Banalidade do Mal e Terrorismo

May 29, 2017 | Autor: Victor Gonçalves | Categoria: Political Philosophy, Kant, Terrorism, Nietzsche, Banality of Evil
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Banalidade do Mal e Terrorismo


Ultimamente, um conjunto de acções ditas terroristas abalou muitas convicções filantrópicas de base, transmitidas por quase todos os agentes socializadores. Em geral, é-se educado para amar o ser humano porque se acredita que é uma espécie que prefere o bem ao mal. Se se tratasse do oposto, apesar de todos os processos de vinculação especista (um racismo entre espécies), viveríamos num mundo irremediavelmente diferente, tanto que não consigo imaginá-lo (a imaginação também tem limites). Ao mesmo tempo, pois, que sentimos um desgosto profundo pelas vítimas das últimas matanças (na Bélgica, França, Alemanha, Iraque, Afeganistão, Paquistão, Japão, Síria...), últimas mas não derradeiras, erodimos um pouco mais o optimismo antropológico que forma parte importante da nossa confiança, espontânea quase sempre, no mundo e na humanidade. Eclode com violência o sentimento de que há cada vez mais desvairados à solta, incapazes de se renderem ao belo ou ao amor, com a faculdade de admirar bloqueada, isentos de alegria, preferindo o caos estéril à harmonia..., em resumo: loucos sem vontade de viver, recuperando, com mais virulência, o ideal ascético de que nos falou o insuperável Nietzsche.
Neste artigo, traço um perfil do terrorista do século xxi, a partir do conceito de "banalidade do mal" concluirei que no essencial os actuais terroristas são indivíduos carentes de pensamento.

1- Adolf Eichmann, o homem sem pensamento

Vale a pena regressar ao acontecimento histórico, e filosófico, que deu nascimento ao conceito de "banalidade do mal" (the banality of evil, Hannah Arendt), veremos se consegue conjurar a nossa perplexidade, ou pelo menos contê-la dentro dos limites do inteligível. Este conceito, prolífico, resultou da viagem da pensadora, enquanto enviada especial do The New Yorker em 1961 a Jerusalém, ao julgamento do nazi SS Adolf Eichmann (capturado em Buenos Aires em 1960 pelos serviços secretos israelitas), responsável por parte da logística que enviou milhares de judeus para os campos de concentração, enquanto chefe de serviço do departamento IV-B-4, encarregado da "solução do problema judeu na Europa". Eichmann foi acusado pelo júri do tribunal de "crimes contra o povo judeu" (Arendt preferia que tivesse sido "contra a humanidade") e enforcado em Maio de 1962. Arendt publicou primeiro o relato desse julgamento no The New Yorker (artigos entre Fevereiro e Março de 1963) e depois em livro (Eichmann in Jerusalem: A Report of the banality of Evil, New-York: The Viking Press, 1963).
A análise desta pensadora gerou uma acentuada polémica, sobretudo pelo tom irónico que usou e por acusar os Judenräte (Conselhos de Judeus) de terem facilitado as capturas nazis, isto levou mesmo a que a acusassem de anti-semitismo (ela que era, recordamo-lo, judia e tinha fugido da Alemanha hitleriana). Houve, e há, também quem criticasse a ideia de que Eichmann era um ser trivial, banal, um burguês sem especiais fanatismos ou perversidades, tese da autora. Muitos viram-no, pelo contrário, como um burocrata ambicioso, visceralmente impregnado da Weltanschauung (visão do mundo) nazi. O termo "banalidade do mal" serviria, para os críticos de Arendt, como caução à desresponsabilização de Eichmann. Por outro lado, ela teria escolhido caricaturá-lo para exibir um indivíduo-tipo que correspondesse à sua teoria do sistema totalitário, ocultando, ou pelo menos desvalorizando, as suas motivações ideológicas e anti-semitas. Algo que, em boa verdade, Arendt nunca pensou.
Mas contra o senso comum, ela não atribuiu a Eichmann nenhuma monstruosidade ou fanatismo especiais, não o considerou sequer um imbecil, o seu traço de personalidade dominante seria a "carência de personalidade", uma extraordinária superficialidade que a autora designou como "incapacidade de pensar". Mesmo no momento em que foi condenado, continuou a repetir clichés (sobre a fatalidade da morte e dando vivas pífias à Alemanha, Argentina e Áustria), cheio do autocontentamento de quem julga ter cumprido bem uma missão nobre. Assim, a "banalidade do mal" designa, antes de mais, a propensão de Eichmann em utilizar somente frases feitas, sobretudo as inventadas e divulgados até à exaustão pela propaganda nazi. Abstendo-se de tomar consciência, pessoal e crítica, dos seus actos, justamente pela incapacidade de pensar por conta própria, única maneira de perceber a sua circunstância e, sobretudo, a dos outros. Seguindo Aristóteles, a pobreza de pensamento não é congénita, mas da ordem da recusa e da demissão. Eichmann pôs-se voluntariamente e conscientemente no quarto escuro onde julgava poder não avaliar ou conhecer. Esta decisão torna-o, pois, totalmente responsável.
Este "pensar" tem pouco que ver com o "pensar profissional" da filosofia, o qual, denuncia Arendt, se retira do mundo dos fenómenos, das coisas e forças tangíveis. Ela sempre desvalorizou o pensamento técnico, académico e carreirista da filosofia, onde os filósofos se protegem dos acontecimentos intempestivos do real histórico. Por isso, a sua referência ao pensar não exprime qualquer elitismo, tanto mais que foi Sócrates, acima de Martin Heidegger (seu professor e amante) ou Kant, quem verdadeiramente a inspirou, um homem que pensou seriamente, diz, sem se tornar filósofo, permanecendo cidadão no meio de outros cidadãos, não fazendo ou defendendo nada que não pudesse também ser feito ou defendido por cada um dos seus pares. Para Arendt, Sócrates não pretendeu ensinar formalmente a virtude, animou-o reflectir sobre a piedade, a justiça, a coragem, como tornar os homens mais piedosos, justos e corajosos. E por isso escolheu a Crítica de Kant dedicada aos juízos de gosto (Crítica da Faculdade do Juízo, 1790), onde destaca, em primeiro lugar, a capacidade da imaginação intuir objectos que não passaram pelos sentidos (Eichmann poderia assim ter suposto as câmaras de gás mesmo sem as ver); em segundo, o papel do sensus communis na partilha daquilo que sentimos e pensamos dentro de uma comunidade alargada (tendencialmente universal, em Kant); e, em terceiro, o papel dos juízos reflexionantes (ou reflexivos), que, ao contrário dos determinantes, pensam o singular, atendem às circunstâncias particulares, formulando para cada caso um raciocínio que permite conhecer epistemologicamente e evitar a imoralidade. Os juízos reflexionantes são para Arendt política e socialmente mais importantes do que os determinantes, já que a ideia de Verdade abre quase necessariamente para a tirania; só a discussão e o respeito pela diferença de perspectivas pode, pelo contrário, sustentar um horizonte político democrático e liberal (no sentido tradicional, sem o ódio redutor que o termo provoca nos nossos dias em algumas pessoas). Por tudo isto, as actividades de pensar e ajuizar são imprescindíveis simultaneamente à construção de um mundo comum democrático e à prevenção do seu colapso.

2- Banalidade ou radicalidade do mal?

Apesar de ser devedora do pensamento kantiano sobre o "mal radical" (A Religião nos Limites da Simples Razão, 1793), Arendt acaba por recusar esta categoria, substituindo-a pela de "banalidade do mal".
Em Kant, o "mal radical" não emerge de uma base psicológica, intelectual ou ideológica (individual ou colectiva); este filósofo desvia-se assim dos moralistas clássicos, sobretudo neo-aristotélicos, para quem o mal deriva, de uma forma ou de outra, da irracionalidade das paixões ou de patologias incapacitantes. O mal é radical quando se erige contra a lei moral (que em Kant, recorde-se, é intrínseca ao sujeito). E isto acontece porque o homem tem em si mesmo a liberdade (ainda que seja metafísica) de desenvolver boas ou más máximas, não somente este ou aquele homem, mas a totalidade da espécie humana racionalmente desenvolvida. Ora, Arendt vai, depois de elencar os perigos dos unanimismos políticos, socializar e politizar esta liberdade: é assustador, diz, ver pessoas que em situações normais sonham com crimes mas sem terem verdadeiramente a intenção de os cometer, adoptarem comportamentos, em condições políticas e sociais específicas (insensíveis aos crimes contra a humanidade, como aconteceu no regime nazi), escandalosamente criminosos. Por isso, troca o mal radical pelo mal banal, que, na forma como o entende, aparece sempre nas circunstâncias políticas e sociais de permissividade moral e quando os indivíduos se recusam a pensar criticamente (vê-se aqui a luz de Kant e do seu "ousa pensar!" de Was ist Aufklärung?). A questão não está em saber, como em Kant, por que razão pode a liberdade originar anti-máximas morais – assentes sobretudo na mentira –, mas antes que circunstâncias políticas e sociais permitem que uma pessoa banal, ordinária, normal, vença a sua repugnância inata em relação ao crime e se transforme num monstro como Eichmann.
Portanto, para Arendt certas condições sociais e políticas definem o campo da imoralidade, que ainda assim, a história mostra-o com os heróis morais, pode ser superado se se ousar pensar, utilizando os juízos reflexionantes para avaliar cada acção. Eichmann medrou no contexto de uma política totalitária, nacionalista e racista, onde se desenvolveu um "tudo é possível", até a ideia de que certos seres humanos são supérfluos. Mas houve alemães que resistiram, que se revoltaram, que ousaram pensar e por isso se afastaram das trevas nazis. Não foram muitos, mas foram alguns, isso basta para provar a tese de Arendt. E aqueles que o fizeram, exibiram uma coragem exemplar, coragem que Arendt escolhe como principal virtude política, já que além de permitir resistir à alienação do pensamento dominante, força o indivíduo a abrir-se ao mundo e aos outros. Eichmann, cobarde exemplar, fixou-se no seu egoísmo, receoso de não agradar às chefias, de ser desclassificado ou de estagnar na carreira, ele é o paradigma do anti-herói. Obedecer e preservar uma boa consciência determinaram a sua conduta, tanto que no julgamento de Jerusalém dirá que viveu toda a sua vida segundo os preceitos morais de Kant, e, principalmente, cumprindo o seu dever, justificando-se com esta paráfrase do imperativo categórico: "Quero dizer, a propósito de Kant, que o princípio da minha vontade deve sempre ser tal que possa tornar-se o princípio de leis gerais."

3- Niilismo terrorista e banalidade do mal

Os terroristas do século xxi buscam o pleno de sentido agarrados à linguagem da morte, alucinados por deus (o que impede uma relação séria com ele) ou pelo desejo de vingança. Alguém que mata indiscriminadamente e depois se suicida, procura, antes de mais, sentido indiscutível, definitivo. Marcando com sangue os últimos gestos vitais, quebra-se o compromisso dialógico – fundamento do Ocidente –, fecha-se o círculo vicioso do desespero. Os terroristas de hoje querem fugir do nada procurando a Verdade através de um salto quântico. Nietzsche pensava que o niilismo decorria da morte de Deus, concluindo na Gaia Ciência que a sua superação se faria num ateísmo pós-nacionalista de cariz europeu. Ora, parece que o primeiro impulso niilista dos terroristas religiosos actuais, os predominantes (líderes do mercado do horror), está nesse mesmo ateísmo, o principal estímulo para matarem é rejeitarem a elisão de deus, não a sua morte, mas o esquecimento insuportável dos "infiéis". Talvez alguns vejam aqui mais uma variação da "morte de deus", eu defendo que se trata antes do seu renascimento, naquilo que tem de mais primário: a destruição e a transcendência (só no regresso à Terra se relativizou a dicotomia puro/impuro).
A "banalidade do mal" de Arendt experimenta um retorno à imanência, neste caso política e social, da moralidade, desviando-se da metafísica transcendental kantiana. Trata-se de aprofundar a secularização: pôr a moral com os pés na Terra, espalhá-la pelo mundo das coisas concretas, inoculá-la no viver comum dos homens, historizá-la. É por isso que, seguindo a ideia de Michel Foucault acerca do fascista que habita em todos nós, o mal espreita em cada pulsão da vida sociopolítica. Banalizar o mal significa, pois, estendê-lo a todas as situações de vida. Mas para evitar amálgamas ou uma naturalidade que minimize actos realmente cruéis, é necessário compreender porque só alguns, como Eichmann ou os actuais delinquentes convertidos em terroristas, caem na maldade sistemática e sem freios.
A primeira pergunta, que o politicamente correcto evita colocar, é de onde vem esse ódio que os "terroristas" nutrem pelo Ocidente, pode-se estabelecer um paralelo com o ódio nazi aos judeus? O anti-semitismo foi, primeiramente, o bode expiatório do fracasso alemão pós 1.ª Guerra, corporizando depois o nojo racista de os "eleitos" conviverem com estranhos à sua visão do mundo, julgando que boicotavam "a mais luminosa das civilizações". Ou, serão, diferentemente, sujeitos incapazes de viverem em comum, auto-excluindo-se de qualquer projecto colectivo, procurando apenas conjurar a sua frustração totalmente egoísta? Há ainda uma terceira via, talvez a mais fecunda e próxima das teses de Hannah Arendt. Os terroristas são, à semelhança de Eichmann, seres banais, preocupados com detalhes insignificantes: aumentar o prestígio teológico, vingarem-se dos seus próprios falhanços, impor um poder arbitrário.... têm, com certeza, alguma crueldade e perversidade, mas, por aquilo que se conhece das suas biografias, são, em geral, ou seres introvertidos com pouca auto-estima, ou pequenos delinquentes, que esporadicamente praticaram actos de baixa violência. Os crimes de gravidade extrema que acabaram por cometer não foram determinados por impulsos mefistofélicos. Isto torna, paradoxalmente, as suas acções mais aterradores; como não resultam de um mal demoníaco interiorizado, se, pelo contrário, são perpetrados por seres normais, então podemos identificar-nos com eles, são crimes de humanos como nós, feitos por seres terrível e assustadoramente banais. Se pudermos compreender por um qualquer processo de isomorfismo o que se passa com os terroristas, então ao mesmo tempo que nos responsabilizamos, em segundo grau, pelo que fizeram, visto resultarem da espécie biológica e moral a que pertencemos, tendemos também a justificar, ainda que parcialmente, os acontecimentos. É por esta razão que Primo Levi, sobrevivente da Shoah, escreve em Se Isto é um Homem (1947): "Talvez não se possa compreender o que se passou, e não deva mesmo ser compreendido, na medida em que compreender é quase justificar."
Na minha perspectiva, porém, não apenas devemos compreender como, partindo do princípio de que são seres banais, é impossível, excepto por um gesto arbitrário de eliminação teórica, isentá-los dessa mesma compreensão. Uma linha interpretativa, inserindo-os inteiramente na "banalidade do mal", lê-os como indigentes intelectuais, o que realmente são. Durante muito tempo, tempo que se prolonga na actualidade, os desvios morais eram vistos pelo prisma da empatia, da falta dela. Praticava o mal quem era incapaz de se pôr no lugar do outro que sofre (por isso, em Rousseau a piedade é a "repugnância inata em ver sofrer o seu semelhante"). Esta tese não carece totalmente de significado, mas creio que os loucos cruéis de hoje são sobretudo desmiolados que simploriamente buscam sentido na obediência a qualquer coisa que erigem como muito maior do que eles e os seus semelhantes. Pode ser deus ou um qualquer fantasma que obnubila ainda mais a sua indigência mental. Aliás, Eichmann invocou a obediência para justificar a sua actuação, vendo-se como um funcionário exemplar, embora mal reconhecido, que cumpria escrupulosamente ordens. Arendt desmontou este argumento afirmando que, na verdade, só as crianças obedecem, os adultos consentem, por isso não se deve perguntar "por que razão obedeceu?", mas "por que razão consentiu?".
Assim, os terroristas são seres banais que encontram sentido na obediência cega, acrítica, a promessas de felicidade que exigem sofrimento e morte. "Matarás e ganharás o céu!", "matarás e vingarás o que te fizeram!", "matarás e limparás o mundo de impuros!" (teologismo ou racismo)... Mas para isso não se pode pensar, é preciso bloquear os juízos reflexionantes que com certeza revelariam a imbecilidade do plano, curto-circuitando as tentativas de provocar terror e libertando os alienados da submissão aos mestres tenebrosos do século xxi. Pensar é a única forma de superar este novo niilismo assente na obediência, que contraditoriamente parece buscar um pleno de sentido (querendo compensar uma dissipação de sentido real e possível), quando, finalmente, apenas reforça os gestos e as crenças sobre a inutilidade da vida, glorificando absurdamente a dor e a morte. Por outro lado, a exigência de um pensamento pessoal combate à nascença o idiota adormecido em cada um dos que são capturados pelo islamismo, que numa certa perspectiva vive disso mesmo, alimentando-se dos indivíduos social e politicamente desenquadrados, uma burocracia teológica cheia de conversa fiada que se fanatizou para engolir ao acaso umas quantas vidas. E aqui talvez discorde de Arendt, não será o político e o social a principal causa da emergência do terrorismo, mas o incontrolo dos instintos mais básicos contrários ao direito de viver. Fazendo um paralelo com o que disse esta pensadora sobre a resistência exemplar de alguns alemães ao Nacional Socialismo, também na nossa época, apesar do ressentimento social, de bastantes vezes parecer legítima a vingança indiscriminada, da falta de esperança que queima muitos desculturalizados, apesar disto tudo e outro tanto, todos os indivíduos são capazes de pensar, têm o dever de pensar, de, como defendia Sócrates, exercerem a virtude humana de ter uma vida de pensamento. Só desta forma a vida, toda a vida, será sacralizada.

Victor Gonçalves
Agosto/Setembro de 2016



Até um certo ponto, é verdade que o regime nazi procurou evitar que se individualizasse a matança de judeus, daí ter apelado a uma necessidade histórica, elidindo a responsabilidade, moral e legal, individual, exigindo apenas que tudo fosse feito eficientemente. O mesmo se passou na União Soviética, os gulags tinham burocratas que cumpriam a lei e o desígnio da grande nação, sem se mostrarem pessoalmente implicados.
As boas máximas orbitam em torno de "Age de tal forma que queiras que as máximas da tua acção se transformem numa lei universal" e, secundariamente, "Trata sempre os outros [seres racionais] como um fim e nunca como um meio" (versões, mais do que traduções literais).
Citado em Eichmann in Jerusalem. Kant põe a máxima acima da vontade, é ela que verdadeiramente conta. Por outro lado, Eichmann esqueceu outro imperativo moral, o de nunca tratar qualquer ser racional como um meio, mas sempre como um fim em si mesmo.
Um certo Ocidente, bastante suspeito, aliás, para o multiculturalismo acrítico. Sobre esta querela, recordo as palavras vividas de Salman Rushdie, referindo-se aos perigos do multiculturalismo quando respondeu aos escritores do PEN que boicotaram a condecoração de Charlie Hebdo: "quem defende, em nome do interculturalismo, princípios hostis ao liberalismo e à tolerância adopta uma postura reaccionária."
Nietzsche pensa o niilismo fora da tradição da sua época, que o atribuía aos anarquistas radicais russos, apelidados de "terroristas", sobretudo Sergey Nechayev. Talvez tenha sido influenciado por Ivan Turgenev, que descobriu por volta de 1870, e, a partir de 1887, pelas leituras de Dostoïevski, numa tradução/versão francesa dos Cadernos do Subterrâneo (no Crepúsculo dos Ídolos, considera que foi o único psicólogo que lhe ensinou alguma coisa), e, antes disso, na exposição crítica de Ferdinand Brunetière, Le roman naturaliste, 1884, sobretudo o cap. sobre Tchernychevski. Conhecia também a carta de 1799 de Friedrich Heinrich Jacobi a Johann Gottlieb Fichte, onde aquele acusa este de com o idealismo decapitar a moral transcendente e divina, garante da ordem do mundo.
Mesmo se entendermos que Mefistófeles "como todas as outras criaturas engendradas pela criatividade poética, é um dos desdobramentos possíveis do humano, a irrupção do excesso destrutivo do espírito do homem como recusa da medida." (Maria Filomena Molder, As Nuvens e o Vaso Sagrado, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 79).
Como refere René Guitton no seu Dictionnaire amoureux de l'Orient (Dicionário Amoroso do Oriente): "O Médio Oriente trouxe o melhor e o pior à humanidade. O melhor, sem qualquer dúvida, foi o ideal de justiça veiculado pelas três grandes religiões monoteístas. O pior é esta raiva homicida que faz do homem um lobo para o homem, já simbolizada no trágico conflito entre Abel e Caim."
Alain Finkielkraut, cujos autores preferidos são Milan Kundera e Hannah Arendt, encontrou já em 1987, com a La Défaite de la pensée (A Derrota do Pensamento, Dom Quixote, 1988), indícios claros de uma nova menorização do pensamento, que começou por ceder a um frenético hedonismo consumista e talvez tenha acabado nesta nova tendência de fanatismo terrorista. Dizia ele: "O pensamento cede lentamente o lugar à terrível e irrisória face do fanático e do zombie."
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