Baptismo e baptistérios durante a Antiguidade Tardia no Império romano Ocidental. O exemplo de Vila Verde de Ficalho (Beja, Portugal)

July 15, 2017 | Autor: Mélanie Wolfram | Categoria: Archaeology, Early Christianity, Early Christian baptisteries, Roman Lusitania
Share Embed


Descrição do Produto

Baptismo e baptistérios durante a Antiguidade Tardia no Império romano ocidental O exemplo de Vila Verde de Ficalho (Beja, Portugal)

M é l a n i e Wo l f r a m 1 | António M. Monge Soares2

¹ ²

Investigadora integrada do CHAIA – Universidade de Évora IST/ITN – Universidade Técnica da Universidade de Lisboa

Introdução Um dos primeiros sacramentos da religião cristã foi o baptismo, seguindo os passos do Cristo, baptizado no rio Jordão. Existem poucas informações acerca das primeiras formas de baptismo. Nas primeiras décadas após a morte de Cristo, os judeo-cristãos – e depois os pagãos – eram convertidos pelos apóstolos e discípulos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo com água e uma imposição das mãos, pensando -se assim que esta seria a forma primitiva de incluir um gentio ou pagão na nova comunidade. O mais antigo baptistério conhecido no mundo mediterrânico será o da domus ecclesia de Doura-Europos, no Eufrates (a actual Síria), em que a piscina baptismal se localiza dentro de uma divisão decorada com frescos ilustrando o sacramento (Pietri, 1997: 127 e seg.). Para o mundo ocidental, não se conhecem baptistérios anteriores ao século V d.C., talvez por terem sido durante muito tempo praticados em sítios naturais como rios ou fontes ou por terem utilizado mobiliário/ espaços já existentes, designadamente as termas. A construção de baptistérios está intimamente ligada à definição do próprio sacramento. O primeiro tratado, por Tertuliano (De Baptismo), explicando pormenorizadamente os vários passos do baptismo no Norte de África data do início do século III. A necessidade de escrever sobre os sacramentos revela como a liturgia não estava ainda definida por aquela altura, não significando, no entanto, que fosse imediatamente adquirida. A prova de que o baptismo devia decorrer de forma ainda bastante liberal é a grande diversidade na construção dos baptistérios, diversidade que encontramos também nas próprias igrejas, durante toda a Antiguidade Tardia (Khatchatrian, 1962). De facto, entre o século IV e talvez até ao início da Alta Idade Média, quando o rito litúrgico romano é adoptado pela igreja hispânica no decorrer do século XI, a palavra de ordem para o mundo cristão é «diversidade» (Duchesne, 1920). A partir do século IV, várias dezenas de concílios se reúnem para definir os dogmas contra as heresias, definir a liturgia, controlar a construção de igrejas e os hábitos do clero, gerir uma comunidade cada vez mais importante. No entanto, pouco se fala ainda do espaço físico. A maior liberdade no mundo cristão primitivo revela-se na variedade destes espaços. Antigas villae em que uma parte é reutilizada como igreja, antigas necrópoles onde um mausoléu se transformará numa basílica, antigos templos reconvertidos, termas abandonadas onde se aproveita o espaço para uma igreja ou, raramente, construções ex-nihilo (Wolfram, 2011). Talvez seja esta diversidade de condicionantes que não permite aos investigadores perceber de forma clara quais as influências e quais os caminhos que a religião cristã tomou na Península Ibérica. Influências norte-africanas, bizantinas ou itálicas, acesso da religião através dos portos marítimos e fluviais ou através das vias terrestres do interior. O que mais se verifica, localmente, mesmo antes de qualquer tipo de influência, é a adaptação de um espaço já existente para um novo ritual que demorou várias décadas ou séculos a ser rigorosamente definido.

55

BAPTISMO E BAPTISTÉRIOS DUR ANTE A ANTIGUIDADE TARDIA NO IMPÉRIO ROMANO OCIDENTAL

1. Evolução histórica do baptismo A palavra baptismo vem do grego e significa «imergir». Esse ritual não é uma invenção cristã. Vários movimentos judaicos, como por exemplo, os Essénios já o praticavam como purificação do corpo e da alma (Mébarki e Puech, 2002). O baptismo significa morte (do pecador) e ressurreição (do novo Homem, limpo dos pecados). Com o tempo, «baptismo» significa todo o processo sacramental a ele ligado através do qual o catecúmeno rompe com o pecado e as seduções do demónio, entra numa nova relação, pela fé, com Deus, e a partir daí faz parte da nova comunidade. Este processo durava no mínimo três anos e implicava uma tal dedicação e tomada de consciência por parte do catecúmeno, ao ter que entender os novos conceitos de pecado e assumir viver sem eles, que o pedido para passar à última etapa, a do baptismo propriamente dito, era frequentemente adiado. Para se perceber o impacto deste ritual de passagem na vida das pessoas é preciso conhecer os textos de Tertuliano e de Santo Agostinho, que iremos em seguida descrever. A primeira fase de catecumenato no tempo de Tertuliano definia-se por um largo período de provas e de reflexão. Em primeiro lugar, anunciava-se ao clero responsável (o bispo ou clero superior) o desejo de se converter. Esse pedido era aceite após um primeiro exame rápido, em que o postulante tinha que aceitar renunciar a qualquer ligação idólatra e estar disposto a converter totalmente os seus hábitos. Santo Agostinho descreve que era praticado um exorcismo naquele momento: imposição das mãos e prática da exsufflatio para afastar o Mau de dentro do indivíduo. Após uma rápida instrução em que o postulante é iniciado às grandes verdades cristãs e às exigências fundamentais da moral cristã, o postulante torna-se «catecúmeno» e pode participar na missa. Tem somente o direito de ouvir a liturgia da Palavra, pelo que também é chamado nos textos audiente. No tempo de Santo Agostinho, os audientes recebiam o sinal da cruz na testa para marcar esse momento e tinham um lugar especial na igreja. Começava, então, um longo período de formação, de duração ainda indeterminada na época de Tertuliano, em que os catecúmenos são iniciados nos Mistérios da Escritura e recebem um ensinamento aprofundado, sistemático, sobre as verdades fundamentais, como a unidade do Deus todo-poderoso, o nascimento virginal de Cristo, a Incarnação, etc. No tempo de Santo Agostinho, a duração desta formação foi estabelecida em três anos. Esta catequese dividia-se entre a narratio (história da Salvação) e a exhortatio (ensinamento escatológico sobre a crença na ressurreição, sobre as novas regras de conduta). A partir deste momento e em períodos de crise (morte iminente, perseguições), o catecúmeno podia ser rapidamente baptizado por um laico. Em tempo normal, era preciso passar à segunda fase do catecumenato. No tempo de Santo Agostinho, esta segunda fase era ainda tão receada que, por vezes, os catecúmenos a adiavam até ao momento da morte. De facto, a penitência era implacável para qualquer fiel, isto é baptizado, que voltasse a pecar. Preferiam serem baptizados no leito da morte para não sofrer tal penitência. A segunda fase do catecumenato decorria algumas semanas antes da Páscoa. Se a preparação do catecúmeno era considerada como suficiente pelo bispo ou pelo clero responsável, este

MÉL ANIE WOLFR AM | ANTÓNIO M. MONGE SOARES

56

podia propor candidatar-se para avançar no processo do baptismo. Nesta fase, os catecúmenos audientes tornam-se competentes. No tempo de Santo Agostinho, este período começa com a Quaresma e definia-se como uma fase mais activa do processo, com um carácter penitencial muito acentuado. Passa-se um novo exame frente ao bispo, seguido por várias semanas de últimas instruções. No tempo de Tertuliano, esta fase não é explícita – parece que o bispo só se queria assegurar das disposições morais do catecúmeno. Alguns dias antes do baptismo, o bispo ou clero superior ensinava a reza dominical que os competentes teriam que recitar de cor durante a Eucaristia depois de baptizados. Durante estes dias, o catecúmeno devia multiplicar os actos pessoais de penitência (rezas, jejuns, vigílias, etc.) para, por um lado, mostrar a sua sinceridade e, por outro, expulsar o demónio que ainda vivia dentro dele. No tempo de Santo Agostinho já existiam formulários mais estereotipados em que os catecúmenos tinham que prometer renunciar ao mundo e aprendiam a tripla instrução sobre a fé, as rezas e o baptismo. Era ensinado o Símbolo ou a disciplina do Arcano (os sacramentos da Eucaristia), que não era divulgado a não ser naquele momento. A fase penitencial era acentuada e eram praticados mais exorcismos com exsufflatio. A seguir, passava-se ao baptismo propriamente dito. No tempo de Tertuliano, a liturgia baptismal ainda era simples, mas já existiam os rituais básicos que serão sempre seguidos, com variantes e acrescentos, consoante as regiões do Império. O calendário pascal tornar-se-á cada vez mais preciso e os diferentes momentos destas fases, durante o ano, serão organizados progressivamente com mais rigor. Segundo Tertuliano, numa manhã (geralmente no Domingo de Páscoa), durante o nascer do Sol, toda a comunidade cristã acompanha o catecúmeno à piscina baptismal. O bispo abençoa a água. O catecúmeno despe-se e entra na piscina, pronunciando a sua abjuração a Satanás. O bispo impõe-lhe as mãos como sinal do começo de uma nova vida. O catecúmeno é imergido três vezes de seguida, em que cada vez tem que dizer a profissão da fé (em nome da Trindade). No século VI, sabe-se que, na Península Ibérica, era mais usual uma única imersão para acentuar a consubstancialidade da Trindade, enquanto que a tripla imersão costumava ser mais praticada pelos Arianos (povos germânicos). Mas a tripla imersão considerada como um acto único, de que fala Tertuliano, era a prática romana de origem (cf. carta de Vigilius a Profuturus datada de 538 in Maciel, 1996: 63). Após a imersão, o recém-baptizado sai da piscina e é untado de um óleo santo. O bispo impõe-lhe outra vez as mãos. Nesta fase, existem variantes consoante as regiões, tal como a benção com o crisma, a qual Tertuliano não refere, e que terá muita importância nos séculos seguintes. O neófito veste-se (ainda não se fala de roupa branca, hábito que parece mais tardio), entra no santuário (na parte reservada ao clero) e recita a oração dominical. Recebe o beijo da paz e participa, pela primeira vez, na Eucaristia. Após o baptismo, o neófito regressa todos os dias durante uma semana para ouvir a catequese. Agora iluminado, poderá perceber os mistérios nos quais foi iniciado.

57

BAPTISMO E BAPTISTÉRIOS DUR ANTE A ANTIGUIDADE TARDIA NO IMPÉRIO ROMANO OCIDENTAL

1.1 O baptismo das crianças No tempo de Tertuliano, já se colocava a questão do baptismo das crianças, uma vez que se questionava o interesse de baptizar seres que não tivessem consciência, isto é, que não pudessem escolher livremente seguir o catecumenato. Tertuliano aceitava o baptismo de crianças desde que já tivessem idade de serem instruídas, de perceber o que representa a fé em Deus e em Cristo. Dois séculos depois, esta questão continuava polémica. Santo Agostinho não teve logo uma opinião positiva acerca do baptismo das crianças, mas ao longo da sua vida defendeu cada vez mais esse acto (Treffort, 1996: 41). As razões dessa evolução são teológicas e inserem-se nas discussões entre Santo Agostinho e Pelágio acerca do pecado original e a do livre árbitro, que não discutiremos aqui. Segundo Santo Agostinho, as crianças nascem já pecadoras e a única salvação delas é o baptismo. Esta será a ideia que prevalecerá na Igreja Católica até hoje em dia. 2. O baptistério da Igreja de São Jorge de Vila Verde de Ficalho O baptistério de Ficalho, cuja planta inédita é apresentada aqui, pela primeira vez, em pormenor [Figs. 1, 2 e 3], foi descoberto e escavado em 1991 por um de nós (AMMS). A escavação dos vestígios arqueológicos existentes em redor da igreja de São Jorge começou, em 1980, quando se decidiu adaptar aquela igreja a Museu de Ficalho. A igreja de São Jorge foi construída na primeira metade do século XVI, com a particularidade de reutilizar elementos arquitectónicos romanos na sua construção: o púlpito assenta sobre um fragmento de coluna e uma base de coluna e no chão há duas lajes de mármore de São Brissos, igualmente reaproveitadas. Desde, pelo menos, o início do século XIX, funcionou um cemitério no sector a Norte da igreja, que se estendeu, mais tarde, por toda a zona Sul até ao

Fig. 1 Planta geral do Sector A. General plan of Sector A.

MÉL ANIE WOLFR AM | ANTÓNIO M. MONGE SOARES

58

Fig. 2 Planta do baptistério. Plan of the baptistery.

Fig. 3 Alçado do baptistério. Elevation of the baptistery.

Eirado (edifício da antiga Câmara de Ficalho). Este cemitério funcionou até 1921, data em que o novo foi construído fora da localidade. A igreja de São Jorge foi abandonada, umas dezenas de anos antes dessa data, quando foi erigida a Igreja Matriz a uma centena de metros a Sul, na actual praça principal da vila. Quando se procedeu à limpeza da canalização que percorre o limite oriental do sector Norte, e que ressurge a Sul da igreja, descobriu-se que a mesma era de época romana, razão pela qual se iniciaram as escavações arqueológicas. Várias campanhas de escavação se sucederam, tendo sido definidos dois sectores: o sector A, a Norte da igreja, e o sector B, a Sul. Verificou-se, infelizmente, que o cemitério e o ossário, construído aquando do encerramento do cemitério, destruíram grande parte das estruturas antigas, revolvendo a maior parte da estratigrafia existente anteriormente. A escavação arqueológica revelou que a canalização referida atrás continua por baixo da igreja e acaba, no sector B, num depósito de decantação de água (que assenta sobre uma estrutura anterior) antes de continuar para um grande tanque rectangular revestido a opus signinum (Antunes-Ferreira e Soares, 2009, fig. 1). Apesar das grandes destruições efectuadas pelas sepulturas dos séculos XIX e XX, as estruturas romanas parecem poder corresponder às de uma mansio, provavelmente a Fines do Itinerário Antonino. Em 1934, a algumas dezenas de metros a Sudeste (perto da antiga estrada alcatroada para Espanha, a Norte da Igreja Matriz),foi registado o aparecimento de vestígios de um hipocausto. No entanto, as escavações no sector B revelaram, na zona Norte, reaproveitamentos tardios das estruturas romanas, com vários compartimentos pavimentados a opus signinum e com revestimento parietal pintado. Várias sepulturas tardias foram descobertas embutidas na argamassa da igreja, mas a descoberta de uma sepultura com uma placa de mármore datada de 626

59

BAPTISMO E BAPTISTÉRIOS DUR ANTE A ANTIGUIDADE TARDIA NO IMPÉRIO ROMANO OCIDENTAL

(Antunes-Ferreira e Soares, 2009; Dias e Soares, 1987) permitiu confirmar que se trata de uma basílica paleocristã, que reutilizou um espaço pré-existente da pars rustica de uma villa ou parte de uma mansio romana. A actual igreja de São Jorge foi construída por cima da basílica paleocristã, o que não deixa de ser interessante, uma vez que estamos diante de edifícios construídos no lapso de dez séculos podendo, no entanto, este facto ser uma indicação da existência de uma outra igreja, medieval, da qual sepulturas dos séculos XIV/XV, existentes parcialmente por baixo ou junto à parede Sul da Igreja, constituirão mais um indício. A sobreposição da igreja de São Jorge com a nave central da basílica é quase exacta, uma vez que os compartimentos visíveis nos sectores A e B são quase paralelos aos muros da igreja quinhentista e faziam, provavelmente, parte das naves laterais da basílica paleocristã. O edifício religioso paleocristão teria uma orientação Este-Oeste, ligeiramente mais virada a Norte (WNW-ESE) do que a actual igreja. A intervenção de 2010, que decorreu sob a responsabilidade dos autores e que está na base desta comunicação, centrou-se no sector A, por conseguinte a Norte da igreja de São Jorge e consistiu, essencialmente, na limpeza e desenho (que ainda não tinha sido efectuado) das estruturas existentes neste sector [Fotos 1 a 4]. A área total da intervenção é de cerca 112 m2 e insere-se entre os muros Norte e Este do antigo cemitério e a Igreja de São Jorge. Definiram-se quadrículas (q) dentro deste rectângulo; a abcissa numerou-se, de Oeste a Este, de 1 a 16 e a ordenada, de Norte a Sul, de A a G. A implantação do ponto zero encontra-se ao nível da canalização romana, a meio da parede da igreja de São Jorge. Este ponto zero não coincide com o utilizado Foto 1 Vista geral do Sector A, para oeste. Westwards overview of Sector A.

Foto 2 Piscina baptismal vista para oeste. Baptismal pool, westwards view.

Foto 3 Pormenor da escada sul da piscina baptismal. Detail of the South stairs of the baptismal pool.

Foto 4 Pormenor do opus signinum em meia-cana contra a parede oeste da piscina. Detail of the half-cane opus signinum against the western wall of the pool.

MÉL ANIE WOLFR AM | ANTÓNIO M. MONGE SOARES

60

nas intervenções anteriores, pelo que, num futuro próximo, se tentará uniformizar num único sistema de cotas absolutas os sistemas até agora utilizados. As estruturas actualmente visíveis [Fig. 1] são já as dos períodos romano e tardio (entre as cotas -1,82 m e -0,99 m), tendo ficado perto da canalização uma área totalmente por escavar3, onde ainda existem níveis com cronologias posteriores (entre as cotas – 0,94 e – 0,09). Infelizmente, não foi possível escavar estas camadas por falta de tempo, tendo-se procedido unicamente ao levantamento exaustivo das estruturas visíveis. Aproveitou-se, no entanto, algum do tempo não passado na intervenção de campo para fazer uma revisão do material «diagnóstico» recolhido, a maior parte dele descontextualizado, nas escavações dos anos oitenta e noventa. No Quadro 1 apresenta-se um histograma referente à terra sigillata recolhida nesses anos. Quadro 1 · Table 1 Fragmentos de terra sigillata recolhidos nos anos oitenta e noventa do século XX Fragments of terra sigillata collected in the 1980s and 1990s.

   ! Itálica · Italian ! Sud-Gálica · Sud-Gallica ! Hispânica · Hispanic

  

! Africana A · African A ! Africana C · African C ! Africana D · African D

   

Muros 1, 2, 3, 4, 7 e 9 Para uma melhor leitura da planta levantada [Fig. 1] será necessário abstrair-se das várias covas posteriores causadas pelas inumações modernas e pelo ossário, a Este da piscina baptismal. Por baixo do muro Norte da igreja de São Jorge foram encontradas as fundações de um muro ligeiramente orientado para WNW-ESE, que fará certamente parte do muro exterior da nave Norte da igreja paleocristã, adiante chamado muro 9. Como foi em grande parte restaurado na sua parte superior, só foi indicado o perfil visível. No futuro será realizado o alçado deste muro, identificando a parte escavada da parte original. Perpendicular a este muro 9, o muro 1 (7 m de comprimento por 50 a 60 cm de largura) percorre o lado ocidental do terreno (q1G até q1A), de Sul para Norte fazendo um canto em q1A e continuando perpendicularmente com o muro 2 para Este num comprimento de 3,20 m (até q4A), provavelmente com a mesma largura (parte coincidente com o fim do terreno e o ³

61

Deverá notar-se que em nenhum local da área ocupada pela basílica paleocristã se escavou até à rocha-mãe. Apenas no exterior, a Oeste, se escavou até à rocha-mãe tendo sido registado um possível fosso com cronologia do Neolítico final, bem como cerâmica dispersa da II Idade do Ferro (Soares, 1994, 1996).

BAPTISMO E BAPTISTÉRIOS DUR ANTE A ANTIGUIDADE TARDIA NO IMPÉRIO ROMANO OCIDENTAL

muro do cemitério). Estes dois muros são os únicos feitos com pedras relativamente grandes, ligadas com pedras mais pequenas mas sem utilização de fragmentos de tijolos ou cerâmica, o que parece revelar uma construção mais recente. Após um espaço vazio de 30 cm (provável destruição posterior) um muro continua no eixo do muro 2, que será aqui chamado muro 2B, num comprimento de 12 m com algumas interrupções posteriores (ao nível da q7 e q8, talvez por causa da sepultura V7 e do ossário do século XX que cortou alguns centímetros do muro ao nível das quadriculas q10 e q11) até encostar-se à canalização romana a Este do terreno. Este muro tem uma largura que varia entre 56 cm e 68 cm, é realizado com algumas pedras grandes, muitas pedras médias, fragmentos de tijolos de tamanho médio e pequeno assim como pedras pequenas. Em algumas zonas é possível ver restos de argamassa, modo construtivo revelando uma maior antiguidade relativamente aos muros 1 e 2. Estes deverão ter sido construídos para servir de «anexo de sepulturas» já no período visigótico. Este grande rectângulo desenhado pelo muro 9 e pelos muros 1, 2 e 2B é compartimentado por vários muros (3, 4 e 6) orientados quase a N-S (mais exactamente a NNE-SSW), todos com as mesmas características construtivas: entre 60 e 64  cm de largura, mistura de pedras grandes, médias, pequenas e fragmentos de tijolos. O muro 3 sofreu muitas perturbações com as sepulturas visigóticas e modernas mas parece ter continuado até ao muro 2. O muro 4, paralelo ao muro 3, parece partir do muro 9, parando ao nível de qF6 retomando só em qD6, tendo sido parcialmente destruído ao nível de qB6 e qA6. Onde o muro foi destruído entre qF6 e qD6, subsistiram só as suas fundações e foi coberto por um chão de argamassa que cobre toda área circundante até à piscina baptismal. Este chão de argamassa acaba com uma canelura em frente à pequena bacia da piscina, como se se tratasse de uma soleira. Outra canelura de argamassa fecha este espaço a Sul (qF4 a qF6) junto a um muro tosco (muro 8) que foi construído posteriormente entre o muro 3 e 4. Este muro 8 pertenceria a uma estrutura (sepultura?), muito provavelmente pós-visigótica, mas anterior à construção da Igreja de São Jorge, e que assentava, tal como ele, sobre o opus signinum que cobre, em parte, o muro 4. Os muros 3 e 4 estão ligados por um muro perpendicular (muro 7) que parece fechar a Este o compartimento onde se encontra a piscina baptismal. Foi destruído a Oeste por uma sepultura moderna ao nível de qB5 e pelo ossário, a Este, ao nível de qB9. É, por enquanto, difícil perceber a ligação entre o muro 7 e o muro 4, se são contemporâneos ou se um deles é anterior. No terreno parecem construídos ao mesmo tempo, por estarem imbricados e nenhum se encostando ao outro. Salvo o pequeno muro tosco (muro 8), que parece claramente posterior, os muros 2B, 3, 4 e 7 parecem todos de uma mesma fase de construção (sendo os muros 1 e 2 de um momento posterior, mas de quando a basílica se encontrava ainda em uso) e compõem um espaço geral muito compartimentado. Na zona oriental do terreno, ainda não intervencionada, vislumbram-se muros que parecem compartimentar igualmente o espaço, assim com uma sepultura de orientação N-S, ainda não escavada. Como vimos, esta construção com vários compartimentos está ligeiramente orientada para NNE-SSW, orientação essa que se encontra nas estruturas do lado

MÉL ANIE WOLFR AM | ANTÓNIO M. MONGE SOARES

62

do sector B. Uma vez que todo o material cerâmico de diagnóstico provindo das diferentes campanhas anteriores aponta para uma cronologia desde o século I d.C. ao início do século  IV d.C., estamos aqui, muito provavelmente, diante das paredes da mansio ou villa romana. O muro 2B seria um muro de fecho dos compartimentos desta villa. Uma vez que o sector B é composto por um importante tanque e depósito de água e que o possível hipocausto se tenha encontrado mais para o centro da vila de Ficalho, esta zona a Norte da vila poderá pertencer à pars rustica desta habitação (estando a pars urbana mais a Sul). Espaço baptismal (piscina e muros 5 e 6) O espaço que definimos como propriamente baptismal compõe-se da piscina em si assim como do espaço circundante, cujo chão é composto por opus signinum e que se encontra parcialmente fechado por diversos muros. A piscina [Figs. 2 e 3] foi parcialmente destruída na sua parte NE devido à abertura do ossário aquando do encerramento do cemitério, assim como no lado Sul, cuja parte superior das paredes se encontra 25 cm mais abaixo (cota – 1,40 m) do que a parte superior do lado NW (cota – 1,14 m). Esta diferença de cota resulta de uma destruição feita devido à realização da cova de uma sepultura moderna colocada naquele lado. O aparelho construtivo é homogéneo e compõe-se, quase exclusivamente, por tijolos de 30 × 47 cm ligados a argamassa esbranquiçada e totalmente recobertos por opus signinum. Somente numa parte se verifica a utilização de duas pedras na construção da parede a Sul da pequena bacia, sendo uma delas possivelmente um fragmento de coluna reaproveitado, podendo indicar um remendo ou uma falta de tijolos. De resto, não se verificam mais remendos nem alterações na planta desta piscina, alvitrando -se assim uma construção única que não foi posteriormente modificada. As partes do baptistério que subsistiram compõem-se de uma bacia rectangular (bacia 1) orientada a N-S com as seguintes medidas: 2,10 m de comprimento interno × 65 cm de largura × 80 cm de profundidade máxima. Acede-se, pelo Sul, através de três degraus medindo entre 20 a 33  cm de altura (sendo o do meio o de menor altura) e, pelo Norte, por quatro degraus, entre os 23 e 40 cm de altura (sendo, também, o segundo degrau o de menor altura, tal como o degrau que lhe faz frente). Uma vez que a parte superior a Sul foi destruída, podemos imaginar que a entrada por este lado também se fizesse por quatro degraus como a Norte. O espaço interno da bacia central (cota -2,26 m) mede 76 × 60 cm e tem um pequeno orifício circular no canto NE, provavelmente para escoamento da água4. A meio desta piscina, do seu lado ocidental, encontra-se outra bacia (bacia 2) 80 cm mais alta (cota -1,46 m) que mede 52 × 60 cm. A meio da parede ocidental da bacia 1 foi construída uma estrutura que parece um suporte para uma possível conduta ligando as duas bacias. Esta estrutura corre toda a altura da ⁴

63

Este possível escoamento de água poderá ser confirmado através da escavação do exterior da piscina, se se encontrar a Este desta estrutura.

BAPTISMO E BAPTISTÉRIOS DUR ANTE A ANTIGUIDADE TARDIA NO IMPÉRIO ROMANO OCIDENTAL

bacia 1 (80 cm), medindo de largura 30 cm na parte baixa estreitando até os 20 cm na parte alta. Por entre os tijolos superiores desta estrutura (cota – 1,50 m) são visíveis os restos de um tubo de chumbo que permitia a chegada da água (um pequeno troço desta conduta foi também registada junto à piscina, a Oeste). Podemos, assim, concluir que é muito provável que as duas bacias ficassem submergidas com água ou, pelo menos, que a pequena bacia pudesse ficar molhada com a chegada de água pela conduta, água essa que era suposto encher a bacia grande. A parte externa da piscina é rematada por uma parede de tijolos que devia percorrer todo o perímetro da piscina. A zona mais alta (cota -1,05 m) encontra-se do lado Norte, não se sabendo, no entanto, se a parede seria mais elevada. Uma vez que a distância entre o topo desta parede e o primeiro degrau é de 40 cm, não acreditamos que pudesse ser muito mais elevado, uma vez que tornaria o acesso (ou a saída) da piscina muito difícil. Em alguns locais à volta da piscina subsiste a canelura de opus signinum do chão (contra a parede Norte e NW, assim como contra a parede da bacia 2), o que nos mostra que a construção desta piscina foi acompanhada pela realização de um pavimento em opus signinum com uma coloração cor-de-rosa alaranjada. Apesar das várias rupturas causadas por sepulturas dos séculos XIX e XX, é possível verificar a presença deste opus numa área compreendida entre o muro Sul e o muro 7 a Norte, até o muro 5 a Este e em várias zonas a seguir ao muro 4 a Oeste. Observando a planta geral da piscina baptismal é possível notar que esta não segue exactamente o alinhamento dos restantes muros orientados a NNW-SSE (vide supra). A orientação da piscina está rigorosamente colocada no eixo N-S, no que se refere às escadas, e E-W, no que se refere à pequena bacia. Ora esta orientação é perfeitamente paralela à igreja quinhentista. Temos aqui, claramente, dois momentos construtivos: uma vez que nenhum baptistério desta tipologia na Lusitania foi construído antes do século V d.C., podemos afirmar que os muros NNW-SSE são os muros da antiga mansio ou villa e que a construção do baptistério é posterior e segue já o cânone da orientação E-W/N-S. Como em vários outros casos no resto da Lusitânia (Casa Herrera, Alconétar, Monte da Cegonha), temos aqui mais um exemplo de uma igreja que se instalou por entre estruturas pré-existentes. No entanto, no que se refere às novas construções (piscina baptismal), estas seguem uma orientação própria. Além da construção da piscina, notamos que terá havido uma reestruturação do espaço pré-existente. De facto, os muros 5 e 6 a Este da piscina, estão alinhados no eixo N-S, paralelos assim a ela, o que nos permite alvitrar que estes muros teriam sido construídos talvez para definir o espaço do baptistério. O muro 5 é o mais estreito de todos os restantes muros e foi, em grande parte, destruído pelo ossário do século XX pelo que não sabemos até onde iria. O muro 6, apesar de ter um tipo construtivo parecido com os outros muros, encurta visivelmente o espaço, encostando-se a uma outra estrutura, ainda não identificada, no extremo SE do muro 2b. Encostado ao muro 6, encontra-se uma sepultura (romana?) ainda não escavada. Do lado ocidental, como já vimos, os muros 7 e 4 terão sido provavelmente reutilizados para fechar o espaço da piscina no canto NW. O espaço terá sido aberto a Sul, ao nível da qE6, para a realização de uma

MÉL ANIE WOLFR AM | ANTÓNIO M. MONGE SOARES

64

passagem? Não se percebe se houve uma mudança de circulação a um dado momento, mas devia haver obrigatoriamente um espaço de circulação entre a igreja e o baptistério. Parece existir uma entrada para estas estruturas a Norte da nave central da basílica no local onde se interrompe o muro 9. No entanto, uma passagem directa para a sala da piscina baptismal não é habitual. Sepulturas5 Iremos retomar a denominação das sepulturas dada por um de nós em publicação anterior (ver Antunes-Ferreira e Soares, 2009): a sepultura V7 localizada entre os muros 2b e 7, a Norte do baptistério, e o grupo das três sepulturas V8, V9 e V10 entre os muros 1 e 3, a Oeste do baptistério. A sepultura V7, orientada W-E, foi parcialmente destruída do lado Este pelo ossário. Apresenta-se com uma cobertura de opus signinum com aproximadamente 10 cm de espessura, 2,44 m de comprimento máximo e entre 80 a 90 cm de largura. Este opus é mais acinzentado do que o do pavimento e é de factura mais grosseira do que a do baptistério. A cabeceira é decorada por uma cruz pátea cavada dentro do opus signinum6, hoje parcialmente destruída, uma vez que um terço da tampa desabou para dentro da sepultura. Por baixo da tampa de opus segue uma camada de terra com uns 10/15 cm de espessura. Seguem-se várias lajes de xisto que cobrem uma caixa rectangular realizada por pedras de tamanho médio e tijolos juntos com terra e argamassa. Alguns fragmentos de ossos são visíveis. Não foi encontrado elemento de datação para esta sepultura. Porém, a sua construção em opus (apesar de um pouco mais grosseiro do que o do baptistério), a sua cobertura a uma cota ligeiramente acima do piso (6 cm), mas perfeitamente integrada nele, assim como a decoração com a cruz pátea, permitem-nos considerar esta sepultura contemporânea do baptistério. O facto de se encontrar do lado de fora do espaço baptismal está conforme a proibição de sepultar dentro dos baptistérios. No entanto, a presença de uma sepultura neste sítio específico e com as características construtivas que vimos permite alvitrar o seu carácter privilegiado. As três outras sepulturas encontram-se no compartimento mais ocidental adossado ao conjunto construtivo romano e têm todas elas uma orientação W-E. As duas primeiras (V8 e V9), a Sul, estão ligadas entre elas com uma parede de argamassa, enquanto que a sepultura a Norte (V10), paralela a estas, encontra-se isolada. A área do compartimento não foi totalmente preenchida, havendo o espaço para mais sepulturas, quer a Norte, quer a Sul. As sepulturas V8 e V9 são de forma rectangular e têm as seguintes dimensões globais: 2,50 m de cumprimento por 2,10 m de largura. A parede que têm em comum mede 56 cm de largura. O espaço interno de cada sepultura mede: 2,02 m × 52 cm (V8) e 1,72 m × 48  cm (V9). A cobertura seria de grandes lajes de mármore branco, simplesmente afeiçoado, de que se conservavam alguns fragmentos, aquando da sua identificação. As suas paredes são construí⁵ ⁶

65

O estudo antropológico das sepulturas não foi realizado nesta campanha mas está previsto ser efectuado numa segunda fase de escavações. Apesar de não serem visíveis vestígios de incrustações, não pomos de parte o facto do interior da cruz pátea poder ter sido decorado por uma cruz em madeira ou noutro material perecível.

BAPTISMO E BAPTISTÉRIOS DUR ANTE A ANTIGUIDADE TARDIA NO IMPÉRIO ROMANO OCIDENTAL

das com pedras de tamanhos variados, fragmentos de tijolos, tudo ligado com argamassa, constituindo um conjunto bastante bem construído. O interior das duas sepulturas está cheio de terra e deverá conservar ainda os restos osteológicos. O carácter familiar destas duas sepulturas parece claro devido à sua construção simultânea. A sepultura V10 dista 32 cm da V9, é de forma rectangular com os cantos ligeiramente arredondados, mede 2,28 m de comprimento externo e entre 80 e 88 cm de largura externa. O espaço interno mede 1,92 m × 50 cm. A construção das paredes, que é mais irregular, compõe-se de pedras de tamanhos variados e fragmentos de tijolos, mas não estão ligadas com argamassa, o que confere um aspecto mais grosseiro ao conjunto sepulcral. É difícil datar estas sepulturas uma vez que as suas características diferem da sepultura V7. As suas características construtivas são parecidas com as sepulturas de inumação do período tardo -romano (Cunha, 2008). O aspecto geral destas três sepulturas, dentro de um recinto, recorda os mausoléus tardo -romanos (cf. mausoléus de Torre de Palma). No entanto, as suas cotas superiores estão ao nível do pavimento de opus do baptistério (entre as cotas -1,34 m e -1,19 m), pelo que devem ter sido construídas aquando do funcionamento da igreja paleocristã, porventura posteriormente à construção do baptistério e, por conseguinte, à sepultura V7. Conclusão Encontramo -nos face a uma construção dividida em vários compartimentos cuja orientação NNE-SSW segue a orientação dos muros do sector B, correspondendo a um período provavelmente romano ou tardo -romano. No meio destas estruturas foi construída uma piscina baptismal reaproveitando o espaço pré-existente de um compartimento, cujo pavimento em opus signinum parece estender-se para lá da sala em questão. Infelizmente não se consegue perceber se todos os muros actualmente visíveis foram utilizados durante o período visigótico: parece que parte do muro 4 foi aberto para criar uma passagem entre a igreja a Sul e a sala do baptistério. Do lado Este, parece que o espaço da piscina foi fechado pelo muro 5, sendo que outra sala mais a Este é rematada pelo muro 6. Teríamos assim um baptistério composto por um corredor de acesso para o clero a partir da igreja a Sul. O problema reside no acesso dos competentes: os muros 2B e 7 parecem apresentar zonas de abertura a Norte deste complexo (ao nível de qA5 para o muro 2B e ao nível de qB5 para o muro 7), mas que podem também ser aberturas muito posteriores. Se considerarmos estas passagens como funcionando no período visigótico, poderíamos sugerir que os competentes entrariam a Norte e, após um primeiro pequeno espaço, tipo átrio7, entrariam para um compartimento maior (onde se despiriam) entre o muro 3 e 4, com uma porta ao nível qE6, onde o muro  4 desaparece e é substituído por um pavimento em opus. Seguiriam para a piscina onde ⁷

O único elemento que parece apontar para uma contemporaneidade deste pequeno compartimento com o resto das salas é o vestígio de opus no pavimento, contra o muro 3 ao nível de qB5.

MÉL ANIE WOLFR AM | ANTÓNIO M. MONGE SOARES

66

o acesso se faria pelo lado Sul ou Norte. A presença de uma pequena bacia lateral é difícil de perceber, poderá ter a ver com o sítio onde se posicionaria o membro do clero enquanto baptizava ou, então, onde seriam baptizadas as crianças. O caminho que os neófitos faziam depois de sair da piscina também não é claro: ou passariam pela sala do fundo, entre os muros 5 e 6 para receber o crisma e depois passariam de novo pela sala baptismal a fim de entrar para a igreja a Sul, onde tinha entrado o clero, uma vez que baptizados, os neófitos tinham direito de entrar na parte sagrada da igreja para recitar a reza dominical e participar pela primeira vez na eucaristia. Estas ilações só poderão ser confirmadas com novas escavações para se tentar perceber se existia outra passagem para a igreja. Para melhor entender o sector A é imprescindível olhar para o sector B (Antunes-Ferreira e Soares, 2009). A maioria das estruturas (compartimentos a Sul da igreja de São Jorge assim como os tanques, estes com uma inclinação um pouco mais acentuada para Este) mantêm a orientação NNE-SSW, com a mesma morfologia e características construtivas das do sector A. Estas estruturas formam dois grandes compartimentos ligados por uma passagem a Sul. Nestes compartimentos encontram-se uma sepultura romana e seis visigóticas. A única sepultura considerada romana é a sepultura R2, orientada a N-S, a Este do muro d1 (que parece ser o seguimento do muro 3 do sector A (ver Antunes-Ferreira e Soares, 2009, Fig. 1). As restantes sepulturas (V1 a V6) são todas orientadas a E-W, as três primeiras (V1, V2 e V3) encontram-se no compartimento mais a Sul da igreja paleocristã, por baixo de um piso em argamassa (talvez um átrio coberto?), e as três ultimas (V4, V5 e V6) encontram-se no compartimento a Norte deste (talvez a nave Sul da igreja?), igualmente por baixo do piso de argamassa. Podemos assim afirmar que as estruturas romanas do sector A continuam até ao sector B. Salvo a zona dos tanques e depósitos que não entram no estudo presente, estas estruturas romanas foram igualmente reaproveitadas para a igreja paleocristã. Aqui no entanto não parece ter havido uma reorientação dos muros mas uma pavimentação em opus e uma utilização do espaço para várias inumações do período visigótico. A única sepultura datada (ano 626) é a de Martinus e encontra-se no compartimento mais a Sul. Contrariamente às sepulturas do sector A, todas as sepulturas visigóticas do sector B encontravam-se abaixo do piso de argamassa, 30 cm para a sepultura de Martinus (Antunes-Ferreira e Soares, 2009). É, assim, difícil fazer a relação entre as sepulturas do sector A e as do sector B, uma vez que são todas distintas: a sepultura V7 é coberta por um leito de argamassa e ligeiramente acima do piso, incorporando-o na sua construção, e as sepulturas V8, V9e V10 deveriam estar igualmente ao nível do piso (ou um pouco elevadas), se bem que este possivelmente não seria de opus. Esta diferença de tratamento entre as sepulturas do sector A e as do sector B não é fácil de entender. Talvez possa ser um indício acerca da tipologia dos espaços em questão: i) um espaço de passagem no sector B, em que as sepulturas estariam na nave Sul e no átrio, provável entrada da igreja, e onde haveria unicamente uma sinalização da sepultura à superfície para não estorvar a passagem; 2) um espaço menos acessível ou de acesso mais restrito como seria o caso das três

67

BAPTISMO E BAPTISTÉRIOS DUR ANTE A ANTIGUIDADE TARDIA NO IMPÉRIO ROMANO OCIDENTAL

sepulturas no anexo a Oeste do baptistério e na sala a Norte do mesmo. Estas sepulturas poderiam estar mais visíveis ao nível do solo uma vez que não estavam num sítio de passagem. Não nos esqueçamos que o baptistério era um edifício onde só se entrava algumas vezes por ano8 e por tanto poderíamos ter aqui casos de sepulturas mais privilegiadas. A localização da sepultura V7 junto ao baptistério, assim com a sua construção e decoração, acentuam este lado privilegiado. O estudo tipológico do baptistério de Ficalho insere-o claramente na tipologia própria de grande parte dos baptistérios das províncias da Lusitania e da Baetica, assim como de alguns do Norte de África. No caso de Ficalho, poder-se-ia por a hipótese de ter havido uma bacia do lado oriental (destruída pelo ossário), tratando-se assim de uma piscina em forma de cruz. No entanto, os muros orientais da bacia 1 são lisos, não comportam a mesma torre para a condução de água a Oeste, pelo que pensamos que a sua forma geral deveria ser a forma actual: uma bacia central rectangular com degraus a Sul e a Norte e uma pequena a Oeste, numa cota mais elevada. Piscinas baptismais com bacias rectangulares e degraus nelas integradas encontram-se sobretudo na província da Lusitania: em Milreu (Estói), Torre de Palma9 (Monforte), La Cocosa (Badajoz), Valdecebadar (Olivenza), Alconétar (Cáceres), San Pedro de Mérida e Casa Herrera (Badajoz). Para o resto da Hispania, encontram-se piscinas deste tipo em Tarragona (necrópole del Francolí) e na villa Fortunatus em Fraga (Huesca) (Ripoll e Velázquez, 1999: 124, fig. 2). No mundo romano oriental encontra-se um em Sidé (act. Turquia) (Khatchatrian, 1962: 16, n.º120), no Norte de África em Sabratha (Tunísia)10 (id.: 35, n.º 257) e em Iunca (Tunísia) (id.: 36, nº 263). Notamos assim que esta forma é mais comum na Península Ibérica. A especificidade de uma ou várias bacias laterais encontra-se, no entanto, além de Ficalho, unicamente em Torre de Palma (Monforte), Alconétar (Cáceres), Casa Herrera (Badajoz) e Iunca (Tunísia). Em São Pedro de Alcântara (Málaga), apesar de a bacia principal ser de forma diferente, existe uma pequena bacia lateral. Desconhecemos como chegaria a água a estas piscinas porque só temos conhecimento de uma canalização de chumbo a meio das duas bacias para Ficalho; pensamos, porém, que estas bacias laterais deveriam ser todas construídas para poderem ser enchidas com água, tal como acontece em Ficalho. Permanece, contudo, incerta a razão para a existência de tal piscina lateral. A sua utilização para baptismos de crianças continua a ser a mais provável. O baptistério de Vila Verde de Ficalho insere-se, assim, no mundo arquitectónico rural típico do Sul da Península Ibérica. Tal como La Cocosa, Casa Herrera, Monte da Cegonha ou a villa Fortunatus (Huesca), trata-se de um caso de uma igreja visigótica reutilizando estruturas residenciais de época romana. Por fim, deverá notar-se que na área de Ficalho, em época romana, deverá ter existido já um culto pagão, uma vez que se encontrou, reutilizado no sector B, como batente da porta de ⁸ ⁹ ¹⁰

Teoricamente só se baptizava uma vez por ano, no momento da Páscoa, mas havia sempre excepções em momentos de epidemias ou de morte iminente, em que os catecúmenos podiam recorrer ao baptismo. No caso de Torre de Palma é mais difícil ver a forma rectangular com bacia lateral de origem por causa do acrescento de uma segunda piscina a Sul. O segundo baptistério desta igreja é rectangular, contrariamente ao primeiro que é só uma bacia simples.

MÉL ANIE WOLFR AM | ANTÓNIO M. MONGE SOARES

68

entrada da basílica paleocristã, uma ara em mármore com uma inscrição à deusa Ataegina (Dias e Soares, 1986). Seria demasiado arriscado acreditar que este culto terá sido praticado neste mesmo local, mas não deixa de ser interessante notar a continuidade de culto entre o período romano (se não for neste sítio preciso onde se situa a basílica paleocristã não deverá ser muito longe) e o período visigótico. Agradecimentos Um agradecimento especial aos amigos e colegas José Carlos Quaresma e André Carneiro por toda a ajuda que nos facultaram no terreno e no estudo das cerâmicas, assim como a Rui Soares, Diogo Morais e Vítor Martins pelo seu excelente trabalho na intervenção de campo.

BIBLIOGRAFIA TERTULLIANUS, Traité du baptême. Introdução, texto crítico e notas por R. P. REFOULÈ. Tradução de M. DROUZY. Paris, Éditions du Cerf: 2002. (SC, n.º35) AA.VV. (1995) – IV Reunió d’Arqueologia Cristiana. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans; Universitat de Barcelona; Universidade de Lisboa. (Secciò Historico-Arqueológica, IV) ANTUNES-FERREIRA, Nathalie; SOARES, António M. Monge (2009) – A sepultura paleocristã de Martinus (V. V. de Ficalho, Serpa) in IV Encuentro de Arqueologia del Suroeste Peninsular. Huelva : 1149-1173. CUNHA, Mélanie Wolfram (2008) – As necrópoles de Silveirona (Santo Estêvão, Estremoz). Do mundo funerário romano à Antiguidade Tardia. O Arqueólogo Português, Supl. 4. DIAS, Maria Manuela Alves; SOARES, António M. Monge (1986) – Inscrição votiva de Vila Verde de Ficalho, Serpa. Ficheiro Epigráfico. 18, n.º 84. DIAS, Maria Manuela Alves; SOARES, António Monge (1987) – O epitáfio paleocristão de Martinus, V. V. de Ficalho (Serpa). O Arqueólogo Português. Série IV, 5 : 233-240. DUMÉZIL, Bruno (2010) – Les marqueurs juridiques de la conversion en occident entre le IVe et le VIIe siècle. In : INGLEBERT, H. ; DESTEPHEN, S. ; DUMÉZIL, B. (eds) – Le problème de la christianisation du monde antique. Paris : 307-318. DUCHESNE, Louis (1920) – Origines du Culte Chrétien. Etude sur la liturgie latine avant Charlemagne. Paris, De Boccard. (5ème édition revue et augmentée) GODOY FERNANDEZ, Cristina (1994) – Locus competentium: la situación de catecúmens i aspirants al baptisme a la basilica. III RACH : 463-484. GODOY FERNANDEZ, Cristina (1995) – Arqueología y liturgia, iglesias hispánicas (siglos IV al VIII). Barcelona: Publicacions Universitat de Barcelona. KHATCHATRIAN, A. (1962) – Les baptistères paléochrétiens. Paris : École Pratique des Hautes Études. (Collection Chrétienne et Byzantine).

69

LOPEZ QUIROGA, Jorge (2005) – Los orígenes de la parroquia rural en el Ocidente de Hispania (siglo IV-IX) (provincias de Gallaecia y Lusitania). In: DELAPLACE, C. (ed.) – Aux origines de la paroisse rurale en Gaule Méridionale (IVe-XIe siècles). Toulouse : Editions Errance : 193-228. MACIEL, Manuel Justino (1996) – Antiguidade tardia e paleo-cristianismo em Portugal. Lisboa: [edição de autor]. MÉBARKI, Farah; PUECH, Émile (2002) – Les manuscrits de la mer Morte. Paris : Éditions du Rouergue. PIETRI, Charles (1997) – Christiana Respublica. Éléments d’une enquête sur le christianisme antique. Vol. I. CEFR 234. RAMOS SAINZ, M. (1994) – Una piscina bautismal de planta cruciforme descubierta en la villa romana de Saucedo (Talavera de la Reina, Toledo). III RACH : 105-110. RIPOLL, Gisela; VELÁZQUEZ, Isabel (1999) – Origen y desarrollo de la parrochiae en la Hispania de la Antigüedad tardía. In : PERGOLA, P. (dir.): Alle origini della parrochia rurale (IV-VIII sec.). Atti della giornata temática dei Seminari di Archaeologia Cristiana (École Français de Rome, 1998):101-165. SALAMITO, Jean-Marie (1995) – La christianisation et les nouvelles règles de la vie sociale. In: MAYEUR, J.-M.; PIETRI, C. et L., VAUCHEZ, A.; VENARD, M. (dir.) – Histoire du christianisme des origines à nos jours. Tome II: Naissance d’une chrétienté (250-430). Desclée : 675-717. SOARES, A.M.M. (1994) – Descoberta de um povoado do Neolítico junto à Igreja Velha de S. Jorge (Vila Verde de Ficalho, Serpa). Resultados Preliminares. Vipasca. 3: 41-49. SOARES, A.M.M. (1996) – Datação Absoluta da Estrutura Neolítica Junto à Igreja Velha de S. Jorge (Vila Verde de Ficalho, Serpa). Vipasca. 5: 51- 58. TREFFORT, Cécile (1996) – L’église carolingienne et la mort. Presses Universitaires de Lyon (Collection d’histoire et d’Archéologie médiévales, 3). WOLFRAM, Mélanie (2011) – A cristianização do mundo rural no sul da Lusitania (Arqueologia, Arquitectura, Epigrafia). Tese de doutoramento em Arqueologia apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em cotutela com a Université Sorbonne-Paris IV. [Texto policopiado].

BAPTISMO E BAPTISTÉRIOS DUR ANTE A ANTIGUIDADE TARDIA NO IMPÉRIO ROMANO OCIDENTAL

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.