“BAILE MODELO!”: REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS FUNKEIRAS EM CONTEXTO DE PACIFICAÇÃO

July 24, 2017 | Autor: Adriana Facina | Categoria: Slums, Favelas, and Shanty-towns, Baile Funk, Police Pacification Units
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“BAILE MODELO!”: REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS FUNKEIRAS EM CONTEXTO DE PACIFICAÇÃO Pâmella Passos1 Adriana Facina2 RESUMO: Tido como parte importante da complexa composição de identidades juvenis das favelas cariocas, o funk foi escolhido por nossa pesquisa como um dispositivo para analisar os impactos culturais da instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Com a presença constante do policiamento militar, há uma alteração em relação às práticas funkeiras que já são historicamente marcadas por intensa criminalização. Nas páginas deste artigo, pretendemos problematizar as políticas públicas de cultura para o funk, tendo o edital da Secretaria Estadual de Cultura para o Funk (2012) como objeto de investigação e o baile da Chatuba, premiado por tal edital, como um estudo de caso. PALAVRAS-CHAVE: Funk, Pacificação, Políticas Culturais, Baile da Chatuba 1. A criminalização do funk e seu recrudescimento em favelas pacificadas

A criminalização do funk carioca não é fato recente na história do Rio de Janeiro.Inúmeras pesquisas, artigos e livros abordam a temática a partir de diferentes prismas. Cronologicamente falando, podemos datar o início dos anos 1990 como um marco inicial da perseguição ao funk, processo no qual a mídia corporativa teve um papel fundamental. Em 1992, confrontos juvenis nas areias de praias da zona sul carioca tornaram-se o estopim para a demonização do funk e de seus adeptos, em especial seus locais de diversão: os bailes funk, principalmente aqueles conhecidos como “bailes de corredor”, nos quais as brigas entre galeras eram o momento central. Analisando somente a dimensão violenta mais aparente desses confrontos, o discurso midiático e governamental passou a repreender o funk, desconsiderando-o como manifestação cultural. As questões de identidade, pertencimento, rivalidades territoriais que permeavam tais confrontos foram secundarizadas em função de uma sistemática perseguição ao funk, que resultou no fechamento de dezenas de bailes em clubes cariocas. Como desdobramento, os 1

Doutora em História pela UFF, realizando Pós doutorado em Antropologia Social do PPGAS/Museu Nacional/UFRJ. É professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro(IFRJ). Email:[email protected] 2 Doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002), com pós-doutorado pela mesma instituição (2008-2009). É professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/ Museu Nacional/ UFRJ. Tem como principais temas de investigação a criação artística, a produção cultural e as práticas de letramento em favelas e bairros populares . Contato: [email protected] 1

bailes passaram a acontecer quase majoritariamente nas favelas. Sem investimentos de verbas públicas e limitados na captação de recursos privados, os bailes de favelas tinham os comerciantes varejistas de drogas (“traficantes”) como seus principais financiadores. 3 É preciso lembrar que esses chamados “traficantes” também são jovens de origem pobre, em maioria negros, e se identificam com a cultura juvenil funkeira. De lá pra cá a luta dos funkeiros para vivenciar e afirmar seu ofício e prática cultural tem sido árdua. Composto pelos que têm a chance de aproveitar as brechas da indústria cultural que elegem funks que são lançados como sucesso em grandes rádios e programas televisivos e pelos os que têm de permanecer com suas produções e circuitos independentes, o mundo funk resistiu. Nessa trajetória, conquistas importantes devem ser registradas. Em 2008 nasceu a Associação de Profissionais e Amigos do Funk (APAFUNK). Com objetivo de lutar pelo reconhecimento do funk como cultura e melhorar as condições de trabalho dos profissionais desse gênero musical tão representativo da cultura carioca, reuniram-se MCs, DJs e outros profissionais do funk e apoiadores oriundos de movimentos sociais, universidades, imprensa alternativa etc. A primeira vitória importante veio em 2009 com a aprovação da Lei estadual n. 5543/09 que reconhece o Funk como Cultura. Porém, a luta continuava. Apesar da vigência da “Lei do Funk é Cultura”, como foi apelidada na época, as Unidades de Polícia Pacificadora, implementadas a partir de dezembro de 2008, significaram uma atualização da proibição dos bailes, desta vez nos territórios favelados pacificados. Criando suas próprias leis e regras, como a frequente justificativa de que a “comunidade ainda não estava preparada para o funk”, os comandos das UPPS acabavam com bailes, impediam rodas de funk 4 e perseguiam funkeiros. Utilizando-se de um instrumento legal, a “Resolução 013”, normativa que é resquício do regime militar, os Comandantes das UPPs listavam inúmeras exigências, que não eram padronizadas, e nem mesmo muito claras, para realização dos bailes. O resultado é que em

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FACINA, Adriana. Cultura como crime, cultura como direito: a luta contra a resolução 013 no Rio de Janeiro. In: Anais da 29ª Reunião Brasileira de Antropologia. Natal, 2014. 4 A esse respeito ver MONCAU, Luiz Fernando & PIMENTEL, Guilherme. O Funk carioca e a Lei- Problemas e recomendações. In:PASSOS, Pâmella; DANTAS, Aline & MELLO, Marisa S. Política Cultural com as Periferias: práticas e indagações de uma problemática contemporânea. Rio de Janeiro: IFRJ,2013.

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pouco mais de 6 anos de pacificação vimos uma manifestação cultural, o baile funk de favela, ser criminalizado a ponto de quase desaparecer em favelas com a presença de UPPs. Como fruto da luta dos funkeiros e de moradores de favelas, da crítica de pesquisadores militantes e de mídias contra-hegemônicas, surgiram outros caminhos e mediações voltados para a afirmação de um direito cultural: a realização e fruição de bailes funk.O edital destinado ao funk, elaborado pela Secretaria de Estado e Cultura do Rio de Janeiro, é um exemplo desse processo conflituoso e complexo. 2. Editais “para o funk”: conquistas e limites

Em meio a elogios e críticas publicadas na imprensa na época, a Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro (SEC/RJ) lançou, em 2011, o primeiro edital especificamente voltado para o funk. Denominado de “Apoio a Criação Artística no Funk”, tal edital foi alvo de muitas avaliações positivas, visto que foi considerado um importante avanço no sentido da democratização das políticas públicas para a cultura.Mas, ao mesmo tempo, despertou certas iras conservadoras e elitistas que não admitiam que o gênero funk fosse considerado cultura e financiado com verba pública. Muitas dessas críticas foram publicadas como comentários de leitores de jornais on line, tal como demonstra a seleção abaixo5: O pior é pra nós músicos,ouvir alguém chamar isso de música Agora a "eguinha pocotó" é cultura, gente! Funk é cultura???? Então tah justificado o resultado das eleições Funk carioca não é música. Nada mais, nada menos. Que absurdo! Era só que faltava, tantas coisas melhores a fazer em beneficio do povão que trabalha e ajuda esse País, mas os Srs. tem a cara de pau de perder tempo para legalizar essa porcaria que não contribui para formação de cidadãos mas de delinqüentes. Que vergonha ! Daqui uns dias até a dança da chuva vai ser considerada movimento cultural... Música é arte, logo, pra ser música, precisa ter qualidade artística, coisa que Funk não tem, pois não passa de barulho e pouca vergonha... Deixar de investir R$ 500 mil em educação já é horrível. Desperdiçar esse dinheiro com um tal "patrimônio cultural" que é justamente o oposto da educação, pior ainda. Que cada cidadão seja livre pra tocar ou ouvir a música que quiser; mas usar dinheiro do contribuinte pra financiar uma cultura que 5

Comentários retirados de http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/998363-legalizado-funk-ganha-edital-e-festapublica-no-rio.shtml 3

incentiva seres humanos a regredirem ao nível de bestas, aí passaram de todos os limites.

Mesmo com essas reprovações difusas que eram publicadas nos meios de comunicação, essa política teve continuidade.Em 2013 um novo edital para o funk foi lançado pela SEC/RJ. Cientes das dificuldades dos propositores em elaborar um projeto com todas as padronizações que este gênero do discurso possui, a Secretaria novamente criou uma equipe para dar oficinas e assessorar a escrita dos projetos, além de garantir uma caravana que circulou por várias regiões do estado divulgando a iniciativa e tirando dúvidas dos candidatos a proponentes de projetos. Para a reflexão que propomos em nossa pesquisa, analisaremos exclusivamente o edital de 2013, visto que algumas especificidades atendem nossa questão de pesquisa: “os impactos culturais da UPPs”. Cabe destacar que no ano do lançamento deste segundo edital, completavam-se 5 anos da implementação da primeira UPP, localizada no morro Santa Marta. Nesse momento, havia um acúmulo crítico importante, produzido na universidade e fora dela, sobre as UPPs, tanto no que diz respeito à concepção de segurança pública que elas encarnam, quanto no que tange

à atuação concreta dos policiais, sobretudo comandantes, junto à

população dos territórios favelados.Um dos aspectos mais denunciados nesse contexto era a perseguição aos bailes funk e sua proibição. Nesse contexto, a Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Rio de Janeiro divulga a Chamada Pública 13/2013, denominada “Seleção Pública de Projetos de Bailes e Criação Artística no Funk”6. Diferentemente do edital anterior, a chamada era para criação artística, mas também focava nos bailes. Um de seus objetivos era construir um caminho negociado para o retorno dos bailes nas favelas pacificadas, agora em novos moldes. Alguns funkeiros se referiram a esses bailes de modo irônico, chamando os mesmos de “pacificados” ou “permitidões”. E assim,na contramão da política de segurança que proibia bailes funk em regiões pacificadas, a SEC/RJ selecionaria projetos de bailes em favelas com UPPs para serem financiados com recursos públicos. No entanto, de modo contraditório, o que pode ser entendido como uma ação contraposta a um modelo de segurança pública, também pode ser compreendido como uma ação complementar a esse mesmo modelo. Se, por um lado, a SEC/RJ, através de funcionários comprometidos e engajados na causa do funk, contribuiu de maneira significativa para a legitimação das atividades dos funkeiros, ao mesmo tempo 6

Disponível em http://www.favelacriativa.rj.gov.br/ acesso em 27/02/2015 4

recrudesceu o poder da polícia como árbitro de manifestações culturais ao incluir policiais na banca de avaliação de projetos, numa parceria com a Secretaria de Segurança. Tal presença é inédita nos mecanismos de avaliação de editais culturais, apontando para uma prática discriminatória voltada para as produções culturais das juventudes de favelas e periferias. Um dos contemplados pelo edital foi o DJ Byano. Figura histórica do funk, Byano é DJ residente do Baile da Chatuba desde a virada dos anos 1990 para 2000. A quadra da Chatuba, localizada no bairro da Penha, é também conhecida como Maracanã do Funk e ali se realizava um dos bailes mais antigos da cidade, com mais de 30 anos de existência. Com a implantação de uma UPP na localidade o baile permaneceu 5 anos suspenso. Com o objetivo de retomar a realização do Baile da Chatuba nesse novo contexto, Byano concorreu ao edital, do qual ficou sabendo pelo amigo Helcimar Lopes,produtor cultural residente no Complexo do Alemão, que o ajudou na elaboração do projeto. Em suas palavras: O Helcimar falou comigo: “Pô cara, você tá tanto tempo tentando, tentando e não dá em nada. Pô já ouviu falar no edital?” Eu falei: Num sei nem o quê que é isso, falei pra ele o que significa edital? Ele me mandou uma página online eu fui e li tudinho, parecia até uma Bíblia, li tudo, tudo, não entendi nada!(Risos) Fomos lá na Secretária lá. Li, li, li, mas são palavras que pareciam Hebraico. A gente foi lá eu conheci o Tiago, conheci o Alberto... é, é Bernardo, aí na época eu não tinha quase documento nenhum, tirei tudo de novo: certificado de reservista, um monte de coisa que precisava no edital. Demorou um ano também pra ser aprovado. Mas graças a Deus foi aprovado. Hoje a gente tem uma parceria muito forte com o Tiago7, graças a Deus. Porque se não fosse ele isso aqui...8

Como

podemos

perceber

pela

sua

fala,

as

dificuldades

iniciais

eram

muitas:desconhecer o que seja um edital, a ausência de documentação, dentre outros fatores, eram limites reais para a proposição do projeto. Nesse sentido, o papel de parceiros, como define DJ Byano, desempenhado por funcionários da SEC/RJ, foi fundamental para romper as barreiras que separavam o financiamento público para cultura das ações do funk. Nesse sentido, identificamos um importante aspecto de aprofundamento democrático, não apenas na criação deste edital, mas sobretudo na condução de sua execução. Compreendendo as dificuldades e limitações do público-alvo do edital, a Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro proporcionou ações de formação, acompanhamento, esclarecimento para garantir um índice expressivo de participação dos funkeiros no processo seletivo. 7

Os nomes citados referem-se a representantes da Secretaria de Estado e Cultura do Governo do estado do Rio de Janeiro. 8 Entrevista com o DJ Byano, organizador do Baile da Chatuba e contemplado pelo edital da SEC de 2013. 5

Porém, é preciso reconhecer uma dimensão bastante problemática e limitadora nesse processo. A nosso ver, o mesmo edital que avança por apoiar bailes funk e prever oficinas, caravanas e canal de auxílio com dúvidas, retrocede ao colocar em sua banca de avaliação 02 (dois) representantes da área de segurança: 01(um) representante da Secretaria de Segurança Pública e 01 (um) da Polícia Militar. Quando indagado sobre esta temática, um representante da Secretaria de Cultura nos respondeu Tem como falar de funk hoje, é, em comunidades pacificadas ou no interior ou em qualquer outro lugar que seja se a gente não tiver, sem falar com a polícia militar e com a secretaria de segurança? Então o que eu fiz? Vamos chamar a secretaria de segurança, vamos chamar a polícia militar para participar da segunda fase. A primeira fase foi aquele mesmo esquema, a gente fez uma primeira fase era online, as pessoas se inscreviam e aí selecionamos 60 projetos para parte oral. E então na parte oral entrou a Secretaria de Segurança e a Polícia Militar.9

Naturalizando a relação de poder que a polícia estabelece sobre o funk, o representante da Secretaria, a nosso ver, não problematiza a participação dos representantes da segurança pública numa seleção da esfera cultural. A esse respeito, acrescenta:

a estratégia de ter a Polícia Militar e Secretaria de Segurança junto era um pouco essa de validar junto com a gente quais são os bailes que a gente acha que são modelos e que a gente precisa, é, ressignificar mesmo. (...) Então não é criminalizar ele, é ressignificar ele. Não é porque esse cara há dez anos era financiado pelo tráfico de drogas que eu vou criminalizar esse cara, que talvez eu se estivesse no lugar dele com as condições dele teria feito o mesmo. Então não é criminalizar ele é ressignificar esse cara, é trazer ele pro nosso lado. É falar: Amigo, teu baile agora vai acabar as duas da manhã, não pode ter menor, não pode vender bebida pra não sei o que.. E é isso...10

O mesmo Estado que, através de seus representantes da Secretaria de Cultura, se abre para colaborar com o DJ Byano reconhecendo sua cultura e sua profissão no funk, é aquele que,por meio de policiais militares, entrou em sua casa quebrando sua televisão e queimando o sofá porque ele produzia funks que falam da realidade da Penha e que foram nomeados como “Proibidão” ou “Apologia”, tal como relatado em entrevista a nós concedida. 9

Entrevista realizada em 20 de maio de 2014.

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Entrevista realizada em 20 de maio de 2014.

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Carregando na pele as marcas desse Estado opressor que criminaliza o funk, DJ Byano nos mostrou uma cicatriz resultante de queimadura de cigarro feita em seu corpo por policiais que sistematicamente o interrogavam e perseguiam devido a sua produção funkeira. E assim, durante entrevista para nossas pesquisas, ao mesmo tempo que fala das perseguições, violações e limitações sofridas, afirma que está feliz com o retorno do Baile da Chatuba. Como ele mesmo diz, se referindo ao cerceamento do repertório musical a ser executado num baile apoiado oficialmente pelo Estado, “se tem que ser light, será light. Temos que dançar conforme a música”.

3. O Baile da Chatuba: um estudo de caso

O Baile da Chatuba caracterizava-se pelo seu imenso e fiel público. Em entrevista para nossa pesquisa, DJ Byano afirmou que era comum ter mais de 20 ônibus cheios que chegavam de vários lugares para curtir o baile. As caravanas de funkeiros vinham não só do Rio, mas de Minas Gerais, São Paulo e segundo ele até Bahia. Em média, a cada sábado, entre 3 e 5 mil pessoas lotavam a quadra e seus arredores. Além do grande público, uma característica marcante do baile da Chatuba era o seu repertório. Os DJ’s tocavam músicas que falavam abertamente do cotidiano da favela, os chamados “proibidões”, com menções elogiosas ao Comando Vermelho e suas lideranças criminosas locais. O baile também contava com a presença de seus principais patrocinadores, os comerciantes do varejo da droga, que ficavam nos camarotes e se manifestavam no clássico momento no qual o DJ tocava o sampler “Quem quer dinheiro?”, com a voz do apresentador televisivo Silvio Santos, e notas de dinheiro eram jogadas na quadra para o público. Como observamos com nossos próprios olhos e o DJ Byano explicou, as casas no entorno da quadra receberam pequenas reformas para que virassem também comércios onde poderiam ser vendidas bebidas e comidas aos frequentadores do baile. Assim, como disse nosso interlocutor, com o fim do baile muitas pessoas mudaram-se ou fecharam esses pequenos negócios. Além do importante impacto cultural, o fim do “Maracanã do Funk” gerou um grande impacto financeiro. De acordo com Helcimar Lopes, produtor cultural que junto com o DJ Byano escreveu o projeto do Baile da Chatuba para o edital do funk, a quadra onde era realizado o baile tem cerca de 40 anos e sempre foi um local onde a comunidade realizava ações recreativas e eventos, bastando apenas acordar com a Associação de Moradores do Parque Proletário.

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Recentemente, esse espaço sofreu transformações importantes para as quais a comunidade não foi consultada e sequer avisada. Como denunciou Helcimar em seu perfil nas redes sociais, os camarotes da quadra da Chatuba foram ocupados pela UPP, que levantou paredes e deixou apenas pequenas janelas, posteriormente pintando tudo com as cores da Polícia Militar: azul e branco. Tal episódio ocorreu finais de 2014, o Baile da Chatuba já havia ganho o edital, faltando apenas executálo. Desse modo, os camarotes que antes eram usados pelos “traficantes”, agora são ocupados pela PM, deixando clara a demarcação territorial de poder. Como parte dessa disputa territorial simbólica, jovens moradores picharam os “camarotes da UPP” com tinta preta e inscrições de apoio ao Comando Vermelho. Por sua vez, policiais escrevem a sigla TCP (Terceiro Comando Puro, facção rival), em mesas de cimento que circundam a quadra.Nessa disputa de poder simbólico, DJ Byano, entende que as UPPs proíbem eventos culturais como uma espécie de castigo para a população, demarcando assim de modo muito concreto quem são os novos donos do local. Nesse contexto podemos compreender as dificuldades que Byano e Helcimar tiveram de enfrentar na execução de seu projeto. Apesar de contar com o selo da Secretaria de Cultura, eles foram obrigados a adiar a sua execução por meses, pois o comandante da UPP local, policial tido como rígido e evangélico fervoroso que “odeia funk”, se recusava a conceder autorização para tal, mesmo com toda a documentação apresentada e com a verba do edital depositada na conta do proponente. Conversando sobre o processo de submissão do projeto ao edital, Helcimar nos relata:

Aí veio a coisa do edital e fomos fazer o edital, sabe, aquilo foi uma esperança muito grande. Poxa, agora a gente vai entrar na lei, a decisão vai vir de cima, e a gente tava achando que ia ser assim “Opa, se a Secretaria de Cultura autorizou, a Secretaria de Segurança vai abrir as pernas e vai deixar fazer...” esse era o nosso pensamento, então escrevi o edital , sabe, caprichei, passamos, entregamos todos os documentos, a pessoa tem que dar a certidão até da alma pra 20 mil reais só, então fomos selecionados, saímos no Diário Oficial, aí veio a primeira reunião “ Olha gente, a gente vai autorizar o baile mas a Chatuba é emblemática, o Complexo do Alemão é emblemático mais ainda. Temos que ter o ok da Secretaria de Segurança que não foi dado.” Então eles ficam protelando, o primeiro momento era as Eleições, o Baile era pra acontecer em Junho, pra vocês terem noção, o dinheiro já está na conta, o dinheiro já foi depositado na conta11

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Entrevista com Helcimar, produtor cultural do Complexo do Alemão e co-autor do projeto do baile da Chatuba contemplado pelo edital da SEC/RJ de 2013. 8

A protelação na execução do projeto, através da não autorização da realização do baile, somado ao baixo valor financiado pelo edital, são fatores desestimulantes da produção cultural local. As exigências infindáveis e constantes negativas resultam em desestímulo e “aceitação” das regras impostas pelo poder público, como nos detalha Helcimar:

Então o baile do Coroado acontece nesses moldes, então eles querem que a gente se espelhe no baile do Coroado, mas o baile do Coroado sempre foi aos Domingos, e na Chatuba, o Maracanã do funk sempre foi aos Sábados, e se você fizer nos domingos você já perde a característica, eu falei pro Byano, você meio que já perde tudo, então a gente tá meio que numa canoa sem (?), aí eu falei “Cara, então vamos fazer do jeito deles...” então a gente entrou em acordo e vamos fazer.12

O baile do Coroado, realizado na Cidade de Deus é apresentado pela Secretaria de Estado de Cultura (SEC/RJ) como sendo um modelo a ser seguido pelos demais. As características locais em relação aos dias, horários, dentre outros aspectos é ignorada.Os bailes contemplados pelo edital da SEC/RJ deveriam seguir algumas diretrizes que foram explicitadas diretamente aos proponentes: foi tudo muito conversado não só com a gente, mas com todo mundo em aberto, então “ Olha, acabou essa coisa de baile de apologia a sexo, drogas, ou tráfico, o baile tem que ser light.” Tem que ser dessa forma.13

O reconhecimento do funk como expressão cultural financiável pela verba pública veio acompanhado de movimentos de contenção e adequação. O repertório musical, a definição do dia e horários são exemplos das regras que devem ser seguidas para que os projetos sejam executados. Ironicamente, assim como o estádio Maracanã se “adequou” às chamadas “regras internacionais de segurança”, perdendo para isso sua tradição com os torcedores da “geral”, o “Maracanã do funk”também perdeu várias de suas características “em nome da segurança”. O retorno do Baile, produto aprovado pelo edital da SEC/RJ, está agendado para o dia 07/03/2015.Olhares ansiosos aguardam esta data. Funkeiros, moradores, pesquisadores, funcionários do governo, todos estaremos lá, aguardando o Baile da Chatuba ressurgir financiado pelo poder público no contexto pacificado.

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Entrevista com Helcimar, produtor cultural do Complexo do Alemão e co-autor do projeto do baile da Chatuba contemplado pelo edital da SEC/RJ de 2013. 13 Entrevista com Helcimar, produtor cultural do Complexo do Alemão e co-autor do projeto do baile da Chatuba contemplado pelo edital da SEC/RJ de 2013. 9

4. Considerações finais “O funk não é modismo, é uma necessidade, é pra calar os gemidos que existem nessa cidade” MC Bob Rum, Rap do Silva Como indicam os versos do MC Bob Rum, o funk pode ser entendido como uma necessidade cultural da cidade. Neste artigo buscamos usá-lo como dispositivo para pensar o que o discurso em prol da segurança pode legitimar em termos de políticas culturais e também no que diz respeito à relativização de direitos culturais. A questão é: é possível submeter direitos culturais à lógica de uma política de segurança pública militarizada e focada na repressão das camadas populares? Políticas públicas democráticas podem conviver com ocupações territoriais armadas com poderes discricionários atribuídos a seus comandantes? É possível propor políticas culturais dialógicas em contexto de cerceamento da liberdade de expressão? Outro ponto importante é compreender a quem e a que interessa a criação de bailes modelo, vigiados e rigidamente controlados, bem como o impacto dessa padronização no campo da diversidade cultural. Compreendemos que uma política cultural emancipadora dialoga com a diversidade, garantindo condições para a produção cultural na diferença.Por exemplo, criando espaços acusticamente preparados para receber eventos sem incomodar a população ao redor. Como afirmam muitos profissionais do funk que escutamos em nosso trabalho de campo: “se o Estado não atrapalhar, ele já ajuda”.

5. Referências bibliográficas

FACINA, Adriana & PASSOS, Pâmella.Funk pacificado? Reflexões sobre a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s) e seus impactos culturais. In: Derechos Humanos, Democracia y Sistema Económico: mitos y realidades”. No prelo. ______________. Cartilha cultura popular e direitos humanos. Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH). Rio de Janeiro,2014. LOPES, Adriana de Carvalho. Funke-se quem quiser: no batidão negro da cidade carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto: FAPERJ, 2011. PASSOS, Pâmella; DANTAS, Aline & MELLO, Marisa S. Política Cultural com as Periferias: práticas e indagações de uma problemática contemporânea. Rio de Janeiro: IFRJ,2013. RODRIGUES, André & SIQUEIRA, Raíza. As Unidades de Polícia Pacificadora e a Segurança Pública no Rio de Janeiro. In: Comunicações do ISER, nº 67, ano 31-2012.

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