Bancos, lei antitruste e a decisão do Ministro

June 28, 2017 | Autor: J. Veiga da Rocha | Categoria: Antitrust (Law), Central Banking, Bank Competition, Financial market and antitrust
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19/08/2014 ­ 05:00

Bancos, lei antitruste e a decisão do ministro Por Jean­Paul Veiga da Rocha

O Supremo Tribunal Federal (STF) finalmente terá que se manifestar sobre um importante problema jurídico­ econômico do país: quem cuida da concorrência no sistema financeiro, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) ou o Banco Central (BC)? A recente decisão monocrática do Ministro Dias Toffoli não tratou do mérito, apenas afirmou que o Tribunal não deve disso se ocupar, por não ser matéria constitucional. Segundo ele, o problema já foi resolvido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Cabe recurso ainda perante o próprio STF. O caso possui equívocos de interpretação. O STJ afirma que os bancos não podem se submeter a dois reguladores ao mesmo tempo, mas isso é desprezar a diversidade de desenhos institucionais existente no Brasil e no mundo, com vários reguladores cooperando entre si. Além disso, as autoridades de defesa da concorrência não são reguladores ­­ elas não criam normas de conduta para as empresas, mas aplicam a lei antitruste para julgar mudanças estruturais (fusões) e condutas das empresas (como cartéis), podendo impor sanções. Essa falha interpretativa do STJ levou a outra ­­ de que haveria um conflito de atribuições a ser resolvido pelo princípio da especialidade, ou seja, a lei do BC, de regulação financeira, prevaleceria sobre a lei do Cade. Ora, esse argumento só faz sentido para quem enxerga um conflito onde ele não existe. Mesmo se existisse, a "especialidade" seria do Cade, e não do BC, pois a lei do BC não trata de antitruste. O que se espera é que o STF decida harmonizar as competências do Cade e do BC, pondo fim a uma longa querela Em direito econômico, é sempre importante interpretar de acordo com a finalidade da norma: agências reguladoras existem para regular um determinado campo da economia, enquanto autoridades antitruste existem para atuar em todos os setores. O STJ, ao não compreender essa dinâmica institucional das sociedades capitalistas contemporâneas, tomou uma decisão que distorceu completamente a Ordem Econômica da Constituição, criando uma imunidade antitruste para o sistema financeiro, sem previsão nem das leis nem no texto constitucional. O STF é a última instância em que esse equívoco pode ser corrigido, a partir de uma interpretação que harmonize o Sistema Financeiro (art. 192 da Constituição) com os princípios gerais da Ordem Econômica (art. 170) o princípio da repressão ao abuso do poder econômico (art. 173, § 4°). Não é razoável que o STF, guardião da Constituição, feche os olhos para esse problema, com o argumento de que não se trata de matéria constitucional. Questão muito parecida já foi julgada pelo próprio Supremo, quando decidiu que o Código de Defesa de Consumidor deve ser aplicado aos bancos. Aceitar julgar um caso e não o outro seria contradição flagrante. Além de incluir claramente matéria constitucional, é inegável que o Recurso Extraordinário interposto pelo Cade para levar o assunto ao STF também preencheu um outro requisito exigível pelo Tribunal: a repercussão geral, ou seja, a discussão de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassam os interesses das partes envolvidas no processo.

Do ponto de vista prático, a criação pelo Poder Judiciário de uma imunidade antitruste para o sistema financeiro seria um retrocesso para o projeto de modernização das relações econômicas no País. A decisão do STJ dá a entender que admitir a atuação do Cade no sistema financeiro, em relação complementar com o BC, seria transplantar para o direito brasileiro uma prática norte­americana. Essa compreensão é equivocada. Além de compatível com a Constituição e com as leis brasileiras, a tese da complementaridade predomina na maioria dos países membros da OCDE, inclusive como parte da reflexão prática e teórica pós­crise (ver, por exemplo, os relatórios da OCDE posteriores à crise, ou mesmo a recente reforma regulatória britânica). O que se discute hoje no mundo não é o estabelecimento de privilégios antitruste para o mercado financeiro mas, ao contrário, como aprofundar os estudos sobre o trade­off entre estabilidade financeira (risco sistêmico) e concorrência, e como aperfeiçoar a cooperação entre órgãos reguladores e as autoridades antitruste. Além disso, estas últimas são órgãos não­setoriais, portanto mais blindados em relação aos interesses organizados específicos de determinado segmento da economia. Embora haja controvérsia sobre o entendimento da decisão do STJ, há ainda o risco de que, mantida como está, ela também venha a atingir a investigação de condutas anticoncorrenciais pelo Cade (a esse respeito, é importante lembrar que o escândalo envolvendo o cartel de bancos para fixação da taxa Libor está sendo investigado pela autoridade antitruste europeia, o que seria impossível se por lá existisse a tal imunidade). E mais: pouco se comenta a respeito, mas aquela decisão poderia eventualmente ser interpretada como abrangendo não somente os bancos, mas instituições financeiras de todas as espécies. A lei antitruste serve para impor o capitalismo aos capitalistas. Seria patético, se não trágico, se o mais importante tribunal brasileiro sucumbisse aos argumentos ad terrorem que evocam o risco sistêmico e chancelasse, por ação ou omissão, tamanho privilégio ao mercado financeiro. O que se espera é que o Supremo decida de modo a harmonizar as competências do Cade e do BC, encerrando de uma vez por todas essa querela que se arrasta há mais de uma década. Jean­Paul Veiga da Rocha é professor da Faculdade de Direito da USP e co­organizador do Livro "Concorrência e regulação no sistema financeiro" (Max Limonad, 2002).

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