Banalização do mal e a humanidade sob pressão

May 24, 2017 | Autor: R. Bahia de Souza | Categoria: Hannah Arendt, Zygmunt Bauman, Criminologia, Filosofia do Direito, David Bowie and music
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Rodrigo Bahia de Souza. Advogado Criminalista e Civilista. Pós Graduando pelo Centro Universitário do Pará (CESUPA). Graduado em Direito pela Universidade da Amazônia (UNAMA). Membro da Comissão de Segurança Pública da OAB/PA. Membro do Instituto Paraense do Direito de Defesa. Membro do Grupo de Pesquisa Direito Penal e Democracia. Correio eletrônico para contato: [email protected] e [email protected]

Brazil neo-Nazi claim challenges myth of nation's racial harmony. Disponível em https://www.ft.com/content/f9ee01ca-ce49-11e6-864f-20dcb35cede2. Acessado em 11 de Janeiro de 2016.
http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/11/opinion/1484149442_585187.html?id_externo_rsoc=Fb_BR_CM. Acessado em 11 de Janeiro de 2016.
https://noticias.terra.com.br/brasil/policia/cniibope-46-da-populacao-e-a-favor-da-pena-de-morte,0d88a6bfcef1b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html. Acessado em 11 de Janeiro de 2016
http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,pesquisa-mostra-que-6-em-10-brasileiros-acham-que-bandido-bom-e-bandido-morto,10000086016. Acessado em 11 de Janeiro de 2016
https://ninja.oximity.com/article/Cad%C3%AA-os-direitos-humanos-Entrevi-1. Acessado em 11 de Janeiro de 2016.
Em primeiro lugar, o deslocamento do enfoque teórico do autor para as condições objetivas, estruturais e funcionais, que estão na origem dos fenômenos do desvio. Em segundo lugar, o deslocamento do interesse cognoscitivo das causas do desvio criminal para os mecanismos sociais e institucionais através dos quais é construída a 'realidade social' do desvio, ou seja, para os mecanismos através dos quais são criadas e aplicadas as definições de desvio e de criminalidade e realizados os processos de criminalização. (BARATTA, Alessandro.Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à Sociologia do Direito Penal.Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ªed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 160)

BECKER, Howard. Outsiders – Estudos de Sociologia do Desvio. Rio de Janeiro. 2008, p. 9
SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 2ª ed. Curitiba: Lúmen Júris. 2006, p. 19
ARGUELLO,Katie. Do Estado social ao Estado Penal: invertendo o discurso da ordem. 1º Congresso Paranaense de Criminologia. 2011. p. 11. Disponível em: http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2013/01/Artigo-Katie.pdf
"É difícil lembrar, e ainda mais difícil compreender, que há não mais de 50 anos a disputa sobre a essência dos prognósticos populares, sobre o que se deveria temer e sobre os tipos de horrores que o futuro estava fadado a trazer se não fosse parado a tempo se tratava entre o Brave New World de Aldous Huxley e o 1984 de George Orwell. (BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar. 2001. p. 41)
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Rio de Janeiro: BRADIL. 1969. p.21

Idem. p. 24
op. cit. (Huxley, p.294)
"Trabalho físico pesado, cuidados com a casa e os filhos, disputas menores com os vizinhos, filmes, futebol, cerveja e, antes de mais nada, jogos de azar, preenchiam o horizonte de suas mentes. Não era difícil mantê-los sob controle. Alguns representantes da Polícia das Ideias circulavam entre eles, espalhando boatos falsos e identificando e eliminando os raros indivíduos considerados capazes de vir a ser perigosos. (Orwell, p.91)
(Huxley.p.68)
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras. 2009. p. 109
Op cit. p.66
Nigel Thrift teria talvez classificado as histórias de Orwell e Huxley como "discurso de Joshua" e não como "discurso do Gênesis".1(Discursos, diz Thrift, são "metalinguagens que ensinam as pessoas a viver como pessoas".) "Enquanto no discurso de Joshua a ordem é a regra e a desordem, uma exceção, no discurso do Gênesis a desordem é a regra e a ordem, uma exceção." No discurso de Joshua, o mundo (aqui Thrift cita Keneth Jowitt) é "centralmente organizado, rigidamente delimitado e histericamente preocupado com fronteiras impenetráveis". Op. cit. 42
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p.14
http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2017/01/temer-cita-necessidade-imperiosa-de-fazer-presidios-e-anuncia-um-no-rs.html
http://politica.estadao.com.br/blogs/coluna-do-estadao/presidente-da-ajufe-defende-construcao-de-presidios-federais/
CALLEGARI. André Luís; WERMUTH. Maiquel Ângelo Dezordi. Sistema penal e política criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.p. 56
Op. Cit. p. 97
Banalização do mal e a humanidade sob pressão

- por Rodrigo Bahia de Souza

'Cause love's such an old fashioned word.
And love dares you to care for
The people on the edge of the night.
And loves dares you to change our way
Of caring about ourselves.
This is our last dance.
This is our last dance.
This is ourselves
Under pressure.

- David Bowie feat. Queen, Under Pressure

Palavras-chave: Banalização do Mal; Criminologia; Sistema Penitenciário; Hannah Arendt; Zygmunt Bauman

Resumo: O presente artigo se propõe a ter uma visão jusfilosófica além da, clara, corrente da criminologia crítica sobre o problema carcerário atualmente vivido no Brasil. Utilizando a metodologia de análise de dados apresentados sobre o panorama de pesquisas feitas através de entrevistas em periódicos eletrônicos e com o magistrado e criminólogo amazonense Luiz Carlos Valois. Fazendo ainda um traçado pelas correntes de pensamento do sociólogo Zygmunt Bauman (dialogando com as obras literárias Admirável Mundo Novo e 1984, de Aldous Huxley e George Orwell, respectivamente) e da respeitável filósofa alemã Hannah Arendt em sua ensaio Eichmann em Jerusalém.





Abstract: The present article tries to estabilsh na enlightment on the jusphilosofical vision besides, somewhat, the current of the Critical Criminology, on the crisis of the Brazilian Penal System. Utilizing the metodology of data analysis catch upon surveys published in eletronical magazines and a conversation inside the whereabouts of the judge criminologist amazonense Luiz Carlos Valois. Taking the road through the thoughts of the polish sociologist Zygmunt Bauman (carrying on a dialogue with two literary Works Brave New World and 1984, from Aldous Huxley and George Orwell, respectively) and the germany respectable philosopher Hannah Arendt on her essay Eichmann in Jerusalem.

No dia 10 de Janeiro de 2016 a exatamente um ano atrás faleceu um dos maiores artistas que esse mundo já conheceu, se chamava David Robert Jones ou apenas, David Bowie. Nascido na cidade de Brixton na Inglaterra deixou um legado musical inigualável, mas aqui vamos destacar apenas uma canção do seu vasto repertório artístico: Under Pressure (Sob pressão - https://www.youtube.com/watch?v=a01QQZyl-_I)

Escrita praticamente sozinha por Bowie em uma jam session com John Deacon, foi lançada em 26 de outubro de 1981 junto com a banda Queen, originalmente intitulada People on Streets (pessoas nas ruas), a canção é quase que um protesto contra a pressão de viver em um mundo em que famílias são separadas, onde multidões caminham sem saber exatamente para onde e nem porquê, o consumismo desenfreado tornando os indivíduos nas coisas que consomem, o amor se tornando um sentimento fora de moda. No meio desse turbilhão dessa modernidade líquida em que os valores se liquefazem ficam as perguntas: que mundo é esse? Haveria alguma saída dele?

É com esse estarrecimento que vemos tudo o que vem acontecendo no Brasil e no mundo e tem deixado a nós, intelectuais, juristas, ou mesmo parcela da humanidade, chocados.

A exemplo do que tenho a ilustrar é o recente artigo publicado pela Financial Times intitulado "Brazil neo-nazi claim challenges myth of nation's racial harmony" (algo como "O movimento neo-nazista brasileiro está desafiando o mito da democracia racial).

O artigo do Jornal americano em questão escrito por Joe Leahy põe o deputado Federal Jair Bolsonaro como personagem central deste lamentável movimento que alguns tem chamado de "cultura do ódio" em nosso país.

Senão vejamos, se faz evidente que se trata de uma situação alarmante que nos deve provocar a nossa reflexão, pois como bem retratou o escritor e colunista do jornal El Pais, Luiz Ruffato; associando inclusive aos recentes massacres no Sistema Penal Brasileiro (na Penitenciária Anisio Jobim em Manaus (AM), culminando na morte de 56 detentos e na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (RR) levando a morte de 33 detentos), o pensamento fascista no território brasileiro prolifera.

E não é somente este deputado que faz coro ao discurso punitivista no Congresso Nacional brasileiro, o também deputado federal Major Olimpo desafiou os presos do Complexo Penitenciário de Bangu (RJ) a cometer massacres que ultrapassassem a brutalidades dos episódios recentes.

Se faz salutar ainda demonstrar que a voz parlamentar é reflexo das demandas populares, pois como bem colacionado pelo colunista uma pesquisa realizada no mês de Outubro do ano de 2011 observou que 46% dos brasileiros são favoráveis à pena de morte (31% defendem totalmente e 15%, em parte), 79% defendiam penas mais rigorosas para os criminosos, a prisão perpétua aceita por 69% e 86% defendiam a redução da maioridade penal. (CNI/IBOPE 2011) e 57%, ou seja, 6 em 10 dos brasileiros concordam com a frase "bandido bom, é bandido morto" (FBSP/Datafolha 2016).

A leitura que podemos fazer desses dados é que a maioria da população brasileira já não confia mais no regime democrático pautado na defesa dos Direitos Humanos, inclusive, como bem relatou o magistrado manauara Luiz Carlos Valois em recente entrevista no site Midia Ninja, essa mesma sociedade mal sabe o que são eles ou mesmo a quem eles servem:

"Direitos humanos não é um senhor de terno e gravata, não é isso, não existe isso, é de todo mundo, cada um que reinvindique o Direito Humano do próximo, seu e de quem ele quiser. Se você tá reclamando cadê o Direitos Humanos, por quê não vai buscar os Direitos Humanos? Por quê tu não vira o Direitos Humanos defensor das vítimas? Por quê a sociedade que reclama o direitos Humanos da vítima não forma uma Associação de Defesa dos Direitos Humanos das vítimas? Toda vez que um direito atinge uma pessoa que não pode reivindica-lo isso é Direitos Humanos, e o preso tá preso."

O magistrado prossegue revelando que a responsabilidade de um juiz é justamente assegurar a observância de tais direitos, tendo em vista, via de regra, não ser possível ao preso pleiteá-los por conta própria: "eu não sou Madre Teresa de Calcutá, eu não gosto de preso, meu trabalho é defender direito do preso. Eu vejo o meu trabalho com responsabilidade."

Vale ressaltar que ele ainda faz relação das rebeliões com o discurso da palavra "bandido" no qual o magistrado ressalta muito bem que não há etmologia que relacione este adjetivo, p.ex. na língua anglo-saxã:

"Inclusive eu acho que uma das causas dessa rebelião é esse momento que agente está vivendo, um momento de ódio, esse negócio de "bandido bom é bandido morto" passa para o preso, quando o preso matou o bandido, todo o bandido ruim é o outro, a gente não é o "bandido" ruim. Porque "bandido" todos nós somos, é uma palavra que não tem nem tradução no inglês só pra tu ter uma idéia, não tem "bandido" nas outras línguas, "bandido" é uma palavra que só tem em português. Por quê não é criminoso? Acusado? Condenado? "Bandido" pode ser o político, pode ser o meu vizinho (esse meu vizinho é "bandido", esse cara é um "bandido", esse taxista é um "bandido"), tudo é bandido, tudo pode ser bandido. É o conceito que se encaixa onde eu quero, dependendo do meu preconceito."

E o magistrado ainda ressalta a estrita relação dos processos de criminalização (Baratta) com a retroalimentação desse discurso de ódio no atual momento histórico-político que a sociedade vive:

"Nasce no Brasil uma coisa dessa, com uma disparidade de renda enorme em uma desigualdade social enorme, e aí a gente cria esse negócio do ódio aí cria a palavra bandido e os presos como a palavra bandido se encaixa em tudo, os presos encaixaram na deles ("bandido é o estuprador, não sou eu que furtei". Bandido é o "x9" (sic) que dedura para a polícia, isso é um bandido")."

Assim, podemos denotar que fica bem clara a opção do autor de utilizar a lente da Criminologia Crítica que admite algumas questões como pressuposto para realizar a leitura do fenômeno do crime em sociedades capitalistas neoliberais nas quais o "bandido" é tradicionalmente identificado como sendo o homem, jovem, em situação de risco, morador da região metropolitana ou de outras comunidades marginalizadas e periféricas, e com envolvimento com o tráfico de drogas. Também a definição de cor de pele como pardo ou negro aparece como um estigma do "bandido". Essas características ou estigmas acompanham essa denominação de "bandido" ou criminoso.

Tratando-se, porquanto da sabida Teoria da Rotulação ou labeling approach, fundamentando-se essa corrente do pensamento em dois conceitos: o primeiro de que "o desvio não é uma qualidade do ato, mas a consequência da aplicação de outras regras e sanções a um delinquente." Estas outras regras e sanções são criadas pela sociedade, por grupos sociais que fazem as regras e dizem o que constitui um desvio. Ou seja, um ato é definido como crime de acordo com um interesse maior que influencia as agências de controle social.

E o segundo de que são as agências de controle social que produzem o crime, e não o crime que dá origem ao controle social, uma vez que podem ser rotuladas as pessoas que sequer tenham quebrado uma regra, de acordo com fatores da personalidade ou sua condição pessoal de vida.

O homem é rotulado quando pratica um ato qualificado como desviante, processo chamado de criminalização primária, ou seja, dá-se a criação de uma norma penal que qualifica o ato como criminoso, enquanto a criminalização secundária ocorre quando os agentes de controle social enquadram um ato praticado por um sujeito nas condições da criminalização primária.

No entanto, é necessário indicar o porquê de tais regras que rotulam e criminalizam esses hábitos pessoais e sociais. O labeling approach é a base teórica na qual se funda então a Criminologia Crítica, a qual altera o objeto de estudo da criminalidade para os meios de criminalização, para as agências de controle social, pois elas são os agentes de criminalização de condutas e pessoas pela seleção de qualidades atribuídas por meio dos processos de interação social, "segundo a distribuição de poder na sociedade. (…) A criminalidade deve ser reconhecida como um 'bem negativo' (Sack), desigualmente distribuído na sociedade, segundo uma hierarquia de interesses estabelecidos pelo sistema socioeconômico e a desigualdade social."

Toda essa violência hobbesiana que se atribuído da máxima de Plauto "lupus est homo homini non homo" (o homem é um lobo aos seus iguais), denota é apenas um reflexo desse culto de ódio na sociedade, que tal qual um vulcão latente esperando para explodir espalhando lava a devastar tudo que vier em seu caminho.

Faz importante anotar que esse discurso de ódio renasce junto com a pós-modernidade e a cultura do consumo da Modernidade Líquida traduzida por Zygmunt Bauman, sociólogo polonês (e ousamos a dizer, uma das mais importantes, senão a mais, personalidade intelectual do século XXI) que faleceu no dia 09 de Janeiro do corrente ano de 2017.

Bauman em seu livro "Modernidade Líquida" associa ao que ele chamará de pós modernidade a diversas obras literárias, ao qual fazemos destaque a duas em especial, são elas: O admirável mundo novo de Aldous Huxley e 1984 de George Orwell.

Na obra de Huxley A história, publicada em 1931, é futurística, distópica e carregada de uma reflexão crítica sobre o destino da humanidade. Sob a máxima "Comunidade, Identidade, Estabilidade" encontramos uma sociedade onde o fordismo revigorou-se até um ponto extremo. Henry Ford (1863-1947) é considerado um messias, reverenciado por toda a população civilizada. Com mais exatidão, Huxley propunha que a sociedade chegaria a esse patamar no século VII "depois de Ford" – como conta o calendário do Novo Mundo.

Num mundo caótico no qual a guerra é ininterrupta e presente no dia-a-dia, o governo é controlado por um Partido que monitora rigidamente a população, sobretudo através de teletelas que existem em todos os lugares: tanto públicos quanto privados. Tais teletelas servem para transmitir mensagens oficiais e programas rotineiros, mas também para observar os indivíduos, seja visualmente ou sonoramente - ela te vê e te escuta vinte e quatro horas por dia, sempre. Porém, este não é o único método utilizado pelo Partido para supervisionar. Eles possuem uma burocracia complexa, membros especializados na captação de condutas - e pensamentos - rebeldes (até os traços faciais são analisados) e a própria guerra para alienar os membros do Partido Externo. A sociedade praticamente não possui mobilidade social e é dividida em três estamentos ou classes: Núcleo do Partido, do qual fazem parte os indivíduos mais abastados e controladores, Partido Externo, composto pela massa supervisionada, e os Proletas, indivíduos abandonados na miséria e à margem de todo o sistema.

Traçando um paralelo com à obra cinematográfica steam punk Matrix podemos também dizer que "existem campos sem fim onde os humanos não nascem mais, são cultivados". Os campos, no entanto, são os laboratórios do D.I.C. (Centro de Incubação e Condicionamento), onde humanos são criados em proveta e, muitas vezes, clonados em grande número. O Estado é responsável pela educação das crianças e a Família foi abolida – assim como a religião, a monogamia, o pudor e a senilidade. Desde fetos até morrerem todos são condicionados para agirem de acordo com sua posição em um funcional sistema de castas.

Revoltante? Não para os civilizados de Huxley. O ponto-chave dessa sociedade é que todos seus homens e mulheres são completamente felizes.

O soma, o entorpecente que hoje conhecemos como metanfetamina foi imaginado na obra de Huxley como a fuga de toda e qualquer pessoa desse futuro. A droga sem efeitos colaterais aparentes acalmando a população e ajudando a fugir de qualquer conflito que se pudesse presenciar; na obra de Huxley observamos um controle rigoroso do hedenismo social experimentado pela sociedade, que encontra-se tão envolvida em galgar e manter o status quo governamental que a eles se torna suportável boatos falsos e a eliminação dos raros inidivíduos considerados capazes de vir a ser perigosos.

Todavia cabe salientar que, como em qualquer sociedade, existem casos de fuga dos padrões. Os que "despertam para a vida" são excluídos, não apenas pelo Estado mas por todos aqueles com quem convivem. Os "excêntricos" são mandados para ilhas, onde vivem em uma comunidade excomungada e mais esclarecida.

Um dos fatos mais notáveis desse novo mundo é a forma como uma política de impessoalidade pôde contribuir para a própria felicidade individual. O Estado está tão preocupado com sua ordem, com seu sistema, que procura garantir o bem-estar psicológico de todos os homens. Quando questionado se ao humano não é necessário um pouco de tristeza, de adrenalina e de emoções fortes que somente a desgraça pode trazer, o Administrador Mundial responde dizendo que:

"Foi por isso que tornamos obrigatórios os tratamentos de S.P.V – Sucedâneo de Paixão Violenta. Regularmente, uma vez por mês, irrigamos todo o organismo com uma torrente de adrenalina. É o equivalente fisiológico completo do medo e da cólera. Todos os efeitos tônicos provocados pelo assassínio de Desdêmona e pelo fato de ser assassinada por Othello, sem nenhum dos seus inconvenientes." 

A guerra constante do mundo de Orwell torna-se paz justamente por ser constante – e aqui podemos fazer um paralelo e entender porque a violência foi banalizada em nosso mundo, porque não nos assustam mais as notícias terríveis dos noticiários – e, creio, a felicidade constante do mundo de Huxley torna-se uma espécie de guerra para todos aqueles que não estão habituados a ela.

Ambas visões grandiosas sobre um futuro distópico (ao contrário das "utopias" que analisam um mundo perfeito aos olhos da filosofia moral, as distopias são lugares ou estados imaginários em que se vive condições de extrema opressão, desespero ou privação).

O pensador polonês inclusive associa-as com os prognósticos de temores e sobre os tipos de horrores aos quais o mundo estaria fadado, fato é que estas obras haviam sido publicadas a mais de meio século antes da era que vivemos.

Prenuncia o pensador polonês no capítulo do qual discorre sobre o caráter individualista da sociedade contemporânea, que este é um traço determinante da sociedade do espetáculo, ou, como ele prefere denominar, sociedade do consumo, que restringe as liberdades, ampliando o controle.

Importante salientar que para confirmar tal assertiva, ele nos remete a ideia entre os sociólogos de duas passagens bíblicas, os capítulos de: Gênesis e Josué (Joshua).

Em Gêneses a desordem seria a regra, enquanto a ordem uma exceção, por sua vez em Josué a ordem é a regra e a desordem uma exceção.

Por esse motivo vemos que ele relaciona as obras distópica dentro do discurso de Joshua, um mundo ordeiro rigidamente controlado (o que neste contexto seria a mídia de massa). Tudo servindo a algum propósito, esse mundo não teria espaço para o que não tiver seu uso ou propósito (aqui poderíamos inserir aqueles que são selecionados pelos processos de criminalização), ou seja, para um mercado produtivo, naturalmente aqueles que não servirem para os meios de produção naturalmente serão criminalizados.

O fato é que com o avanço da automação (substituição da mão de obra humana, pela maquina – cf. as teorias do fordismo e toyotismo) uma massa maior de indivíduos serão colocados como inutilizáveis, por assim dizer, aos processos de produção capitalistas. Sendo assim, isso acaba por se reproduzir no que chamamos de "encarceramento em massa", prisões cada vez mais superlotadas, tornando-se um verdadeiro depósito humano, aumentando assim a vigilância panóptica do "Grande Irmão", as agências do sistema penal e o Estado se tornam o "olho que tudo vê" e a vigilância se torna a essência da sociedade.

E a própria sociedade acaba aceitando e inclusive gostando do estado de miséria em que se encontra, daí surge o fenômeno da "banalização do mal" no qual Hannah Arendt em sua obra Eichmann em Jerusalém disserta sobre o tema ao ponderar no Julgamento de Eichmann que o funcionário público do Estado Nazista havia cometido tais atrocidades acobertadas pela legalidade e legitimidade conferida pelo Estado e pela sociedade.

Na década de 60, Adolf Eichmann fora captado e transportado para a cidade santa dos Judeus, Jerusalém, por determinação das tropas israelenses, onde se esperava que fosse ocorrer o mais famoso julgamento de um algoz nazista. Eichmann até então, considerado como um ser imaginado pela mitologia, sanguinolento, mostra-se, durante o processo, alguém muito diferente das expectativas alheias quanto à sua personalidade.

Eis que, deparam-se com um servidor público de pouca monta, uma pessoa que tinha por objetivo primordial vencer na vida a todo custo, cheio de esperanças, incapaz de refletir sobre as consequências de suas ações, e; impossibilitado de escapar da grande fúria dos que assistiam ao grande espetáculo do julgamento.

Se fazendo relevante destacar:

"Existe um outro lado dessa questão, mais delicada e politicamente mais relevante. Uma coisa é desentocar criminosos e assassinos de seus esconderijos, outra é encontrá-los importantes e prósperos no âmbito público — encontrar nas administrações estadual e federal e, geralmente, em cargos públicos inúmeros homens cujas carreiras floresceram no regime de Hitler. Claro, se a administração Adenauer fosse exigente demais para empregar funcionários com passado nazista comprometedor, talvez não houvesse administradores de nenhuma espécie."

No fim das contas a grande maioria dos funcionários do Estado nazista eram como Eichmann, isto é, o próprio Estado reproduzia a violência. Desta feita se faz compreensível, embora nunca aceitável, entender o porquê o brasileiro v.g opta por ecoar o discurso do punitivismo e porquê a saída do Governo Federal sempre é a construção de mais presídios, inclusive trata como 'imperiosa' essa medida, até mesmo a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) faz a defesa de novos presídios, todas essas medidas populistas só servem para corroborar com a sociedade do espetáculo e vigilância:

"A construção de novas prisões, a redação de novos estatutos que multiplicam as infrações puníveis com prisão e o aumento das penas – todas essas medidas aumentam a popularidade dos governos, dando-lhes a imagem de severos, capazes, decididos e, acima de tudo, a de que "fazem algo" não apenas explicitamente pela segurança individual dos governados, mas, por extensão, também pela garantia e certeza deles" (Callegari e Wermuth, 2010)"

Bilhões de reais a serem investidos na construção de mais penitenciárias que infligiram mais dor e sofrimento (penitenciária: penitência (dor) – portanto um local de dor e sofrimento), ao invés de serem destinados aos investimentos na Educação Pública de qualidade, reduzindo assim as mazelas sociais, incentivando o desenvolvimento econômico e social.

Um Estado que pune um grande número de condutas e condena um seleto grupo de pessoas (aqueles que não tem utilidade produtiva para o mercado, em sua gigantesca maioria), se torna aceitável e até mesmo admirável o discurso bandido bom é bandido morto.

Mas não podemos e nem devemos aceitar isso, devemos reagir, a função de resistência do jurista e do cidadão que se encontra abismado neste mundo líquido é o verbo resistir.

Como salienta Bauman:

"A busca da identidade é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme. Lutamos para negar, ou pelo menos enconbrir, a terrível fluidez logo abaixo do fino envoltório da forma; tentamos desviar os olhos de vistas que eles não podem penetrar ou absorver. Mas as identidades, que não tornam o fluxo mais lento e muito menos o detêm, são mais parecidas com crostas que vez por outra endurecem sobre a lava vulcânica e que se fundem e dissolvem novamente antes de ter tempo de esfriar e fixar-se." 

É reconhecer as mazelas, entende-las mais principalmente buscar através do diálogo buscar resoluções dos conflitos de forma autônoma como proposto pela técnica da Justiça Restaurativa (Albert Eglash; Joe Hudson e Burt Galleway), é reestabelecer o discurso democrático, acreditar nele, disseminá-lo. Para isso devemos nos valer da pesquisa científica, bem como das artes e da literatura e para o resgate do contemplamento à natureza e da consolidação desses valores.

Resistir a passividade de se acomodar ao status quo do discurso do ódio, é lutar pelo seu inverso, batalhar sempre por um mundo de mais compaixão, solidariedade, comunhão.

Porque no fim das contas é como diz o Starman "o amor te desafia a se importar com as pessoas no limite da noite, e o amor desafia você a mudar o nosso modo de nos preocupar com nós mesmos. Esta é a nossa última dança. Isto somos nós mesmos. Sob Pressão." Pressão...


Rodrigo Bahia de Souza é Advogado Criminalista e Civilista. Pós-graduando em Ciências Criminais pelo CESUPA (Centro Universitário do Pará). Graduado em Direito pela UNAMA (Universidade da Amazônia). Membro da Comissão de Segurança Pública OAB/PA e da Comissão de Defesa da Pessoa com Deficiência OAB/PA. Membro do Instituto Paraense do Direito de Defesa e do Grupo de Estudos Direito Penal e Democracia.
REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

ARGUELLO, Katie. Do Estado social ao Estado Penal: invertendo o discurso da ordem. 1º Congresso Paranaense de Criminologia. 2011. p. 11). Disponível em: http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2013/01/Artigo-Katie.pdf

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar. 2001.

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à Sociologia do Direito Penal.Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ªed. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

BECKER, Howard. Outsiders – Estudos de Sociologia do Desvio. Rio de Janeiro. 2008.

CALLEGARI. André Luís; WERMUTH. Maiquel Ângelo Dezordi. Sistema penal e política criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Rio de Janeiro: BRADIL. 1969.

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras. 2009

SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 2ª ed. Curitiba: Lúmen Júris. 2006.

LEAHY, Joe. Brazil neo-Nazi claim challenges myth of nation's racial harmony. Disponível em https://www.ft.com/content/f9ee01ca-ce49-11e6-864f-20dcb35cede2. Acessado em 11 de Janeiro de 2016.

RUFFATO, Luiz. O culto fascista da violência. Disponível em: http://brasil.elpais. com/brasil/2017/01/11/opinion/1484149442_585187.html?id_externo_rsoc=Fb_BR_CM. Acessado em 11 de Janeiro de 2016.

ALCANTARA, Diogo. CNI/IBOPE: 46% da população é a favor da pena de morte.
Disponível em https://noticias.terra.com.br/brasil/policia/cniibope-46-da-populacao-e-a-favor-da-pena-de-morte,0d88a6bfcef1b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html. Acessado em 11 de Janeiro de 2016

CARVALHO, Marco Antônio. Pesquisa mostra que 6 em 10 brasilieros acham que "bandido bom é bandido morto. Disponível em http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,pesquisa-mostra-que-6-em-10-brasileiros-acham-que-bandido-bom-e-bandido-morto,10000086016. Acessado em 11 de Janeiro de 2016

VALOIS, Luiz Carlos. "Cadê os Direitos Humanos?" Entrevista com Luiz Carlos Valois, juiz de Manaus. Disponível em https://ninja.oximity.com/article/Cad%C3%AA-os-direitos-humanos-Entrevi-1. Acessado em 11 de Janeiro de 2016.

Editorial do G1 RS. Temer cita 'necessidade imperiosa' e anuncia presídio federal no RS. Disponível em http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2017/01/temer-cita-necessidade-imperiosa-de-fazer-presidios-e-anuncia-um-no-rs.html. Acessado em 11 de Janeiro de 2016.

MATAIS, Andreza. Moraes de. Marcelo. Presidente da Ajufe defende construção de presídios federais. Disponível em http://politica.estadao.com.br/blogs/coluna-do-estadao/presidente-da-ajufe-defende-construcao-de-presidios-federais/. Acessado em 11 de Janeiro de 2016.


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