998). Se enfrentaría así a quienes desde posiciones kantianas conciben la justicia (o, si se prefiere, el ‘actuar justamente’) como una ‘obligación moral universal’. 5

Siguiendo al mayor paladín del liberalismo contemporáneo, John Rawls (1996, 239-241), cabe distinguir dos versiones del republicanismo: el republicanismo clásico y el humanismo cívico. El primero se caracteriza por la reivindicación de la participación activa de los ciudadanos en la vida pública como medio para preservar sus derechos y libertades; el segundo, concibe la participación política como el componente crucial de la concepción de la vida buena y, a la postre, como una forma de vida con la que iría adosada una determinada doctrina comprehensiva. Rawls considera que mientras que no existe incompatibilidad alguna entre liberalismo y republicanismo clásico, liberalismo y humanismo cívico se contraponen abiertamente. Dicho de otro modo, tanto el liberalismo político como el republicanismo clásico entienden la participación cívica como un mecanismo para defender la libertad y la justicia, mientras que el humanismo cívico hace de ella -more aristotélico- el lugar privilegiado de la vida humana en plenitud. 6

La idea de que el núcleo de la ciudadanía viene dado, sobre todo, por los derechos de participación política se remonta al menos hasta Aristóteles: “El ciudadano no lo es por habitar en un lugar determinado [...], ni tampoco los que participan en ciertos derechos como para ser sometidos a proceso judicial o entablarlo [...]. Un ciudadano en sentido estricto se define por ningún otro

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rasgo mejor que por participar en las funciones judiciales y en el gobierno” (Aristóteles, Política, Lib. III, 1275a). 7

Así, por ejemplo, Pettit dedica una parte considerable de su monografía más conocida sobre esta materia precisamente a reivindicar toda una serie de mecanismos, cláusulas y barreras destinados a prevenir y dificultar los abusos de poder, la tiranía de la mayoría y la corrupción de los gobernantes (cf. Pettit 1999, caps. 6, 7 y 8). Por lo demás, hay motivos suficientes para pensar que algunos de los mecanismos que hoy tildamos de liberales son, en realidad, de genuina prosapia republicana. De hecho, como afirma Greppi (2006, 68), “en su dimensión constitucional, el republicanismo se define por oposición a las diversas formas de gobierno despótico o tiránico y actualiza el ideal clásico del gobierno mixto”, objetivos que muchos liberales compartirían sin reservas. 8

Con cierto fundamento histórico suele presentarse la propuesta republicana como una perspectiva normativa particularista y excluyente, como un planteamiento político que implica un espacio público clausurado y homogéneo, notas que así presentadas suponen el establecimiento de condiciones poco favorables para dar cabida a la diversidad cultural. Desde estos planteamientos sería igualmente difícil asumir el universalismo moral contemporáneo expresado en los derechos humanos. En la variopinta y poco coherente tradición republicana hay autores ciertamente que responden a este negativo cliché. Entre ellos se encontrarían algunos pronunciamientos de Rousseau, que adolecen de un espíritu exclusivista, cuando no xenófobo. Esta negativa caracterización del patriotismo republicano sigue siendo moneda corriente. Así, por ejemplo, Béjar (1999, 39) sostiene que constituye “una pasión excluyente y absorbente. Deja fuera a los extranjeros porque no contribuyen a crear leyes ni a mantener las costumbres de la libertad: aquellos que se quedan al margen del proyecto comunitario devienen extraños, cuando no enemigos. La identificación entre pertenencia y autonomía produce un cierre particularista incuestionable que el actual aggiornamento del republicanismo pretende disimular”. 9

El ideal de la deliberación no es el único tópico de la tradición republicana recuperable en tiempos de marcada complejidad y diversidad cultural. También serían rescatable, por ejemplo, la defensa del Estado laico o la promoción de la escuela pública. La vindicación de una visión laica de la esfera pública forma parte de los motivos básicos de la tradición republicana y este ingrediente laico posee enormes virtualidades para la integración igualitaria

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de las diversas formas de vida y visiones del mundo dentro de la vida pública. Ninguna de estas diferentes perspectivas puede demandar primacía y ninguna puede ser discriminada si no atenta contra los principios que permiten el pluralismo. Este planteamiento también ha de plasmarse en el sistema educativo (cf. Gutmann 2001). Dado que la escuela es el espacio privilegiado para la cohesión social y la formación democrática de la ciudadanía, cualquier forma de discriminación debe pararse a la puerta de la escuela. En este sentido, actitudes como el proselitismo, la provocación y la propaganda religiosa en el ámbito escolar chocan no sólo con el laicismo, sino con la concepción republicana de lo público. 10

Amartya Sen (2007) ha mostrado magistralmente como el cultivo de una identidad única conduce a la ruptura de la convivencia pacífica. En esa misma línea, cf. Amin Maalouf (1999). 11

Los mencionados recursos sociales son cada vez más escasos en las sociedades contemporáneas, pero no por ello menos necesarios. Al tener que insertar su vida en un ambiente multicultural, muchas personas –y particularmente quienes poseen orígenes inmigrantes– se sienten perdidas en el plural y contradictorio mundo en el que habitan. No disponen de referentes simbólicos y axiológicos a los que recurrir: han dejado el mundo terso e incluyente de sus tradiciones originarias, pero todavía no son ciudadanos seguros del mundo moderno e individualista. No es sólo una cuestión de inserción en el mercado laboral, o incluso de pobreza, sino también de marginación y enajenación, de falta de sentido de pertenencia. Tanto se ha recurrido en las sociedades abiertas al lenguaje de la autonomía personal, tanto énfasis se ha puesto en los derechos individuales, que con frecuencia se ha olvidado el sentido de la comunidad, la dimensión comunitaria de la vida. 12

Cf. Habermas 2006, 293-306. La pregunta acerca del reconocimiento legal y político de la diferencia cultural se ha convertido, para muchos autores, en el tema más importante de la filosofía política (cf. Velasco 2000). Son numerosos los autores que han defendido la pertenencia de este tipo de reivindicaciones grupales a la órbita del igualitarismo democrático, mientras que otros sostienen que existe una incompatibilidad ya al nivel de los principios. La idea de derechos culturales especiales para determinados grupos puede constituir una amenaza para la sociedad concebida como empresa cooperativa que defiende el republicanismo.

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“INATO”, “A PRIORI”, “AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA”: ALHOS E BUGALHOS1 Ubirajara Rancan de Azevedo Marques* Resumo Trata-se de analisar a presença do “inato” em Kant, de modo a, por contraste, melhor salientar a identidade do “a priori”. Nesse percurso, verifica-se a confluência do novo significado positivo conferido pelo filósofo a esse modo de representação – doravante próximo de “natural” –, não por acaso também presente em Hume e Rousseau. Palavras-chave Kant, inato, a priori, aquisição originária, Hume. Levando-se em conta somente as Werke, o “inato” em Kant é cá e lá citado ao longo de efetivos trinta anos2: das Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, em 1764, a O fim de todas as coisas, em 1794. Nesse período, a questão mais notável a propósito será a equivocidade no seu uso, ele sendo ora empregue em sentido positivo, ora em negativo. Especialmente relevante, porém, será notar que as obras nas quais mais vezes ele aparece de modo assertórico pertencem todas ao último período de produção do filósofo. São elas: A religião nos limites da simples razão [1793], a Metafísica dos costumes [1797] e a Antropologia do ponto de vista pragmático [1798]. Por outro lado, considerados os universos vocabular e semântico atinentes à questão, as muitas citações e os seus respectivos contextos, observa-se que o “inato” é visto como um problema somente quando associado às representações elementares, as formas-de-intuição e as formas-de-pensamento, ou quando se trate da obtenção das próprias. Não sendo esse o caso, a dificuldade como que se extingue. Ao constituir uma opção explicativa no âmbito do conhecimento, o “inato” é repelido; fora desse contexto, *

Doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Filosofia da UNESP de Marília

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não é propriamente examinado, sendo às vezes empregue com certa ligeireza. Evidentemente, para melhor apreender a complexidade do tema, seria desejável considerar também o significado negativo do conceito em Kant. Não sendo possível fazê-lo nesse momento, o meu objetivo será indicar uma explicação pretensamente razoável acerca do uso positivo do conceito de “inato” em Kant, de modo que o seu emprego não mais pareça uma mistura de alhos com bugalhos. Já de saída será o caso de recordar algumas passagens da Religião. Nela há ao menos três fragmentos, nos quais, diferentemente do ocorrido na maioria dos textos, o emprego de “inato” é justificado e limitado, o que lançará alguma luz sobre o significado positivo do conceito: Ei-las: [...] o bem ou o mal no homem (como o primeiro fundamento subjetivo da admissão desta ou daquela máxima com vistas à lei moral) chamase inato simplesmente no sentido em que ele encontra-se subjacente antes de todo o uso dado da liberdade na experiência (da mais tenra juventude ao nascimento), sendo, pois, representado como conjuntamente presente no homem desde o nascimento, [mas] não que o nascimento seja a causa dele.3 Ter por natureza uma ou outra intenção como constituição inata também não significa aqui que ela não seja de modo nenhum adquirida pelo homem que a possui, isto é, [também não significa aqui] que ele não seja [o seu] autor, mas que ela só não é adquirida no tempo [...].4

«[...] Mesmo esta [a felicidade] é, segundo a nossa natureza (se se quiser nomear assim em geral o que nos é inato) [wenn man überhaupt das, was uns angeboren ist, so nennen will] [...]»5. No primeiro dos fragmentos recordados, o “inato” vale como fundamento subjetivo. Ainda que a sua representação esteja ligada ao nascimento do homem, nem por isso ela indicará uma origem

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empírica. Nessa acepção – e com alguma paradoxalidade – ele será pura e simplesmente sinônimo de “a priori”, que, recorde-se, é, no dizer da primeira Crítica, um «[...] conhecimento independente da experiência e mesmo de todas as impressões dos sentidos [...]»6, pertencendo assim ao gênero dos conhecimentos «que não são de forma nenhuma adquiridos pelos sentidos, mas têm o seu fundamento na natureza constante da capacidade pensante da alma e podem ser nomeados representações puras»7. Já no segundo texto, no qual parece evocar a “aquisição originária” [operação de apoderamento das representações elementares, assim metaforicamente nomeada desde a chamada “Resposta a Eberhard”8], o “inato” será imputado ao homem, o seu autor. Nesse sentido, adquirir originariamente será eu próprio dar-me a posse do que nunca antes fora possuído. Tal como se lê no § 10 da “Doutrina do Direito”: «Adquiro algo quando faço (efficio) que algo se torne meu.»9 Faz-se meu, portanto, o que é, por mim, tornado meu. Esse mesmo fragmento – que emprega “inato” e “por natureza” em duas orações interligadas, com ambos podendo valer como sinônimos –, esse mesmo fragmento, ao rechaçar a aquisição temporal, psicológica, evocando a “originária” permite concluir que esta última é então atemporal. Se no mesmo período não houvesse a ênfase na autoria humana dessa aquisição, seríamos tentados a fazê-la convergir para uma forma maldisfarçada de inatismo radical. Não sendo o caso, a aquisição em pauta, sem indicar um patrocínio transcendente, aludirá ao fato de tempo [e espaço] – também objetos de uma “aquisição originária” – não terem sido ainda adquiridos. Se assim for, a passagem opor-se-á a muitas outras, nas quais a “aquisição originária” é dita ocorrer “por ocasião da experiência” [bei Gelegenheit der Erfahrung]. Tem-se uma dificuldade ou interprete-se esta experiência como uma experiência originária, primeira. Observe-se ainda que “inato” – “angeboren” – não será composto por um prefixo privativo, pelo qual ele significasse “não-nascido”, e, pois, “não-natural”. Embora a etimologia do latim “innatus” remeta tanto a um prefixo privativo quanto a outro, introdutivo, é a este último, somente, que “inato”, traduzindo “angeboren” [ou também “eingeboren”], deverá reportar-se. Como quer que seja, será visível em ambos aqueles trechos o cuidado de Kant com o sentido de “inato”, depurando-o de qualquer Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 463 - 478, out. 2007

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vínculo suspeito. No primeiro caso, limitando-o à mera anterioridade no homem, por alusão à experiência; no segundo, tendo-o como produto da autoria humana. No terceiro fragmento, enfim, ocorrerá uma desdivinização do “inato”, e, no mesmo passo, uma como que humanização do mesmo, pois ele será, agora, o que nos for natural, o que for parte da natureza humana. Em suma, pois, o “inato”, apresentando-se-nos desde o primeiro momento, já era antes virtualmente presente no homem, que, adquirindo-o originariamente, confere-lhe autoria como ao que pertence à sua própria natureza. A última das passagens aqui lembradas parecerá especialmente relevante por aproximar-se do significado positivo de “inato” já encontrado em Hume, por exemplo, o que permitirá fixar um quadro comum de significação para o conceito em dois dos principais representantes do iluminismo filosófico. Trata-se da bem conhecida nota da primeira Investigação, na qual um significado inicial de “inato” permitirá afirmar que todas as percepções e idéias da mente terão de ser assim consideradas: [...] Se inato equivaler a natural, todas as percepções e idéias da mente têm então de ser admitidas como inatas ou naturais, em qualquer sentido no qual tomemos a última palavra, em oposição a incomum, artificial ou milagroso. [...]

Acepção um tanto larga, na qual as próprias «idéias» são ditas «inatas», ou, antes, mediatamente assim, remetendo todas às «impressões», elas então imediatamente inatas, alcance que lhes é conferido por um significado menos abrangente reconhecido ao “inato”: [...] admitindo esses termos, impressões e idéias, no sentido acima explanado, e compreendendo por inato o que é original ou não copiado de nenhuma percepção precedente, podemos então asseverar que todas as nossas impressões são inatas e que as nossas idéias não o são. [...]10

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Mas já na “Seção I” do Tratado surgia o mesmo tema, recebendo a seguinte observação do filósofo: [...] cabe notar que a presente questão, a respeito da anterioridade de nossa [sic] impressões ou idéias, é a mesma que produziu tanto barulho sob uma outra formulação, quando se discutiu se haveria idéias inatas, ou se todas as idéias derivam da sensação e da reflexão.11

A partir da equivalência entre “inato” e “natural”, como pela extensão conferida ao último termo pelo filósofo escocês, tem-se que, opondo-se a «incomum», «artificial» ou «milagroso», o “inato” permanece indistintamente o mesmo, e, como tal, pode qualificar «todas as nossas impressões», ainda que nenhuma das nossas «idéias». Essa permanência na própria identidade decorre de ele ser «originário», ou seja, «não copiado de nenhuma percepção precedente».12 Também Rousseau, no Emílio – mais especificamente na Profissão de fé do vigário saboiano –, serve-se do “inato”, em especial na passagem seguinte, na qual o identifica com o significado até agora exposto: [...] Qualquer que seja a causa do nosso ser, ela proveio à nossa conservação, dando-nos sentimentos convenientes à nossa natureza. E não se poderia negar que ao menos esses sejam inatos. [...]

Ainda na mesma passagem, adiante: Conhecer o bem não é amá-lo; o homem não lhe tem o conhecimento inato. Mas, tão logo a sua razão o faz conhecê-lo, a sua consciência o leva a amá-lo: esse sentimento é que é inato.13

Se o homem tão-somente conhecesse o bem, nem por isso o amaria. Conhecer a dor alheia não é, com efeito, compadecer-se de quem a sofre14. O sentimento, garantido pela consciência, é inato; o Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 463 - 478, out. 2007

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conhecimento, obra da razão, adquirido. Mas a conveniência entre os nossos sentimentos e a nossa natureza, como que atestada pela simultaneidade entre o conhecimento da razão e o sentimento da consciência, dilui a diferença, a fissura antes intransponível entre “inato” e “adquirido”. Como afirma Rousseau, referindo-se ao homem em face do bem: «tão logo a sua razão o faz conhecê-lo, a sua consciência o leva a amá-lo». Em nota inserida nesse mesmo trecho, ele o dirá de forma ainda mais clara: Sob certos pontos de vista, as idéias são sentimentos e os sentimentos idéias. Os dois nomes convêm a toda percepção que nos ocupa, ao seu objeto e a nós mesmos por ela afetados. Somente a ordem dessa afecção determina o nome que lhe convém. Primeiramente, quando, ocupados com o objeto, pensamos em nós somente por reflexão, [a afecção] é uma idéia; ao contrário, quando a impressão recebida excita a nossa primeira atenção e pensamos somente por reflexão no objeto que a causa, [a afecção] é um sentimento.15

Mas já Baumgarten, no § 577 da Metafísica, cuidando também de fixar um vocabulário filosófico alemão, afirmava: Sendo os hábitos os graus superiores das faculdades da alma e sendo o exercício *) a repetição freqüente de ações homogêneas ou de ações semelhantes quanto à diferença específica, os hábitos da alma desenvolvem-se pelo exercício. Os hábitos da alma não dependentes do exercício são, porém, naturais ou nascidos com ela **) (disposições naturais); os que dependem do exercício são adquiridos ***); os sobrenaturais são infundidos ****); os hábitos das faculdades cognoscitivas chamam-se teoréticos. *) Exercício [Übung]. **) Inatos [angeborne]. ***) Adquiridos

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[erworbene]. ****) hábitos divinos da alma [göttliche Fertigkeiten der Seele].16

Na “Introdução” da Metafísica dos costumes, por outro lado, encontra-se a expressão «hábito adquirido da razão», que bem servirá como contraponto a «hábitos divinos da alma», proposta por Baumgarten na passagem em causa como uma sorte de perífrase que corresponda em alemão aos hábitos sobrenaturais infundidos: «[...] o arbítrio humano é tal que é em verdade afetado pelos estímulos, mas não [por eles] determinado, e, portanto, não é por si puro (sem hábito adquirido da razão), mas pode ser determinado às ações a partir da vontade pura.»17 Aos «hábitos divinos da alma», decorrentes de implantação pelo Criador, opõe-se o «hábito adquirido da razão», decorrente de uma aquisição engendrada pela própria razão humana. Tal aquisição é fundamentalmente diversa daquela que, na passagem de Baumgarten, corresponde aos hábitos dependentes do exercício. Já aqui se nota uma importante distinção entre «inato», «adquirido» e «infundido», que, em Kant, corresponderá a «inato», «adquirido» e «implantado». Somente que, no caso do autor do criticismo, dada a equivocidade no emprego da expressão, «inato» receberá um significado positivo – que o distinguirá de «infundido» ou «implantado» – e outro negativo – que o identificará com «infundido» ou «implantado». Em Hume, o “inato” equivalente a “natural” redundará na originalidade da sensação e na sua concomitante insondabilidade: «As impressões podem ser divididas em duas espécies: de SENSAÇÃO e de REFLEXÃO. As da primeira espécie nascem originalmente na alma, de causas desconhecidas.»18 O mesmo se dará em Kant, a equivalência podendo ser compreendida a partir da equiparação entre três ou mesmo quatro termos: “inato”, “a priori” e “natural”, também “originário”19. No fundo, ambos os filósofos têm iguais posições a respeito, ao desconhecimento das causas em Hume correspondendo a incompreensão do fundamento em Kant, tal como declaram, por exemplo, os Primeiros princípios metafísicos da ciência da natureza:

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Que se deva tornar compreensível a possibilidade das forças-fundamentais, [tal] é uma exigência completamente impossível; pois elas chamam-se justamente forças-fundamentais porque não podem ser derivadas de nenhuma outra, isto é, não podem de modo nenhum ser compreendidas. [...]20.

Não obstante essa identidade de posições entre Hume e Kant, se para os leitores do primeiro a equivalência entre “inato” e “natural” não é sequer lembrada [muito improvavelmente seria imputada ao filósofo escocês a pecha de inatista], para os do segundo, em contrapartida, é com freqüência recordada a equiparação entre “inato” e “a priori”, tida e havida por espúria, seja pelos defensores, seja pelos detratores da filosofia crítica. Donde o eventual benefício de não somente recordar-lhes, a uns e outros, a equivocidade do conceito em Kant, como a pertinência de uma acepção positiva de “inato” também em Hume, proporcionalmente depurada, desmetafisicada. Por conseguinte, do “inato” tal como empregue por Kant, Hume e Rousseau nas passagens aqui recordadas, se se tiver em mente o sentido tradicional a ele adstrito, poder-se-á dizer que, se não desconstruído, é devidamente modulado ou desplatonizado [aludindose, neste caso, à leitura kantiana do “inato” em Platão]. Em sintonia com esse processo, a distinção de Baumgarten entre “inato” e “infundido” de certo modo clareia o cenário, resguardando a presença de um elemento tão necessário quanto insondável [a «impressão» em Hume, o «sentimento» em Rousseau, o «fundamento» em Kant], sem recorrer à intervenção divina. Essa modulação do significado de “inato” – extensível aos de “adquirido”, “natural”, “originário”, “a priori” – será também observada a partir de uma outra referência, não agora filosófica. Com efeito, o qualificativo em pauta já era empregue no domínio do Direito alemão desde pelo menos o século XIII. Entre tantas outras citações possíveis, assim se lê, por exemplo, na seguinte passagem de um tratado de Direito da comunidade frísia, do século XV: «[...] Quantos direitos há? Dois: um divino e um humano. O primeiro é um [direito] inato [angeboren], o outro deve-se aprender; um chama-se natural, o outro civil.»21

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A passagem em questão não deve ser considerada somente à luz da curiosidade histórica, sendo preciso atentar às relações que ela revela: de um lado, o “divino”, o “inato” e o “natural”; de outro, o “humano”, o “a-ser-aprendido” e o “civil”. No § 49 da “Doutrina da virtude”, pouco mais de três séculos depois, ler-se-á: Que a virtude tenha de ser adquirida ([que ela] não seja inata [angeboren]), [tal] já se encontra [...] no conceito da mesma. Pois a faculdade moral do homem não seria virtude se não fosse produzida pelas forças da resolução no conflito com tão possantes disposições oponentes. Ela é o produto da razão pura prática, à medida que esta, na consciência da sua superioridade [Überlegenheit] (pela liberdade), conquista a supremacia [Obermacht] sobre aquelas. Que ela possa e tenha de ser ensinada [gelehrt], já se segue de que ela não é inata [angeboren] [...].22

Ainda com respeito à “virtude”, Kant já a considerara, desde bem antes, em reflexão da segunda metade dos anos 1770, num sentido transmissível, noutro não: Se a virtude poderia ser ensinada [é questão que] pode ser tomada em dois sentidos: 1. sem qualquer sentimento moral, isto é, [sem qualquer] determinabilidade da vontade através da regra racional prática, alguém compreenderia o que seja a virtude? Resposta: Não. Segundo: o hábito [fertigkeit (sic)] que a constitui poderia ser adquirido através de preceitos e imitação? Sim, através do exercício freqüente, mas não simplesmente segundo preceitos, e sim pelo estímulo próprio.23

Evidentemente, a passagem há pouco lembrada da “Doutrina da virtude” é somente uma das muitas nas quais o “inato” é empregue na inteira Metafísica dos costumes. Por outro lado, tratando-se aqui Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, p. 463 - 478, out. 2007

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do sentido positivo da expressão, por que se ater a esse fragmento, justo no qual o “inato” é rechaçado? Noutras palavras, que considerações fazer, pertinentes ao tema escolhido, a partir das proporções “inato” / “não-aprendido”, “adquirido” / “aprendido”? Parece-me que a lição de Kant, cá como alhures, é que não há virtude inata, mas tampouco virtude adquirida passivamente, recepção de um dado pronto, sem autoria própria. Nem o infuso ou implantado nem o empiricamente adquirido. Ao contrário, portanto, essa sorte de aquisição empenhada – co-autoral, se se quiser – será a da virtude adquirida, não inata, de que fala o texto. Ela corresponderá, no plano prático, à “aquisição originária” das formas-de-intuição e das formas-de-pensamento do plano especulativo. Pois lá também é preciso o sujeito por si próprio obter os elementos com os quais conheça. Como então interpretar o “inato” quando ele qualifica a “liberdade”, o “direito”, o “meu-e-teu”, sorte de coadjuvante a assombrar o protagonista? Por trás desse “inato” não haverá mais um Deus a infundir ou implantar o que for, mas o próprio homem, em posse primeira ou empenhada. No prático ou no especulativo, as coisas, em se tratando do homem, principiam por ser adquiridas – adquiridas por ele, o seu autor. Como que invertendo a sucessão [lógica] habitual – primeiro o “inato”, depois o “adquirido” –, Kant diria, no mesmo plano lógico: primeiro o originariamente adquirido [adquirido pelo homem, o seu autor], depois o “inato” [o próprio adquirido, antes de sê-lo]. Mas este mesmo “inato” será, doravante, um arremedo de si próprio: sem mais levar à natureza de Deus, que o teria infundido em nós, indicará a natureza do homem, na qual se encontra por ter sido adquirido. Contudo, não havendo, et pour cause, nem o tempo nem o espaço de uma tal aquisição, o “inato” conserva, suficientemente incólume, a validade das suas pretensões, que, feito uma Hidra de Lerna [ou a própria metafísica, na sua acepção negativa], não cessam de reporse, por mais denunciadas sejam. NOTAS EXPLICATIVAS 1

O texto a seguir é parte de um conjunto de reflexões sobre “Kant e o inato”. No caso presente, sobre o uso positivo da expressão nas obras do filósofo.

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Dadas, porém, a impostação temática do Congresso e as justificadas limitações de tempo para os expositores, não foram aqui consideradas em pormenor nem a “Dissertação de 1770” nem a “Resposta a Eberhard”. 2

Todos os textos de Kant citados têm por base a “Edição da Academia” – Kant’s gesammelte Schriften: herausgegeben von der preußischen Akademie der Wissenschaften. Berlin: Walter de Gruyter, 1910-1980; abreviadamente: “Ak.” Embora seguida a “Akademie-Ausgabe”, a citação da Crítica da razão pura foi feita pela indicação alfanumérica tradicional. Não havendo indicação contrária, as traduções são minhas, assim como os colchetes; já os parêntesis são em princípio do autor citado. 3

Id., Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft; Ak., v. VI, p. 22.

4

Ibid., p. 25.

5

Ibid., p. 45.

6

Id., KrV, B 2.

7

Id., “Reflexionen zur Metaphysik” [no. 3957; manuscrita em 1769]; Ak., v. XVII, p. 364. 8

Cf. id., Über eine Entdeckung nach der alle neue Kritik der reinen Vernunft durch eine ältere entbehrlich gemacht werden soll; Ak., v. VIII, p. 221-222: «A Crítica não aceita, em absoluto, representações inculcadas [anerschaffen] ou inatas [angeboren]. Pertençam à intuição ou aos conceitos do entendimento, ela as considera todas como adquiridas. Mas há também uma aquisição originária (tal como se expressam os mestres do direito natural), conseqüentemente, [uma aquisição] também daquilo que antes não existia ainda de modo nenhum, por conseguinte, que não pertencia a coisa nenhuma antes dessa ação. Tal é, como afirma a Crítica, primeiramente a forma das coisas no espaço e no tempo; em segundo lugar, a unidade sintética do múltiplo em conceitos. Pois nenhuma delas é tirada dos objetos por nossa faculdade de conhecimento como dada em si mesma neles, mas ocorre a priori a partir de si mesma. Deve, porém, haver um fundamento para isso no sujeito, que torne possível que as representações pensadas surjam [entstehen] assim e não de outra maneira, e, além disso, [que torne possível que elas] possam ser referidas a objetos que ainda não estão dados – e ao

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menos esse fundamento é inato.» A discussão empreendida a partir desse ponto [trata-se, sempre na obra em pauta, do trecho compreendido entre as páginas 221 (linhas 26 a 37), 222 e 223 (linhas 1 a 8)], segundo o afirmado pelo filósofo nas páginas iniciais que introduzem o texto, estará inserida no bojo dos «ataques [Angriffen]» empreendidos por Eberhard às «expressões», constituindo momento acessório, não principal [ibid., p. 189]. Para o que aqui interessa, todavia, a passagem lembrada e o restante da argumentação de Kant constituem a principal referência direta ao emprego positivo do “inato” no âmbito especulativo, ao menos desde a “Dissertação de 1770”, tanto pela intensidade e mesmo quantidade das considerações arroladas, como, em especial, por – ainda que indiretamente – terem como patrono de fundo [evocado por Eberhard] o próprio Leibniz. O trecho em causa torna-se também relevante para o estudo aqui empreendido, face ao que já antes apontara a mesma “Dissertação”, na qual, ao menos em um momento, a forma de acesso ao conceito [trata-se então do espaço] é dita “originária”, prenunciando de algum modo a fórmula [«aquisição originária»] cunhada duas décadas depois: «Se o conceito de espaço não fosse dado de modo originário mediante a natureza da mente [...]» [Dissertação de 1770 seguida de Carta a Marcus Herz. Tradução, apresentação e notas de L. R. dos Santos e A. Marques. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1985; p. 66]. Em sendo assim, uma eventual doutrina da “aquisição originária”, ainda que essa seja como tal manifesta somente na “Resposta”, usufruiria de uma constância não desprezível de duas décadas, justo as que respondem pela maturação e fixação do sistema crítico. 9

Id., Die Metaphysik der Sitten; Ak., v. VI, p. 258.

10

HUME, D. An Enquiry Concerning Human Understanding. In: Enquiries Concerning the Human Understanding and Concerning the Principles of Morals by David Hume. Reprinted from the postumous edition of 1777 and edited with introduction, comparative tables of contents, and analytical index by L. A. Selby-Bigge. Oxford: Clarendon, 1951; p. 22, n. 1.

11

Id., Tratado da natureza humana. Trad. de Débora Danowski. São Paulo: Imprensa Oficial - Editora Unesp, 2000; p. 31. 12

No mesmo Tratado, Hume caracterizava explicitamente o «natural»; cf. ibid., p. 513: «[...] se acaso alguém perguntar se devemos procurar esses princípios [«alguns princípios mais gerais que fundamentem todas as nossas

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noções morais»] na natureza ou se temos de buscar para eles alguma outra origem, eu diria que nossa resposta a essa questão depende da definição da palavra “Natureza”, que vem a ser a mais ambígua e equívoca que existe.» Em seguida, então, o filósofo opõe «natureza» a «milagre», a «raro e inabitual» e por fim a «artifício» [ibid., p. 513-514].

13 ROUSSEAU, J.-J. Émile ou de l’Éducation. Paris: Garnier-Flammarion, 1966; p. 378.

14

Cf. HUME, Tratado da natureza humana, ed. cit., p. 511: «Não inferimos que um caráter é virtuoso porque nos agrada; ao sentirmos que nos agrada dessa maneira particular, nós de fato sentimos que é virtuoso».

15

ROUSSEAU, op. cit., p. 377.

16

BAUMGARTEN, A. G. Metaphysica [«§ 577»]. Disponível em: Acesso em: 13 set. 2007. Agradeço ao Prof. Dr. Leonel Ribeiro dos Santos, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pela tradução do trecho em latim desse texto de Baumgarten. 17

KANT, Die Metaphysik der Sitten; Ak., v. VI, p. 213. Cf. ibid., p. 407: «Hábito [Fertigkeit] (habitus) é uma facilidade [Leichtigkeit] para agir e uma perfeição [Vollkommenheit] subjetiva do arbítrio.»

18

HUME, Tratado da natureza humana, ed. cit., p. 32.

19

Todavia, assim como não se encontra univocidade no emprego isolado de “inato” e “natural”, tampouco no de ambas as expressões em conjunto: «Com respeito ao caráter, muito pode ser adquirido. Ele não é inato [angebohren] (embora natural), isto é: ele chega ao ânimo e ao coração.» [“Entwürfe zu dem Colleg- über Anthropologie aus den 70er und 80er Jahren” / “Ha 49”; Ak., v. XV, p. 759 – reflexão manuscrita entre 1773 e 1775 ou 1775 e 1777]. 20

KANT, Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft; Ak., v. IV, p. 513.

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21

Das Fivelgoer Recht [1427-1450] / hrsg. von Wybren Jan Buma. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1972. In: DEUTSCHES RECHTSWÖRTERBUCH [DRW]. Disponível em: Acesso em: 13 set. 2007 [o texto citado encontra-se disponível na seguinte página: ]. 22

KANT, Die Metaphysik der Sitten; Ak., v. VI, p. 477. Também o “gênio”, que no § 46 da terceira Crítica recebera a qualificação de «inata disposiçãode-ânimo» – «Gênio é o talento (dom-natural) que dá a regra à arte. Já que o próprio talento como faculdade produtiva inata do artista pertence à natureza, poderíamos então expressar-nos também assim: gênio é a inata disposiçãode-ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte.» [Kritik der Urteilskraft; Ak., v. V, p. 307] –, ele também, agora na Antropologia, é explicitamente associado ao que não pode ser ensinado ou aprendido: «Gênio é o talento da invenção do que não pode ser ensinado ou aprendido. Podese muito bem ser ensinado por um outro sobre como se deve fazer bons versos, mas não sobre como se pode fazer uma boa poesia. Pois isso tem de provir de si mesmo a partir da natureza do autor. [...]» [Anthropologie in pragmatischer Hinsicht; Ak., v. VII, p. 318.] 23

Id., “Reflexionen zur Moralphilosophie” [no. 7185; manuscrita entre 1776 e 1778]; Ak., v. XIX, p. 266-267.

REFERÊNCIAS BAUMGARTEN, Alexander Gottlieb. Metaphysica. 3.ed. 1757. Disponível em: Acesso em: 13 set. 2007. DEUTSCHES Rechtswörterbuch [Drw]. Disponível em: Acesso em: 13 set. 2007. HUME, David. An Enquiry Concerning Human Understanding. In: ______. Enquiries concerning the human understanding and concerning the principles of morals. Reprinted from the postumous edition of 1777 and edited with introduction, comparative tables of

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contents, and analytical index by L. A. Selby-Bigge. Oxford: Clarendon, 1951. _____. Tratado da natureza humana. Tradução de Débora Danowski. São Paulo: Imprensa Oficial - Editora Unesp, 2000. KANT, Immanuel. Dissertação de 1770 seguida de Carta a Marcus Herz. Tradução, apresentação e notas de L. R. dos Santos e A. Marques. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1985. _____. KANT’S gesammelte Schriften: herausgegeben von der preußischen Akademie der Wissenschaften. Berlin: Walter de Gruyter, 1910-1980. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Émile ou de l’Éducation. Paris: Garnier-Flammarion, 1966.

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NORMAS GERAIS PARA PUBLICAÇÃO DE ARTIGOS

1. Os artigos ou resenhas de livros deverão ser digitados em Word for Windows (7.0 ou superior) ou PageMaker for Windows (7.0 ou superior) e encaminhados via e-mail, disquete ou cd rom. 2. Apresentação dos artigos: a) Os artigos não deverão exceder 15 laudas, digitadas em espaço simples, tamanho 11, fonte Times New Roman ou, preferencialmente, Italian Garamond BT, já contadas as notas explicativas (fonte tamanho 10) e as referências bibliográficas (fonte tamanho 11). b) As notas explicativas devem aparecer imediatamente após o texto, antecedendo as referências bibliográficas e numeradas, com números arábicos em sobrescrito, conforme a seqüência em que aparecem no texto. c) As citações deverão ser feitas em itálico, no corpo do texto quando tiverem até 3 linhas ou destacadas do texto, em parágrafo específico, quando ultrapassarem o referido número de linhas. Após as citações, entre parênteses, aparecerá a referência autor, data. d) O título do artigo deverá aparecer em caixa alta (todas as letras maiúsculas) e em negrito. Na linha posterior ao título, também em negrito, constará o nome do autor e sua identificação acadêmica. e) Um resumo em português, de no máximo 250 palavras, e cinco palavras-chave, com sua versão em inglês, francês ou espanhol deverão ser incluídos após o título e o nome do autor. Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, out. 2007

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f) As referências bibliográficas serão acrescidas ao final do trabalho, seguindo os parâmetros estabelecidos pela ABNT. 4. As resenhas e comentários sobre livros, revistas e artigos especializados, destinados à seção “Resenhas”, devem ser precedidos da referência bibliográfica. 5. Os originais recebidos para publicação na Revista Crítica não serão devolvidos, mas os autores receberão três exemplares do número no qual seu artigo for publicado. 6. Caberá aos respectivos autores a responsabilidade sobre as opiniões apresentadas nos artigos publicados na Revista Crítica. 7. Os artigos serão submetidos ao Conselho de Pareceristas Externos e, uma vez aprovados, terão sua publicação efetivada. Os autores serão informados, via e-mail, da situação em que se encontra o artigo encaminhado para publicação desde o momento de sua recepção por parte da Coordenação Editorial. 8. A Revista Crítica aceita contribuições de qualquer pessoa pesquisadora nos temas de foco deste periódico, mas dará preferência, nas publicações, aos pesquisadores doutores e aos docentes de Instituições Universitárias. 9. Os artigos e resenhas deverão ser enviados para: Prof. Dr. Gilvan Luiz Hansen Universidade Federal Fluminense Departamento de Filosofia - Sala 310 - Bloco O Campus Gragoatá Fone: (21) 2629-2852 24210-350 - Niterói - RJ E-mail: [email protected] Home-page: www.cefil.com.br

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Crítica Revista de Filosofia, Londrina, v. 12, n. 36, out. 2007

PERIÓDICOS EM PERMUTA A Revista Crítica possui permuta com os seguintes periódicos nacionais e internacionais: Analecta – UNICENTRO (Guarapuava/PR). Boletim: Revista da Área de Humanas - UEL. Δαιμων: Revista de Filosofia – Universidad de Murcia/Espanha. Disputationes – O Direito em Revista - FACNOPAR. Doispontos – UFPR/UFSC. Ethica – Universidade Gama Filho. Etic@ - Universidade Federal de Santa Catarina. Isegoría – CSIC/Espanha. Kalagatos – Universidade Estadual do Ceará. Philosophica - Universidade de Lisboa/Portugal. Revista de Filosofia - PUCPR. Res Publica - Universidad de Murcia/Espanha. Revista Filosófica de Coimbra – Universidade de Coimbra/Portugal. Aceita-se permuta. Os periódicos para permuta deverão ser enviados para: Prof. Dr. Gilvan Luiz Hansen Universidade Federal Fluminense Departamento de Filosofia - Sala 310 - Bloco O Campus Gragoatá Fone: (21) 2629-2852 24210-350 - Niterói - RJ E-mail: [email protected] Home-page: www.cefil.com.br

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INDEXAÇÃO A Revista Crítica possui a indexação nos seguintes organismos: a) Latindex Indexador da Universidade Autônoma do México para os periódicos reconhecidos nos países ibéricos e na América Latina. Cf. www.latindex.unam.mx. b) Qualis Indexador da CAPES para os periódicos do Brasil. A classificação de 2008 a 2010 é “B” Nacional.

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