Avanços e obstáculos à concretização das políticas públicas sociais no Brasil

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Avanços e obstáculos à concretização das políticas públicas sociais no Brasil

André Viana Custódio1

Considerações Iniciais Este artigo aborda avanços e obstáculos para a concretização das políticas públicas sociais no Brasil contemporâneo. Tem com objetivo geral contextualizar as políticas públicas sociais brasileiras no marco do reconhecimento dos direitos fundamentais sociais e como objetivos específicos caracterizar o conceito de políticas públicas; analisar o reordenamento político institucional e o papel dos atores sociais frente às políticas públicas; descrever aspectos sobre os processos de deliberação e participação democrática, bem como, dos princípios, estratégias e obstáculos das políticas públicas no país.

1. Direitos fundamentais sociais e políticas públicas A herança brasileira de profundas desigualdades econômicas e sociais foi impactada diretamente com o reordenamento político institucional proposto pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988. A ousada transformação focalizou o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento desta nova realidade reconhecendo a integralidade dos direitos humanos na condição de direitos fundamentais e impôs responsabilidades às 1

Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Sevilla/Espanha (2012), Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2006), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002), Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1999), Professor Permanente dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Coordenador do Curso de Graduação em Direito da Faculdade Avantis, Coordenador do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens (GRUPECA) e Pesquisador do Grupo Políticas Públicas de Inclusão Social (UNISC), Fellow da Ashoka Empreendedores Sociais. Foi Coordenador Executivo do Instituto Ócio Criativo e Consultor do Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome (MDS), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

instituições públicas e privadas na efetivação dos novos direitos de modo a garantir plenas condições de desenvolvimento humano a todos. Para que os princípios e regras inscritos no texto constitucional pudessem transpor o difícil caminho entre teoria e realidade tornou-se necessárias mudanças substanciais de conteúdo, método e gestão das políticas públicas brasileiras. Para o enfrentamento das desigualdades em contextos sociais complexos foi necessário reconhecer as necessidades humanas, bem como, fragilidades institucionais aonde a prática democrática nem sempre foi considerada, promovendo reflexões públicas e coletivas para desencadear um processo de construção de novas estratégias de planejamento e implementação de políticas públicas. Daí surge a necessidade de se fixar novas bases para pensar estratégias de políticas públicas brasileiras que possam garantir a concretização dos princípios e regras constitucionais alicerçados no princípio da dignidade da pessoa humana e da preservação da garantia de condições adequadas de desenvolvimento humano integral. Isso porque, Há uma estreita relação entre os temas das políticas públicas e dos direitos humanos. Pois uma das características do movimento de ampliação do conteúdo jurídico da dignidade humana é a multiplicação de demandas por direitos, demandas diversificadas e pulverizadas na titularidade dos direitos. (BUCCI, 2001, p. 13)

A titularidade subjetiva de direitos fundamentais sociais exigiu a articulação de níveis mais avançados de gestão pública até atingir parâmetros complexos em termos de políticas públicas. O conceito de políticas públicas não é unívoco e sua interpretação é variável de acordo com o contexto político, econômico, cultural e social de cada país. A cultura institucional de planejamento, controle e avaliação de políticas públicas como instrumentos de concretização de direitos fundamentais, em termos históricos, ainda é muito recente no Brasil e diversificada em relação a cada

campo de atuação. Atualmente encontram-se diferenças substanciais de qualidade nos diversos níveis entre os próprios entes federados na implementação de políticas públicas; mas especialmente em relação aos campos específicos de concretização de direitos. A repartição de competências e atribuições ainda é um desafio especialmente quando se trata dos direitos sociais. Assim, considera-se que a concretização de direitos sociais depende objetivamente de políticas públicas sociais que sejam capazes de transformar ideias em realidade. Seu campo de abrangência exige conhecimento interdisciplinares, muitas vezes transdisciplinares, envolvendo a demarcação de responsabilidades e compartilhamento de estratégias claras na delimitação dos espaços de poder político. Mais do que criatividade no exercício das funções públicas exige-se domínio na compreensão da capacidade de influencia de poderes e das relações de dominação que incidem sobre os processos de implementação das políticas públicas. Para a caracterização de um conceito de políticas públicas sociais pode-se levar em consideração alguns aspectos fundamentais: a) seus campos de incidência, princípios e conteúdos; b) sua implementação considerando instrumentos de planejamento, controle, avaliação e a respectiva provisão de recursos; c) a superação de práticas de afetam a efetividade das políticas ou que constituem obstáculos concretos para sua realização. Embora, o enfoque aqui adotado não exclua outras possibilidades de abordagens igualmente válidas, pretende-se construir um conceito de políticas públicas sociais considerando sua localização teórica nas áreas de conhecimento da ciências sociais aplicadas. Assim, torna-se desnecessária a realização de digressões acerca da origem etmológica e histórica dos conceitos sobre política e do

próprio conceito de público em consonância com as importantes contribuições no campo da ciência política. Em síntese, pretende-se estabelecer um olhar específico da relação entre as políticas públicas sociais e a sua capacidade de instrumentalizar a concretização dos direitos fundamentais. Considera-se, portanto, como “políticas públicas sociais” o conjunto de ações, projetos, programas e planos que envolvem as “políticas sociais públicas” e as “políticas sociais privadas”. Assim, as políticas públicas sociais articulam as iniciativas de entes públicos representados pelos órgãos estatais e as ações privadas oriundas da sociedade civil. Esta distinção conceitual não é simplesmente arbitrária, pois desencadeia uma série de conseqüências objetivas nos processos, competências e nas estratégias de articulação interinstitucional, intersetorial e na definição de co-responsabilidades na efetivação dos direitos. Uma das conseqüências é o reconhecimento do interesse público mesmo nas ações sociais da iniciativa privada, tais como as ações do terceiro setor, de responsabilidade social empresarial ou de empreendorismo social. Afastam-se assim as possibilidades de preponderância das concepções elitistas, e também nãointervencionistas, na definição das políticas públicas. Ao se reconhecer o conceito de políticas públicas sociais, na sua dimensão abrangente, vinculam-se as ações sociais à ideia de interesse público material, ou seja, que as políticas públicas devem adotar uma concepção pluralista envolvendo a diversidade de ação, mas vinculados à garantia de universalização dos direitos humanos e efetivação dos direitos fundamentais. Alcançam deste modo, as políticas públicas sociais todos os campos de direitos fundamentais que tenham como referencia a universalização das condições dignas de existência e a materialização dos direitos fundamentais básicos, tais como

educação, saúde, assistência social, meio ambiente, trabalho, profissionalização, cultura, esporte, lazer e todos os demais amparados pela Constituição brasileira. Assim, os princípios constitucionais aplicam-se as políticas sociais públicas e garantem legitimidade à sua implementação. Além disso, há princípios básicos aplicáveis às políticas públicas sociais que garantem um nível mais avançado de gestão e controle, tais como democratização, descentralização, diversidade, permanência e imperatividade. O princípio da democratização adotado na constituição brasileira não se reduz ao tradicional modelo de democracia liberal representativa que legitima a participação através do frágil mecanismo da representação político-partidária. Sem desconsiderar as formas tradicionais de representação adotou-se um modelo de democracia mista que conjuga instrumentos de representação tradicional com mecanismos de democracia direta permitindo instituir um modelo de efetiva democracia participativa. [...] a democracia não deve ser considerada apenas como uma forma de se tomar decisões, mas sim como uma forma de sociedade, onde a pluralidade não apenas é respeitada, como também instigada. O funcionamento de uma nova democracia está intimamente ligado ao reconhecimento do ‘outro’ enquanto ator social, e político, legítimo. A questão é refutar os absolutismos morais cunhados pelos ‘novos conservadores’, que vêem na política corrompido por ‘natureza’ tendo a imoralidade como sua essência, e regatar o político, o conflito, o debate e o reconhecimento de que a democracia pode ser reinventada, e não é estática, ou parada no tempo. (MELLER, SOUZA, 2013, p. 240)

Neste contexto, surgem variadas formas de atuação junto aos processos de deliberação e controle das políticas públicas que podem ser sintetizados, tais como: a) escolha dos representantes governamentais em eleições livres; b) plebiscito, referendo e projetos de lei iniciativa popular; c) instituição de conselhos gestores com representação da sociedade civil; d) participação popular em conferências de políticas públicas; e) audiências públicas; f) fóruns temáticos interinstitucionais e

intersetoriais de políticas públicas; g) reconhecimento da mobilização dos movimentos sociais e da opinião pública. Consideradas estas dimensões ressalta-se que se aplica o princípio da democratização participativa nos níveis municipal, estadual e nacional sempre tendo por lógica a descentralização. Para garantir de efetiva democratização são indispensáveis os processos de descentralização deliberativa nos diversos níveis produzindo a desconcentração de poder nos espaços decisórios e resignificando o conceito de cidadania. Assim, diversamente do modelo liberal, no qual a cidadania existe como epifenômeno da democracia representativa, sendo moldada de acordo com suas exigências e não existindo fora dela, na sociedade brasileira esta diretriz necessita ser invertida, e a cidadania pensada como dimensão fundante ou instituinte da democracia possível, para além do liberalismo. Trata-se, pois, de pensar as condições de possibilidade da democracia no Brasil a partir das exigências que as diferentes lutas pela cidadania expressam e demandam. (ANDRADE, 2003, p. 78)

Há que se considerar também a importância do princípio da diversidade especialmente nas suas dimensões de desenvolvimento humano e de espaço regional. Considerar a diversidade do ponto de vista do desenvolvimento humano implica em reconhecer a diversidade etária, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, origem regional e de espaço territorial que incidem diretamente sobre a qualidade e a acessibilidade às políticas públicas. Por sua vez, o princípio da permanência impõe a responsabilidade aos gestores de políticas públicas com a não interrupção de programas, projetos, serviços, ações e benefícios. Assim, uma vez definido a dinâmica dos sistemas de políticas públicas e suas condições de oferta não será possível sua suspensão enquanto houver demanda de atendimento. Este princípio visa garantir estabilidade das políticas públicas sociais e preservar a acumulação da experiência histórica na oferta de serviços. É preciso registrar que a origem deste princípio esta associada à herança histórica brasileira de interrupção de serviços públicos, programas e

projetos nos momentos de alternância de poder ou de deslocamento de recursos públicos de uma área para outra. No sistema democrático no qual a alternância de poder faz parte do seu processo histórico é necessário estabelecer garantias de permanência das políticas para que as condições de atendimento à população não sejam integralmente substituídas, por exemplo, a cada mudança de governo ou de gestor de uma determinada área de atuação. Por isso, o princípio da permanência preserva o caráter de continuidade das políticas públicas sociais e da proibição do retrocesso (BREUS, 2007, p. 262). O princípio da imperatividade dispõe que as políticas públicas sociais, uma vez deliberadas, impõem obrigação e responsabilidade compartilhada entre os entes públicos e privados na sua concretização. Isso significa afirmar que o processo deliberativo

das

políticas

públicas

substitui

a

discricionariedade

geral

do

administrador público e dos dirigentes institucionais privados quanto á possibilidade de escolha sobre a formulação e implantação das políticas vinculando suas ações e instituindo o agente no papel de executor. Em síntese, pode-se afirmar que há uma dinâmica própria entre as necessidades de desenvolvimento humano e a garantia de atendimento integral por meio de políticas públicas que envolvem o reconhecimento e ampliação dos direitos fundamentais com base no princípio da progressividade dos direitos humanos; a instituição de sistemas de políticas públicas sociais; a deliberação democráticoparticipativa das políticas públicas com a formulação e implementação de planos nos três níveis da federação; a implementação de mecanismos de controle, monitoramento e avaliação das políticas públicas; a concretização de direitos fundamentais em consonância com os indicadores universais de desenvolvimento

humano num contexto de desenvolvimento integral e sustentável como forma de garantir condições plenas de bem estar social. Nesta dinâmica é fundamental a definição dos papéis dos diversos atores políticos e a promoção de estratégias de fortalecimento dos atores sociais fomentando a mobilização da sociedade civil através dos movimentos sociais, da representação das organizações não-governamentais, fóruns e conselhos gestores. Sabe-se que a qualidade de participação da sociedade civil e de horizontalização dos espaços públicos não-estatais além promover a expansão do exercício da cidadania tem por mérito qualificar as políticas públicas e alcançar melhores indicadores de eficiência e transparência na gestão pública. Para a compreensão dos atores que atuam nas políticas públicas não se pretende fazer uma descrição de competências institucionais, mas indicar apenas os segmentos que habitualmente atuam nos processos de formulação, deliberação e controle das políticas públicas. Assim, atuam na formulação e deliberação das políticas públicas: a) os gestores públicos eleitos ou nomeados para o exercício das funções públicas; b) os gestores públicos na condição de representantes das organizações da sociedade civil eleitos em fóruns próprios para atuar nos conselhos gestores; No controle de políticas públicas atuam além dos gestores nos controles administrativos públicos internos dos respectivos órgãos de gestão e conselhos gestores; as autoridades que têm por competência institucional esta função, tais como o Poder Legislativo, o Tribunal de Contas, o Ministério Público e o Poder Judiciário. Há ainda o controle popular das políticas públicas através da atuação das organizações não-governamentais nos espaços públicos não-estatais, tais como

ONGs, sindicatos, movimentos sociais, meios de comunicação, universidades e a comunidade nas audiências públicas e conferências. Além da dimensão política da participação popular há um caráter pedagógico crítico, pois a “[...] esfera pública deve ser vista como um local de aprendizagem social. Além de ser o lócus por excelência da participação dos cidadãos, a esfera pública, é também, e sobretudo, é o local onde os cidadãos aprendem com o debate público.” (COSTA, REIS, 2009, p. 10). Também não se pode negar forte influencia exercida pelas organizações internacionais na sensibilização dos gestores bem como na indução de processos de desenvolvimento de políticas públicas relacionadas aos direitos humanos. No contexto da implementação das políticas públicas sociais o Brasil passou por transformações significativas na década de 1990 com as reformas da administração pública segundo o modelo gerencialista adotado para atender as necessidades de mercado; mas que gradativamente está sendo abandonado em busca de estratégias que ofereçam maior comprometimento com as necessidades humanas e sociais. Embora, notam-se avanços significativos do ponto de vista de gestão e ampliação das possibilidades e dos mecanismos de participação pública ainda são incipientes as práticas pluralistas de avaliação. (TINÔCO; SOUZA; OLIVEIRA, 2011) A qualidade das políticas públicas depende necessariamente da provisão de recursos econômicos que sejam suficientes para sua oferta em quantidade e qualidades adequadas. Políticas públicas sem recursos reduzem-se a discursos, muitas vezes emocionados e idealizados que pouco contribui para efetivar os direitos fundamentais ou garantir melhores condições de vida à população.

Embora, a provisão de recursos econômicos e a dimensão da expansão e da horizontalidade da participação política sejam pressupostos para a formulação das políticas; ainda se encontram muitos outros obstáculos à sua efetiva concretização, principalmente no que se referente às práticas políticas tradicionais viciadas pela a prevalência de políticas compensatórias, concentração arbitrária do poder, a cultura da caridade e da filantropia, o clientelismo e o patrimonialismo, a corrupção e o assistencialismo que encerram em suas concepções mitos reproduzidos ao longo de gerações. Políticas públicas não se confundem com políticas governamentais. No atual modelo democrático o processo de legitimação das políticas exige necessariamente a participação da sociedade civil em todas as etapas de gestão. Considerando que o processo deliberativo só terá legitimidade se respeitar as condições de participação da sociedade civil resta deste modo a atuação governamental restringir-se ao papel de execução das políticas públicas. Evidentemente que se está tratando de uma perspectiva em que os conselhos gestores tenham efetivo papel deliberativo. Há ainda, inúmeras áreas em que os conselhos gestores têm reconhecido apenas o seu papel consultivo não vinculando a administração pública às suas deliberações o que prejudica todo o processo de implementação das políticas públicas. Esta condição se perpetua, pois se apresenta muito favorável ao domínio da vontade dos agentes governamentais que pode de modo perverso impor suas vontades na condução das políticas públicas utilizando-se dos conselhos de caráter consultivo apenas como instrumento de legitimação das suas próprias decisões. Ao longo da história brasileira os governos instituíram políticas meramente compensatórias que nunca enfrentaram seriamente a origem das desigualdades econômicas e sociais. A prática comum dos regimes autoritários, que predominaram

no país durante todo o século XX, foi a oferta de forma fragmentada de serviços públicos, com acesso restrito, que atacavam apenas as conseqüências dos processos de exclusão econômica e social da população brasileira. A universalização do acesso aos serviços públicos é uma conquista muito recente em termos históricos, e foi consolidada em 1988 com a Constituição Federal. A partir daí, com o reconhecimento do principio da universalização dos direitos sociais é que se tornou possível pensar estratégias de implementação de políticas sociais básicas. As

políticas

sociais

básicas

diferem

substancialmente

das

políticas

compensatórias na medida em que enfrentam as causas dos processos de exclusão econômica e social, são universais e democráticas tendo por princípio o conjunto de necessidades humanas de desenvolvimento. Priorizar a implementação de políticas sociais básicas é definitivamente a melhor forma de se garantir a concretização dos direitos fundamentais sociais; para tanto é preciso garantir nas políticas públicas o acesso universal e a permanência nos sistemas de políticas públicas sociais. É preciso destacar que as políticas públicas denominadas como de ação afirmativa e de inclusão social com ações específicas direcionadas aos grupos vulneráveis, ou historicamente excluídos, não representam uma nova forma de política compensatória; mas apenas uma dimensão das políticas públicas básicas. As políticas de ação afirmativa permitem priorizar o acesso de acordo com as condições de necessidade e oportuniza com maior eficiência e rapidez o acesso às políticas públicas básicas. As políticas públicas de inclusão social visam garantir em condições de equidade e a redistribuição do acesso aos serviços públicos e benefícios sociais oferecidos através das políticas públicas.

No que se refere às políticas sociais a herança histórica brasileira trouxe aos dias atuais as práticas de filantropia e da caridade. A caridade inicialmente prestada pelas instituições religiosas tem por fundamento a ideia de ajuda ao próximo e no reconhecimento do valor da pobreza como redentora dos pecados. (ESCORSIM, 2008, p. 6) Embora, por muito tempo a caridade tenha se estabelecido como uma alternativa de minimizar o sofrimento humano; sua incorporação como estratégia dos governos teve por efeito a produção da compreensão de que as políticas deveriam ser oferecidas ‘como um favor’ descaracterizando a percepção sobre as origens fundamentais da desigualdade econômica. Assim, o discurso dominante impunha a ideia de que não havia uma sociedade que mantinha a exploração de uma classe sobre a outra; mas uma relação entre favorecidos e desfavorecidos. Caberia aos desfavorecidos aguardar a benevolência da caridade alheia como uma esperança para superar as adversidades da vida. Como não seria possível exigir a caridade, as políticas de governo não reconheciam a oferta de serviços e benefícios públicos como um direito, mas tão somente um favor que deveria ter como contraprestação a gratidão. Aliando a ideia de caridade, a cultura privatista e de domínio das relações privadas sobre o público constituiu e incentivou as práticas de filantropia com a transferência de recursos públicos para o setor privado para que o mercado pudesse promover a caridade estimulada pela transferência de recursos parafiscais. Foi somente com o gradativo reconhecimento dos direitos fundamentais sociais que a prática de caridade e o estímulo à filantropia foram abandonados como práticas governamentais; embora ainda nos dias atuais estejam presentes nas práticas das instituições privadas. Contudo é preciso lembrar que caridade e

filantropia representam o avesso do reconhecimento de direitos e tendem a aprofundar os processos de desigualdade econômica. Caridade e filantropia produzem no campo das políticas públicas outras práticas incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, pois estimulam o clientelismo político, as relações de dependência e submissão suprimindo as condições básicas de exercício da cidadania e de exigibilidade de direitos. No Brasil, caridade, filantropia e clientelismo só tiveram larga abrangência pela cultura patrimonialista das elites dirigentes que sempre trataram os bens públicos como propriedade privada. Por isso, fenômenos como a corrupção na administração pública, o desvio de recursos e o favorecimento pessoal ficaram por tanto tempo naturalizados na cultura popular. Neste contexto, as práticas do assistencialismo que conjuga políticas compensatórias com caridade e filantropia afetam diretamente as possibilidades de efetivação através de políticas públicas dos direitos sociais fragilizando o acesso e impedindo a universalização dos serviços e benefícios. Contudo, estas práticas estão em processo de superação a partir da consolidação dos sistemas de políticas públicas, das quais o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) são as experiências concretas de maior impacto no campo das políticas públicas; já que ordenam o atendimento de acordo com os níveis de complexidade dos serviços, descentralizam suas ações no âmbito dos territórios locais e constroem novos processos deliberativos e democráticos na implementação das políticas públicas. Também é indispensável ao se pensar nas políticas públicas sociais registrar o desafio no enfrentamento da expansão dos sistemas de controle, vigilância e repressão que ganham espaço com o crescimento da cultura punitiva alimentado

pelos meios de comunicação que reivindicam o retorno de modelos repressivos e autoritários como estratégias de contenção de classe. Transitar das necessidades ao reconhecimento dos direitos passando a concretização dos direitos fundamentais às políticas públicas no Estado democrático de direito é talvez uma estratégia histórica capaz de assegurar a universalização da dignidade da pessoa humana. Desafio que se impõe ao país no século XXI.

CONCLUSÕES O estudo sobre políticas públicas sociais permitiu identificar como avanços o reordenamento político institucional promovido pela Constituição de 1998; o reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana e da intregralidade dos direitos humanos como direitos fundamentais; a imposição de responsabilidades às instituições na efetivação dos direitos; mudanças profundas de conteúdo, método e gestão das políticas, a elevação dos níveis de qualidade de gestão e a construção de uma cultura institucional de planejamento, controle e avaliação numa concepção pluralista; o reconhecimento dos princípios da democratização, descentralização, diversidade, permanência e imperatividade; a implementação dos mecanismos de controle, monitoramento e avaliação tendo como referente os indicadores universais de desenvolvimento humano; o reordenamento dos papéis dos atores sociais e o fortalecimento da participação da sociedade civil. No entanto a transição das práticas de gestão comprometidas com as necessidades

ainda

encontram

muitos

outros

obstáculos

à

sua

efetiva

concretização, principalmente no que se referente às práticas políticas tradicionais viciadas pela a prevalência de políticas compensatórias; concentração arbitrária do poder; a cultura da caridade e da filantropia; o clientelismo e o patrimonialismo; a

corrupção e o assistencialismo que encerram em suas concepções mitos reproduzidos ao longo de gerações.

REFERÊNCIAS BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007. BUCCI, Maria Paula Dallari, etti alli. Direitos Humanos e Políticas Públicas. São Paulo: Pólis, 2001. COSTA, Antônio Gomes da. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Trabalho Infantil: trajetória, situação atual e perspectivas. Brasília: OIT, São Paulo: LTr, 1994. COSTA, Marli Marlene Moraes da; REIS, Suzete da Silva. Cidadania, participação e capital social na gestão de políticas públicas, Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, jan.-jul, 2009, p. 173-187. ESCORSIM, Silvana Maria. A filantropia no Brasil: entre a caridade e a política de assistência social, Revista Espaço Acadêmico, n. 86, jul., 2008. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/086/86escorsim.pdf. Acesso em 05/04/2013. LIMA, Waner Gonçalves. Política pública: discussão de conceitos, Interface, n. 5, out., 2012. Disponível em: http://revista.uft.edu.br/index.php/interface/article/viewFile/370/260. Acesso em 20/04/2013. MELLER, Diogo Lentz, SOUZA, Ismael Francisco de. Democracia: História, perspectivas e recriação. In: COSTA, Marli M. M. da; PORTO, Rosane T. C.; VEZENTINI, Sabrina Cassol (Orgs.). Direito, Cidadania e Políticas Públicas VII. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2013, p. 227-242. TINÔCO, Dinah Santos; SOUZA, Lincoln Moraes de; OLIVEIRA, Alba Barbosa de. Avaliação de Políticas Públicas: modelo tradicional e pluralista, Revista de Políticas Públicas, São Luis, v. 15, n.2, p. 305-313, jul./dez., 2011.

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