Bases de dados genéticos forenses: Tecnologias de controlo e ordem social

July 14, 2017 | Autor: Helena Machado | Categoria: Sociology, Law, Criminal Law, DNA (Forensic Science), DNA profiling and databasing
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BASES DE DADOS GENÉTICOS FORENSES TECNOLOGIAS DE CONTROLO E ORDEM SOCIAL

Título BASE DE DADOS GENÉTICOS FORENSES 1.ª Edição, Mês 2014 Autores AA.VV. Editor Coimbra Editora, S.A. Ladeira da Paula, 10 3040-574 Coimbra Telef. (+351) 239 852 650 Fax (+351) 239 852 651 www.coimbraeditora.pt [email protected] Execução gráfica Coimbra Editora, S.A. Ladeira da Paula, 10 3040-574 Coimbra ISBN 978-972-32-2225-8 Depósito Legal n.º 000 000/14

Qualquer reprodução desta obra, total ou parcial, que não tenha sido previamente autorizada pelo Editor, pode constituir crime ou infração, puníveis nos termos da legislação aplicável.

BASES DE DADOS GENÉTICOS FORENSES TECNOLOGIAS DE CONTROLO E ORDEM SOCIAL

HELENA MACHADO HELENA MONIZ (Organizadoras)

Esta publicação foi financiada por Fundos FEDER através do Programa Operacional Factores de Competitividade — COMPETE e por Fundos Nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto Base de dados de perfis de ADN com propósitos forenses em Portugal — Questões atuais de âmbito ético, prático e político (FCOMP—01—0124—FEDER—009231)

ÍNDICE Págs.

NOTA PRÉVIA ................................................................................................... SOBRE OS AUTORES .......................................................................................... INTRODUÇÃO ....................................................................................................

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PARTE I REGULAÇÃO E DIREITO HELENA MACHADO e SUSANA SILVA — Identidades tecnocientíficas na esfera forense e médica: perspetivas de cidadãos sobre inserção de perfil genético em base de dados e acerca de doação de embriões para investigação ....... HELENA MONIZ — Parâmetros adjetivos, constitucionais e de direito comparado na estrutura das soluções legais previstas na Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro ........................................................................................... TAYSA SCHIOCCHET — Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis genéticos para fins de investigação criminal no Brasil ............. MARÍA JOSÉ CABEZUDO BAJO — La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación Española y de la Union Europea ........................................

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PARTE II GOVERNABILIDADE E MEDIAÇÕES DANIEL MACIEL e HELENA MACHADO — Biovigilância e governabilidade nas sociedades da informação ........................................................................ CLAUDIA FONSECA — Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso da tecnologia DNA para identificação criminal ......................................

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Base de Dados Genéticos Forenses PARTE III INVESTIGAÇÃO CRIMINAL Págs

FILIPE SANTOS — As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos em Portugal ......................................................................... SUSANA COSTA — Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal e suas repercussões na aplicabilidade da Base de Dados de ADN .........................................................................................

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PARTE IV TECNOLOGIAS NO PRESENTE, PASSADO E FUTURO HELENA COSTA e LUÍS MIRANDA — Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites da previsão de caraterísticas físicas através da análise de ADN ...................................................................................... DIANA MIRANDA — O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal ...........................................................................................

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NOTA PRÉVIA A publicação deste livro foi apoiada por Fundos FEDER através do Programa Operacional Fatores de Competitividade — COMPETE e por Fundos Nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Ministério da Educação e Ciência), através do projeto Base de dados de perfis de DNA com propósitos forenses em Portugal: questões atuais de âmbito ético, prático e politico (POFC — COMPETE) (ref. COMPETE FCOMP—01—0124—FEDER—009231). As atividades deste projeto sediaram-se no Núcleo de Estudos sobre Ciência, Economia e Sociedade do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e desenvolveram-se em parceria com o Centro de Direito Biomédico/Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e o Centro de Investigação em Ciências Sociais da Universidade do Minho. As organizadoras agradecem o interesse manifestado pela Coimbra Editora em publicar esta obra e o apoio à revisão editorial facultado por Filipe Santos.

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SOBRE OS AUTORES Cabezudo Bajo, Maria José é doutorada em Direito pela Universidade Nacional de Educação à Distância (UNED, Madrid, Espanha) onde exerce funções de Professora Titular de Direito Processual. Os seus interesses de investigação centram-se no intercâmbio e proteção de dados pessoais na União Europeia, a prova de DNA e sua eficácia processual. Costa, Helena é licenciada em Anatomia Patológica, Citológica e Tanatológica pela Escola Superior de Tecnologia da Saúde do Porto e mestre em Biologia Molecular e Celular pela Universidade de Aveiro. É investigadora no Laboratório de Genética Aplicada do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro. Os seus interesses de pesquisa focam-se na área da genética forense, em particular no estudo de métodos alternativos e complementares à identificação genética e na análise das questões bioéticas subjacentes à sua aplicação. Costa, Susana é doutorada em Sociologia e investigadora permanente no Núcleo de Economia, Ciência e Sociedade do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Bolseira de pós-doutoramento pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Tem trabalhado as questões relacionadas com a ciência e o direito, em particular, o uso do DNA no auxílio à justiça. Fonseca, Claudia é doutorada em Antropologia pela Universidade de Nanterre (França), Professora colabora do Programa de Pós-Graduação de Antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil) e diretora e professora do Doutoramento em Antropologia Social da Universidade Nacional de San Martin (Argentina). Seus interesses de pesquisa incluem organização familiar, parentesco e relações de género, Antropologia da Ciência e Antropologia do Direito, com ênfase particular nos temas de direitos humanos e tecnologias de governo. Machado, Helena é doutorada em Sociologia e Professora Associada com Agregação no Departamento de Sociologia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. É investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de CoimCoimbra Editora ®

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bra. Os seus interesses de pesquisa centram-se nos estudos sociais da genética forense, focando temas como os impactos culturais, políticos e éticos das bases de dados genéticos forenses e a genetização das relações sociais. Maciel, Daniel é mestre em Antropologia Médica pela Universidade de Coimbra e é investigador colaborador no Centro em Rede de Investigação em Antropologia. É doutorando em Antropologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Os seus interesses de investigação incluem a criação, uso e apropriação de arte; discursos, funcionamento e racionalidade institucional e também a manutenção e negociação de relações de poder. Miranda, Diana é licenciada em Sociologia pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho e tem uma pós-graduação em Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. É doutoranda no Centro de Investigação em Ciências Sociais da Universidade do Minho. Os seus interesses de pesquisa centram-se na área dos estudos sociais da ciência e tecnologia, estudos da vigilância, estudos prisionais e criminalidade. Moniz, Helena é doutorada em Direito (Ciências Jurídico-Criminais) e Professora Auxiliar na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É investigadora no Centro de Direito Biomédico/Instituto Jurídico da Faculdade de Direito, da Universidade de Coimbra. Os seus interesses de pesquisa centram-se na área do Direito Penal e do Direito Médico. Participou em diversos projetos científicos internacionais sobre proteção de dados pessoais e dados genéticos. Santos, Filipe é licenciado e mestre em Sociologia pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. É doutorando no Centro de Investigação em Ciências Sociais da Universidade do Minho. Os seus interesses de investigação focam a análise sociológica das interseções e inter-relações mediadas entre a ciência e a tecnologia, em particular, a construção, usos e representações das tecnologias de DNA no âmbito da investigação criminal. Schiocchet, Taysa é doutorada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (Brasil). É Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS, Brasil) e Professora Visitante da Université Paris X (França). Líder do Grupo de Pesquisa BioTecJus. Estudos Avançados em Direito, Tecnociência e Biopolítica na UNISINOS. Tem experiência de investigação na área de Direito e Bioética, atuando principalmente nos seguintes temas: direitos humanos, bioética e ética na pesquisa, biotecnologia, antropologia, estudos de género, laicidade, criança e adolescente e povos indígenas. Silva, Susana é doutorada em Sociologia e Investigadora Auxiliar no Departamento de Epidemiologia Clínica, Medicina Preditiva e Saúde Pública da Faculdade de Coimbra Editora ®

Sobre os Autores

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Medicina da Universidade do Porto, exercendo atividade no ISPUP — Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto. Na investigação privilegia o estudo dos processos de articulação entre a medicina, direito, tecnologia e género, pelo enfoque na compreensão pública da biotecnologia e da saúde e nos usos sociais das tecnologias reprodutivas e genéticas. Souto, Luís é doutorado em Ciências Biomédicas pela Universidade de Coimbra, coordena atualmente a unidade laboratorial Laboratório de Genética Aplicada do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro. Tendo sido anteriormente quadro do ex-Instituto de Medicina Legal de Coimbra, integrou a unidade de investigação CENCIFOR, Centro de Ciências Forenses, até 2013. É docente convidado na Universidade de Aveiro, responsável pela área de Biologia e Genética Forense. Tem desenvolvido trabalho de investigação na área da genética de populações humanas e genética forense.

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INTRODUÇÃO As bases de dados genéticos forenses têm criado impactos assinaláveis nos sistemas de justiça, um pouco por todo o mundo. A partir de contributos de especialistas provenientes de diferentes áreas disciplinares — antropologia, biologia, direito e sociologia — este livro discute algumas das questões éticas, jurídicas, políticas e sociais mais prementes que estão associadas à criação, utilização e expansão deste tipo de bases de dados. Trata-se, no entanto, de uma análise restringida a Portugal, Espanha e Brasil, aqui irmanados pelo facto de todos eles terem recentemente dado passos no sentido de criarem a sua respetiva base de dados nacional de perfis genéticos com finalidades forenses. Uma base de dados genéticos com finalidades forenses agrega um conjunto de perfis genéticos que são determinados a partir de amostras biológicas colhidas de um conjunto de indivíduos ou encontradas em cenas de crime. Em contexto de investigação criminal, os perfis genéticos obtidos por essas vias poderão ser comparados com os perfis já incluídos em base de dados genéticos forense, com vista a apurar se ocorre ou não uma correspondência positiva. O arquivamento dos perfis genéticos, e de qualquer outro tipo de informação constante na base de dados, é realizado em ficheiros informatizados. A utilização de bases de dados genéticos forenses pode servir finalidades de identificação criminal e de identificação civil. Ou seja, pode ser utilizada para diversos fins, tais como: para identificação de autores e de vítimas de crimes, de vítimas de catástrofes, de pessoas desaparecidas e para o estabelecimento dos laços de parentesco entre indivíduos. As reflexões contidas neste livro focam exclusivamente o papel das bases de dados genéticos forenses no campo da aplicação para identificação e investigação criminal. Coimbra Editora ®

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A primeira vez que a tecnologia de análise de perfis genéticos permitiu resolver um caso criminal foi em Inglaterra, com a detenção, em 1987, do assassino de duas adolescentes — Linda Mann e Dawn Asworth — encontradas mortas, respetivamente, em 1986 e em 1983. A polícia havia retirado amostras de sémen dos seus corpos, mas não tinha pistas que permitissem resolver os casos. Graças à tecnologia de identificação por perfis genéticos foi possível identificar o homicida das jovens, que veio a ser, inicialmente, sentenciado com uma pena de prisão perpétua. Esta identificação criminal foi concretizada após ter sido desencadeado um conjunto de operações que se revelou moroso, dispendioso e bastante polémico por implicar o envolvimento de pessoas inocentes no curso da ação de investigação criminal: ao longo de seis meses, a polícia procedeu à recolha de amostra de DNA (por colheita de sangue ou saliva) junto de 5000 jovens do sexo masculino num perímetro geográfico que se considerou abranger a zona de residência do homicida. Anos mais tarde, em 1995, foi criada em Inglaterra a primeira base de dados de perfis genéticos de âmbito nacional. Desde então, tem crescido exponencialmente o número e a dimensão de bases de dados genéticos utilizadas no domínio da investigação criminal. Estima-se que existam hoje cerca de sessenta de dados genéticos forenses operacionais (1), em diversas partes do mundo, com maior prevalência na América do Norte e na Europa, para além da China e da Austrália. No momento presente, assiste-se a uma crescente expansão da aplicação da genética na investigação criminal e tem sido feito, a uma escala internacional, um considerável investimento político na criação de sistemas de partilha de informação genética entre países, com vista a controlar e a desenvolver uma maior cooperação na investigação criminal e, em particular, no combate ao terrorismo, ao crime internacional, ao crime organizado e à imigração ilegal. Para além das potencialidades

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Não existem dados rigorosos sobre a situação concreta das bases de dados genéticos com propósitos forenses em relação a vários países. Contudo, informação atualizada pode ser encontrada no site da Forensic Genetics Policy Initiative, em http://dnapolicyinitiative.org/. Coimbra Editora ®

Introdução

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evidentes da utilização da tecnologia de DNA em contexto forense, estas têm sido potenciadas pelo imaginário coletivo que vê na obtenção de perfis genéticos e na existência das bases de dados de DNA uma espécie de ícone da verdade, graças ao seu poder de individualização que permite, sob o ponto de vista biológico, que o corpo humano possa ser definido como um corpo distinguível e único aos olhos da ciência. Associada à ideia de verdade que a tecnologia de identificação individual por perfis genéticos veicula, emerge a promessa de “certezas”: certezas na identificação de autores de crime, certezas na produção de prova em tribunal, certezas na tomada de decisão dos tribunais. Contudo, a par com estas “certezas” surgem dúvidas e questionamentos, apontados por académicos, profissionais forenses e juristas de vários países. Sobretudo os especialistas do direito e das ciências sociais e humanas têm debatido os potenciais benefícios e riscos da criação e expansão de bases de dados genéticos com finalidades forenses, ponderando os caminhos a trilhar na procura de um equilíbrio entre a segurança e os direitos, liberdades e garantias. De facto, como acontece em todos os meios de obtenção de prova que restringem direitos fundamentais do cidadão, também as bases de dados genéticos forenses potenciam aquela restrição — em nome da prossecução da justiça e da descoberta da verdade material processualmente válida. Um aspeto importante é saber até onde pode ocorrer aquela restrição em nome da investigação criminal e da descoberta do autor do crime. A menos que se defenda um direito penal do inimigo qualquer restrição de um direito fundamental de um qualquer cidadão deve respeitar o princípio da proporcionalidade em sentido amplo. Além disso, a utilização de bases de dados genéticos forenses remete para outras questões sociais, culturais e políticas mais amplas, associadas a processos de reprodução de desigualdades sociais, discriminações étnicas e culturais e a mecanismos de controlo e de reprodução da ordem social. O livro que tem entre mãos pretende lançar algumas ideias e discussões sobre estas problemáticas. Assim, o conjunto de interrogações e complexidades associadas às bases de dados genéticos forenses, que esta publicação interpela, surge organizado em quatro dimensões principais, que correspondem às diferentes secções desta publicação: “Regulação e Direito”; “Governabilidade Coimbra Editora ®

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e Mediações”; “Investigação Criminal”; e “Tecnologias no Presente, Passado e Futuro”. O capítulo que inaugura este livro na secção “Regulação e Direito”, de autoria de Helena Machado e Susana Silva, discute os processos sociais que articulam atores humanos, instituições, materiais e artefactos biológicos, a partir de dois estudos empíricos que visam, respetivamente, identificar as motivações de cidadãos para contribuírem para a construção da base de dados forenses portuguesa pela doação do seu perfil genético, e mapear as opiniões de casais envolvidos em técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) acerca da investigação científica com recurso a embriões. Este texto parte do princípio de que o potencial apresentado pelo material biológico humano para o desenvolvimento da aplicação de técnicas de genética molecular em diferentes áreas da vida social — por exemplo, na medicina e no combate à doença, ou no campo forense da investigação criminal — tem criado conexões sociais ambivalentes que articulam atores humanos, instituições e valores e normas em complexas redes sociotécnicas e que constituem a base de construção de identidades que estabelecem inter-relações entre o corpo molecular, as trajetórias de vida e as identidades individuais e coletivas. Os restantes capítulos da secção “Regulação e Direito” desenvolvem questões jurídicas e éticas associadas ao caso de Portugal, Brasil e Espanha. Começando pelo regime português, Helena Moniz apresenta-nos um texto onde pretende estimular o debate relativamente a algumas questões que têm preocupado os juristas nesta matéria: a colheita de material biológico para obtenção do perfil genético em arguido e o princípio da não auto-incriminação, os pressupostos formais de integração de um perfil na base, a necessidade de fundamentação do pedido de colheita de material biológico, a admissibilidade (ou não) da colheita em suspeito, na sua aceção no âmbito do direito processual penal, ou a utilização desta técnica quando haja desaparecidos. Por fim, e sabendo-se que é essencial na investigação criminal a transferência de dados entre países, assume particular preocupação a não transposição para a ordem interna portuguesa da decisão-quadro 2008/615/JAI, de 23 de Junho (cujo prazo terminou em Agosto de 2011), na parte respeitante aos perfis genéticos. Coimbra Editora ®

Introdução

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Taysa Schiocchet desenvolve, com base no sistema jurídico brasileiro, uma reflexão sobre os possíveis riscos e benefícios, bem como os limites e possibilidades, da utilização do DNA para fins forenses. Enfatizando a necessidade de um olhar interdisciplinar sobre esta matéria, este capítulo aborda diferentes aspetos relacionados com os impactos jurídicos e sociais, e com o contexto jurídico-político vinculado à regulamentação da base de dados de perfis genéticos para fins de investigação criminal através da Lei n.º 12.654 de 2012. A autora enuncia e reflete, de forma detalhada, sobre os desafios e tensões que se colocam pela importação de uma tecnologia oriunda de países centrais e pela sua implantação num país profundamente marcado por contrastes económicos e por uma diversidade cultural, étnica e social. Como sublinha esta jurista brasileira, torna-se imprescindível que a reflexão teórica, sobre as consequências da interação entre direito, tecnociência e genética, seja realizada de modo a adaptar-se às particularidades da sociedade brasileira que, sendo hoje uma potência económica mundial, continua a deter um processo de desenvolvimento que permanece condicionado pela desigualdade na distribuição da riqueza. Maria José Cabezudo-Bajo analisa, a partir da regulação deste tipo de prova em Espanha e atendendo às principais tendências no plano Europeu, as mais recentes controvérsias em torno da genética, no que diz respeito aquilo que a autora designa por fiabilidade e licitude dos resultados obtidos. Em particular, este capítulo analisa os seguintes aspetos da regulação da prova genética: a falta de provisão normativa relativamente a protocolos de atuação que garantam a fiabilidade da recolha da amostra biológica; a inexistência de uma norma europeia que permita a obtenção de uma amostra de DNA em contexto transfronteiriço; a definição clara de qual a parte da sequência de DNA à qual se deve limitar a extração lícita do perfil genético; e, por fim, a necessidade de definir qual o tipo de informação pericial que deve ser facultada ao juiz relativamente à aplicação do teorema de Bayes na prova genética. A segunda parte do livro, intitulada “Governabilidade e Mediações” apresenta, em dois capítulos, uma reflexão crítica que cruza a antropologia e a sociologia da ciência e tecnologia com o debate em torno dos chamados estudos da vigilância — estes últimos orientados para o mapeamento e Coimbra Editora ®

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discussão das formas de controlo e reprodução da ordem social projetadas por dispositivos tecnológicos que são mobilizados no contexto das políticas de segurança pública e de controlo da criminalidade da parte dos Estados modernos. O texto de Daniel Maciel e Helena Machado procura sistematizar as principais linhas orientadoras de debate em torno das questões éticas, sociais e políticas suscitadas pela criação e expansão de bases de dados de informação biogenética, sobre os cidadãos, orientadas para o controlo social e a gestão do risco do crime, explorando os seguintes tópicos de reflexão: a cientifização da justiça e do trabalho policial; a governabilidade do risco, da tecnologia e da informação; a cultura de controlo e o conceito de biovigilância. O texto seguinte, de Cláudia Fonseca, convoca a necessidade de repensar uma série de questões importantes sobre direitos, cidadania e discriminação a partir de uma análise antropológica sobre a forma como as tecnologias genéticas de identificação de indivíduos, enquanto elementos aparentemente neutros — da ciência e da tecnologia —, provocam rearranjos na maneira de pensar e lidar com questões de justiça. Baseando-se em estudos realizados por outros autores em diferentes países, a autora desenvolve uma reflexão em três aspetos fundamentais: (1) como as leis e outras mediações jurídicas, no atual sistema de justiça, condicionam os efeitos das bases de dados perfis genéticos; (2) como os perfis genéticos operam para criar novas categorias de perceção, fabricando novos tipos de ser humano e quais os efeitos destes novos tipos para a identidade das pessoas; (3) e quais as “figurações” dessa tecnologia, isto é, qual a maneira em que diferentes atores, incluindo os média, o direito, determinadas categorias profissionais e observadores críticos, angariam esforços materiais e semióticos para produzir certa imagem da tecnologia do DNA. A terceira secção deste livro comporta duas abordagens sociológicas da questão da utilização da tecnologia de DNA na investigação criminal, em Portugal. O capítulo da autoria de Filipe Santos incide sobre o papel desempenhado pelas tecnologias de DNA em casos criminais, amplamente mediatizados, que ocorreram em Portugal — procura perceber de que modo, e para que fins, as tecnologias de DNA são utilizadas na prossecução dos objetivos do inquérito criminal; e como é que a sua utilização é percecionada e representada nos meios de comunicação social. Com base na consulta de processos judiciais e na análise de notícias Coimbra Editora ®

Introdução

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publicadas na imprensa, o autor conclui que prevalece uma submissão simbólica à supremacia da ciência e ao conhecimento produzido em espaço laboratorial, que se joga em contínua tensão com fatores fundamentais na interpretação dos indícios biológicos e na resolução dos casos criminais, tais como a experiência, o conhecimento e o trabalho dos investigadores criminais. No texto seguinte, Susana Costa desenvolve uma análise dos constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal, e suas repercussões na utilização da base de dados nacional forense, com base numa análise da legislação e através da realização de entrevistas a membros dos órgãos de investigação criminal. A autora identifica dificuldades várias na cientifização da atividade policial (tais como a burocratização e baixa operacionalidade da base de dados genéticos forense) e destaca de entre outros fatores a questão da preservação da cadeia de custódia, cuja integridade se encontra permanentemente ameaçada pelas práticas rotineiras dos atores da investigação criminal e os constrangimentos que norteiam a sua atividade quotidiana. A última secção do livro incide sobre o papel da tecnologia na investigação criminal, no passado, no presente e no futuro. O texto de Helena Costa e Luís Miranda descreve, numa linguagem acessível a leigos, as potencialidades e limites dos métodos de previsão de caraterísticas fenotípicas (por exemplo, o sexo e a cor dos olhos e do cabelo) na análise de amostras de local de crime, ou até de corpos em avançado estado de decomposição. Este método tem vindo a ser apresentado como podendo potenciar a poupança de tempo e outros recursos importantes para as investigações por permitir limitar as possibilidades a considerar no âmbito de uma identificação. Não obstante os autores destacarem a elevada potencialidade, presente e futura, do método de previsão de características físicas, salientam que é imprescindível acautelar as questões éticas, legais e técnicas subjacentes ao uso destas metodologias, e que este tipo de prova nunca pode ser usado para condenar ninguém, apenas para restringir o número de suspeitos a considerar. O livro finaliza com o texto de Diana Miranda, que apresenta uma análise da evolução histórica da utilização da tecnologia e da ciência nos métodos de identificação criminal em Portugal. A autora desenvolve com detalhe o trajeto evolutivo das práticas de identificação criminal, desde a criação de registos criminais com descrições Coimbra Editora ®

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físicas, medições antropométricas e impressões digitais, até às mais recentes tecnologias biométricas, como é o caso do recurso ao DNA. Trata-se, no fundo, de identificar, no período compreendido entre o século XIX e o século XXI, mais continuidades do que descontinuidades na utilização de instrumentos de identificação criminal e formas de individualização e nos mecanismos de vigilância e controlo estatal que se legitimam por via da autoridade epistémica da ciência. Em suma, este livro ambiciona proporcionar um contributo inovador para o debate em torno das incertezas, inquietudes e complexidades que as bases de dados genéticos forenses podem suscitar, ao procurar responder a duas interpelações fundamentais: em primeiro lugar, ao desafio da necessidade de produção de conhecimento multidisciplinar e intercultural em torno dos impactos e consequências da criação, utilização e expansão deste tipo de base de dados. Em segundo lugar, à necessidade de consolidar uma reflexão crítica em torno da conciliação e equilíbrio entre o inegável valor das bases de dados genéticos forenses na investigação criminal e a ponderação dos riscos; riscos que se colocam em termos de direitos humanos, mas também no plano da reprodução de desigualdades sociais e da discriminação social e étnica; sem deixar de refletir ponderar a vertente do reforço de mecanismos de vigilância do Estado e de consolidação de processos técnico-científicos e jurídicos de categorização moral e cultural dos cidadãos. Para finalizar, salientamos que a presente publicação integra reflexões e olhares construídos por especialistas provenientes de países muito diversos — com diferentes estruturas organizacionais de investigação do crime, com diferentes culturas judiciárias e práticas policiais, com histórias de governabilidade de tecnologia e níveis de confiança pública bastante distintas. O enquadramento destas reflexões conduz-nos a questionar se as inquietudes e incertezas associadas à utilização de bases de dados genéticos forenses não se agudizarão nos países que incorporam mais tardiamente a utilização deste tipo de instrumento… HELENA MACHADO e HELENA MONIZ

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PARTE I REGULAÇÃO E DIREITO

IDENTIDADES TECNOCIENTÍFICAS NA ESFERA FORENSE E MÉDICA: PERSPETIVAS DE CIDADÃOS SOBRE INSERÇÃO DE PERFIL GENÉTICO EM BASE DE DADOS E ACERCA DE DOAÇÃO DE EMBRIÕES PARA INVESTIGAÇÃO HELENA MACHADO SUSANA SILVA

1. INTRODUÇÃO O material biológico humano e o seu potencial para o desenvolvimento da investigação científica e da aplicação de técnicas de genética molecular em diferentes áreas da vida social — por exemplo, na medicina e no combate à doença, ou no campo forense da investigação criminal — tem criado conexões sociais ambivalentes que articulam atores humanos, instituições e valores e normas em complexas redes sociotécnicas e que constituem a base de construção de identidades que estabelecem inter-relações entre o corpo molecular, as trajetórias de vida e as identidades individuais e coletivas (Hauskeller, 2006). Diferentes modalidades de construção de identidades e subjetividades têm resultado da aplicação de meios tecnocientíficos a produtos direta ou indiretamente extraídos do corpo humano como o sangue, amostras de DNA, gâmetas ou embriões. Referimo-nos, por exemplo, a identidades médicas associadas a indivíduos/grupos classificados como saudáveis ou (potencialmente) doentes; a identidades cívicas baseadas em movimentos sociais e associações de doentes; a identidades coletivas ligadas à Regulação e direito

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origem genética e traduzidas na ideia de ‘raça’ ou ‘etnia’; identidades suspeitas relacionadas com indivíduos ou grupos identificados como tendo uma probabilidade elevada de cometer crimes; e identidades relacionais que se consubstanciam na articulação entre laços biogenéticos e relações afetivas e emocionais (Machado e Silva, 2011). O nosso objetivo é analisar, para o caso português, as identidades tecnocientíficas que emergem de representações sociais e expectativas sobre a inserção de perfil genético em base de dados forense e acerca da doação de embriões para investigação científica manifestadas por cidadãos que participaram em dois estudos coordenados pelas autoras, que tinham em comum a pretensão de mapear modalidades de compreensão pública da ciência e tecnologia. Com base em inquéritos, nestes estudos recolheu-se informação, respetivamente, sobre as opiniões de cidadãos acerca da base de dados nacional forense com propósitos de identificação civil e criminal (1) e sobre as opiniões de casais envolvidos em técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) acerca da investigação científica com recurso a embriões (2). Os processos sociais que articulam atores humanos, instituições, materiais e artefactos biológicos (no caso em análise, perfis genéticos inseridos em base de dados forense e embriões criopreservados que podem

(1) O projeto Base de dados de perfis de DNA com propósitos forenses em Portugal: questões de âmbito ético, prático e politico (FCOMP—01—0124—FEDER—009231), coordenado por Helena Machado e sediado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, foi financiado por Fundos FEDER através do Programa Operacional Fatores de Competitividade — COMPETE e por Fundos Nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e Tecnologia. Colaborou na recolha e análise de dados Daniel Maciel. (2) O projeto Saúde, governação e responsabilidade na investigação em embriões: as decisões dos casais em torno dos destinos dos embriões (FCOMP—01—0124—FEDER—014453), coordenado por Susana Silva e sediado no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), foi financiado por Fundos FEDER através do Programa Operacional Fatores de Competitividade — COMPETE e por Fundos Nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e Tecnologia. Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética do Hospital de S. João. Colaboraram na recolha e análise de dados Catarina Samorinha e Sandra Sousa.

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Parte I

Identidades tecnocientíficas na esfera forense e médica…

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ser doados para investigação) são aqui discutidos em dois contextos que, embora distintos, partilham vários elementos: incluem o envolvimento dos cidadãos com a ciência e a tecnologia e relacionam-se com fenómenos que têm sido enquadrados por cientistas, políticos e diferentes especialistas como campos promissores para a construção de um futuro melhor, seja pelo combate mais eficaz ao crime por via da expansão e utilização crescente de uma base de dados genéticos com propósitos forenses, seja pelo desenvolvimento da investigação científica com recurso a embriões que poderá possibilitar novas terapias ou melhorar a eficácia das opções terapêuticas disponíveis. Neste texto analisam-se as respostas às seguintes questões colocadas, respetivamente, nos referidos inquéritos: aceitaria ter o seu perfil genético individual numa base de dados forense (sim, não, talvez) e porquê (questão aberta); consentiria o uso dos seus embriões em projetos de investigação científica (sim, não, não responde); qual a principal razão passível de justificar a doação ou não doação de embriões para investigação científica (questão aberta). As respostas obtidas foram sistematicamente codificadas e sintetizadas por categorias e registou-se a respetiva frequência, de acordo com o protocolo estabelecido por Stemler (2001) para a análise de conteúdo temática. Obteve-se um nível de concordância total e todas as dúvidas foram resolvidas através de discussão conjunta até se obter consenso. Das identidades tecnocientíficas que podem ser construídas a partir da análise das respostas a estas questões emergem subjetividades assentes na negociação de sentido atribuído aos genes, ao seu próprio material biológico e aos seus embriões, mas também em conexões com configurações de direitos civis e interpretações de responsabilidade individual e coletiva em matérias de saúde, de solidariedade e de combate ao crime. Essas subjetividades têm sido designadas por cidadania biológica (Rose e Novas, 2005; Rose, 2007), cidadania genética ou cidadania biopolítica (Heath et al., 2004; Gibbon e Novas, 2008), na medida em que se enquadram na perceção de direitos e responsabilidades associados a riscos e benefícios, individuais e públicos, decorrentes do uso de material biológico humano pela tecnociência (Einsiedel, 2009: 193-194). Regulação e direito

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Logo, as questões que orientam a nossa análise são as seguintes: de que forma as identidades tecnocientíficas manifestadas nas respostas dos inquiridos se relacionam com identidades individuais e coletivas? Como é que os cidadãos se situam perante as promessas de elevadas expectativas (combate ao crime, combate à doença) que são prometidas por estas tecnologias inovadoras? Como é que os participantes avaliam os riscos e benefícios associados a estas tecnologias e como é que essa avaliação pode produzir implicações nas respetivas representações sociais sobre os seus próprios direitos e deveres enquanto cidadãos? 2. LEGISLAÇÃO, REGULAÇÃO SOCIAL E O DADOR SUPER-CIDADÃO A regulação da recolha de material biológico e de informação genética tem sido pautada, em Portugal, por um conjunto de normas e valores assentes na importância do consentimento informado e livre dos cidadãos, na responsabilidade individual para o bem comum e na ênfase colocada nas noções de dádiva e altruísmo de cidadãos voluntários que facultam células, tecidos ou órgãos humanos (Machado e Silva, 2008; Silva e Machado, 2009). Nesta secção descrevemos alguns aspetos da lei que em Portugal regula a recolha, armazenamento e processamento de informação genética com objetivos forenses (para identificação civil e criminal) e da lei que regula a aplicação de técnicas de procriação medicamente assistida e a investigação com embriões humanos, que ilustram o alinhamento com normatividades assentes nas ideias de voluntariedade cidadã e na responsabilidade individual de contribuir para o bem comum, por via da ajuda à ciência e tecnologia através da doação de material biológico ou embriões. A 21 de março de 2005, o então recém-eleito governo Socialista anunciou a intenção de criar uma base de dados genéticos de toda a população para efeitos de identificação civil que poderia também ser usada no trabalho de investigação criminal. Este plano de criação de uma base universal de dados genéticos com finalidades de identificação civil e criminal foi enquadrado pelo governo num conjunto de várias estratégias para melhorar a justiça em Portugal, sendo perspetivado como Coimbra Editora ®

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Identidades tecnocientíficas na esfera forense e médica…

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parte de diversas medidas concebidas para ‘tornar mais eficaz o combate ao crime e a justiça penal’ respeitando as garantias de defesa do arguido (Programa do XVII Governo de Portugal, 2005). Esta proposta nunca chegou a concretizar-se e, na realidade, a Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro, que veio a criar a base de dados nacional forense com objetivos de identificação civil e criminal é das mais restritivas da Europa (Machado et al., 2011; Machado, 2011) no que diz respeito aos critérios de inserção e manutenção de perfis genéticos. Ao contrário das bases de dados de perfis genéticos recorrentemente apontadas como casos de sucesso na área forense — como as da Áustria, Escócia, Inglaterra e Irlanda do Norte, em que os perfis de indivíduos condenados podem ser conservados indefinidamente, o que também acontece nos casos de simples suspeitos, mesmo após a sua ilibação, em Inglaterra e Irlanda do Norte —, em Portugal adotou-se uma solução de caráter restritivo: apenas se inserem os perfis de indivíduos condenados por crime doloso a pena concreta de prisão igual ou superior a três anos (ainda que tenha sido substituída) e desde que haja despacho do juiz de julgamento determinando aquela inserção (n.º 2 do art. 8.º) e os perfis são removidos na mesma data em que se procede ao cancelamento definitivo das respetivas decisões no registo criminal (n.º 1, al. f ), do art. 26.º). A ideia de criação de uma base de dados genéticos universal deixou, contudo, a sua marca. O legislador optou por incluir o cidadão voluntário ao estipular no art. 6.º a possibilidade de construção da base de dados forense a partir de voluntários que, de forma “livre e informada”, aceitem doar a sua “impressão digital genética”. O voluntário deverá dirigir, por escrito, o seu pedido de recolha às entidades competentes para a análise laboratorial da respetiva amostra (o Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária e o Instituto Nacional de Medicina Legal), o que simbolicamente significa a maximização da sua liberdade, autonomia e sentido de bem comum, tornando-se num super-cidadão, coadjuvante da super-ciência que tem como missão combater o crime. A imagem do cidadão empenhado no bem comum, comprometido em apoiar a ciência e a tecnologia na sua missão de trazer benefícios para Regulação e direito

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a sociedade também surge reproduzida na lei portuguesa que regula a aplicação de técnicas de PMA, publicada em 2006 (Lei n.º 32/2006), e que permite a investigação com recurso a embriões não criados deliberadamente para esse propósito. A realização de tais estudos carece da autorização do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) e da convicção de que os seus resultados possam originar benefícios, presentes e futuros, para a humanidade. Tais benefícios podem incluir propostas de intervenção clínica inovadoras passíveis de serem aplicadas a problemas de saúde como o transplante de órgãos e o tratamento de desordens neurodegenerativas (como Parkinson, Alzheimer e esclerose múltipla) e doenças crónicas e cardíacas (Gottweis et al., 2009; Lynch, 2009; Prainsack et al., 2008), assim como na melhoria do sucesso e da qualidade dos tratamentos de fertilidade. Em Portugal, os casais com embriões criopreservados têm que assinar um consentimento expresso, informado e consciente, cujo modelo atual foi aprovado pelo CNPMA em Junho de 2013, escrevendo “sim” ou “não” no retângulo colocado à frente da seguinte afirmação: “Consentimos no uso dos nossos embriões em projetos de investigação científica” (CNPMA, 2013). Logo, para além da existência de centros e de equipas de investigação e de políticas que permitam a investigação com recurso a embriões, esta também depende da decisão de cidadãos que consintam a doação dos seus embriões para uma super-ciência que visa combater a doença. Porém, a obrigatoriedade de obtenção de um consentimento informado por parte dos casais com embriões criopreservados quanto à doação dos mesmos para investigação científica poderá registar alterações a breve trecho. No dia 24 de fevereiro de 2011, o Conselho de Ministros aprovou um regime de utilização de células estaminais de origem humana para fins de investigação científica que previa a criação de um sistema de informação para os dadores de embriões idêntico ao sistema dos dadores de órgãos biológicos (Firmino, 2011). Logo, partiu-se do princípio de que os casais que recorrem à PMA em Portugal querem doar os seus embriões para investigação científica e, como tal, quem não o quiser fazer terá que o declarar expressamente. Desta forma, o enquadramento legislativo português poderá deixar de privilegiar os Coimbra Editora ®

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destinos dos embriões que envolvem um projeto parental a favor da investigação com recurso aos mesmos, alteração com eventuais implicações nas decisões dos casais sobre o destino dos embriões criopreservados (Silva et al., 2011). Poder-se-á vislumbrar nestas normatividades pautadas pelo conceito de voluntário e de cidadão-dador a emergência de uma nova moralidade que “obriga” os super-cidadãos a proporcionar dádivas para as super-ciências forenses e médicas orientadas para o bem comum (Rose e Novas, 2005), seja sob a forma de perfil genético destinado a investigar a criminalidade, seja pela doação de embriões criopreservados para projetos de investigação científica? Como se conjuga a proteção dos direitos individuais, da liberdade, autonomia e privacidade com o ‘dever’ de doar material biológico e consentir a entrada do respetivo perfil genético na base de dados forense ou no ‘dever’ de doar os seus embriões para colaborar com a investigação científica destinada a melhorar a saúde? A promoção do sentido de responsabilidade individual na manutenção da ordem social, quer pela doação de uma amostra biológica do próprio corpo, cuja análise se destina a ser incorporada numa base de dados de perfis genéticos que pretende combater o crime, quer pela doação de embriões para combater a doença, pode ser perspetivada como uma nova forma de reproduzir as distinções sociais entre os cidadãos respeitáveis e altruístas e os cidadãos suspeitos e egoístas? De que forma as expectativas dos cidadãos se entrecruzam com modalidades de confiança pública nas instituições do sistema de justiça e da medicina e se articulam com representações sociais relativas a crenças no poder da ciência para combater dois dos principais males que afetam as sociedades: o crime e a doença. Sendo ainda escasso em Portugal o conhecimento científico das expectativas e representações sociais dos cidadãos relativamente à doação de perfil genético para inserção na base de dados nacional forense (Machado e Silva, 2014) e à doação de embriões criopreservados para investigação (Silva, Samorinha e Machado, 2013; Silva et al., 2013), o presente texto sistematiza alguns dados recolhidos pelas autoras, analisando-os à luz das principais identidades tecnocientíficas que emergem Regulação e direito

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das interseções entre cidadania biopolítica, confiança pública e voluntariedade em Portugal nos dois contextos supramencionados. 3. MOTIVAÇÕES PARA ACEITAR OU NÃO ACEITAR DOAR O PERFIL GENÉTICO PARA A BASE DE DADOS NACIONAL FORENSE As bases de dados genéticos forenses podem ser muito úteis nas atividades de investigação criminal e na aplicação da justiça, mas a sua utilização suscita questões éticas, sociais e políticas diversas e complexas que, do nosso ponto de vista, devem ser equacionadas no quadro de um envolvimento adequado de vários atores sociais, nomeadamente legisladores, operadores judiciários, peritos forenses, políticos, mas também cidadãos comuns. Comparando os resultados obtidos sobre as opiniões e experiências públicas relativamente à utilização de bases de dados genéticos forenses em Espanha (Gamero et al., 2007; Gamero et al., 2008) Estados Unidos da América (Dundes, 2001) e Reino Unido (Wilson-Kovacs et al., 2012; Anderson et al., 2011; Human Genetics Commission, 2008, 2009) verifica-se consenso em torno dos seguintes tópicos: receio de que a informação genética seja acedida por entidades externas e estranhas às atividades de investigação criminal, em particular seguradoras e agentes movidos por intuitos comerciais; apoio à inserção de perfis genéticos de condenados por crimes graves neste tipo de bases de dados; e crença generalizada na tecnologia de DNA como um instrumento que pode tornar a investigação criminal mais eficaz. Com o intuito de contribuir para um debate alargado e multifacetado em torno dos potenciais benefícios e riscos das bases de dados genéticos com propósitos forenses, identificaremos, de seguida, algumas das tendências das perspetivas públicas em Portugal relativas à criação, regulação e utilização deste tipo de bases de dados. Para tal, baseamo-nos nos resultados apurados pela aplicação de questionários online a uma amostra não representativa de 628 portugueses, cujos procedimentos de recrutamento e seleção, assim como de recolha dos dados, foram já descritos (Machado e Silva, 2014). A maioria dos participantes era do sexo feminino (69,3%) e tinha um diploma do ensino superior (82,9%). Cerca de metade dos inquiridos tinha menos de 30 anos (50,3%) (Tabela 1). Coimbra Editora ®

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Tabela 1 Características dos participantes Frequência n(%) Sexo Feminino

435 (69,3)

Masculino

193 (30,7)

Idade (anos) 35

211 (33,6)

Nível de escolaridade ≤ 12.º ano

109 (17,4)

Ensino superior

519 (82,6)

Na tabela 2 descrevem-se os motivos mencionados pelos participantes para aceitar, talvez aceitar ou recusar a inserção do próprio perfil na base de dados criminal. Quase metade dos participantes (46,5%) aceitaria a inserção do seu próprio perfil na base de dados, enquanto 30,3% responderam “talvez” e 23,2% recusariam. Os participantes que mencionaram aceitar ou recusar a inclusão do seu perfil genético na base de dados justificaram as suas respostas sobretudo com razões ligadas à categoria “O cidadão cumpridor da lei” (45,9% e 59,6%, respetivamente), a qual assenta numa categorização moral que distingue entre cidadãos “suspeitos” e cidadãos que cumprem a lei e que não cometerão crimes e que, por isso, aceitariam de bom grado doar o seu perfil genético para inserção na base de dados criminal. Os motivos relacionados com questões de “regulação e direitos humanos” foram mais frequentemente apontados pelos indecisos (40,5% vs 27,4% dos que recusariam e 24,0% dos que aceitariam). Os “benefícios societais” constituem o terceiro grupo de argumentos apresentado por aqueles que aceitaram (22,9%), ou talvez aceitassem (11,1%) serem incluídos na base Regulação e direito

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de dados, argumentos que nunca foram utilizados por aqueles que recusaram a inserção. Os motivos mais frequentemente apontados para aceitar a inserção do próprio perfil genético na base de dados criminal surgem associados tanto a uma tónica de caracterização moral que distingue os cidadãos cumpridores da lei (aqueles que “não devem, não temem”) dos cidadãos “suspeitos”, como a valores de altruísmo e de responsabilidade individual em contribuir para o bem coletivo — expressos em respostas que acentuam que doar o próprio perfil pode ajudar a justiça e o combate ao crime ou que é um dever de todo o cidadão. A convicção de que aceitar a inserção do próprio perfil genético é algo que serve os interesses da sociedade foi ainda expressa, entre aqueles que aceitariam, pela ideia de que todos os cidadãos deveriam estar na base de dados genéticos com propósitos forenses. O desconhecimento sobre o tipo de regulação, a falta de confiança quanto ao controlo que é feito no acesso à base de dados e ao uso dos dados genéticos e a falta de informação sobre a base de dados foram algumas das razões mais invocadas pelos indecisos. Os que recusariam reportaram mais frequentemente um distanciamento relativamente à população envolvida em atividades criminais, a falta de confiança no acesso e no uso dos dados genéticos e a convicção de que a inserção do perfil genético na base de dados constituiria uma violação da privacidade. Tabela 2 Motivos para aceitar, talvez aceitar ou recusar a inserção do próprio perfil na base de dados criminal, por tipo de predisposição Aceitar n=292 n (%)

Talvez aceitar n=190 n (%)

Recusar n=146 n (%)

O cidadão cumpridor da lei

134 (45,9)

62 (32,6)

87 (59,6)

Não sou criminoso

4 (1,4)

16 (8,4)

87 (59,6)

Para ajudar no combate ao crime

61 (20,9)

31 (16,3)

0 (0,0)

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Aceitar n=292 n (%)

Talvez aceitar n=190 n (%)

Recusar n=146 n (%)

Quem não deve, não teme

53 (18,2)

9 (4,7)

0 (0,0)

É o dever do cidadão (contribuir)

16 (5,5)

6 (3,2)

0 (0,0)

Regulação e direitos humanos

70 (24,0)

77 (40,5)

40 (27,4)

Todos deveriam estar na base de dados

68 (23,3)

3 (1,6)

0 (0,0)

Depende do tipo de regulação

2 (0,7)

48 (25,3)

3 (2,1)

Falta de controlo no uso e acesso

0 (0,0)

22 (11,6)

20 (13,7)

É uma violação da minha privacidade

0 (0,0)

4 (2,1)

17 (11,6)

Benefícios societais

67 (22,9)

21 (11,1)

0 (0,0)

Para a minha proteção e da sociedade

23 (7,9)

8 (4,2)

0 (0,0)

Para uma justiça mais eficaz

23 (7,9)

5 (2,6)

0 (0,0)

Útil na identificação criminal e civil

17 (5,8)

7 (3,7)

0 (0,0)

Para pesquisa científica

4 (1,4)

1 (0,5)

0 (0,0)

Outros motivos

4 (1,4)

18 (9,5)

12 (8,2)

Preciso de mais informação

1 (0,3)

13 (6,8)

2 (1,4)

Usos incorretos na justiça criminal

0 (0,0)

2 (1,1)

5 (3,4)

É inútil

0 (0,0)

2 (1,1)

5 (3,4)

É igual à impressão digital

3 (1,0)

1 (0,5)

0 (0,0)

Sem resposta

17 (5,8)

12 (6,3)

7 (4,8)

4. MOTIVAÇÕES PARA ACEITAR OU NÃO ACEITAR DOAR EMBRIÕES PARA INVESTIGAÇÃO Políticos, investigadores e cientistas tendem a depositar elevadas expectativas no poder regenerador e curativo das células estaminais embrionárias, muitas vezes percepcionadas como “super-heróis” contemporâneos (Burns, 2009) capazes de melhorar a satisfação dos profissionais de saúde e doentes e de solidificar a confiança pública na ciência, tecnologia e medicina (Genuis, 2008). Na sustentação de tais expectativas Regulação e direito

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podem mascarar-se questões sociais, éticas e científicas controversas, tais como: a submestimação do conhecimento existente sobre a prevenção de doenças; o debate sobre a aceitabilidade social e moral da investigação em embriões de origem humana e a correspondente atribuição de patentes; a mercadorização de tecidos humanos e células estaminais embrionárias, assim como a instrumentalização de mulheres e homens como fontes de embriões; o turismo científico e eventual competição jurisdicional; o acesso diferenciado às terapias resultantes dessa investigação; e a escassez de envolvimento dos públicos nos processos de decisão (Alves et al. 2013). Na realidade, as motivações e expectativas de quem aceitou ou não aceitou doar embriões para investigação científica só muito recentemente começaram a ser analisadas em países como os EUA, Canadá, Austrália, Bélgica e Reino Unido, mas em Portugal esta temática ainda não foi explorada (Silva et al., 2012). Tais estudos realçam as seguintes motivações por parte de quem aceitou doar os seus embriões para uso em projetos de investigação: 1) o interesse em contribuir para o desenvolvimento científico e a percepção de que essa será a melhor alternativa para evitar a destruição dos embriões (Haimes et al., 2008; Haimes e Taylor, 2009; Hammarberg e Tinney, 2006; Lyerly et al., 2006; Mitzkat et al., 2010; Zweifel et al., 2007); 2) ter confiança na equipa médica (Lyerly et al., 2006; Nachtigall et al., 2010), a sensação de reciprocidade (de Lacey, 2005; McMahon et al., 2000) e altruísmo (Lyerly et al., 2006; Zweifel et al., 2007) e poder atribuir utilidade a embriões classificados como de “má qualidade” e não transferidos para o útero (Haimes et al., 2008; Haimes e Taylor, 2009; Mitzkat et al., 2010); 3) a perceção de que o embrião não é uma pessoa (Haimes et al., 2008), ter concretizado o desejo de ter um filho (Choudhary et al., 2004) e ter um familiar doente que poderá beneficiar dos avanços na investigação científica (Zweifel et al., 2007). Também de acordo com estes estudos, quem decidiu não doar embriões para investigação usou os seguintes argumentos: 1) a convicção de que o embrião é uma potencial criança e/ou filho que deve ser tratado com dignidade (Bjuresten e Hovatta, 2003; Hammarberg e Tinney, 2006; Laruelle e Englert, 1995; Lyerly et al., 2006) e destinado à utilização Coimbra Editora ®

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exclusiva de quem lhe deu origem (Haimes et al., 2008; Haimes e Taylor, 2009; Hill e Freeman, 2011; Mitzkat et al., 2010); 2) a falta de confiança na ciência e/ou nos médicos e investigadores (Choudhary et al., 2004; Lyerly et al., 2006; McMahon et al., 2000; Nachtigall et al., 2010), assim como o desconhecimento acerca dos objetivos dos projetos de investigação (Laruelle e Englert, 1995; Mitzkat et al., 2010); 3) a preferência pela doação de embriões a outro casal (Hammarberg e Tinney, 2006; Hill e Freeman, 2011), a discordância entre os membros do casal quanto à doação de embriões para investigação científica e ainda motivos relacionados com crenças religiosas (Choudhary et al., 2004). Entre 17 de agosto de 2011 e 16 de agosto de 2012, duas entrevistadoras administraram 313 questionários junto de 221 casais heterossexuais e de 92 mulheres envolvidos em fertilização in vitro ou injeção intracitoplasmática de espermatozoides na Unidade de Medicina da Reprodução de um Hospital público português sobre as suas decisões quanto ao destino dos embriões criopreservados, obtendo-se uma proporção de participação de 96%. A idade, o nível de escolaridade e o estatuto profissional dos participantes estão descritos na tabela 3. A maioria estava empregada (80,7%) e 40,8% tinham mais de 35 anos. Pouco mais de um quarto dos participantes declarou ter o ensino superior (28,1%). Tabela 3 Características dos participantes Frequência n(%) Sexo Feminino

313 (58,6)

Masculino

221 (41,4)

Idade (anos) 35

218 (40,8)

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Helena Machado / Susana Silva Frequência n(%) Nível de escolaridade ≤ 12.º ano

384 (71,9)

Ensino superior

150 (28,1)

Nas tabelas 4 e 5 descreve-se o principal motivo mencionado pelos participantes para consentir ou não consentir o uso dos próprios embriões em projetos de investigação científica, de acordo com a respetiva decisão nesta matéria. A grande maioria dos participantes (84,6%) consentiria o uso dos seus embriões em investigação, enquanto 12,0% não o faria. Os casais envolvidos em técnicas de PMA, quer os que aceitariam, quer os que rejeitariam o uso dos seus embriões em investigação, sublinharam a ética da responsabilidade individual para alcançar os “benefícios societais” que resultarão da investigação com recurso a embriões de origem humana, expressa na invocação dos seus contributos para o desenvolvimento científico e para a melhoria dos tratamentos de PMA como a principal razão que justifica a doação de embriões para tal finalidade (soma das duas categorias: 66,6% e 51,5%, respetivamente). O “cidadão coadjuvante da ciência” que pretende “ajudar os outros” constitui o terceiro argumento apresentado por aqueles que aceitariam (19,5%) ou recusariam (15,6%) o uso dos próprios embriões em projetos de investigação (Tabela 4). Tabela 4 Motivos para consentir o uso dos próprios embriões em investigação científica, segundo a decisão dos participantes a este respeito Doação de embriões para investigação Sim Não Não responde n=452 n=64 n=18 n (%) n (%) n (%) Benefícios societais

321 (71,0)

37 (57,7)

13 (72,2)

Para que a ciência possa evoluir

145 (32,1)

20 (31,2)

6 (33,3)

Para melhorar os tratamentos (de PMA)

156 (34,5)

13 (20,3)

7 (38,9)

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Doação de embriões para investigação Sim Não Não responde n=452 n=64 n=18 n (%) n (%) n (%) Para melhorar a saúde humana

20 (4,4)

4 (6,2)

0 (0,0)

O cidadão coadjuvante da ciência Se estão a usufruir da ciência, devem contribuir Para ajudar os outros

111 (24,6)

15 (23,4)

2 (11,1)

19 (4,2)

2 (3,1)

0 (0,0)

88 (19,5)

10 (15,6)

2 (11,1)

Personalidade ou educação

4 (0,9)

3 (4,7)

0 (0,0)

Outros motivos

14 (3,1)

5 (7,8)

1 (5,6)

O casal não querer mais filhos

3 (0,7)

2 (3,1)

0 (0,0)

Dar utilidade aos embriões Conhecer a valorizar a investigação em embriões Sem resposta

7 (1,5)

0 (0,0)

0 (0,0)

4 (0,9)

3 (4,7)

1 (5,6)

6 (1,3)

7 (10,9)

2 (11,1)

Já as motivações reportadas pelos participantes para não doar embriões para investigação diferem segundo a sua decisão a este respeito. Razões como a “falta de informação” acerca dos projetos que pretendem usar os embriões (28,1%), a convicção de que o embrião “é um filho” (21,9%) e o facto de o embrião “ser necessário para o próprio casal” (15,6%) foram mais frequentemente apontadas pelos inquiridos que não aceitariam doar os seus embriões para investigação (soma destas categorias: 65,6% versus 26,1% entre os que aceitariam). O “cidadão não coadjuvante da ciência”, seja por “questões religiosas” (17,3%), por egoísmo (13,3%) ou por “personalidade ou educação” (7,5%), constitui o principal grupo de argumentos apresentado por aqueles que consentiriam no uso dos seus embriões em investigação (38,1% versus 12,5% entre os que não consentiriam) (Tabela 5). Os motivos apontados para consentir ou não o uso dos próprios embriões em investigação científica surgem associados tanto a uma tónica de caracterização moral que distingue, por um lado, os cidadãos altruístas (aqueles que doariam “para ajudar os outros” e alcançar Regulação e direito

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“benefícios sociais) dos cidadãos “egoístas” e, por outro lado, os embriões considerados como “filhos” dos outros embriões, como ao nível de confiança depositado na comunidade e nas instituições científicas, expresso em respostas como o “receio do que pode acontecer aos embriões” e a (in)disponibilidade de informação sobre a investigação em embriões. Tabela 5 Motivos para não consentir o uso dos próprios embriões em investigação científica, segundo a decisão dos participantes a este respeito

O cidadão não coadjuvante da ciência

Doação de embriões para investigação Não Sim Não responde n=452 n=64 n=18 n (%) n (%) n (%) 172 (38,1) 8 (12,5) 3 (16,7)

Questões religiosas

78 (17,3)

1 (1,6)

2 (11,1)

Egoísmo

60 (13,3)

4 (6,2)

0 (0,0)

Personalidade ou educação

34 (7,5)

3 (4,7)

1 (5,6)

Falta de informação e desconfiança

134 (29,7)

24 (37,5)

7 (38,9)

Falta de informação (sobre a investigação)

65 (14,4)

18 (28,1)

5 (27,8)

Receio do que pode acontecer aos embriões

69 (15,3)

6 (9,4)

2 (11,1)

Estatuto do embrião

58 (12,8)

18 (28,1)

3 (16,7)

Pensar que já está ali uma vida

23 (5,1)

4 (6,2)

1 (5,6)

Considerar que (o embrião) é um filho

35 (7,7)

14 (21,9)

2 (11,1)

Outros motivos (O embrião) Ser necessário para o próprio casal Desacordo entre o casal

43 (9,5)

10 (15,6)

2 (11,1)

18 (4,0)

10 (15,6)

2 (11,1)

11 (2,4)

0 (0,0)

0 (0,0)

Não vejo qualquer explicação

14 (3,1)

0 (0,0)

0 (0,0)

Sem resposta

45 (10,0)

4 (6,2)

3 (16,7)

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5. CONCLUSÃO: MODALIDADES DE PRAGMATISMO GENÓMICO CÍVICO A reflexão que aqui se apresenta contribui para robustecer a convicção das autoras de que a construção de espaços públicos de decisão e de debate abertos e flexíveis, que contemplem a heterogeneidade de atores, de públicos e de formas de conhecimento, afigura-se essencial no âmbito das aplicações de tecnologias genéticas, tanto no âmbito forense como no campo médico e da investigação científica, de modo a proporcionar voz e capacidade de expressão a todos os cidadãos. Tem sido comum abordar as visões e racionalidades de diferentes atores sociais como esferas distintas e separadas, perspetiva que assume, ainda que implicitamente, a ideia de que os cidadãos orientam as suas expectativas e valores por objetivos que são, necessariamente, distintos e, quiçá, distantes dos objetivos de legisladores, políticos e cientistas. Ora, neste ensaio mostramos que tanto os cidadãos como especialistas de genética forense e de áreas científicas associadas à PMA partilham uma elevada receptividade ao progresso científico e depositam elevadas expectativas e confiança no poder da ciência e tecnologia para resolver problemas: seja para combater o crime, acreditando-se que a tecnologia de DNA é a arma mais eficaz para identificar criminosos; seja para curar doenças, por via da investigação científica em células estaminais embrionárias, ou para ajudar pessoas com dificuldade em conceber uma criança (ao possibilitar a melhoria de vários indicadores de sucesso das aplicações de técnicas de PMA). Para além das continuidades, é nosso entendimento que é necessário empreender uma análise que também possa mapear as especificidades e as descontinuidades das racionalidades e expectativas de uns e de outros. Nesta secção conclusiva propomo-nos fazê-lo, socorrendo-nos do conceito de pragmatismo genómico cívico para sintetizar as principais características das perspetivas dos cidadãos (e dos especialistas) quer sobre a doação de perfil genético para efeitos forenses, quer quanto à doação de embriões para investigação científica. Este conceito pretende ampliar a sensibilidade relativamente à análise das experiências práticas e da base empírica (pragmatismo) pelas quais os cidadãos (enquanto agentes cívicos) constroem relações biopolíticas de âmbito genómico com as instiRegulação e direito

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tuições, em particular no domínio da medicina e da justiça, que traduzem conexões de trajetórias de vida e conceções sobre o próprio corpo e genes com representações sociais em torno das tecnologias genéticas e das instituições que as utilizam e de quais os direitos e deveres de cada cidadão nesses contextos. O pragmatismo genómico cívico revelado nos estudos aqui analisados manifesta-se pela construção de diferentes modalidades de identidades tecnocientíficas, que se articulam e criam conexões complexas e híbridas, sustentadas por processos de hierarquização moral, social e emocional, que passamos a sistematizar. As identidades tecnocientíficas que emergem das motivações de cidadãos para aceitar, recusar ou estar indeciso relativamente à possibilidade de ter o seu perfil genético individual inserido numa base de dados forense ou para doar ou não doar os seus próprios embriões para investigação científica revelam bio e tecno socialidades que refletem representações sociais em torno do que é benéfico para a sociedade e para o interesse coletivo, co-construídas com base em categoriais sociais que resultam de processos de hierarquização moral dos indivíduos e dos embriões e de hierarquização da confiança depositada nas instituições sociais e, em particular, no sistema de justiça e investigação criminal e na medicina e investigação científica. A aplicação das tecnologias genéticas no campo forense da investigação criminal tem implicações importantes na atribuição de estatuto moral aos indivíduos, distinguindo, por exemplo, entre suspeitos da prática de um crime e “não suspeitos”. Mas a hierarquização moral dos indivíduos por via das tecnologias genéticas estende-se também ao campo da biomedicina, distinguindo, por exemplo, cidadãos altruístas de cidadãos egoístas e embriões “filhos” dos restantes embriões. Estas classificações surgem também associadas à hierarquização de níveis de confiança depositados nas instituições jurídicas e científicas, distinguindo entre receios/riscos e expectativas/benefícios, sociais e individuais, envolvidos nos usos de tecnologias genéticas. Estes resultados revelam articulações entre diferentes tipos de identidades tecnocientíficas descritos na parte introdutória deste texto, nomeadamente, as identidades suspeitas e as identidades médicas, ambas marcadamente pautadas por processos de Coimbra Editora ®

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diferenciação moral e social que veiculam identidades relacionais que se consubstanciam na articulação entre os significados e sentidos atribuídos aos laços biogenéticos e à dimensão afetiva e emocional dos comportamentos e decisões humanas. Às motivações manifestadas pelos cidadãos para justificar a colaboração, de modo altruísta e voluntário, com a justiça e a medicina, subjaz a ênfase neoliberal contemporânea na responsabilidade individual, na auto-governabilidade e na necessidade de promover abordagens assentes no princípio da precaução, orientado para controlar e transformar o futuro de cada um, com consequências sobre o que pensamos sobre as nossas identidades, os nossos corpos e as nossas vidas — individualmente e coletivamente (Clarke et al., 2009). O ato de aceitar ou não aceitar ter o seu perfil genético individual em base de dados genéticos forense e o ato de consentir ou não consentir o uso dos seus embriões em projetos de investigação científica e os motivos apontados para justificar tais decisões traduzem identidades cívicas que conferem sentido ao papel e posição dos cidadãos enquanto indivíduos mas também agentes sociais capazes de poder contribuir para a transformação social ou para benefícios coletivos. As identidades cívicas assentes em tecnologias genéticas criam conexões complexas e híbridas com identidades coletivas que embora tenham uma base genómica se articulam com valores e normas sociais amplos relacionados com representações sociais em torno das instituições e dos riscos e benefícios potenciados pela ciência e tecnologia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Alves, Bruno R. et al. (2013), “Reflexões bioéticas sobre a investigação em embriões de origem humana: O debate nas organizações de ética portuguesas”, História, Ciências, Saúde — Manguinhos (aceite para publicação). Anderson, Claudine et al. (2011), “The national DNA database on trial: Engaging young people in South Wales with genetics”, Public Understanding of Science, 20, (2), 146-162. Bjuresten, Kerstin; Hovatta, Outi (2003), “Donation of embryos for stem cell research — How many couples consent?”, Human Reproduction, 18(6), 1353-1355. Burns, Lawrence (2009), “’You are our only hope’: Trading metaphorical ‘magic bullets’ for stem cell ‘superheroes’”, Theoretical Medicine and Bioethics, 30(6), 427-442. Regulação e direito

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PARÂMETROS ADJETIVOS, CONSTITUCIONAIS E DE DIREITO COMPARADO NA ESTRUTURA DAS SOLUÇÕES LEGAIS PREVISTAS NA LEI N.º 5/2008, DE 12 DE FEVEREIRO (1) HELENA MONIZ 1. INTRODUÇÃO A construção de uma base de dados contendo dados genéticos, ainda que estes se reportem apenas a uma parte do genoma, e ainda que os dados estejam restringidos àquela parte do genoma que não nos permite ter conhecimento de qualquer doença ou predisposição para a contrair, cria logo no jurista a preocupação pela proteção de direitos fundamentais: desde a proteção da dignidade humana até à proteção da reserva da vida privada individual, desde a proteção da integridade física até à proteção do moderno direito à autodeterminação informativa… E, por isso, qualquer colheita de material biológico para a obtenção de um perfil genético, completo ou incompleto, impõe um consentimento do titular daquela informação — consentimento não só para a colheita do material biológico, como para a obtenção da informação que se pode recolher a

(1)

O texto que se segue corresponde à minha intervenção oral realizada no âmbito do Workshop — A base de dados de perfis de ADN para fins de investigação criminal : Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, no âmbito da Formação Contínua 2010/2011 organizada pelo Centro de Estudos Judiciários e que decorreu a 6 de Maio de 2011 (no auditório da Escola Superior de Enfermagem, em Coimbra); apenas se acrescentou uma ou outra nota de rodapé para esclarecimento pontual do raciocínio. Regulação e direito

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partir da análise científica daquele material, como para o armazenamento do material biológico e/ou da informação genética. Esta necessidade de consentimento do titular para a lesão de diversos direitos fundamentais foi a minha preocupação quando escrevi “Os problemas jurídico-penais da criação de uma base de dados genéticos para fins criminais” (Moniz, 2002) (2). Nessa altura não existia lei e ainda me referia à obtenção de um perfil de ADN, para finalidade de investigação criminal, apenas a partir da colheita de sangue. O que me levou a não fazer uma distinção clara entre o momento da colheita e o momento da análise do material biológico, pois ambos os procedimentos, a colheita de sangue e a sua análise, pareciam exigir conhecimentos técnicos específicos (3), como também a concluir, e porque não existia lei, pela necessidade de consentimento do arguido. 2. DIREITO À NÃO-INCRIMINAÇÃO A Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro, pretendeu resolver alguns dos problemas referidos na altura. Mas, novos surgiram. Na verdade, se a consagração na lei da possibilidade de colheita de material biológico e a obtenção do perfil para integração numa base de dados com finalidades de identificação civil e de investigação criminal permitiu, por um lado, ultrapassar os problemas resultantes da necessidade de pedir consentimento para a colheita e para a obtenção do perfil e sua inserção na base, por outro lado, criou algumas dúvidas quanto a certas garantias do arguido. Isto porque, se a admissibilidade legal de utilização do perfil de ADN no âmbito do processo penal nos permite dizer que o legislador

(2)

(Moniz, 2002). E por isso conclui (cit. nota 3, p. 255), no que se referia à análise de sangue para confirmar o estado de toxicodependência do arguido que “sabendo que ‘a recolha ou fixação dos factos através de exame não poderá exigir do seu autor qualquer conhecimento especial de índole científica, técnica ou artística sob pena de haver lugar a perícia’ (Marques Ferreira, 1991), então a recolha e análise de sangue não constitui um exame, mas sim uma perícia”. Penso, como veremos, que a recolha de material biológico através de zaragatoa bucal nos leva a uma conclusão diversa. (3)

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assim justificou as lesões de direitos fundamentais (como o direito de reserva da vida privada, ou o direito à auto-determinação informacional, ou ainda o direito à integridade física (4)) cumprindo o princípio da proporcionalidade em sentido amplo (consagrado no art. 18.º da CRP), não nos permite, no entanto, sermos tão seguros quanto ao direito à não auto-incriminação. O direito à não auto-incriminação costuma ser entendido de um modo bastante restrito, pois muitas vezes é quase reduzido a um direito ao silêncio. Este encontra consagração no nosso CPP (5), maxime na possibilidade de o arguido se remeter ao silêncio em plena audiência de discussão e julgamento, sem que haja possibilidade de recorrer às declarações por ele prestadas anteriormente (e consequentemente aquelas declarações não podem ser valoradas). Este princípio constitui uma consequência da estrutura acusatória do processo (e ainda integrado por um princípio de investigação, a exigir do tribunal uma conduta ativa na busca da verdade material processualmente válida), das garantias de defesa (art. 32.º da CRP (6)), da proteção de forma indireta da dignidade humana e dos direitos fundamentais. Sendo o núcleo principal o direito ao silêncio, o certo é que a doutrina o tem estendido ao direito a não entregar documentos, nomeadamente, diários íntimos. O problema surge relativamente aos exames e diligências que sejam realizadas diretamente no corpo da pessoa (arguido, suspeito, condenado, vítima…). A doutrina divide-se: alguns seguem uma perspetiva restritiva do princípio da não auto-incriminação, limitando-o ao direito ao silêncio, e admitindo como não lesivo deste princípio a colheita de material biológico através da raspagem da mucosa bucal com zaragatoa sempre que o arguido nada diga e, portanto, exerça o seu direito ao silêncio;

(4)

Não entendo que a simples raspagem da mucosa bucal com uma zaragatoa para a obtenção de material biológico constitua uma lesão da integridade física com relevo sob o ponto de vista jurídico-penal. Diferente poderá ser o entendimento quando seja necessário fazer uma colheita de sangue através da inserção de uma agulha no corpo da pessoa. (5) Nos arts. 61.º, n.º 1, al. d), 132.º, n.º 2, 141, n.º 4, al. a), 343.º, n.º 1. (6) Neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 695/95. Regulação e direito

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outros que têm uma conceção mais ampla do princípio da não-autoincriminação, pelo que a simples obtenção de material biológico contra a vontade do arguido, ainda que nem sequer seja utilizada a força física (porque o arguido abriu a boca, embora tendo declarado expressamente que a colheita era realizada contra a sua vontade), constitui uma violação daquele princípio e das garantias de defesa do arguido asseguradas constitucionalmente; estes últimos consideram que constitui uma vertente do princípio da não auto-incriminação o direito à recusa em realizar exames ou outras diligências de prova que tenham por objeto o corpo de uma pessoa. Assim sendo, será que o legislador deveria ter consagrado uma norma idêntica à constante do art. 34.º, n.º 4, da CRP, que respeita às ingerências das autoridades nas telecomunicações? Será que neste âmbito, e tendo em conta que a simples colheita de material biológico e obtenção do perfil de ADN para fins de identificação não constitui uma atividade tão intrusiva como a que decorre da ingerência nas telecomunicações (caso em que para além do arguido há sempre a possibilidade de lesar direitos fundamentais de outras pessoas) é necessária uma consagração constitucional expressa? Os princípios não são absolutos, admitindo exceções e impondo a realização de uma concordância prática entre os interesses em conflito. Penso que as situações têm que ser avaliadas em função do concreto arguido, do tipo de criminalidade, das provas que existem, do que é necessário para acrescentar maior convicção quanto a ter sido ele (ou não) a praticar o crime. Por exemplo, suponhamos que alguém furta uma maçã num supermercado, a come e, em seguida, atira o caroço para o caixote. A partir do caroço poderá ser possível recolher material biológico que poderá permitir a obtenção de um perfil de ADN. Mas justifica-se, à luz de uma concreta ponderação de interesses, a violação do princípio da não auto-incriminação? Poderá o juiz nestas circunstâncias entender que é necessária a realização da análise para obter o perfil de ADN, tendo em conta o direito à reserva da intimidade do visado? Penso que, caso a caso, deve ser realizada a respetiva ponderação — o que está assegurado pelo disposto no art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008. Pois, de acordo com o art. 8.º, n.º 1, o juiz pode ordenar a recolha de amostras em processo crime ao abrigo do disposto no art. 172.º do CPP. Ora, nos termos do Coimbra Editora ®

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art. 154.º, n.º 2 (ex vi art. 172.º, n.º 2) o juiz deve ponderar “a necessidade da sua realização tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado”. Mas, se a necessária ponderação parece assegurada quando se trata da colheita em arguido, o mesmo não parece estar assegurado no caso de suspeito. A Lei n.º 5/2008 em lugar algum admite a possibilidade de colheita de material biológico para a obtenção do perfil de ADN em suspeito. Pelo que entendo que se for pedido ao suspeito este procedimento, o suspeito deve, ao abrigo do art. 59.º, n.º 2, pedir a sua constituição de arguido. Porém, a mesma ponderação não parece existir quando se trata da colheita de material biológico e obtenção do perfil de ADN em condenado. À luz da Lei n.º 5/2008 e do seu art. 8.º, n.º 2, e considerando que o despacho é um despacho “quase-automático” (Reis Bravo, 2010 (7)) — a partir do momento em que estejamos perante um caso de condenação transitada em julgado, por crime doloso, em pena concreta superior a 3 anos de prisão (ainda que tenha sido substituída) — então, parece não ser realizada qualquer ponderação entre, por um lado, o direito à não auto-incriminação do arguido e, por outro lado, a necessidade de armazenamento do seu perfil na base de dados de perfis de ADN para finalidades criminais. Sempre se poderá argumentar com a ideia de que o legislador já fez a necessária ponderação estabelecendo um limite à possibilidade de o perfil ser integrado em função da pena concreta em que o arguido tenha sido condenado. Limitação, no entanto, que não se afigura suficiente para todos aqueles que prefeririam a consagração de um catálogo de crimes a justificar aquela recolha e inclusão. Tem sido, aliás, feito alguma paralelismo com o regime das escutas telefónicas — embora eu entenda que neste último caso a lesão de direitos fundamentais é muito mais gravosa atendendo a que não só o arguido mas também terceiros que nada tenham a ver com o crime podem ser afetados; o que não ocorre na obtenção do perfil de ADN

(7)

Perfis de ADN de arguidos-condenados (o art. 8.º, n.os 2 e 3, da Lei n.º 5/2008, de 12-02), RPCC, n.º 1, 2010 (Jan.-Mar.), p. 97 e ss. Regulação e direito

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nos termos da Lei n.º 5/2008, dado que o marcador utilizado para a obtenção daquele perfil deverá ser sempre um que não forneça informação de saúde ou de características hereditárias específicas (cf. art. 2.º, als. b), f ) e e), art. 12.º). No entanto, a intromissão mais gravosa ocorre em momento posterior ao da inserção do perfil de ADN na base, obtido após a condenação. Na verdade, uma vez inserido, haverá automaticamente o cruzamento desta informação com a informação integrada na base (todos os perfis entretanto nela inseridos), permitindo assim, eventualmente, concluir (eventualmente, porém com maior frequência à medida que a base tenha mais e mais perfis inseridos) que o mesmo perfil tinha sido encontrado num outro local de crime e assim iniciar-se ou reiniciar-se um novo processo para averiguar se, na verdade, estamos ou não perante o agente daquele outro crime (conclusão a que só se poderá chegar com a articulação com outros elementos de prova, pois em caso algum pode ser tomada uma decisão exclusivamente com base no tratamento dos perfis de ADN: arts. 3.º, n.º 4, e 38). 3. LEGISLAÇÃO EM PAÍSES EUROPEUS Passemos agora a uma breve referência à legislação de outros países europeus sobre a matéria. Em Inglaterra (e País de Gales e Escócia) o critério de inserção de perfis de ADN na base é bastante amplo, admitindo a possibilidade de inserção em relação a detidos por qualquer crime. Os perfis ficam retidos na base indefinidamente no caso de Inglaterra (8) e País de Gales, e são eliminados quando os titulares são absolvidos; ou ficam retidos indefinidamente quando os titulares são condenados, no caso da Escócia. Na Alemanha, são integrados na base os perfis de arguidos, acusados e condenados em crimes graves ou contra a auto-determinação sexual, (8)

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se se considerar que a natureza da ofensa ou a forma como foi realizado o ilícito, a personalidade do acusado, ou qualquer informação, constitua fundamento para supor que outros crimes da mesma natureza se seguirão; são igualmente integrados os perfis de reincidentes (cf. § 81 g StPO); a colheita do perfil é realizada por ordem do juiz, a não ser que haja consentimento do arguido, e pode ocorrer durante a fase de investigação. No que respeita remoção dos perfis, esta apenas ocorre por decisão do juiz após avaliação (para determinar da necessidade ou não de o manter na base) a decorrer 10 anos após a inserção no caso de adultos (ou 5 anos após a inserção no caso de jovens) (9); a manutenção dos perfis para além destes períodos só pode ocorrer mediante justificação. A amostra é destruída imediatamente após a obtenção do perfil. Em Espanha onde a lei (Lei Orgânica n.º 10/2007, de 8 de Outubro) é idêntica à nossa, são inseridos os perfis de detidos e condenados por crimes graves, crimes contra a vida, crimes contra a liberdade (nomeadamente, crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual) crimes contra a integridade pessoal, crimes contra o património quando realizados com violência ou intimidação das pessoas e criminalidade organizada, sendo eliminados aquando da prescrição do crime (prazo contado a partir do último praticado); e no caso dos condenados o registo do perfil é apagado na data do cancelamento dos dados do registo criminal (quanto àquele crime), a não ser que haja uma ordem judicial em contrário. Porém, para que seja possível a inserção tem que haver, segundo a Ley del Enjuiciamiento Criminal (LECRIM art. 363.º), uma ordem do juiz afirmando ser “indispensável para a necessária investigação judicial e reta administração da justiça”, devendo a intervenção corporal mostrar-se adequada aos “princípios da proporcionalidade e razoabilidade”. A colheita pode ser efetuada pelos órgãos de polícia criminal, porém necessitam de uma decisão judicial fundamentada. Em França (arts. 706-54 e ss do Code de Procédure Pénale), o perfil é obtido e inserido por despacho judicial quando se trate de um

(9)

Cf. §§ 11(4), 34 (1) e 32 (3) BKA.

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dos delitos integrados no catálogo (10) (nomeadamente, crimes de natureza sexual, crimes contra a humanidade, contra a vida, atos de tortura e de barbárie, tráfico de estupefacientes, crimes contra a liberdade, proxenetismo, exploração da mendicidade e exploração de menores, crimes de roubo, extorsão, peculato, dano e ameaças, atentados aos interesses fundamentais da nação, atos de terrorismo, de falsificação de moeda, de associação criminosa, branqueamento de capitais); mas, também é possível a integração do perfil de ADN na base logo que haja condenação por crime punido com pena de prisão superior a 10 anos (pelo que um crime económico não inserido naquele catálogo, mas cuja condenação foi superior a 10 anos de prisão permite a obtenção e inserção do perfil de ADN (11)). Os perfis são retirados da base 40 anos após a sentença ou quando o condenado atingir os 80 anos de idade. Em Itália (Legge n. 85, 30. Giugno. 2009) são inseridos na base os perfis dos presos preventivamente, dos que estão em prisão domiciliária, dos detidos em flagrante delito (sendo retirados se houver absolvição), dos condenados qualquer que seja o crime doloso praticado ou ainda dos condenados em medida de segurança detentiva; porém, há alguns crimes em que o perfil apenas pode ser integrado na base após a condenação, como no caso dos crimes contra a administração pública e contra a administração da justiça (com exceção do crime de declarações falsas perante o Ministério Público, ou perante o defensor, o crime de falso testemunho, o crime de favorecimento — pessoal ou real), dos crimes contra a fé pública (onde se integra, por exemplo, o crime de falsificação de documentos e o crime de falsificação de notação técnica) e dos crimes contra a moral pública e os bons costumes. Havendo condenação, são eliminados 20 anos após o incidente que motivou a recolha (o que significa que se o condenado tiver cometido diversos crimes, e em relação a todos eles estavam verificados os requi-

(10)

Também são integrados na base os perfis de acusados por um destes crimes ainda que os acusados sejam declarados inimputáveis por anomalia psíquica. (11) Caso haja recusa em se submeter à colheita do material biológico, o agente deve ser punido com uma pena de prisão de 1 ano e multa de 15 000 euros (art. 706—56 (II). Coimbra Editora ®

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sitos que permitiam a inserção do perfil, aqueles 20 anos vão ser contados a partir da última condenação, nem que o perfil tenha sido integrado a partir da primeira), mas com a cláusula geral de limitação da conservação de qualquer perfil na base por mais de 40 anos. 4. APLICAÇÃO DA LEI A Lei 5/2008 já tem alguns anos e entretanto foram surgindo diversas dúvidas quanto à sua aplicação. Tentarei responder a algumas delas: a) O simples despacho do juiz de julgamento para recolha de amostras em condenado, ao abrigo do art. 8.º, n.º 2 (depois da condenação transitada em julgado), basta para que se possa introduzir o perfil na base? Não basta um simples despacho para colheita de amostra e obtenção do perfil de ADN em condenado em pena de prisão igual ou superior a 3 anos. Para além deste, e ao abrigo do disposto no art. 18.º, n.º 2, ainda é necessário o despacho a pedir a integração do perfil (obtido) na base. O magistrado tem, pois, que fazer dois despachos: 1) o despacho que ordena a recolha em condenado (art. 8.º, n.º 2), permitindo a obtenção do material biológico e a sua análise e 2) o despacho que ordena a inserção do perfil na base (art. 18.º, n.º 3). Sempre se poderia dizer que o pedido de colheita de material biológico e obtenção do perfil de ADN, ao abrigo do art. 8.º, n.º 2, também seria para integrar o perfil de ADN na base. Porque é que o legislador exigiu, então, um outro despacho? Na verdade, o magistrado pode querer numa primeira fase que o perfil obtido fique apenas à guarda daquele processo, não necessitando para tanto de grande fundamentação, pois, tal como afirma Reis Bravo (2010), esta é uma decisão quase-automática; pelo contrário, o magistrado fica vinculado a uma necessidade de fundamentar de modo mais completo o pedido da integração do perfil na base. Regulação e direito

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Aquele perfil à guarda do processo poderá, mais tarde, ser utilizado ao abrigo do art. 8.º, n.º 6; quando o magistrado é responsável em outros processos do mesmo arguido, pode entender que aquele perfil se poderá mostrar útil nesses outros processos. E caso assim seja, de acordo com o art. 8.º, n.º 6, e desde que os processos sejam simultâneos ou sucessivos, poderá, mediante despacho judicial, dispensar a recolha da amostra naqueles outros e utilizar aquele perfil, entretanto, obtido. É certo que parece existir alguma contradição entre a possibilidade de utilização de uma amostra e do perfil em outro processo distinto daquele no âmbito do qual foi obtido (ainda que se trate de processo simultâneo ou sucessivo) e o disposto no art. 34.º, n.º 2, que limita a possibilidade de utilização do perfil como meio de prova apenas ao processo em que foi obtido. Mas, na verdade, a limitação do art. 34.º, n.º 2, resulta da intenção do legislador de proibir a recolha de amostra e obtenção de um perfil sem que seja realizada a ponderação necessária e sem que seja aferida a adequação da medida e, por isso, exigiu a fundamentação do pedido realizado ao abrigo do disposto no art. 8.º, n.º 1. Quando se pretende utilizar a informação obtida em outro processo, de acordo com o art. 8.º, n.º 6, também aqui terá que haver um despacho judicial a ponderar a necessidade da medida e a sua adequação, tal como acontece quando é pedida uma amostra e a obtenção do perfil, ao abrigo do art. 8.º, n.º 1. Com a possibilidade de utilização em processos simultâneos ou sucessivos evita-se nova colheita e nova análise, mas não se evita a necessidade de avaliação e fundamentação do pedido. A proibição constante do art. 34.º, n.º 2, queria exatamente evitar o pedido de colheita de amostra e obtenção do perfil sem aquela fundamentação. Porém, esta proibição apenas vigora para os casos em que se pretenda utilizar um perfil obtido em um outro processo para utilização num segundo processo que já não é nem simultâneo, nem sucessivo em relação ao primeiro. Como se conserva a amostra à guarda do processo se esta lei nada diz? A lei n.º 5/2008, nalguns casos, necessita de ser completada com a lei das perícias médico-legais (Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto). Já Coimbra Editora ®

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antes de existir a lei n.º 5/2008 podíamos fazer colheita de material biológico com o consentimento do arguido, à luz do CPP e da lei de perícias médico-legais (Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto), e a amostra ficava à guarda do processo. Também agora a amostra poderá ficar à guarda do processo durante esse período, nas situações excecionais em que não se proceda à introdução do perfil de ADN na base. E quando se deve proceder à destruição da amostra? A destruição da amostra imediatamente após a obtenção do perfil (art. 34.º, n.º 3) não abrange estes casos em que se procedeu à recolha em arguido; pelo que, nestes casos, mais uma vez teremos que recorrer à lei das perícias médico-legais e destruir as amostras ao fim de 2 anos, salvo se “o tribunal tiver comunicado determinação em contrário” (art. 25.º, n.º 2). Para que o magistrado dê cumprimento ao disposto no art. 8.º, n.º 2, basta que envie para os serviços de recolha de material biológico uma cópia do acórdão de condenação do arguido? É preciso um despacho, não basta a cópia do acórdão com um ofício do oficial de diligências. É necessário um despacho que diga de forma expressa que houve já trânsito em julgado da sentença, pois é um dos requisitos fundamentais para que seja possível a recolha em condenado (a pena de prisão superior a 3 anos ainda que substituída), ou então uma certidão narrativa com selo branco. A limitação imposta no art. 8.º, n.º 2, a quem for condenado a pena de prisão igual superior a 3 anos, é aplicável aos casos de colheita de amostra e obtenção de perfil em arguido ao abrigo do art. 8.º, n.º 1? A limitação só está no n.º 2; o n.º 1 não tem limitação. A limitação que existe no n.º 1 do art. 8.º é a limitação apenas decorrente das remissões para o CPP: as remissões são feitas para o art. 172.º e este, Regulação e direito

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por sua vez, para o art. 154.º, n.º 2, e para o art. 156.º, n.os 5 e 6, do CPP, onde se diz expressamente que a perícia sobre as características físicas do arguido (leia-se conhecimento do seu perfil de ADN) necessita de despacho do juiz, onde deve ser fundamentada a necessidade daquela perícia — para dar cumprimento a uma exigência de ponderação que o princípio da não auto-incriminação impõe. Porém, articulando o disposto no art. 154.º, n.º 2, com o art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008, a recolha de amostras pode ser pedida pelo arguido (e quando assim é há um consentimento) ou pode ser ordenada pelo juiz (ou seja, não há diferença de regime entre os dois preceitos). A única diferença parece residir na parte respeitante ao exame, caso em que não seria preciso o mandato do juiz para a sua realização, de acordo com o art. 172.º do CPP; porém, também aqui não existe qualquer diferença dado que também o exame sobre as características físicas do agente está sujeito ao mesmo regime do art. 154.º, n.º 2, por força do art. 172.º, n.º 2, ambos do CPP. O despacho exigido pelo art. 8.º, n.º 1 ou pelo n.º 2 pode ser ordenado pelo Ministério Público? Não. A lei refere expressamente “despacho do juiz” e “despacho do juiz de julgamento” (n.os 1 e 2, respetivamente). Trata-se de matérias atinentes a direitos fundamentais e não deixam de ser condutas lesivas de direitos fundamentais. Pelo que a ordem de colheita de material biológico e a de obtenção do respetivo perfil deve ser da competência do “juiz das liberdades” ou do juiz de julgamento (dependendo da fase em que se encontrar o processo) (12).

(12)

A Lei n.º 5/2008 parece ser mais exigente do que o CPP, dado que a perícia sobre as características físicas só exige despacho do juiz se não houver consentimento da pessoa (cf. art. 154.º, n.º 2, do CPP). Porém, também à luz do art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008, o arguido pode solicitar ao juiz a recolha da amostra; a necessária “intermediação” do juiz constitui uma exigência suplementar tendo em conta a posição debilitante em que se encontra o arguido e a limitação do princípio da não auto-incriminação, resultante da perícia em causa, a exigir uma especial ponderação. Embora Coimbra Editora ®

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b) É possível a colheita de amostra e obtenção do perfil em suspeito (antes da constituição de arguido)? A Lei n.º 5/2008 nunca se refere à colheita de amostra biológica para obtenção de perfil de ADN em suspeito (13). Sabendo que a colheita de material biológico para obtenção do perfil de ADN constitui uma atividade lesiva de direitos fundamentais, tal com anteriormente disse, a falta de consentimento impede a sua realização. Pelo que, e nos termos gerais, apenas é possível a obtenção de perfil em suspeito se ele der o seu consentimento, devendo ser para o efeito informado das finalidades da colheita. Sem consentimento, a conduta constituíra uma conduta lesiva de direitos fundamentais e do princípio da não auto-incriminação. Claro que o suspeito pode solicitar a sua constituição como arguido (ao abrigo do art. 59.º, n.º 2, do CPP), pelo que a partir desse momento a colheita pode ser efetuada de acordo com o art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008 (14). Melhor será, e porque se trata de matéria referente a direitos fundamentais, que haja uma lei da Assembleia da República — e a admitir a colheita de material biológico e a obtenção do perfil de ADN em suspeito dever-se-ia limitar esta possibilidade a um catálogo de crimes (15) e a uma demonstração de que a obtenção daquela prova por aquele meio constitui objetivamente uma necessidade premente para a investigação, com dificuldade em ser satisfeita com outro meio de obtenção de prova.

eu tenha dúvidas que haja possibilidade de recusa se for o arguido a solicitar a recolha da amostra. (13) Entendendo por suspeito “toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar” (art. 1.º, al. e), do CPP). (14) O suspeito poderá, no entanto, participar como voluntário de acordo com o disposto no art. 6.º da Lei n.º 5/2008, devendo, no entanto, ser ele a fazer o pedido para a colheita de amostra. (15) Já quando integrei a comissão que projetou o diploma que esteve na Base da Lei n.º 5/2008 defendia também para a colheita de material biológico e a obtenção do perfil de ADN em arguido a sua limitação a um catálogo de crimes, com ficou registado nas atas das reuniões (que infelizmente nunca foram publicadas). Regulação e direito

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Pode haver colheita de material biológico na vítima? De acordo com os arts. 171 e seguinte do CPP, e quando se considere que haja vestígios do crime na pessoa, esta pode ser sujeita a exame e, portanto, pode ser recolhido o material biológico (16). O que se afigura importante em matéria, por exemplo, de crimes contra a autodeterminação sexual. Neste caso, a colheita do material e obtenção do perfil de ADN pode ser indispensável para a investigação. Porém, penso que se deverá alertar a vítima para o facto de que também será necessário obter o seu perfil de ADN para que se possa fazer a necessária despistagem. E o seu perfil não poderá ser integrado na base, a não ser que a vítima queira participar como voluntário. c) Quem é o “magistrado competente” a que se refere o art. 8.º, n.º 4 (colheita em cadáver, parte de cadáver e local do crime, ao abrigo do art. 171.º)? Devemos distinguir aqui 3 momentos essenciais: 1.º momento — Procedimento de obtenção de um meio de prova A colheita da amostra deve ser realizada de acordo com as regras processuais, tal como o determina o art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008. A amostra também pode ser recolhida em objeto apreendido no seguimento de uma busca — neste caso o magistrado competente é o magistrado que pode solicitar a realização dos exames. 2.º momento — Obtenção do perfil: realização de uma perícia A realização de uma perícia tem que ser ordenada por um juiz dado que se trata sempre da obtenção de características físicas de uma pessoa

(16)

A realização de exames para a obtenção de características físicas é da competência exclusiva do juiz de instrução — art. 269.º, n.º 1, al. b), do CPP. Coimbra Editora ®

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(ainda que não se saiba quem é a pessoa; é a perícia que vai permitir obter características físicas de uma pessoa e, eventualmente, identificá-la). Há, pois, uma clara distinção entre o momento da recolha da amostra — que constitui um exame — e o momento de análise científica do material biológico da qual vai resultar o perfil e ADN que se pretende — o que constitui uma perícia. E quanto à inserção do resultado da perícia (o perfil de ADN) na base? Temos, por exemplo, perfis obtidos em amostras colhidas em local do crime. Quem é o magistrado competente para pedir a inserção na base? Este é o: 3.º momento — inserção do resultado da perícia — perfil — na base de dados De acordo com o art. 18.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008 o “magistrado competente” é o MP durante a fase de inquérito, o juiz de instrução durante a fase de instrução e o juiz de julgamento na última fase do processo. O perfil será integrado no ficheiro referido no art. 15.º, n.º 1, al. d). No caso de a colheita ter sido realizada em arguido (de acordo com o art. 8.º, n.º 1) o problema não se põe dado que os perfis obtidos em arguido não são integrados na base. Nos casos urgentes, isto é, nos caso em que é preciso colher a amostra, em local de crime, para que o vestígio não desapareça — estamos perante um procedimento cautelar urgente (art. 269.º, n.º 1, do CPP); os OPC fazem a recolha do vestígio encontrado em local de crime ao abrigo do art. 249.º, n.os 1 e 2, al. a), do CPP, dando conhecimento de imediato da diligência ao magistrado (cf. art. 249.º, n.º 3 in fine). No momento em que se pretenda obter o perfil a partir daquele material colhido regem as regras das perícias (constantes do CPP (17)), sendo o

(17)

Quanto à obtenção do perfil a partir do vestígio biológico colhido nestas condições o juiz deve ponderar sobre a necessidade da sua obtenção ao abrigo do art. 154.º do CPP (e art. 269.º, n.º 1, al. a), do CPP). Regulação e direito

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perfil inserido de acordo com o disposto no art. 18.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008. d) Pode retirar-se material biológico de objeto apreendido em consequência de uma busca em casa de um suspeito (e, portanto, não constituído arguido)? Aquando da realização de uma busca, os OPC podem efetuar apreensões de objetos, nos termos do art. 178.º, n.º 4, devendo sujeitar estas apreensões a validação pela autoridade judiciária, no prazo de 72 horas (n.º 5 do art. 174.º). Do objeto apreendido poder-se-á colher material biológico, a partir do qual se pode obter um perfil de ADN. Ou seja, poder-se-á fazer as perícias que se entendam necessárias ao objeto apreendido. No entanto, se a partir do objeto colhemos material para a obtenção de ADN, também aqui a realização desta perícia terá que obedecer às exigências constantes das perícias realizadas sobre as características físicas de uma pessoa, ou seja, às exigências do art. 154.º, n.º 2, necessitando, pois, um despacho do juiz que pondere da necessidade e adequação da sua realização. Uma vez obtido o perfil a partir do material biológico encontrado no objeto apreendido, podemos integrar o perfil na base? Não, pois a Lei n.º 5/2008 não só não prevê a inserção de perfil de ADN obtido a partir de colheita de material biológico em objeto apreendido, como não prevê a inserção de perfil de suspeito. Além disto, também não prevê a possibilidade de cruzamento desta informação com a informação existente na base. Pelo que, aquilo que parecia uma porta aberta para, por meios indiretos, obter o perfil de ADN de um suspeito, acaba por não ter qualquer utilidade prática. e) Num caso de desaparecimento de alguém, a colheita de vestígios biológicos é realizada ao abrigo do art. 7.º ou do art. 8.º da Lei n.º 5/2008? Quando alguém desapareceu e é necessário obter o perfil de ADN para finalidades de identificação civil a partir de objetos do desaparecido, a amostra-referência que se quer obter poderá ser colhida de harmonia Coimbra Editora ®

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com o art. 7.º da Lei n.º 5/2008; o perfil será depois inserido na base de acordo com o art. 15.º, n.º 1, al. c). Porém, na maior parte das vezes não se tem conhecimento se o desaparecimento ocorreu no âmbito da prática de um crime. E suponhamos, que encontramos material biológico no local onde o desaparecido esteve a última vez (embora, com os dados da investigação realizada até ao momento não se saiba se se trata de local onde se procede a busca para finalidades de identificação civil, ou se se trata de local de um crime). Nestes casos esta amostra é uma amostra-problema, e o perfil obtido a partir dela deve ser integrado na base no ficheiro relativo a perfis gerados a partir de amostras-problema para finalidades de identificação civil e simultaneamente (porque não se sabe se não estamos perante um crime) no ficheiro de perfis obtidos a partir de amostras-problemas encontradas em local de crime, ao abrigo do art. 8.º, n.º 4. Sintetizando, nestes casos de desaparecimento, sem se saber se se tratou de um crime ou não, o perfil obtido deverá ser integrado: 1) no ficheiro das amostras-problema obtidas para finalidades de identificação civil, ao abrigo do art. 7.º, n.º 1 [art. 15.º, n.º 1, al. b)]; e 2) no ficheiro de amostras-problema obtidas em local de crime, ao abrigo do art. 8.º, n.º 4 [art. 15.º, n.º 1, al. d)]. 5. CONCLUSÃO Estas são as regras que temos. Mas, é preciso transpor para o ordenamento jurídico português a decisão-quadro 2008/615/JAI, de 23 de Junho (18). Esta decisão exige-nos muito mais em termos de colheita e em termos de retenção do perfil, bem como em matéria de transferência de perfis de ADN. O art. 21.º da Lei 5/2008 não é suficiente para permitir a transferência de perfis de ADN nas condições e com a exten-

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O prazo de transposição terminou em Agosto de 2011 (cf. art. 37.º da decisão 2008/615/JAI, de 23 de Junho). Regulação e direito

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são que aquela decisão-quadro pretende. Na verdade, este art. 21.º veio dizer que a Lei n.º 5/2008, e todas as eventuais atividades que sejam permitidas (e nos termos em que o sejam) “não prejudica as obrigações assumidas pelo Estado Português em matéria de cooperação internacional” nos domínios da identificação civil e investigação criminal. Porém, todas as ações de transferência de dados pessoais, como é o caso do perfil de ADN identificado, são ações relativas a matérias de direitos fundamentais com todas as restrições impostas pela CRP e pela LPDP (lei n. 67/98, de 26 de outubro). Pelo que será sempre necessário que uma lei que faça a necessária concordância prática entre as exigências de cooperação internacional e de investigação criminal e os direitos fundamentais em questão. Como vimos no início, os critérios de inserção e remoção dos perfis nas bases são diferentes em diversos países da UE. As regras quanto à possibilidade ou não de transferência de amostras também são diferentes. O que cria necessariamente entraves e dificuldades em matéria de cooperação judiciária internacional. De acordo com aquela decisão-quadro, o que se pretende é a livre transmissão da informação contida nos perfis de ADN, devendo a transferência do perfil ir associada a um número de referência que (de acordo com o art. 2.º da decisão) não deverá permitir a identificação direta da pessoa em causa (não estando afastada a possibilidade de identificação indireta). Pelo que, nesta parte, teremos sempre que cumprir as regras da LPDP (que me parecem insuficientes para assegurar a necessária cooperação) ou, então, necessitamos de criar uma nova lei que preveja regras específicas sobre esta matéria (o que não acontece na Lei n.º 5/2008). Em matéria de recolha de material genético e transmissão do perfil de ADN obtido, de acordo com o art. 7.º da decisão quadro, deverão ser cumpridas as regras quanto às condições para recolha e análise do material genético do estado-requerente, bem como as regras do estado-requerido. Porém, dada a diferente regulamentação, em muitos casos os procedimentos de cooperação estarão prejudicados. E, na nova regulamentação, não nos devemos esquecer de que a ciência evolui e a partir do perfil de ADN poderão ser obtidos (com o auxílio de novos marcadores) novos dados, como a cor dos olhos, a cor do cabelo, a cor da pele… Ainda estamos numa fase inicial quanto às possibilidades de obtenção desta Coimbra Editora ®

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informação; porém, em países como os Países-Baixos (19) já têm sido utilizadas estas técnicas. Por isso, novas regras terão de ser criadas de modo a assegurar os direitos fundamentais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Marques Ferreira, Manuel (1991), “Meios de prova”, in AAVV, O novo código de processo penal — Jornadas de direito processual penal. Coimbra: Almedina, 264. Moniz, Helena (2002), “Os problemas jurídico-penais da criação de uma base de dados genéticos para fins criminais”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 12(2), 237-264. Reis Bravo, Jorge (2010), “Perfis de ADN de arguidos-condenados (O art. 8.º, n.os 2 e 3, da Lei n.º 5/2008, de 12-02)”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 20(1), 97-126.

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Act of 8 May 2003 to adapt the Regulation Of Forensic DNA Investigation In Relation To Determining Externally Perceptible Personal Characteristics From Cell Material. Regulação e direito

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Legge n. 85, 30. Giugno. 2009. Consultado a 31.07.2013, em http://www.altalex. com/index.php?idnot=38876. Lei 5/2008, 12 fevereiro. Aprova a Criação de uma Base de Dados de Perfis de ADN para Fins de Identificação Civil e Criminal. [Online: Diário da República Eletrónico]. Consultado a 08.07.2013, em: http://dre.pt/pdf1sdip/2008/02/03000/ 0096200968.pdf. Lei Constitucional 1/2005, 12 agosto. Constituição da República Portuguesa — Sétima Revisão Constitucional. Consultado a 31.07.2013, em http://dre.pt/util/pdfs/ files/crp.pdf. Lei 45/2004, 19 agosto. Estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses. [Online: Diário da República Eletrónico]. Consultado a 08.07.2013, em http://dre.pt/pdf1 sdip/2004/08/195A00/53625368.pdf. Lei 67/98, 26 outubro. Lei de protecção de dados pessoais. [Online: Diário da República Electrónico]. Consultado a 31.07.2013, em http://dre.pt/pdf1sdip/1998/10/ 247A00/55365546.pdf. Ley Orgánica 10/2007, de 8 de octubre, reguladora de la base de datos policial sobre identificadores obtenidos a partir del ADN. Boletín Oficial del Estado. Consultado a 31.07.2013, em http://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2007-17634. Strafprozeßordnung [StPO]. Consultado a 31.07.2013, em http://www.gesetze-im-internet.de/bundesrecht/stpo/gesamt.pdf.

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REFLEXÕES JURÍDICAS ACERCA DA REGULAMENTAÇÃO DOS BANCOS DE PERFIS GENÉTICOS PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NO BRASIL (1) TAYSA SCHIOCCHET 1. INTRODUÇÃO A questão ética central encontrada na sociedade tecnocientífica explicita-se no paradoxo da técnica moderna, quando não é o fracasso, mas o seu sucesso, que pode ocasionar o desrespeito aos direito humanos, quando não uma catástrofe global. No campo dos avanços biotecnológicos, subverteram-se as relações entre o que é dado ou natural e o que é possível desejar e manipular. Os avanços e descobertas provenientes da genética humana são portadores de esperanças reais em termos de prevenção, segurança e assistência, mas também de preocupação diante do seu uso ilimitado

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Este artigo apresenta os resultados parciais de algumas pesquisas realizadas anteriormente e em curso. Dentre elas, destaca-se a principal, realizada entre 2011 e 2012 e vinculada ao projeto intitulado “Bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal”, financiado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em parceria com a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ), junto ao programa Pensando o Direito. Além disso, houve financiamento da Fundación Carolina (2011/2012) e do CNPq/CAPES, por meio da Chamada n. 07/2011. Alguns destes resultados também podem ser lidos em: Schiocchet (2009, 2011). Regulação e direito

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e indevido, ocasionando, dentre outras consequências, uma discriminação genética. Como testemunho destas e outras tantas preocupações, surge um grande número de documentos nacionais e internacionais, tanto jurídicos, quanto técnicos, de bioética e ética da pesquisa, todos com a finalidade de regulamentar o uso das novas tecnologias genéticas. A importância e mesmo necessidade de regulação na órbita internacional é visível particularmente em relação ao acesso, exploração e partilha de material e informação genéticos humanos em âmbito global. A tentativa hercúlea de compatibilização entre exploração e proteção do humano exige um aporte global dessas questões, uma vez que elas não se restringem ao espaço nacional, isolado pelos limites da soberania estatal. O acesso ao material e informação genéticos não seguem a mesma lógica do direito estatal clássico, ainda que dele necessite em muitos momentos. As implicações relacionadas às tecnologias genéticas são múltiplas — social, econômica, científica, sanitária, ética e mesmo jurídica — incluindo temas como privacidade, confidencialidade, proteção das identidades, garantia de não-discriminação, liberdade de pesquisa e avanço da ciência, livre circulação de bens e, mais concretamente, temas como coleta e armazenamento de material genético, acesso e uso de informação genética, credibilidade e licitude da informação coletada e analisada, salvaguarda da cadeia de custódia, biobancos, universalidade de acesso a tais tecnologias etc. Diante disso, atualmente diversos países, e mesmo a sociedade internacional por meio de seus órgãos representativos, mobilizam-se no sentido de avaliar o impacto das aplicações desse novo conhecimento tecnológico para então regulamentá-las. Levando em consideração esses pressupostos, o presente artigo tem como objetivo analisar, com base no sistema jurídico brasileiro, os possíveis riscos e benefícios, bem como os limites e possibilidades à utilização do DNA para fins forenses. Mais concretamente, pretende-se apresentar os impactos jurídicos e sociais, bem como o contexto jurídico-político vinculados à regulamentação dos bancos de perfis genéticos para fins de investigação criminal no Brasil, a qual resultou na criação da Lei n.º 12.654, de 2012. Coimbra Editora ®

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2. PRESSUPOSTOS INTERDISCIPLINARES PARA O DEBATE JURÍDICO As descobertas na área da genética humana são consideravelmente amplas e sua aplicação técnica cada vez mais diversificada, não apenas na área da identificação civil e penal, mas também no contexto da pesquisa e da medicina. Os resultados obtidos no campo do diagnóstico genético são significativos e seu principal benefício consiste na possibilidade de prevenir doenças ou evitar o seu desenvolvimento, já que é possível descobrir precocemente a presença de genes e cromossomos alterados, os quais são responsáveis por inúmeras enfermidades genéticas. Com os avanços das biotecnologias nos últimos anos, mais precisamente com a possibilidade de estabelecer a função e regulação dos genes, a pesquisa e a medicina são efetivamente as áreas que contam com um arcabouço normativo mais avançado em detrimento de outras, como a do Direito Penal. Por outro lado, é preciso sublinhar que a despeito da presença maciça das biotecnologias e pesquisas genéticas no país, inclusive forense, bem como da proliferação de documentos normativos no plano internacional, a população brasileira é particularmente afetada pela criminalidade e pelos reflexos de um sistema jurídico debilitado e titubeante. A incipiência jurídica e mesmo imaturidade sobre o tema no Brasil, tanto na literatura quanto na regulamentação do Direito estatal positivo, deve-se ao impacto recente das biotecnologias na temporalidade e na espacialidade do Direito, bem como nas categorias jurídicas clássicas. É sabido que a criação de bancos genéticos ocorre com finalidades distintas. No entanto, é preciso considerar a complexidade e o necessário imbricamento dessas finalidades, especialmente na criação e gestão dos biobancos, pois há um fator comum anterior a todos os tipos bancos que é o acesso ao material biológico (genético) humano. De fato, categorias jurídicas são postas em discussão pelas novas tecnologias aplicadas às ciências da vida, o que acaba por revelar o impacto produzido nas mais diversas áreas do saber humano e, especialmente, nos fundamentos sobre os quais se assenta o sistema jurídico, enquanto regulador das ações humanas. Nesse contexto, em que pese a avançada norRegulação e direito

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mativa constitucional, notadamente a consolidação de princípios e direitos fundamentais que o país conquistou a partir de 1988, diversos são os desafios a serem enfrentados. Em uma sociedade marcada pela profunda desigualdade socioeconômica, pelas pressões supranacionais sofridas em virtude de interesses econômicos do mercado globalizado e pelos altos índices de criminalidade, a efetiva concretização dos direitos fundamentais, ainda que regulamentados, resta profundamente prejudicada. Outro aspeto relevante é a constatação de que “os discursos biotecnológicos são uma composição de fatos biotecnológicos e de discursos justificativos que os apresentam como necessários, ou mesmo fatais” (Sfez, 2001: 3) (2). Diante disso, qualquer estudo que tenha por objeto a biotecnologia ou um tema a ela relacionado deve estar atento a sua dupla composição, de modo a identificar além das descobertas científicas e inovações tecnológicas, os discursos, as representações e as ideologias que estão por detrás delas, mascarando seus antagonismos e dominações. Nesse aspeto, os estudos antropológicos e, mais amplamente, os interdisciplinares são uma eficaz ferramenta para a adequada compreensão desse complexo fenômeno. Portanto, a análise das implicações jurídicas do acesso e da exploração de material e informação genéticos humanos deve ser feita a partir de uma perspetiva interdisciplinar, que auxilie a demonstrar a insuficiência dos discursos científicos isolados e mesmo das categorias jurídicas clássicas, como: liberdade, dignidade, justiça individual, autonomia, autodeterminação informacional, presunção de inocência, direitos coletivos, pessoa, privacidade, intimidade, segredo, discriminação, doação e outras. Daí a necessidade de repensar as categorias existentes, a partir de um enquadramento normativo fundamentado em pilares que não se restrinjam mais àqueles concebidos classicamente no interior do Estado soberano, ainda que nele contextualizados (Foucault, 2004; Andorno, 2010; Schiocchet, 2009).

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Tradução livre de : “Les discours biotechnologiques sont un mixte de faits biotechnologiques et de discours justificatifs qui les présentent comme nécessaires, voire fatals”. Coimbra Editora ®

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A América Latina e, em especial, o Brasil, não estão alheios a essa realidade biotecnológica que necessita “acessar o humano” em nome da ciência, da saúde ou da segurança (3). O Brasil, por exemplo, está na rota internacional da realização de estudos genéticos multicêntricos para as indústrias farmacêuticas. A oferta de testes genéticos no país é um fato ordinário e o acesso irrestrito, a menos que a condição econômica seja um impeditivo. A biopirataria também já chegou a terras tupiniquins. As suas denúncias retomam ciclicamente espaço na mídia. Depois das plantas exóticas e dos animais em extinção, chegou a vez do ser humano ser biopirateado. Os noticiários reportam a coleta irregular de material genético de povos indígenas brasileiros e denunciam a sua comercialização por repositórios norte-americanos. Entre uma notícia e outra, entre um caso e outro, os discursos em torno do genoma humano ganham espaço e as representações acerca das implicações genéticas são cada vez mais assimiladas pelos indivíduos (Schiocchet, 2009). No Brasil e na América Latina, em geral, torna-se imprescindível que a análise sobre os reflexos da conjunção entre direito, tecnociência e genética seja realizada levando em consideração o perfil de uma sociedade que está em desenvolvimento e que é fortemente marcada pela diversidade étnica e cultural. É preciso ter em mente que o problema de alguns países latino-americanos como o Brasil e o fato de ainda estarem em desenvolvimento não é a pobreza, mas a má distribuição das riquezas. É preciso lembrar que o Brasil não é apenas uma potência econômica, mas é também fonte de recursos naturais valiosos e cada vez mais cobiçados. É preciso lembrar que a diversidade brasileira não é apenas genética, é étnica e também cultural. É preciso lembrar que o país é referência tecnológica em diversas áreas. Enfim, é preciso lembrar que a reflexão teórica deve estar cravada nessa realidade da sociedade brasileira. De fato, vive-se num país cujo acesso às biotecnologias de ponta em centros de excelência dissemina rapidamente essas novas tecnologias, sob

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Sobre o tema ver, exemplificativamente: Kidd (1991), Vander Velden (2005) e Diniz (2007). Regulação e direito

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a forma de produtos no mercado; ao mesmo tempo em que possui um enorme deficit social no que se refere ao acesso universal aos serviços básicos (educação, saúde, segurança, lazer). Diante disso, é inegável que o desenvolvimento tecnocientífico afeta de maneira peculiar o país, onde é possível perceber uma tendência em assimilar, cada vez mais, as soluções jurídicas elaboradas no plano internacional e de países desenvolvidos tecnologicamente. Para tanto, porém, é preciso harmonizar tais referências externas às experiências, dificuldades e características da realidade brasileira, seja em termos legais, sociais ou econômicos. A força e os interesses presentes nos discursos biotecnológicos são reveladores da união entre ciência e tecnologia na área da genética humana. Os atores — produtores e reprodutores desses discursos — são diversos, de acordo com o interesse visado: a) o mercado, representado maioritariamente pelas indústrias e fornecedores de suprimentos tecnológicos, buscando novas fontes de lucro com a expansão dos mercados; b) os pesquisadores, em nome da ciência e da liberdade de pesquisa, buscando novas descobertas, prestígio e financiamento para a continuidade das investigações; c) os indivíduos, preocupados com os riscos à privacidade ou discriminação, mas, sobretudo, ansiosos por benefícios à sua saúde em termos de prolongamento e qualidade de vida; d) o Estado e alguns setores da sociedade em geral preocupados com a segurança pública (4) e, finalmente, e) o sistema jurídico, tendo que conciliar os interesses aparentemente inconciliáveis ou, por vezes, nem cogitados pelos referidos atores. Os anseios em termos de segurança pública e as preocupações em termos de ameaças à privacidade tornam-se realidades palpáveis. O desafio é encontrar o adequado equilíbrio. Nesse pacote de riscos e benefícios estão incluídos temas de diversas ordens. O que eles têm em

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Como exemplo, foi identificada uma quantidade expressiva de textos (científicos, técnicos, jornalísticos e de opinião) que advogam fortemente pela utilização dessa tecnologia genética para fins de persecução criminal e para tanto se sustentam na certeza e robustez probatória, no uso da tecnologia como algo necessariamente benéfico e disponível, na expressiva diminuição de casos arquivados e de erros para inocentar ou condenar. Em geral, tal tecnologia é apresentada como a arma mais poderosa no combate ao crime. Coimbra Editora ®

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comum é provocar o questionamento constante das verdades sobre as quais os seres humanos fundam suas ciências, suas economias, suas políticas e seus sistemas de normas. Nunca, talvez, problemas tão microscópicos, como aqueles vinculados à genética molecular, exigiram soluções tão macroscópicas do ponto de vista político-económico e, por que não, jurídico. 3. CONTRAPONTOS ACERCA DOS IMBRICAMENTOS ENTRE PREVENÇÃO DA CRIMINALIDADE E BANCOS DE DNA É pressuposto desta pesquisa reconhecer a importância da utilização forense do DNA, inclusive para fins de persecução criminal, assim como a importância da sua adequada regulamentação. Nesse sentido, é igualmente importante identificar as reais possibilidades trazidas por essa nova tecnologia genética, assim como apresentar claramente os seus limites técnicos, éticos e legais, sem criar falsas expectativas a partir de discursos puramente legitimadores do uso da técnica, os quais enfatizam os benefícios e promessas, por um lado, e dissimulam os riscos, as incertezas e as limitações, por outro. O primeiro questionamento consiste em indagar se a utilização dos perfis genéticos para fins de persecução criminal contribuirá efetivamente para a diminuição da violência e da criminalidade. No que se refere a esse aspeto, não se pode admitir a confusão entre os conceitos jurídicos basilares de punição delitiva e prevenção delitiva. É bastante provável que os métodos investigativos proporcionados pelo uso dos perfis genéticos diminuam a impunidade em relação aos autores de determinados delitos penais, contribuindo com uma tutela judicial mais efetiva. No entanto, é necessário saber com maior precisão, com base, por exemplo, em pesquisas realizadas nos países onde os bancos já foram implantados, para então ter algum parâmetro — relativo — de comparação, acerca da eventual diminuição da quantidade de crimes cometidos para, então, poder ser possível falar em “combate à criminalidade”. Nesse sentido, aliás, autores como Lorente Acosta (Acosta, 2002 apud Bonaccorso, 2010: 183) afirmam que antes de se lançar abruptamente na criação de banco de dados genéticos criminais, cada país, estrategicaRegulação e direito

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mente, deveria fazer um estudo prévio sobre seus índices de criminalidade nos últimos 10 ou 20 anos, bem como sobre as medidas postas ou a serem colocadas para seu controle ou diminuição. Só em seguida, deve-se elaborar um projeto de lei adequado frente às necessidades reais apuradas, de forma a se construir um banco de dados que seja efetivamente operacional frente à realidade específica do país. No Brasil, os casos mais frequentemente citados para demonstrar a utilidade e eficácia dos bancos de perfis genéticos são os crimes sexuais. Portanto, cumpre analisar as características e fatores que envolvem tal prática criminal no Brasil. No que se refere ao autor do delito, em mais da metade dos casos (62,7%) as vítimas de estupro conheciam seus agressores, somando-se os percentuais de acusados que eram conhecidos, companheiros, ex-companheiros, pais/padrastos, parentes ou que tinham alguma outra relação com vítima. Em 29,7% dos casos os autores tinham relações de parentesco com as vítimas (pais, padrastos e parentes) e em 10,0% os autores mantinham ou mantiveram relacionamentos amorosos com as vítimas, ou seja, eram companheiros ou ex-companheiros das mesmas (Teixeira, 2011). Os dados acima apenas corroboram os estudos de gênero amplamente conhecidos que demonstram que a violência sexual praticada contra as mulheres (5) pelo marido ou companheiro está entre as mais recorrentes. Além disso, é preciso lembrar que a luta contra a impunidade nos casos de crime sexuais é complexa e requer esforços conjuntos dos serviços de saúde, das polícias, dos órgãos periciais e do Poder Judiciário. Somente com estruturas preparadas para o acolhimento humano das vítimas, onde elas sintam condições de prestar queixa e se submeter ao necessário exame de corpo de delito poderá aumentar o número de ini-

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Existe uma questão social que leva a acreditar que as mulheres pobres são as que mais sofrem violências, porque os homens pobres são mais violentos. Porém, essa visão não é correta, já que a violência familiar se dá em todas as classes sociais. O que ocorre é que a visibilidade nas camadas mais pobres da sociedade é maior, na medida em que as pessoas são mais próximas, os vizinhos acabam se envolvendo, e as mulheres pobres denunciem mais essa violência (Barsted, 2006: 75). Coimbra Editora ®

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ciativas de registro dos casos. Para a maioria das vítimas, é muito difícil registrar a ocorrência por medo de serem estigmatizadas em seu meio social, ou mesmo pela própria família, razão pela qual se estima que menos de 10% dos casos de violência sexual cheguem às delegacias. No Brasil a maioria dos crimes sexuais é cometida por homens comuns, na maioria das vezes do convívio próximo ou com algum grau de parentesco com a vítima, e que apesar da reincidência típica dos crimes sexuais, acredita-se que 90% não sejam denunciados (Albuquerque, 2008: 13). Tais dados não implicam concluir que o banco de perfis genéticos não possa ser útil, ao contrário, armazenar perfis genéticos oriundos de cenas de crimes pode auxiliar a solucionar mais crimes, mas no caso de amostras de indivíduos identificados (suspeitos ou acusados), esse armazenamento será importante apenas se os crimes futuramente cometidos pelo mesmo indivíduo possuírem vestígios biológicos (de DNA) relevantes. Nesse sentido, o banco ou o uso do DNA para fins de persecução criminal pode servir como mecanismo para elucidação de crimes, o que não está direta e necessariamente ligado à “redução da criminalidade” brasileira. Contrariamente ao que se tem observado na literatura e nos dados estatísticos brasileiros, os estigmas em relação ao perfil da população carcerária aliados ao de que os crimes sexuais são praticados por pessoas desconhecidas, cria no imaginário o mito de que com a implantação do banco de perfis genéticos para fins criminais se reduziriam os índices de criminalidade. Entretanto, como se pode observar, a população carcerária é composta principalmente por condenados por crimes contra o patrimônio, razão pela qual o uso inadvertido das taxas de homicídio apenas, acaba por desvirtuar o real perfil da criminalidade no Brasil. Diante disso, é possível questionar em que medida seria o DNA a peça chave para a condenação de mais homicidas e estupradores, quando no Brasil a criminalidade tem como uma das principais fontes os crimes contra o patrimônio? De fato, quanto mais crescem os números da violência, mais surgem questionamentos sobre alternativas para diminuir os índices de criminalidade. Em se tratando de crimes sexuais não resolvidos por dificuldade probatória, a implantação do banco de perfis de DNA seria uma opção para solucionar os casos que fazem parte das Regulação e direito

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estatísticas de crimes não resolvidos. Para os casos em que o agressor é conhecido — a maioria deles segundo os dados apresentados — não haveria a necessidade do banco de perfis propriamente para realizar uma eventual coincidência de amostras individuais. Além disso, o uso do DNA teria uma influência relativa já que ele não seria a prova única e, portanto fundamental para o convencimento do juiz, salvo se houver o falecimento da vítima, a qual não poderia, portanto, indicar o eventual agressor conhecido. Nos casos em que o DNA for a prova única, ele terá importância para o processo no sentido de indicar que o sujeito esteve presente na cena do crime ou mesmo que teve relações sexuais com “vítima”, mas em si mesmo ou isoladamente o DNA nada esclarece acerca da existência ou não de consentimento para a relação sexual. Isso somente poderá ser inferido a partir de outras circunstâncias analisadas em conjunto com o laudo pericial de análise do perfil genético. Tudo isso para dizer, em síntese, que a questão é menos evidente e mais complexa do que pode parecer. 3.1. A eficácia dos bancos de perfis genéticos frente ao “combate à criminalidade” Descrita por vários autores como a impressão digital dos tempos modernos, a identificação de indivíduos por perfil de DNA é nomeada como a maior descoberta da ciência forense desde a tradicional impressão digital, sendo inclusive objeto de comparação pela literatura especializada, mediante o uso da expressão “impressão digital genética”, nas palavras de Machado et al. (2011). De fato, o DNA pode ser usado como forma de demonstrar a culpabilidade de criminosos, inocentar suspeitos e mesmo condenados, identificar corpos e restos humanos em desastres aéreos e campos de batalha, determinar paternidade, auxiliar nos casos de desaparecimentos e trocas de bebês em berçários, bem como detetar substituições e erros de rotulação em laboratórios de patologia clínica, conforme destaca Pena (2005). No que se refere à utilização para fins de investigação criminal, as amostras são colhidas no local do crime e devem ser comparadas com outras recolhidas do suspeito. As chamadas amostras-referências são Coimbra Editora ®

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adquiridas por meio da raspagem da parte interna da bochecha ou pelo sangue e serão comparadas com aquelas colhidas onde ocorreu o crime. Além do sangue e saliva, podem ser retirados fios de cabelo para coleta de DNA (devendo a coleta ser feita desde a raiz) e o fio armazenado em envelope estéril. Nesse contexto, o banco de DNA é apontado como uma ferramental essencial ao “combate à criminalidade”, notadamente dos crimes sexuais, uma vez que identifica os agressores, mesmo no caso de não haver nenhum suspeito conhecido. O principal argumento para essa justificativa é o de que uma característica marcante desse tipo de crime é a reincidência, pois os criminosos sexuais costumam cometer o mesmo crime ou similar, afetando múltiplas vítimas, geralmente aumentando sua natureza, gravidade e frequência (Albuquerque, 2007: 14). Por isso, em crimes que deixam vestígios biológicos, o banco de DNA é visto como uma forma de solução para a impunidade, com o argumento de “coibir a prática de crimes”. Entretanto, em que pese a ocorrência de crimes sexuais cometidos por assassinos em série, a maioria dos crimes sexuais são cometidos por pessoa conhecida, que, portanto, não necessitaria ser identificada através do seu perfil genético, em princípio. Diante da realidade contextualizada, das características da criminalidade no Brasil e da finalidade primordial do uso do DNA no âmbito forense — auxiliar na persecução de um eventual autor de delito — não é possível afirmar categoricamente que o banco de perfis genéticos é a solução para o “combate à criminalidade”. Seria leviano fazer essa afirmação, especialmente no Brasil, onde a criminalidade possui características específicas e mesmo distintas em relação aos países onde tal tecnologia já está implantada. É necessário, primeiramente, discernir a punição frente à constatação da autoria do delito, por um lado, e a eventual — portanto, futura e incerta — redução da criminalidade, por outro lado. É difícil demonstrar, mesmo por meio de pesquisas confiáveis, que a redução da criminalidade é um efeito direto da criação de um banco de perfis genéticos para fins de persecução criminal, em razão de diversos fatores que podem influenciar o “combate à criminalidade”. Aliás, em diversos países, como o Reino Unido, questiona-se fortemente a eficiência desse tipo de banco, especialRegulação e direito

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mente frente à relativização de direitos e garantias fundamentais em prol de um bem ou interesse coletivo (no caso a redução da criminalidade), que muitas vezes não se concretiza. Ao menos não na proporção argumentada por aqueles que advogam pela criação e expansão do banco. Portanto, em resumo, o argumento do “combate à criminalidade” associado aos bancos de perfis genéticos deve ser relativizado, vez que o seu impacto no combate à criminalidade pode ser bastante reduzido. No Reino Unido, país que possui uma ampla experiência nessa questão aliás, ficou demonstrado que a expansão do banco de perfis não implicou no aumento da solução de delitos (autoria) com o auxílio dos perfis genéticos, conforme se pode observar no quadro abaixo. DNA detections are driven by the number of scene profiles loaded per year

Sources: UK DNA database annual reports and Home Office crime data

O grande problema oriundo da massificação mediática e da absorção do argumento do “combate à criminalidade” pela sociedade é que eles podem gerar um efeito “rebote” perverso que é a perda de confiança da população nos órgãos e instituições públicas que se arrogaram o poder de, ipsis literis, “reduzir a criminalidade” brasileira. Não basta, para a elucidação de um delito, apenas colher vestígios. É necessário comparar os dados genéticos desses fluídos colhidos no local Coimbra Editora ®

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do crime com o dos suspeitos, e, também, com os demais indícios. É preciso estabelecer a devida proporção do impacto da criação de um banco de perfis genéticos sobre a realidade criminal brasileira. Além do mais, a criminalidade no Brasil passa por outras vias, como a violência juvenil urbana e o tráfico de drogas, o que pode ser comprovado pelo último relatório do Ministério da Justiça, datado de junho de 2011, sobre o departamento penitenciário nacional, o qual aponta que o perfil da população carcerária brasileira é composto, em sua maioria, de homens na faixa etária de 18 a 24 anos e de cor não branca (6). Estes homens jovens cometem, em sua maioria, crimes contra o patrimônio, a pena cumprida varia de 4 a 8 anos, e o regime de cumprimento da pena é o fechado. Além disso, 198.803 possuem ensino fundamental incompleto. Dados que podem, inclusive, colocar em questão o modelo de política criminal consolidado no Brasil e o papel do banco de perfis genético frente a este modelo. O fato é que, com Machado (2011), não se vislumbra uma justificativa plausível para pensar que a inclusão de um perfil deva servir para “reforçar” a pena de um indivíduo. Para evitar este tipo de argumentação é crucial estar atento ao perigo de tornar o uso da tecnologia de DNA não um instrumento de identificação individual, mas sim um instrumento de estigmatização (ENFSI, 2012). No que se refere a esse aspeto, é interessante a perspetiva crítica do sociológico Duster (2006: 194) sobre a experiência do uso forense do DNA nos EUA frente a vulnerabilidade de grupos étnicos e a possibilidade de manipulação indevida do DNA pela polícia: Without this discussion, we are left wondering how it is possible that some people see DNA evidence as definitive, while others maintain strong skepticism — that DNA technology, no matter how definitive, may not be used fairly in a criminal justice system that is tainted and sometimes corrupted. Thus African Americans

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http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRNN.htm Regulação e direito

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and Latinos in the poorest neighborhoods in our major cities are far more likely to approach DNA evidence with a general mistrust for reasons including those described above. That is, if police can plant cocaine and guns on those that they later testify against, and obtain a conviction, they can surely plant DNA. The legitimacy of the criminal justice system rests primarily on fair application of laws. Who (or what part of society) would believe that police would actually plant DNA evidence, and even if they did, can DNA evidence ever stand alone without other circumstantial evidence? É fundamental, portanto, distinguir no argumento do “combate à criminalidade” o impacto em termos de punição frente ao delito (como indicado acima) e de prevenção ou redução da criminalidade — sem dados concretos para a realidade brasileira até o momento. Além de ser reduzido — ou mesmo nulo em alguns casos — o valor dos bancos de perfis genéticos na “prevenção da criminalidade”, ele não deve ser confundido com a punição. De fato, o Brasil sofre com o problema crônico da violência e criminalidade. No entanto, reitera-se que é fundamental identificar os contornos específicos desses fenômenos, para saber como e em que medida efetivamente o uso forense do DNA pode contribuir. Em outras palavras, é preciso identificar quantitativamente quais os delitos que requerem uma maior atuação estatal e, ao mesmo tempo, as causas desses delitos, de modo que se tenha uma política criminal mais adequada as nossas dificuldades. 4. O DEBATE LEGISLATIVO BRASILEIRO ACERCA DA LEI N˚ 12.654/2012 A despeito da presença maciça das biotecnologias e pesquisas genéticas no país, inclusive forense, bem como da proliferação de documentos normativos no plano internacional, a população brasileira é particularmente afetada pela criminalidade e pelos reflexos de um sistema jurídico debilitado e titubeante. Já mencionou-se a incipiência e mesmo Coimbra Editora ®

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imaturidade jurídica sobre o tema no Brasil. No entanto, o vácuo normativo, existente em diversos países, não é óbice para a criação de bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal. Ao contrário, a criação dos referidos bancos acaba servindo como força propulsora à elaboração normativa. No Brasil não foi diferente. Contudo, no que se refere ao processo de criação dos bancos de perfis genéticos no Brasil (negociações, cartas de intenções, capacitações etc.), o fato é que o princípio da transparência restou prejudicado, de modo que não se tem muitas informações, pelos canais oficiais do governo, das associações ou órgãos públicos envolvidos sobre todas as etapas de mobilização política, notadamente vinculadas à Polícia Federal, anteriores ao debate legislativo propriamente. De qualquer forma, o primeiro passo para chegar-se ao atual estágio da criação da Rede de Bancos de Perfis Genéticos no Brasil foi dado em 1995, quando, em Brasília, foi inaugurado o laboratório de DNA da Polícia Civil do Distrito Federal. Nesse laboratório, diversos peritos de outros Estados foram treinados. Assim, surgiram laboratórios no Estado do Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraná, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraíba. No Brasil, a implantação do uso forense do DNA ocorreu no ano de 1994, sendo criada a Divisão de Pesquisa Forense (DPDNA), vinculada à Polícia Civil do Distrito Federal. Primeiramente, fazendo análises de homicídios, investigação de paternidade e a busca de parentes desaparecidos no regime militar. Com a intensificação dessa prática, houve a proposição do projeto de lei n.º 417/2003, alterando o artigo 1.º da Lei n.º 10.054/00 e incluindo o uso de DNA como uma das formas de identificação criminal. A partir de uma parceria com o FBI, em 2010, foram instalados o CODIS 5.7.4, com finalidade criminal, e o CODIS 6.1, para identificação de pessoas desaparecidas e vítimas de desastres, no Brasil. Foram capacitados 20 peritos criminais para a utilização do CODIS e foi criado o GT-RIBPG. No ano de 2011, os bancos de perfis genéticos estaduais começaram a operar. Com a realização da I Conferência Anual da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos foi aprovado o PLS 93/2011 no Senado. A Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos no Brasil conta, atualmente, com dezoito laboratórios, localizados em diversos estados, no Distrito Federal e um no laboratório da Polícia Federal. Esses laboRegulação e direito

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ratórios armazenam os materiais genéticos coletados nas cenas de crimes, com o objetivo de serem comparados com o perfil genético de um indivíduo, suspeito ou condenado pela prática do crime. Por outro lado, com o objetivo de verificar o panorama da produção legislativa acerca do assunto “Bancos de Perfis Genéticos para Fins de Persecução Criminal” no Brasil, realizou-se uma pesquisa nos arquivos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal brasileiros, disponíveis em seus respetivos sites oficiais. Nessa busca foram utilizados vários termos relacionados ao tema e os resultados obtidos foram selecionados conforme sua pertinência em relação ao assunto dos bancos de DNA de modo amplo. Na Câmara dos Deputados, encontrou-se 20 Projetos de Lei relacionados aos seguintes temas: bancos de DNA; discriminação e suas respetivas sanções, por predisposição ao desenvolvimento de doenças genéticas; aconselhamento genético pelo Sistema Único de Saúde; regulamentação dos exames genéticos e a proteção de seus resultados; normas relacionadas à proteção e tratamento de dados pessoais; criação de bancos estaduais de DNA de recém-nascidos; entre outros. No Senado Federal foram encontrados 4 Projetos de Lei que guardam relação com o objeto da pesquisa, versando sobre: coleta de material genético ao lavrar auto de prisão em flagrante e na abertura de inquéritos policiais e outros procedimentos investigatórios; identificação genética aos condenados por crimes contra pessoa ou considerados hediondos; acesso e conservação do patrimônio genético; discriminação, e suas respetivas sanções, por predisposição ao desenvolvimento de doenças genéticas; entre outros. Nos últimos 15 anos no Brasil, foram apresentados 24 (vinte e quatro) projetos de lei versando sobre coleta de material genético humano, sendo 20 (vinte) de iniciativa legislativa da Câmara dos Deputados e 4 (quatro) do Senado Federal. Dessas proposições legislativas, apenas 7 (sete) tratavam sobre coleta de material genético para fins de investigação criminal e identificação civil, sendo a maioria de iniciativa da base governista. Em percentuais, esses projetos representam 29,16% dos 24 projetos citados anteriormente. Em que pese a mobilização de um conjunto de atores, notadamente peritos forenses, desde a década de 90, no contexto específico da produção Coimbra Editora ®

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legislativa os anos de 2011 e 2012 foram decisivos para a aprovação da Lei n.º 12.654, de 28 de maio de 2012 (7), que autoriza a coleta de material genético para fins de persecução criminal e regulamenta o banco de perfis genéticos para esse mesmo fim. No que se refere ao processo de elaboração e discussão da legislação, ele não foi efetivamente democrático, no sentido de que não houve uma discussão mais ampla com a sociedade sobre a questão. Mesmo entre alguns especialistas de áreas distintas o tema não era muito nítido. O debate, portanto, ficou concentrado em questões técnicas e restrito a algumas elites — notadamente a elite técnica: composta por peritos e policiais; em segundo lugar a elite política: composta por alguns legisladores diretamente amparados pela elite técnica e, por fim, a elite intelectual: quase inexpressiva, composta por poucos juristas e alguns outros profissionais como sociólogos e antropólogos. A referida Lei regulamenta a questão nos seguintes termos: (…) Art. 5.º-A. Os dados relacionados à coleta do perfil genético deverão ser armazenados em banco de dados de perfis genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia criminal. § 1.º As informações genéticas contidas nos bancos de dados de perfis genéticos não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética de gênero, consoante as normas constitucionais e internacionais sobre direitos humanos, genoma humano e dados genéticos. § 2.º Os dados constantes dos bancos de dados de perfis genéticos terão caráter sigiloso, respondendo civil, penal e administrativamente aquele que permitir ou promover sua utilização para fins diversos dos previstos nesta Lei ou em decisão judicial. § 3.º As informações obtidas a partir da coincidência de perfis genéticos deverão ser consignadas em laudo pericial firmado por perito oficial devidamente habilitado.

(7)

Publicada no Diário Oficial da União em 29 de maio de 2012, com vacatio legis de 180 dias e vigência a partir de 29 de novembro de 2012. Disponível em: . Acesso em: 30.06.2012. Regulação e direito

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Art. 7.º-A. A exclusão dos perfis genéticos dos bancos de dados ocorrerá no término do prazo estabelecido em lei para a prescrição do delito. Art. 7.º-B. A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo. (…) Art. 9.º-A Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1.º da Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA — ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor. § 1.º A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo. § 2.º A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético. No entanto, seria inadequado supor que a recente utilização de tal tecnologia — tanto no Brasil como no Reino Unido, que inaugurou o primeiro banco desse tipo em 1995 — ocorre sem questionamentos éticos, sociais e legais. O tema é controverso. O grande desafio reside em esclarecer as questões técnicas e jurídicas, por meio de um constante diálogo interdisciplinar, transparente e republicano. 5. PARÂMETROS JURÍDICOS PARA A REGULAMENTAÇÃO DOS BANCO DE PERFIS GENÉTICOS PARA FINS DE PERSECUÇÃO CRIMINAL NO BRASIL Os bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal necessitam do acesso ao corpo humano ou parte dele, enquanto fonte biológica, para alcançar algum tipo de resultado. Esse acesso é, em geral, Coimbra Editora ®

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viabilizado mediante o consentimento informado da pessoa, enquanto expressão da sua vontade. A obtenção da amostra biológica é, assim, a ponte de acesso ao corpo. Nesses casos, é preciso questionar se é devido, permitido ou proibido utilizar o mesmo enquadramento normativo da disposição corporal, realizado mediante disposição gratuita e operacionalizada pelo consentimento informado, para o campo criminal. Ainda que a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos (UNESCO, 2003) não se aplique especificamente aos bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal, é importante considerar sua preocupação com o acesso e manipulação de material e dados genéticos humanos. Ao mesmo tempo em que aceita as diretrizes legislativas internas de Direito Penal, ela sinaliza os limites para a criação do denominado “banco de dados de DNA”. Para tanto, a referida Declaração traz definições importantes, inclusive para os bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal. Os dados associados a uma pessoa identificável, previstos no item IX, são fundamentais para atingir o objetivo de um banco de dados para identificação criminal, já que identificam e qualificam o doador do material genético. Porém, para evitar divulgação ilícita e garantir a proteção dos dados, o item X, corresponde a não identificação direta da pessoa, que é feita apenas através de um código. Na perspetiva de um banco de dados para persecução penal, os dados irreversivelmente dissociados seriam aqueles que confrontados com outros perfis não apresentaram coincidência, conforme o item XI. 5.1. Enquadramento normativo brasileiro: A Constituição de 1988 e seus reflexos É imprescindível a discussão sobre os limites que a Constituição Federal brasileira pode apresentar à regulamentação dos bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal, no sentido de proteção a determinados bens jurídicos fundamentais. Entretanto, o que se tem observado na prática legislativa é o recurso constante às finalidades de política criminal, sobretudo no que tange à persecução criminal, para relativizar direitos e garantias fundamentais em nome da observância e Regulação e direito

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atendimento ao direito da coletividade à segurança. Busca-se o instrumento imediatista e simbólico da lei penal como solução para os problemas de segurança pública e para os deficits do aparato do Estado no combate à criminalidade. A promulgação da Constituição Federal de 1988 abriu para o Brasil uma nova gama de possibilidades de reestruturação social, estatal e jurídica, com a positivação de diferentes núcleos de direitos fundamentais — individuais, coletivos e culturais com uma profundidade como nunca ocorrera anteriormente na vida constitucional do País, estando, entre as transformações ocorridas, a edição da legislação penal. Diferentemente do que a lógica sintática nos demonstra, na qual a expansão do direito e o surgimento de novas leis e normas deveria representar uma melhor e mais abrangente proteção dos bens jurídicos devido ao aumento do espectro de condutas sujeitas à incidência da lei penal, a potencial inefetividade da legislação penal é aparente. No mesmo sentido, pode-se citar o caso do terrorismo nos países europeus, por exemplo, onde o que se percebe é que, segundo Meliá (2011), o terrorismo não é efetivamente combatido através de uma saturação de leis criminais, mas pelo contrário, as mesmas sobrecarregam a capacidade preventiva, realçando ainda mais a ideia de que, muitas vezes, lançamos inúmeras regras em nosso sistema jurídico sem ao menos saber sua função e o que está sendo protegido. É possível perceber que, apesar da crescente expansão do direito penal e do surgimento de inúmeras leis referentes a novas situações antes desconhecidas pelo ordenamento, apenas estamos suprindo de forma simbólica as necessidades da sociedade no momento em que criamos leis que, muitas vezes, não são efetivas, portanto em meio à situação da possível implementação de um banco de perfis genéticos para fins de persecução criminal é necessário cuidado na formulação das leis referentes ao tema, para que haja parâmetros bem definidos quanto a sua utilização e limites impostos pelo Direito. Isso porque a legitimação do referido banco não representa uma melhor proteção e abrangência jurídica, já que, se o mesmo não for aplicado correta e cuidadosamente, não possuirá a efetividade buscada em sua idealização. Por essas razões, somente depois de enfrentadas e superadas as discussões de ordem constitucional é possível pensar na regulamentação Coimbra Editora ®

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específica referente aos bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal. Dentre as questões consideradas fundamentais, destacam-se algumas delas. Primeiramente, é imperioso analisar se é constitucional que a coleta de material genético ocorra compulsoriamente (mesmo mediante “técnica não invasiva”) ou se deve ser voluntariamente, mediante consentimento informado (ou assentimento), tendo em vista os direitos fundamentais possivelmente afetados, dentre eles: integridade corporal (em sentido amplo), intimidade (tanto corporal quanto genética), autodeterminação informacional e corporal, não autoincriminação, liberdade religiosa, assim como a tutela judicial efetiva. Desse questionamento, decorre a necessidade de analisar qual é a extensão ou o sentido do princípio constitucional relativo à proibição de produção probatória contra si mesmo no direito brasileiro (do ponto de vista da legislação, da jurisprudência e da doutrina) Especialmente tendo em vista que o DNA nesses casos possui dupla natureza, isto é, trata-se de um ato de investigação (identificação) e, ao mesmo tempo, um ato de produção probatória (prova) — ainda que de natureza probabilística e falível. Pode-se considerar este aspeto um dos maiores desafios jurídicos a ser enfrentado, isto porque a Constituição Federal brasileira (além da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário) prevê expressamente como direito fundamental — portanto cláusula pétrea — que ninguém tem o dever de produzir prova em seu desfavor (autoincriminação), mesmo diante de uma acusação formal. Trata-se, em outras palavras, do princípio da autodefesa que integra o direito ao silêncio, o direito de não produzir provas contra si mesmo, bem como o direito de não confessar. Concretamente, é preciso definir qual o sentido e extensão desses direitos no ordenamento jurídico brasileiro. 5.2. Aspetos pontuais relativos à Lei n.º 12.654, de 2012 Uma lei que estipule tamanha mudança na forma de identificação e investigação criminais deve vir acompanhada de estudos aprofundados sobre o assunto, mediante estudos de caso, análises de constitucionalidade em relação ao mérito, exame sobre como colocar esses novos procediRegulação e direito

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mentos em prática, sobre os benefícios e prejuízos por eles trazidos, bem como sobre a segurança e garantia que deve envolver os materiais coletados. Isso para que não se tenha mais uma lei sem utilidade prática e que não satisfaça as necessidades ou, pior, que agrida os direitos dos cidadãos e os princípios ditados pela Constituição Federal brasileira. Por isso, é preciso que se leve em consideração invariavelmente os postulados processuais penais — fundados nos postulados constitucionais — de modo que se compreenda o Direito Processual Penal não apenas como instrumento do Direito Penal, mas como mecanismo concretizador das promessas constitucionais. A Lei n.º 12.564, de 2012 inclui salvaguardas importantes, como a necessidade de autorização judicial para o acesso aos dados genéticos armazenados (artigo 9.º-A, parágrafo 2.º), bem como o limite de tempo para a retenção de perfis de DNA de pessoas condenadas (artigo 7.º-A). Contudo, ela não prevê a obrigatoriedade de destruição das amostras biológicas, tampouco — e talvez o aspeto mais importante do ponto de vista democrático e da transparência — aproveitou a oportunidade de realizar uma consulta pública mais ampla que contemplasse além das questões jurídicas e científicas, os impactos sociais e econômicos do uso forense da tecnologia genética. No mesmo sentido, pouco se avançou em termos de regulação dos padrões de qualidade e segurança de coleta, armazenamento e processamento do DNA — em toda a cadeia de custódia — até o seu uso no contexto de um processo penal determinado. Quanto à necessidade de autorização judicial e, portanto, maior restrição ao uso por parte da polícia, Machado et al. (2011), em uma pesquisa de campo em Portugal em que consideram as restrições à polícia necessárias, pois há uma desconfiança generalizada nas práticas policiais. Pelo mesmo caminho segue a perceção social brasileira sobre a atividade policial avaliada pelo Sistema de Indicadores do Instituto de Pesquisa Econômica (IPEA, 2012). Nesse contexto, mais de 50% da população confia pouco ou não confia na instituição Polícia Civil e cerca de 46% tem a mesma impressão sobre a Polícia Federal. No Brasil existem duas formas de identificação das pessoas: a civil e a criminal. A regra geral, nos termos do artigo 5.º, inciso LVIII da Constituição Federal, é a de que a pessoa que for civilmente identificada Coimbra Editora ®

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não será submetida à identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei. A identificação civil, regulada pela Lei n.º 12.037, de 2009, é realizada por meio de carteira de identidade, de trabalho ou passaporte, por exemplo. Já a identificação criminal (8) ocorrerá por meio de fotografia, digital e, agora, perfil genético. A Lei n.º 12.654/2012, com a finalidade de permitir a identificação criminal mediante a coleta de material biológico, alterou duas leis. A Lei n.º 12.037/09 (Lei de Identificação Criminal) e a Lei n.º 7.210/84 (Lei de Execuções Penais). Foi prevista a possibilidade de coleta do material biológico apenas quando se tratar de réu condenado pela prática de determinados crimes (dolosos, com violência de natureza grave, hediondos — não incluídos aqueles equiparados aos hediondos, como o tráfico de drogas e tortura). Ainda que a Lei não seja expressa, acrescenta-se a necessidade do trânsito em julgado da sentença para a coleta, garantia decorrente do princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5.º, LVII). Já durante as investigações, para apurar a autoria de determinado crime, a Lei permite o acesso ao banco de perfis genéticos, mediante requerimento judicial, mas não a coleta do material biológico.(9)Ou seja, o uso e eventual eficácia do banco na fase da investigação estaria vinculado à reincidência por parte de uma pessoa condenada anteriormente e que teve seu perfil genético armazenado. Quanto ao requisito de autorização judicial, a Lei pode dar margem a diferentes interpretações ao não tratar expressamente de duas situações distintas quanto ao acesso e uso do DNA, quais sejam: i) o momento da coleta do material genético, após condenação — sem menção expressa quanto à necessidade de autorização judicial — e ii) o momento do acesso ao perfil genético armazenado no banco, durante a investigação — para o qual a Lei estabelece expressamente a necessidade de autorização judi(8)

De todo modo, convém registrar que a identificação biométrica (por meio das digitais e mesmo fotos) vem sendo utilizada no Brasil para outros fins — além dos criminais — como para passaporte, entrada em bibliotecas, universidades, academias etc. (9) Sobre a natureza da informação genética, bem como a diferença entre material, dado, informação e perfil genéticos, ver: Schiocchet (2011). Regulação e direito

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cial. A regulamentação brasileira é, ao final, menos rigorosa quanto ao acesso ao DNA mediante a coleta e mais rigorosa quanto ao uso posterior da informação já processada e armazenada. É possível questionar ainda acerca da efetividade da Lei, caso o condenado se negue a ceder o material biológico para o exame de DNA. Parte da doutrina jurídica brasileira, que defende mais fortemente os direitos e garantias do cidadão, tenderá a negar o direito do Estado responsabilizar disciplinarmente ou penalmente o sujeito, sob pena de inconstitucionalidade. Quanto à extensão do princípio da não autoincriminação, vale mencionar o entendimento do Supremo Tribunal Federal, por conta do princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), que o acusado não é obrigado a fornecer padrão vocal ou padrão de escrita para que sejam realizadas perícias que possam prejudicá-lo. Senão, veja-se dois precedentes do STF nesse sentido: Habeas Corpus. Denúncia. Art. 14 da Lei n.º 6.368/76. Requerimento, pela defesa, de perícia de confronto de voz em gravação de escuta telefônica. Deferimento pelo juiz. Fato superveniente. Pedido de desistência pela produção da prova indeferido. 1. O privilégio contra a autoincriminação, garantia constitucional, permite ao paciente o exercício do direito de silêncio, não estando, por essa razão, obrigado a fornecer os padrões vocais necessários a subsidiar prova pericial que entende lhe ser desfavorável. 2. Ordem deferida, em parte, apenas para, confirmando a medida liminar, assegurar ao paciente o exercício do direito de silêncio, do qual deverá ser formalmente advertido e documentado pela autoridade designada para a realização da perícia. (10)

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HC 83096, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 18/11/2003, DJ 12-12-2003 PP-00089 EMENT VOL-02136-02 PP-00289 RTJ VOL-00194-03 PP-00923. Coimbra Editora ®

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Ementa: Habeas Corpus. Crime de desobediência. Recusa a fornecer padrões gráficos do próprio punho, para exames periciais, visando a instruir procedimento investigatório do crime de falsificação de documento. Nemo tenetur se detegere. Diante do princípio nemo tenetur se detegere, que informa o nosso direito de punir, é fora de dúvida que o dispositivo do inciso IV do art. 174 do Código de Processo Penal há de ser interpretado no sentido de não poder ser o indiciado compelido a fornecer padrões gráficos do próprio punho, para os exames periciais, cabendo apenas ser intimado para fazê-lo a seu alvedrio. É que a comparação gráfica configura ato de caráter essencialmente probatório, não se podendo, em face do privilégio de que desfruta o indiciado contra a auto-incriminação, obrigar o suposto autor do delito a fornecer prova capaz de levar à caracterização de sua culpa. Assim, pode a autoridade não só fazer requisição a arquivos ou estabelecimentos públicos, onde se encontrem documentos da pessoa a qual é atribuída a letra, ou proceder a exame no próprio lugar onde se encontrar o documento em questão, ou ainda, é certo, proceder à colheita de material, para o que intimará a pessoa, a quem se atribui ou pode ser atribuído o escrito, a escrever o que lhe for ditado, não lhe cabendo, entretanto, ordenar que o faça, sob pena de desobediência, como deixa transparecer, a um apressado exame, o CPP, no inciso IV do art. 174. Habeas corpus concedido (11). Nesse mesmo sentido, convém lembrar que recentemente no Brasil houve uma grande discussão acerca da obrigatoriedade do teste de alcoolemia (conhecido como o “teste do bafômetro”). Ao final, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, seguindo precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF), que motoristas não podem ser obrigados a participar do “teste do bafômetro” ou fornecer material para

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HC 77135, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 08/09/1998, DJ 06-11-1998 PP-00003 EMENT VOL-01930-01 PP-00170. Regulação e direito

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exame de sangue, sob pena de violar a garantia constitucional da não autoincriminação. No entanto, que o Estado não está impedido de usar vestígios para colher material útil na identificação do indivíduo, como já aconteceu em alguns casos emblemáticos no Brasil. Um deles envolveu a coleta de restos de cigarro deixadas no cinzeiro do Distrito Policial e a consequente análise de DNA, sem o consentimento da pessoa envolvida. O exame de DNA oriundo dessas amostras foi analisado pelo Poder Judiciário e considerado lícito. O outro caso envolveu a cantora Gloria Trevi, presa no Brasil e suspeita de ter sido estuprada no interior do presídio. A cantora mexicana estava grávida. Portanto, aguardou-se o nascimento do filho e coletou-se material biológico da placenta — desintegrada do corpo. Também nesse caso, a prova coletada foi considerada lícita. Foi elemento fundamento o fato de se tratar de partes destacadas do corpo humano e que, portanto, não mais pertencem à pessoa, segundo entendimento firmado pelo Tribunal (ver, nesse sentido, Recl. 2.040-DF, rel. Min. Néri da Silveira, julgado em 21.02.02). 6. A GENÉTICA DO SINGULAR AO COLETIVO 6.1. Sobre a genética dos indivíduos Em que pese a afirmação de que haveria uma clara distinção entre a parte codificante e não-codificante do DNA, é preciso levar em consideração que essa taxionomia e distinção é resultado do estado atual do conhecimento científico, o qual tende a apresentar novas descobertas. Nesse sentido, muitos biológicos tem demonstrado que essa distinção categórica é falaciosa, pois mesmo a parte não-codificante do DNA pode apresentar informações específicas (e, portanto, sensíveis) atinentes ao sujeito analisado. Casabona e Malanda (2010: 62) lembram que o perfil genético traz informação sobre a descrição étnica do sujeito (independentemente de esta característica ter se manifestado fenotipicamente) e sobre o sexo (o que poderia revelar alguma anomalia patológica, como as trissomias, ou mesmo uma característica psicológica e social relacionada ao sexo). Coimbra Editora ®

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Além disso, não se descarta a possibilidade de que no futuro (próximo) os estudos do DNA dito não-codificante aportem outros tipos de informação (como a cor dos olhos), afinal as pesquisas genéticas são recentes na história da humanidade e avançam vertiginosamente. Assim sendo, qualquer dado pessoal de caráter genético deve ser considerado um dado que afeta a intimidade genética da pessoa e, portanto, deve ser protegido pelo direito fundamental a intimidade. A informação genética, nesses casos, será necessariamente objeto de comparação para ter algum valor científico e mesmo jurídico-probatório. Diante disso, destaca-se o caráter probabilístico dessa informação genética, por um lado, e a relação com estudos populacionais e comparativos, por outro. Além disso, é preciso ainda levar em consideração a denominada “teoria do mosaico”, segundo a qual existem dados que isoladamente não aportam informações pessoais, mas que, uma vez cruzados com outros dados, sim podem trazer informações que afetam a intimidade genética pessoal. Como exemplo, Casabona e Malanda (2010: 62) mencionam a descoberta da existência ou da inexistência de relação parental biológica desconhecida anteriormente. Os dados apurados e anonimizados pelos arquivos genéticos para fins criminais se limitam ao âmbito não-codificado do DNA, que possibilita aos biólogos moleculares determinar a identidade da pessoa e possíveis relações de parentesco. De todo modo, convém lembrar que a amostra armazenada (material genético) contém todas as demais informações genéticas do indivíduo. Por outro lado, mesmo tratando-se de perfil genético (e não informação sobre características físicas, até o momento relativamente indisponíveis no mercado brasileiro) é preciso avaliar os riscos relativos ao armazenamento destas informações em um banco. Em outras palavras, é preciso avaliar a vulnerabilidade das mesmas, seja em termos de acesso (restrito a quem e controlado por quem) ou, mais especificamente, em termos de codificação (dissociação do perfil ao nome da pessoa). Fatos como estes demonstram que o acesso à tecnologia e à informação por ela gerada pode ser utilizado — atualmente ou no futuro — de diversas maneiras, muitas vezes desconhecidas ou não previstas, Regulação e direito

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inclusive de forma antiética ou ilegal. Por essa razão, incumbe ao Direito levar em consideração essas possibilidades (ainda que não desejadas) no momento da elaboração de uma legislação. 6.2. Sobre a genética das populações Os perfis genéticos não oferecem resultados de identificação plena, absoluta (100%) e, portanto, não são irrefutáveis, como sugerem erroneamente algumas pessoas envolvidas cientifica e politicamente com o tema. Em outras palavras, a genética forense não valora os resultados das análises em termos de fiabilidade absoluta, mas o menor ou maior grau de incerteza em termos de probabilidades. Trata-se, portanto, de um resultado ou prova de probabilidade. Por essa razão, os resultados não podem ser aceitos de forma automática. Desse modo, o laudo pericial não deve mascarar fragilidades encontradas no decorrer das análises. Para esse cálculo de probabilidade recomenda-se a utilização de uma fórmula de base estatística, que é o denominado Teorema de Bayes, o qual permite inserir informações adicionais ao número de polimorfismos coincidentes. Para tanto, é preciso levar em consideração quais os marcadores serão utilizados, qual a frequências dos polimorfismos na população (estudos genéticos populacionais), bem como qual é a população de referência (de determinado estado, região, país, etnia etc.). De fato, para que haja efetivamente um resultado mais próximo da realidade, é preciso levar em consideração dados adicionais não estatísticos que são conhecidos pelo juiz e não pelo perito. Portanto, ressalta-se, é preciso relativizar os resultados da prova genética e compreender que o poder da perícia é limitado. Isso implica para os operadores do direito (juízes, advogados, promotores etc.) em não aceitar os resultados do perfil genético automaticamente como se fosse prova irrefutável, bem como em apresentar rigor e fundamentação na valoração dessa perícia, necessariamente, em conjunto com as demais provas e indícios do caso concreto. Nesse sentido, Casabona e Malanda (2011: 43) alertam que muitas vezes a coincidência do perfil do suspeito com o perfil da cena do crime Coimbra Editora ®

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pode sugerir apenas que o suspeito esteve presente na cena do crime (e, em algumas ocasiões, nem mesmo isso pode ser concluído, pois os vestígios podem ter sido transferidos de um lugar a outro — intencionalmente, por descuido ou mesmo por casualidade). Os autores esclarecem, por exemplo, que: (…) aunque del informe se derive que el semen encontrado en la cavidad vaginal de la mujer que denuncia una violación se corresponde con el ADN del sospechoso, ello únicamente nos informará, en su caso, de que ha existido una relación sexual, pero no de que ésta se haya producido sin el consentimiento de la presunta víctima. Esto último requerirá realizar otras investigaciones probatorias. Por ello, un resultado positivo en el análisis de ADN no puede servir, por un lado, para establecer una conexión irrefutable entre el vestigio biológico y el sospechoso; y por otra parte, tampoco afirmar la culpabilidad del mismo. Sin embargo, un resultado negativo sí podría llevar a la absolución pese a la existencia de indicios de culpabilidad. Por fim, é preciso dar especial atenção à denominada cadeia de custódia (12) como forma de garantia da fiabilidade, segurança e credibilidade da informação genética levada a termo em laudo pericial. Sem tais garantias toda e qualquer informação proveniente da pesquisa genética e do laudo pericial carecerão de qualquer valor jurídico probatório. A incolumidade da cadeia de custódia é fundamental para assegurar a adequação e transparência das técnicas utilizadas, bem como o estado das amostras coletadas e armazenadas. Na verdade a referida cadeia de custódia serviria ainda para assegurar a adequada identificação, coleta, conservação, verificação e custódia da amostra de DNA, desde a sua obtenção até que se incorpore definitivamente no processo como meio de prova.

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Sobre as garantias relacionadas à fiabilidade técnica e licitude, além de aspetos referentes ao conteúdo do informe pericial, recomenda-se a leitura de Cabezudo Bajo (2011, 2012). Regulação e direito

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Nesse âmbito é que se sugere a harmonização das normas referentes aos procedimentos uniformes com aquelas reconhecidas em âmbito internacional de modo que haja efetivo controle dos procedimentos técnicos e científicos e a possibilidade de contra-perícia. No Reino Unido, por exemplo, existe regulamentação (13) detalhada e rigorosa que determina, dentre outras questões, que as mostras devem ser lacradas e etiquetadas na frente do doador, a temperatura de conservação da amostra e o prazo de entrega em 48h. Além disso, dispõe que o laboratório não deve aceitar as amostras que sejam entregues em condições insatisfatórias, ou seja, sem a devida identificação ou cuja consistência seja motivo de suspeita. Além dos aspetos anteriormente tratados, é fundamental enfrentar concretamente questões como: a) os critérios de inserção, manutenção e exclusão tanto dos perfis extraídos e analisados, quanto das amostras coletadas; b) os requisitos para que não haja anulação pelo Poder Judiciário da prova produzida caso não observe os direitos e garantias constitucionalmente reconhecidos; c) a eventual necessidade de que a coleta da amostra genética seja realizada com o acompanhamento de um advogado; assim como, d) a possibilidade de utilizá-la para a apuração de outros delitos (prova emprestada). 7. CONCLUSÃO Ao final deste percurso, é possível identificar a aproximação ética, social e jurídica que se fez a partir do objeto de pesquisa proposto. Considerando a incipiência do tema especialmente no Direito brasileiro, faz-se o registro de que inúmeras questões merecem um maior aprofundamento investigativo. De qualquer sorte, foi possível traçar alguns contornos teóricos e técnicos no que se refere à regulamentação jurídica dos bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal no Brasil. Reitera-se como pressuposto desta pesquisa o reconhecimento da importância dos avanços da genética e os benefícios que ela pode trazer

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Circular do Ministério do Interior sobre o Banco Nacional de DNA (Home Office Circular n.º 16/1995). Coimbra Editora ®

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para a sociedade e para o Direito, inclusive na seara forense-criminal. Em alguns momentos, os resultados dessa pesquisa destacaram as ressalvas e fragilidades desta tecnologia, sobretudo em razão da preocupação do sistema jurídico com os riscos ou má-utilização ou mesmo como reação a uma tendência contemporânea expressiva por parte de alguns setores da sociedade em aceitar integralmente o uso da técnica como algo necessária e integralmente benéfico. De fato, o uso da tecnologia do DNA no âmbito forense não escapa à lógica biopolítica do governo da vida humana, considerada fundamentalmente no seu aspeto biológico. Trata-se de uma lógica de biopoder capilarizada, que atravessa não apenas os sujeitos mas seus próprios corpos e que exige, portanto, uma análise não puramente tecnicista nem legalista da questão. Nesse sentido, é fundamental retomar os pressupostos interdisciplinares para a discussão jurídica do tema destacados no decorrer da pesquisa. O Direito é convocado a atuar de modo interdisciplinar, levando em consideração não apenas os danos causados, mas, preventivamente, os riscos inerentes ao uso da técnica. Uma regulamentação e utilização inadequadas pode gerar a perda de confiança da sociedade na polícia, no Judiciário, na perícia e em outros órgãos governamentais envolvidos, o que pode ser extremamente prejudicial. Do mesmo modo, se o Estado criar expectativas falsas na população referentes à redução generalizada da criminalidade. Por essa razão, é crucial estar atento aos argumentos e discursos que se utilizam em prol da legitimação desses bancos, mesmo que a intenção de determinados atores sociais seja benéfica. Sabe-se que existem diversos atores envolvidos. Muitos deles são caracterizados a partir de estereótipos típicos de cada área: empresas privadas diretamente interessadas na expansão dessa tecnologia para, assim, expandir o mercado de fornecimento de insumos; policiais corruptos e não capacitados para lidar com esse tipo de tecnologia, peritos que nem sempre estão capacitados ou quando capacitados consideram-se imparciais em razão do domínio técnico; advogados criminalistas interessados simplesmente na defesa dos seus clientes; magistrados insensíveis ao uso de novas tecnologias, entre outros tantos atores que poderiam ser Regulação e direito

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descrito de modo caricaturado. No entanto, é imperioso que o sistema jurídico supere tais descrições personalizadas — ainda que existentes — de modo a não incorrer no erro de generalizações, de modo a controlar e regulamentar essa questão de forma metatemporal e metapessoal, por mais óbvio que isso possa parecer. A discussão acerca desta temática tem sido polarizada em torno de duas questões, em princípio, inconciliáveis: o dever estatal de garantir a segurança pública por meio do “combate à criminalidade”, por um lado, e o respeito à garantia constitucional de não produzir prova contra si mesmo, identificado no direito ao silêncio, por outro lado. Eis, nessa ótica, dois interesses incompatíveis, um público e outro privado, que a utilização de DNA para fins de persecução criminal faria emergir. Contudo, este debate nos parece demasiadamente polarizado e, no final das contas, um falso debate. Nem o “combate à criminalidade”, para os defensores do banco, nem a ofensa à garantia constitucional de não produzir prova contra si mesmo, aos opositores, constituem a questão jurídica central na regulamentação do uso da tecnologia do DNA no âmbito forense-criminal — muito menos de forma tão antagônica como vem sendo tratada. Parece-nos que o verdadeiro desafio reside em considerar que a criação de um banco de perfis genéticos para fins de persecução criminal pode, sim, contribuir — mas antes — com a tutela judicial efetiva, no sentido de se punir o autor do delito, assim considerado um direito fundamental — e menos com a redução da criminalidade. Por outro lado, a autonomia pessoal e o direito à autodeterminação corporal e informacional seriam suspensos, afinal nenhum direito é absoluto, mas sob a conditio sine qua non de que a coleta, o armazenamento, o processamento e a valoração probatória ocorra de maneira justificada, proporcional e controlada, com respeito ao requisito de credibilidade técnica da informação genética aportada no laudo pericial, bem como ao requisito de licitude durante toda a cadeia de custódia com vistas à preservação dos direitos à privacidade, intimidade e não estigmatização, entre outros. Isso considerando que se trata, sim, de ato de prova e não mera identificação criminal, portanto com todos os procedimentos e garantias Coimbra Editora ®

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referentes à produção probatória. Todavia, tal produção probatória, de cunho genético, pode tanto incriminar como inocentar o sujeito. Assim sendo, quanto maior a exposição ou vulnerabilidade dos dados em questão, maior é o imperativo legal de proteção. Desse modo, considera-se importante assegurar, mediante instrumentos jurídicos robustos, a proteção aos demais direitos e garantias fundamentais que devem ser respeitados, sob pena de vício elementar. Nesse sentido, merece destaque o rigor científico e jurídico, isto é, em termos de credibilidade e licitude, em todas as fases da denominada cadeia de custódia: I. Fase de obtenção da amostra, II. Fase de análise do perfil genético, III. Fase de tratamento do dado e, por fim, IV. Fase de valoração no processo penal. Caso contrário, tal informação de origem genética deve ser considerada nula. Outrossim, é preciso considerar os desafios e perspetivas relacionados com a utilização dos bancos de perfis genéticos no Brasil, especialmente considerando os erros e acertos de outros países — já experientes nesse campo. O primeiro grande desafio é a capacitação e sensibilização de todos os atores envolvidos nesse processo (peritos, policiais, magistrados, advogados etc.), de modo que saibam observar as normas procedimentais da cadeia de custódia, assim como compreender que o perfil genético pode constituir uma evidência que deve ser analisado em conjunto com as demais evidências. Um segundo desafio reside na adequada compreensão da importância e significado dos cálculos matemáticos de probabilidade, além dos conhecimento do campo da biologia e, mais especificamente, da genética humana, em especial dos estudos genéticos populacionais. Em terceiro lugar, tem-se a necessidade de definir o conteúdo do laudo pericial. Finalmente, em quarto lugar, considera-se fundamental criar uma comissão interdisciplinar que dê continuidade à reflexão e discussão acerca de questões emergentes, dos impactos causados pela utilização efetiva de tal tecnologia genética, bem como das novas descobertas no campo da genética, da bioinformática e no campo da probabilidade. Dentre outros tantos temas que merecem ser aprofundados e discutidos por uma comissão dessa natureza, destaca-se a negativa de se submeter à coleta e suas consequências, se haveria necessidade de acompanhamento Regulação e direito

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de um advogado durante a cólera, a importância da coleta adequada de evidências biológicas oriundas da cena do crime, a eventual necessidade de manutenção das amostras biológicas para fins de realização de contra-perícia ou contraprova, a possibilidade e legitimidade ética e jurídica de criação indireta de biobancos, mediante o armazenamento das amostras biológicas e, por fim, a possibilidade de acirramento da discriminação e estigmatização social em razão de caracteres fenotípicos (como etnia, cor de pele e olhos) que possa eventualmente ser inferidos, direta ou indiretamente, da utilização dos perfis genéticos, especialmente considerando os dados e pesquisas que confirmam a estigmatização social e étnica perpetrada pelo atual sistema de justiça criminal brasileiro, o qual acaba reforçando a cisão entre dois mundos: dos “criminosos” e dos “cidadãos de bem”. Em síntese é fundamental cultivar a capacidade crítica — e autocrítica — a partir da reflexão e do diálogo interdisciplinares, constantes, plurais e transparentes entre os diversos atores envolvidos e setores afetados, de modo a mitigar eventuais interesses pessoais ou corporativos presentes nos processos de legitimação, utilização e disseminação de tais tecnologias. Somente assim será possível contribuir com o fortalecimento da jovem democracia republicana em prol da cidadania da sociedade brasileira. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Acosta, José Antonio Lorente (2002), “Identificación genética criminal: Importância médico legal de las bases de datos de ADN”, in Romeo Casabona; Carlos Maria (eds.), Bases de datos de perfiles de adn y criminalidad. Bilbao-Granada: Comares, 1-25. Albuquerque, Trícia Hommers et al. (2007), “Bancos de dados de perfis genéticos no combate aos crimes sexuais”, Perícia Federal, 26, 13-15. Consultado a 31.07.2013, em http://www.apcf.org.br/LinkClick.aspx?fileticket=8vHdN-3WjDI%3d&ta bid=371. Andorno, Roberto (2007), “The invaluable role of soft law in the development of universal norms in bioethics”. Consultado a 31.07.2013, em http://www.unesco. de/1507.html?&L=0. Barsted, Leila Linhares (2006), “A violência contra as mulheres no Brasil e a Convenção de Belém do Pará: Dez anos depois”, in Leila Linhares Barsted et al. (org), O progresso das mulheres no Brasil. São Paulo: UNIFEM. Bonaccorso, Norma Sueli (2010), Aspectos técnicos, éticos e jurídicos relacionados com a criação de bancos de dados criminais de DNA no Brasil. Tese de Doutorado. USP. Coimbra Editora ®

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LA PRUEBA DE ADN: VALORACIÓN PRELIMINAR DE LA REGULACIÓN ESPAÑOLA Y DE LA UNION EUROPEA MARÍA JOSÉ CABEZUDO BAJO 1. MARCO GENERAL DEL TRABAJO Y ENFOQUE METODOLÓGICO Este trabajo se enmarca dentro de un proyecto de investigación financiado por el Ministerio de Ciencia e Innovación español, cuyo objetivo es dar respuesta a la siguiente pregunta: ¿el uso forense del ADN y sus bases de datos constituyen una herramienta realmente eficaz en la lucha contra la criminalidad grave, tanto nacional como transfronteriza? En definitiva, nos preguntamos si esta herramienta es realmente eficaz, cuánto de eficaz es y en qué medida podría mejorarse dicha eficacia. Para dar respuesta a esta cuestión hemos iniciado nuestro trabajo de investigación tomando como punto de partida una necesidad real: uno de los principales desafíos a los que se enfrentan hoy los Estados, la Unión Europea (UE) y la comunidad internacional es mejorar la lucha contra la criminalidad grave, tanto nacional como transfronteriza. Y por ello, en estos tres niveles, nacional, UE e internacional, las correspondientes Instituciones están adoptando medidas legislativas en las que están tomando en cuenta el uso forense del ADN y sus bases de datos con el fin, precisamente, de que constituya una herramienta útil en la lucha contra la criminalidad. Dicha normativa, que expondré a lo largo de este capítulo de libro, está siendo analizada por nosotros, lo que nos está permitiendo identiRegulação e direito

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ficar algunas cuestiones que van a impedir el logro de ese fin pretendido, esto es, constituir una herramienta eficaz en la lucha contra la criminalidad. Este análisis lo estamos realizando desde una perspectiva jurídico-procesal, en cuanto a que dicho conjunto de normas permita la obtención de una prueba de descargo o, en su caso, de cargo que, junto con otros medios de prueba pueda utilizarse para dictar una sentencia de condena. Sin embargo, a pesar de que el punto de vista desde el que efectuamos el análisis es concreto, la perspectiva procesal, lo cierto es que tenemos que tomar en cuenta cuestiones de muy diversa índole, pues todas ellas van a tener que ser objeto de valoración por parte del órgano jurisdiccional competente. Dichas cuestiones no son solo de naturaleza estrictamente jurídicas, sino que hemos de tomar en cuenta además aspectos que tienen que ver con la genética forense, la probabilidad y la tecnología informática. Debido a la interdisciplinariedad de estas materias, con la complejidad que ello conlleva, tuvimos la necesidad de elaborar un enfoque metodológico que nos permitiera fijar un marco común al que reconducir todas estas cuestiones, abordarlas de forma sistemática y tratar de dar soluciones jurídicamente bien construidas. A continuación expondré el enfoque metodológico que nos ha permitido abordar, con carácter general, este complejo tema. Desde un punto de vista procesal, hasta ahora, consideramos que el uso forense del ADN y sus bases de datos constituirán una herramienta realmente eficaz en la lucha contra la criminalidad grave, nacional y transfronteriza, fundamentalmente, la criminalidad organizada y el terrorismo, si su regulación cumple dos requisitos: 1) en primer lugar, si dicha regulación posibilita la obtención de una prueba de ADN lo más fiablemente posible; 2) en segundo término, si permite la obtención de una prueba de ADN lícitamente; ello, a su vez, significa que ha de obtenerse, de un lado, con el máximo respeto a los derechos fundamentales que puedan verse afectados y, de otro, en cumplimiento de los correspondientes requisitos legalmente previstos. Pero, dado que, como he denominado, “el uso forense de la tecnología del ADN” incluye tres fases, esto es, A) la fase de obtención de una muestra de ADN, B) la segunda etapa, relativa al análisis de su perfil en el laboratorio y, finalCoimbra Editora ®

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mente, C) la tercera fase de tratamiento del dato de ADN en la base de datos, tal prueba pericial de ADN podrá ser altamente valorada por el órgano jurisdiccional competente en el correspondiente proceso penal español, si fue obtenida de forma lícita y lo más fiablemente posible, en cada una de las tres fases indicadas. Si ambos requisitos de cumplen en las tres fases, podremos afirmar que la regulación permite la obtención de una prueba de descargo o, en su caso, de cargo que puede fundamentar, junto con otros medios de prueba, una sentencia de condena. A continuación voy a explicar mejor ambos requisitos relativos a la mayor fiabilidad posible y licitud para que el mencionado enfoque metodológico cobre sentido. Para ello voy a tomar como punto de partida el hecho de que consideramos errónea la creencia de que el uso forense del ADN y sus bases de datos policiales permiten, en la actualidad, la obtención de una prueba científica infalible. No obstante, admitimos que es una herramienta que posee un extraordinario potencial en la lucha contra la criminalidad grave, nacional y transfronteriza. Dicho potencial se está logrando gracias a que, con carácter general, los continuos avances científico-tecnológicos se están poniendo, cada vez más, al servicio de la investigación de los delitos especialmente graves y, asimismo, por la, cada vez mayor, irrupción de los cálculos de probabilidad en el ámbito de la valoración de las pruebas, particularmente, las pruebas científicas. Y de ambos aspectos, los avances científico-tecnológicos y cálculos de probabilidad, se está beneficiando también el uso forense del ADN y sus bases de datos. En efecto, el uso forense del ADN es posible, en la actualidad, gracias al avance científico-técnico que supuso el desarrollo de la huella genética de un individuo en el Reino Unido en el año 1984 (1). Así, gracias a este descubrimiento alcanzado en el ámbito de la genética, que se aplicó al ámbito forense, está siendo posible esencialmente la identificación del

(1)

La invención de la huella genética tuvo lugar en el año 1984 y se debe al profesor de la Universidad de Leicester, Alec Jeffreys. La primera vez que se utilizó sirvió para dictar una sentencia de condena en el Reino Unido. Regulação e direito

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titular de la muestra, no identificada, que fue abandonada en el lugar del delito mediante la comparación, caso a caso, de su perfil con el de un sujeto imputado e identificado. Un segundo avance, extraordinario, en una lucha más eficaz contra la criminalidad, que se ha unido al anterior, tuvo lugar en el año 1995 gracias a la tecnología, pues posibilitó la creación, por primera vez en el Reino Unido, de una base de datos de ADN. Desde entonces son numerosos los paises del mundo que han creado bases de datos (2). En virtud de dicho avance tecnológico se ha posibilitado, no solo el almacenamiento de perfiles de ADN en las numerosas bases de datos que se han ido creando, sino también la interconexión de tales bancos de datos. Ello está permitiendo efectuar búsquedas y comparaciones automatizadas entre todos los perfiles, ya incluidos en los múltiples bancos creados, tanto a nivel nacional como transfronterizo, con el fin de lograr coincidencias entre tales perfiles. Así pues, la posibilidad de identificar al titular de la muestra abandonada en el lugar del delito e, incluso, de vincular varias escenas de un delito se está incrementado de forma notable. En tercer lugar, si se alcanza una coincidencia, este resultado es posible cuantificarlo en términos de probabilidad, mediante la aplicación del Teorema de Bayes sobre la prueba de ADN (3). En virtud de dicho Teorema es posible medir o cuantificar cuál es la probabilidad, dada una coincidencia entre dos perfiles, de que ambos sean de la misma persona. Gracias a ello, pode-

(2) Las tres encuestas realizadas por INTERPOL, la última en 2008, dirigidas a determinar el uso del perfil de ADN en las investigaciones penales entre sus 188 Estados miembros, fueron contestadas por 172: de dichas respuestas han podido afirmar que 120 países utilizan perfiles de ADN en sus investigaciones policiales y 54 tienen bases de datos nacionales de ADN. Está disponible en: http://www.interpol.int/Public/ ICPO/Publications/HandbookPublic2009.pdf (3) Uno de los primeros estudios en los que se plantea la aplicación el Teorema de Bayes para la vinculación de un sujeto con un delito, mediante otros medios que no eran aún el ADN, es Finkelstein y Fairley (1970). En España, se ha afirmado por Carracedo Álvarez (2004), que para valorar correctamente la probabilidad de que una muestra de ADN provenga de un individuo, es necesario recurrir al Teorema de Bayes. Puede consultarse en: http://www.cej.justicia.es/pdf/publicaciones/fiscales/FISCAL39.pdf, p. 6.

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mos afirmar que la prueba de ADN, como prueba científica que es, puede expresarse en términos de probabilidad. Ahora bien, para que dicho potencialidad se vaya haciendo realidad es necesario llevar a cabo dos acciones: de un lado, hay que identificar qué aspectos están por desarrollar o solucionar o mejorar, para que, una vez eliminados, dicho potencial se haga realidad. La pregunta sería entonces: ¿qué desarrollos hay que llevar a cabo para ir avanzando hacia la realidad de ese potencial? De otro, la respuesta a esta pregunta pasa por reconocer que, en este avance, porque ya lo es en sí mismo, por identificar y mejorar estos aspectos por desarrollar se mezclan cuestiones jurídicas, de genética forense, probabilísticas e incluso de tecnología informática. Será esencial reconocer la sinergia existente entre ellos: si se desarrollan unos y no se está al tanto de los otros, no se avanzará adecuadamente. En última instancia, la norma jurídica es el producto final donde se tienen que reflejar los avances alcanzados en todos los ámbitos mencionados. En concreto, desde nuestro punto de vista jurídico, podemos considerar que, si se utilizan los métodos científicos y tecnológicos adecuados desde la obtención de la muestra hasta una vez elaborado el informe pericial, podremos lograr una prueba muy fiable. E, incluso, podríamos llegar a reconocer que si aplicamos todos los avances que se pueden alcanzar en el ámbito científico y tecnológico podríamos llegar a alcanzar una prueba de una fiabilidad prácticamente del 100% (a salvo de los propios errores o incertidumbres que lleva consigo la propia tecnología). Voy poner dos ejemplos hipotéticos que tienen que ver con la ciencia y la tecnología para justificar dicha afirmación: Primer ejemplo hipotético: Se dice que de una muestra de ADN, por ejemplo, de saliva con células epiteliales, se extrae el perfil utilizando, en España, 15 marcadores junto con la amelogenina, que se encuentran en la parte no codificante del ADN (4). Pero, ciertamente gracias a la ciencia (4)

En este sentido, Farfan Espuny (2004), ha señalado que “la variabilidad genética entre individuos se concentra principalmente en el ADN no codificante y que, por tanto, de un análisis de individualización genética con fines forenses no puede extraerse ningún tipo de información sobre características fenotípicas (rasgos físicos, susceptibilidad a enfermedades o fármacos, etc.)”. Puede consultarse en: http://www.cej.justicia. Regulação e direito

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podríamos lograr un perfil “completo”, que nos permitiera identificar definitivamente al titular de la muestra. Para ello, habría que analizar el ADN completo, incluyendo así la parte codificante de ADN. La ciencia lo permitiría. En este caso, lograríamos una fiabilidad del 100% de la prueba de ADN obtenida; eso sí, siempre que logremos comparar, incluso de forma no automatizada, el perfil dubitado, recogido en el lugar del delito, con el perfil de referencia del imputado, logrado tras una intervención corporal para lo cual tendríamos que tener indicios que justificasen dicha intervención judicial en el cuerpo humano (art. 363.II LECRIM). En este caso, ya no necesitaríamos calcular la frecuencia con que ese perfil se da en la población, ni la probabilidad, dada la coincidencia entre ambos perfiles, de que pertenecieran al mismo sujeto. Y, ello, porque dicho perfil sería único y diferente al resto, debido a que no existen dos personas con el mismo ADN, salvo los gemelos univitelinos (5). A cambio, eso sí, al analizar la parte codificante del ADN se revelaría información genética de gran trascendencia, datos sensibles, fundamentalmente, relativos a la salud. En definitiva, se vulnerarían injustificadamente derechos fundamentales, tales como la intimidad y la protección de datos personales. Segundo ejemplo hipotético: si junto con el hecho de que puede analizarse el perfil “completo” de ADN, expuesto en el caso anterior, añadimos que, gracias a la tecnología pueden almacenarse en bases de datos cuantos perfiles de ADN se quiera e interconectarse on line tales bancos de datos, el resultado sería que los perfiles de ADN de todos ciudadanos del mundo podrían almacenarse en bases de datos y podrían ser objeto de búsquedas y comparaciones. La tecnología lo permite. No sería necesario llevar a cabo intervenciones corporales y se superaría el reto que supone la criminalidad transnacional, cuando sujetos y muestras pueden estar repartidos entre distintos Estados. La comparación ya no sería entre dos perfiles, no identificado y de referencia, sino que se podrían es/pdf/publicaciones/medicos_forenses/MEDI19.pdf, p. 5. Pero nos preguntamos si es tan clara la distinción entre la parte codificante y no codificante y, en este sentido, si puede afirmarse con rotundidad que los 16 marcadores y otros que puedan utilizarse se encuentran en la parte no codificante. (5) Farfan Espuny (2004: 5) Coimbra Editora ®

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realizar búsquedas y comparaciones entre todos los perfiles de ADN del conjunto de la población mundial. La probabilidad de encontrar una coincidencia sería del 100% y la probabilidad de que se tratara del mismo sujeto sería igualmente del 100%, lo que supondría que ya no tendríamos que efectuar ningún cálculo de probabilidad. Sin embargo, para ello, sería necesario no establecer ningún límite a la inclusión y permanencia de perfiles en las bases de datos y, en su caso a la conservación de las muestras. Desde un punto de vista jurídico, ello vulneraría injustificadamente el derecho a la intimidad y a la protección de datos. Pero no debemos dejarnos deslumbrar por la ciencia y tecnología hasta este punto. En ambos casos, el logro de una fiabilidad del 100% de la prueba resultante tiene que limitarse. Si aplicamos todos los avances que se pueden alcanzar en el ámbito científico y tecnológico, es cierto que podríamos llegar a alcanzar una prueba de una fiabilidad del 100%. Sin embargo, nos podría conducir, desde un punto de vista jurídico, a la obtención de una prueba ilícita. Por ello, en ambos ejemplos, ha entrado el ordenamiento jurídico a regular ambas cuestiones. En el primer caso, ha previsto y, en su caso, ha limitado la parte de ADN que puede ser analizada en el laboratorio. En el segundo supuesto, se han regulado o limitado los criterios de inclusión y cancelación de perfiles, así como de conservación de las muestras. Así, pues, desde un punto de vista jurídico, la cuestión esencial es buscar el equilibro entre la protección de los derechos fundamentales afectados y otras garantías esenciales legalmente previstas, de un lado, y la identificación del sujeto que abandonó la muestra en el lugar del delito, de otro. En definitiva, se trata de lograr esencialmente una regulación en la que no haya una restricción desproporcionada de los derechos fundamentales en juego. En consecuencia, hay que identificar dónde está el límite legal a los avances científicos y tecnológicos. Cada Estado establece dicho punto donde considera oportuno. En este sentido, y siguiendo con los dos ejemplos que hemos puesto cabe señalar que, respecto al primer ejemplo, es cierto que se ha regulado la parte de la muestra de ADN que ha de analizarse en el laboratorio con el fin de extraer su perfil. Así lo ha hecho la norma española (art. 4 LO 10/2007) pues indica que solo se inscribirán en la base de datos los “identificadores obtenidos a partir del ADN, en el marco de una invesRegulação e direito

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tigación criminal, que proporcionen, exclusivamente, información genética reveladora de la identidad de la persona y de su sexo”. Sin embargo, en virtud de dicho precepto, cabe preguntarse si, resultaría respetuoso con tal precepto, la extracción de información genética de la identidad de la persona, mediante el análisis de la parte codificante del ADN que es la que también contiene información genética que revela otros datos sensibles, tales como los relativos a la salud de un sujeto. La respuesta es desgraciadamente que dicho precepto no parece impedirlo. El desarrollo de esta cuestión será analizado en el punto V. En relación con el segundo ejemplo, podemos indicar que ciertamente los legisladores nacionales de los Estados miembros han previsto criterios de inclusión y cancelación de los perfiles, el control de las muestras de ADN y los fines a los que han de destinarse (6). Sin embargo, dicha regulación es, cada vez, menos respetuosa con los derechos fundamentales a la intimidad y protección de datos personales. En particular, los legisladores están fomentando el aumento de tamaño de dichas bases a través de, al menos, cuatro vías de carácter jurídico. Paradójicamente, dichas vías constituyen algunas de las actividades que conforman el “tratamiento de datos en la base de datos” (art. 2.b) Decisión marco 2008/977) y que, por ello, debieran ser respetuosas esencialmente, con el derecho fundamental a la protección de datos personales. Tales vías, que ya se han expuesto en otro lugar (7), son las siguientes: En primer lugar, mediante la ampliación de los criterios de inclusión de perfiles en las bases de datos, tales como el grado de imputación, la clase de delitos, más o menos graves y el tipo de muestras. En segundo término, a través del inexistente o deficiente plazo legal de cancelación de los perfiles de ADN en las bases de datos. En tercer lugar, dicho aumento de perfiles de ADN se ha llevado a cabo mediante una imprecisa regulación sobre la conservación de las muestras de ADN. Finalmente, el crecimiento de los bancos de datos de ADN se pretende lograr mediante una regulación en la que no se identifique el

(6)

Así, por ejemplo, en España, la LO 10/2007 ha previsto dichas cuestiones en los arts. 3,9 y 5. (7) Cabezudo Bajo (2011) Coimbra Editora ®

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concreto fin al que han de estar destinado el perfil o las muestras de ADN. Y, ello sin perjuicio de que cada vez está fomentándose más a nivel transfronterizo, el intercambio de perfiles de ADN entre distintos Estados, mediante diversos instrumentos jurídicos, tales como las mencionada Decisión 2008/615, convenios bilaterales o multilaterales. Así pues, ciertamente se podría lograr una fiabilidad del 100% en la identificación del investigado y en la prueba obtenida, si se aplicasen los avances científicos y tecnológicos a la prueba del ADN. Sin embargo, también lo es que, a la hora de obtener una prueba de ADN fiable, tenemos que asumir la necesidad de que se cumplan asimismo una serie de requisitos constitucionales y legales cuya inobservancia impide valorar esa prueba obtenida. En definitiva, es necesario que, además, la prueba sea lícita, esto es, obtenida con el máximo respeto a los derechos fundamentales afectados y a otras garantías esenciales legalmente previstas. En este sentido, es al limitarse la fiabilidad, debido al establecimiento de estos requisitos jurídicos, cuando ya no podremos hablar de una prueba de ADN fiable sino de una prueba lo más fiable, lo cual ya es en sí mismo un extraordinario reto, pues requiere la utilización de la tecnología adecuada y su adecuada realización en el caso concreto. Y es al limitarse la fiabilidad en aras de la licitud de la prueba cuando la fiabilidad de la prueba de ADN ya no es del 100% y, por ello, tiene que entrar en juego la aplicación del Teorema de Bayes en la valoración judicial de la prueba de ADN. En virtud de dicho Teorema, como ya dijimos anteriormente, es posible medir o cuantificar la probabilidad, dada la coincidencia, de que el titular de ambos perfiles sea la misma persona. Y, además, permite cuantificar una probabilidad muy alta, dado que la frecuencia con que el perfil de ADN que ha coincido se da en la población es bajísima. En concreto, dicha frecuencia es posible calcularla gracias a las bases de datos poblacionales (8) que se han venido elaborando

(8)

En este sentido, Alonso Alonso (2004) indica que se está trabajando a nivel nacional como europeo para el desarrollo de bases de datos poblacionales más amplias en el seno del Grupo Español y Portugués de la Sociedad Internacional de Genética Forense (GEP—ISFG) y el Grupo de Trabajo en ADN de la Red Europea de InstituRegulação e direito

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hasta ahora esencialmente a nivel local-nacional, lo que pone en entredicho su fiabilidad cuando se produce fundamentalmente una coincidencia a “nivel transfronterizo” de los perfiles de ADN. De conformidad con lo manifestado en relación con la licitud y la fiabilidad, y bajo el enfoque metodológico adoptado para abordar en general nuestro trabajo de investigación, expondremos a continuación el objeto concreto de este capítulo de libro. 2. OBJETO DEL CAPÍTULO DE LIBRO Para contextualizar mejor las cinco cuestiones concretas que vamos a identificar en este capítulo de libro y llevar a cabo su análisis, ha sido necesario identificar previamente, a qué nos referimos con licitud y la mayor fiabilidad posible de la prueba de ADN, así como en qué consisten las fases de obtención de la muestra de ADN, de extracción del perfil de ADN y de tratamiento del dato de ADN en la base de datos y qué fines persiguen (9). Asimismo, conforme a dicho trabajo previo, hemos podido sistematizar las normas aprobadas a nivel UE y a nivel español. La organización de este conjunto de normas, que se expone a continuación, sirve para centrar el análisis llevado a cabo en este capítulo de libro y en trabajos futuros. 1) Respecto a la fiabilidad de la prueba, a nivel UE, en B) la fase de extracción del perfil, se han aprobado dos normas esencialmente: la primera (10) exige que las actividades de laboratorio llevadas a cabo por los prestadores de servicios forenses se acrediten por un organismo de acreditación nacional que certifique que tales actividades cumplen la norma EN ISO/IEC 17025; la segunda (11) invita a los Estados miem-

tos Forenses (ENFSI). Puede consultarse el artículo en: http://www.cej.justicia.es/pdf/ publicaciones/medicos_forenses/MEDI23.pdf. (9) Dicho trabajo ya se ha desarrollado y publicado en Cabezudo Bajo (2004), “La obtención transfronteriza…, op. cit., pp. 742-748. (10) Decisión marco 2009/905/JAI, de 30 de noviembre, sobre acreditación de prestadores de servicios forenses que llevan a cabo actividades de laboratorio. (11) Resolución del Consejo de 30 de noviembre de 2009, relativa al intercambio de resultados de análisis de ADN. La ampliación del número de marcadores a 12, es Coimbra Editora ®

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bros, de un lado, a que utilicen 12 marcadores o “loci” de ADN que componen el actual conjunto europeo normalizado de “loci” (ESS), y, de otro, a que obtengan los resultados del análisis ESS de acuerdo a técnicas de ADN ensayadas y aprobadas científicamente que se basen en los estudios llevados a cabo en el ámbito del Grupo “ADN” de la ENFSI. Asimismo, el anexo de la Decisión 2008/616 contiene normas en este sentido. En relación con C) la fase de tratamiento del dato de ADN, el anexo de la Decisión 2008/616 contiene aspectos tecnológicos sobre el tratamiento del dato de ADN en las bases de datos de los Estados miembros y su intercambio. En España, las cuestiones relativas a la fiabilidad se han regulado esencialmente en el RD 1977/2008, de 28 de noviembre, por el que se regula la composición y funciones de la Comisión Nacional para el uso forense del ADN (en adelante RD CNUFADN). Así, en cuanto a A) fase obtención: a) la elaboración y aprobación de los protocolos técnicos oficiales sobre la obtención y la conservación de las muestras (12). En relación con B) la fase extracción del perfil, la acreditación de los laboratorios que estén facultados para contrastar perfiles genéticos en la investigación y persecución de delitos, así como la evaluación de su cumplimiento y el establecimiento de los controles oficiales de calidad a los que deban someterse de forma periódica los mencionados laboratorios (13); b) el establecimiento de criterios de coordinación entre los laboratorios, así como el estudio de todos aquellos aspectos científicos y técnicos, organizativos, éticos y legales que garanticen el buen funcionamiento de todos los laboratorios que integran la base de datos policial sobre identificadores obtenidos a partir del ADN (14); c) y la elaboración y aprobación de los protocolos técnicos oficiales sobre el análisis de las muestras, incluida la determinación de los marcadores

debido a que el valor estadístico de los datos de ADN corresponde a la probabilidad aleatoria de coincidencia y depende completamente del número de marcadores de ADN analizados fiablemente. (12) Art. 3. c) del RD CNUFADN (13) Art. 5 de la LO 10/2007 y 3. a) RD CNUFADN. (14) Art. 3. b) RD CNUFADN. Regulação e direito

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homogéneos sobre los que los laboratorios acreditados han de realizar los análisis (15). 2) En relación a la licitud de la prueba y en la primera fase, A) referida a la obtención de la muestra de ADN, en la que pueden verse afectados los derechos fundamentales a la integridad física, la vida privada, e inviolabilidad del domicilio o el derecho a la protección de datos, han adoptado normas sobre la obtención de una muestra. En concreto, bien de persona identificada (16), o bien del lugar del delito (17). Principalmente, en este sentido, la Directiva sobre la Orden de Investigación Europea (18). Asimismo, en B) fase de análisis del perfil, se indica en la Decisión 2008/615, de 23 de junio de 2008 (art. 2.2) que los “índices de referencia contendrán exclusivamente perfiles de ADN obtenidos a partir de la parte no codificante del ADN y un número de referencia”. En cuanto a C) la tercera fase, referida al tratamiento de datos de ADN en la base de datos, en la que puede verse afectado principalmente el derecho fundamental a la protección de datos, se ha aprobado la Decisión marco 2008/977/JAI, de 27 de noviembre de 2008, relativa a la protección de datos personales tratados en el marco de la cooperación policial y judicial en materia penal, junto con las normas especificas aplicables al dato de ADN previstas en la Decisión 615/2008 (arts. 24-32).

(15)

Art. 3. c) RD CNUFADN. Art. 7 de la Decisión marco 2008/615. (17) En materia de obtención de pruebas coexisten 5 instrumentos jurídicos: 1) Convenio europeo de asistencia judicial en materia penal de 1959; 2) Convenio de aplicación del Acuerdo de Schengen 1990 (CAAS); 3) Convenio de asistencia judicial en materia penal de 2000; 4) Decisión Marco 2003/577, desarrollada en España por la Ley 18/2006, de 5 de junio; 5) Decisión Marco 2008/978. (18) Iniciativa de Bélgica, Bulgaria, Estonia, España, Austria, Eslovenia y Suecia, con vistas a la adopción de una Directiva del Parlamento y del Consejo relativa al exhorto europeo de investigación en materia penal — JAI (2010) 3, publicada en el DOUE 24de junio 2010, C 165. Con ella, se pretende lograr una nueva y única regulación. En este sentido, puede verse el “Libro Verde sobre la obtención de pruebas en materia penal en otro Estado miembro y sobre la garantía de su admisibilidad”, COM (2009) 624 final de 11 de noviembre 2009. (16)

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En España, respecto a 1) la licitud de la prueba, los aspectos relativos a A) la primera fase, referida obtención de la muestra, del lugar del delito y de persona identificada se establecen en la LECRIM (19) y en la LO 10/2007, de 8 de octubre, reguladora de las bases de datos policiales de ADN (20) y en cuanto a la garantía de la cadena de custodia únicamente se menciona en la LO 10/2007 (21). En relación con B) la fase de extracción del perfil en el laboratorio, la función relativa a la determinación de las condiciones de seguridad en la custodia de las muestras y la fijación de todas aquellas medidas que garanticen la estricta confidencialidad y reserva de las muestras, los análisis y los datos que se obtengan de los mismos, de conformidad con lo establecido en las leyes, se ha previsto en el RD CNUFADN (22). Asimismo, hay que tomar en cuenta, según dispone el art. 4 de la LO 10/2007 que solo se inscribirán en la base de datos los “identificadores obtenidos a partir del ADN, en el marco de una investigación criminal, que proporcionen, exclusivamente, información genética reveladora de la identidad de la persona y de su sexo”. En cuando a C) la tercera fase de tratamiento de datos de ADN en la base de datos, el tratamiento y fundamentalmente la protección del dato de ADN se regula en la LO 10/2007 y en LO 15/1999, de 13 de diciembre de Protección de Datos, así como en su reglamento de desarrollo, el RD 1720/2007, de 21 de diciembre. Así pues, si aplicamos el mencionado planteamiento metodológico sobre el conjunto de las normas reguladoras del uso forense del ADN y de sus bases de datos policiales, tendremos que llevar a cabo un análisis transversal de la licitud, de un lado, y de la mayor fiabilidad posible, de otro, en cada una de las tres fases mencionadas. En virtud de dicho estudio podremos determinar si tales normas realmente posibilitan la obtención de una prueba de ADN lícita y lo más fiable posible. Si es lícita el órgano jurisdiccional podrá valorarla, será una prueba válida que,

(19) (20) (21) (22)

Arts. 326, párrafo 3.º y 363, párrafo 2.º Disposición Adicional Tercera. Art. 6 de la LO 10/2007. Art. 3. d)

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asimismo, en función del grado de fiabilidad que haya alcanzado determinará el valor probatorio otorgado por el el órgano jurisdiccional nacional competente. Este trabajo está siendo llevado y cabo y nos está permitiendo identificar múltiples problemas jurídicos. En concreto, en este capítulo de libro, voy a plantear cinco nuevas cuestiones controvertidas que inciden sobre la fiabilidad y la licitud de la prueba y que se suscitan en las tres fases ya indicadas. 1) En primer lugar, en la fase de obtención de la muestra de ADN, hay dos temas que ponen en cuestión la fiabilidad y la licitud de la futura prueba de ADN. Ambas cuestiones se han identificado tras el análisis de las normas españolas y de la UE reguladoras de esta fase de obtención de la muestra mencionadas anteriormente y teniendo en cuenta el fin que deber perseguirse en esta etapa de obtención de la muestra. En este sentido, la obtención de la muestra tendría que regularse teniendo en cuenta la finalidad que debe perseguirse en esta primera fase. Dicho objetivo es que la muestra sea obtenida, conservada y trasladada al laboratorio utilizando métodos adecuados, que aseguren que llega al laboratorio tal y como se tomó, esto es, que garanticen la identidad entre la muestra obtenida, conservada, trasladada y recibida por el laboratorio. Ello significa, desde la perspectiva de la fiabilidad, que debe asegurarse la integridad de la muestra. Y, desde el punto de vista de la licitud, implica que ha de efectuarse, en primer lugar, con el máximo respeto a los derechos fundamentales que pueden verse afectados, como son los derechos a la intimidad y el derecho a la integridad física y, en su caso, a la inviolabilidad del domicilio y, en segundo término, cumpliendo con otras garantías legalmente previstas que aseguren su autenticidad, como es el pleno respeto a las normas sobre la cadena de custodia, que impiden la manipulación de la muestra. En concreto ambas cuestiones son: A) La falta de previsión normativa de los protocolos de actuación que debieran cumplirse para garantizar la fiabilidad de la muestra durante su obtención. B) Desde la perspectiva de la licitud, la inexistencia de una norma europea, en virtud de la cual pueda recogerse transfronterizamente una muestra de ADN, esto es, obtenerse en un Estado miembro, a solicitud de otro Estado Coimbra Editora ®

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miembro cuya jurisdicción es competente, de conformidad con la regla forum regit actum y, posteriormente, ser trasladada al Estado requirente. 2) En segundo término, voy a plantear dos cuestiones que se sitúan en la fase de análisis del perfil, que van a dificultar la obtención de una futura prueba de ADN fiable y lícita. Ambas cuestiones se han identificado igualmente tras el análisis de las normas españolas y de la U reguladoras de esta fase de análisis del perfil de ADN en el laboratorio anteriormente indicadas y teniendo en cuenta el fin que deber perseguirse en esta etapa de análisis del perfil. Dichas normas han de pretender la consecución de la finalidad que se persigue en esta fase. Dicho fin consiste en que el análisis del perfil de ADN ha de posibilitar la obtención de un código alfanumérico que representa un conjunto de características que permiten identificar al individuo titular de la muestra obtenida (23). Para ello, es necesario que dicho análisis se realice con la mayor fiabilidad posible, utilizando los métodos científico-tecnológicos adecuados que permitan asegurar lo más posible que la identidad correspondiente al perfil extraído coincide con la identidad del titular de la muestra de la que se extrajo. Y, asimismo, ello ha de realizarse con el límite que determina el respeto a los derechos fundamentales afectados y a otras garantías esenciales legalmente previstas. En particular, dichos problemas jurídicos son: A) En relación con la licitud, cabe preguntarse a qué parte de la secuencia del ADN ha de limitarse el análisis para extraer el perfil, si únicamente a la parte no codificante o también a la codificante. B) Respecto a la mayor fiabilidad posible, cabe destacar la falta y, por tanto, la necesidad de identificar en una norma los marcadores que los laboratorios españoles han de utilizar en armonía con el resto de los Estados miembros, de cara a la fiabilidad de la prueba resultante tras el logro de una coincidencia “transfronteriza” de perfiles. (23)

De la definición del art. 2) de la Decisión 2008/616 de “perfil de ADN”, se deriva que la extracción del perfil es la identificación de “un código alfabético o numérico que representa un conjunto de características identificativas de la parte no codificante de una muestra de ADN humano analizada, es decir, la estructura molecular específica en los diversos loci (posiciones) de ADN”. Regulação e direito

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3) Finalmente, voy a exponer un problema que se enmarca en la fase de tratamiento del dato de ADN en la base de datos, que pone en cuestión la fiabilidad de la futura prueba de ADN. En efecto, en virtud del tratamiento del dato de ADN se persigue esencialmente un doble objetivo. Siendo el primer fin el logro de una coincidencia entre perfiles, nos interesa destacar aquí el segundo de tales objetivos, como es A) la elaboración del correspondiente informe pericial de ADN. Dicho informe ha de contener una información esencial y es aquella en la que el perito cuantifica el hecho de la coincidencia lograda entre dos perfiles, de referencia y no identificado, en términos de probabilidad. Esta información desgraciadamente no se le está suministrando adecuadamente al Tribunal en la actualidad. 3. FALTA DE PREVISIÓN NORMATIVA DE LOS PROTOCOLOS DE ACTUACIÓN EN LA RECOGIDA DE LA MUESTRA DE ADN Para la consecución del fin al que debe orientarse la fase de obtención, ha de garantizarse, desde la perspectiva de la fiabilidad, la integridad de la muestra. Para ello, tendrá que obtenerse por personal cualificado y tomarse y conservarse en condiciones que eviten su contaminación, lo que no ocurrirá si es contaminada por el personal que la recoge o la muestra se altera en el proceso de recogida o traslado al laboratorio, sin perjuicio de que pueda estar contaminada en sí misma. Es necesario, pues, que se establezcan unos protocolos de actuación en la recogida de la muestra. A este respecto, sería fundamental que la actuación de nuestra Policía Científica y la del resto de los Estados miembros y de terceros países se adaptase a los protocolos de recogida, traslado al laboratorio y respeto a la cadena de custodia, que se han elaborado a nivel internacional. La utilización de dichos protocolos de actuación contribuiría a asegurar la fiabilidad de la prueba, en primer lugar, cuando la muestra fuese recogida “a nivel nacional” en un Estado miembro o tercer Estado. Y, ello, porque, una vez obtenida la muestra de ADN y extraído su perfil, dicho dato puede ser objeto de consultas y comparaciones automatizadas entre bases de datos de ADN de distintos Estados miembros y terceros países. Coimbra Editora ®

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Si han utilizado los mismos protocolos de actuación, la prueba resultante podrá, al menos en esta cuestión, valorarse altamente en el Estado cuya Jurisdicción es competente. Pero también se aseguraría la fiabilidad de la prueba, si, en segundo lugar, la muestra tuviese que ser obtenida transfronterizamente, pues ambos Estados, requirente y requerido, utilizarían los mismos protocolos de recogida. Como referencia a tomar en cuenta sobre dichos protocolos de actuación, cabe destacar los estudios llevados a cabo a nivel internacional, por la ISFG y el GEP_ISFG (24). En ellos, se establecen, entre otras cuestiones fundamentales, los requisitos que ha de cumplir el personal encargado de la recogida de muestras, qué precauciones han de observarse durante el proceso de recogida y envío de muestras al Laboratorio, cómo ha de documentarse la recogida de las muestras, qué condiciones han de cumplirse en la toma de muestras indubitadas o de referencia y en la recogida de indicios biológicos de la escena del delito así como del cuerpo de la víctima, cuáles han de ser los sistemas de empaquetado y preservación de muestras, así como las exigencias que han de observarse en la recepción de muestras en el Laboratorio de Genética Forense. Pero la elaboración de dichos protocolos a nivel internacional, que era necesaria, no resultará plenamente eficaz si no se da un paso más, como es su previsión normativa, con el fin de lograr que dichos protocolos resulten de obligado cumplimiento con carácter general. En España, el RD 1977/2008, de 28 de noviembre, por el que se regula la composición y funciones de la CNUFADN, ha atribuido a la citada Comisión la elaboración y aprobación de los protocolos técnicos oficiales sobre la obtención y la conservación de las muestras (25). En la elaboración y aprobación de los protocolos técnicos oficiales sobre la obtención de la muestra, la CNUFADN ha tomado en cuenta los citados estudios elaborados, a nivel internacional, por la ISFG. Pero sería deseable que se previera normativamente. Si, asimismo, fuesen aproba-

(24)

Pueden consultarse en http://www.gep-isfg.org/documentos/Recogida%20 de%20evidencias.pdf (25) Art. 3. c). Regulação e direito

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dos por el legislador europeo, de manera que tuviese que ser asumido por sus Estados miembros, se posibilitaría el aseguramiento transfronterizo de la fiabilidad de la prueba en los dos casos anteriormente indicados: tanto en el caso de que se recogiese a nivel nacional y posteriormente hubiese intercambio de perfiles y se lograse una coincidencia, cuanto en el supuesto de que tuviese que recogerse una muestra de ADN en otro Estado miembro. 4. OBTENCIÓN TRANSFRONTERIZA DE LA MUESTRA DE ADN La obtención transfronteriza de una muestra de ADN tiene lugar cuando la recogida de la muestra ha de realizarse en un Estado miembro de la UE (autoridad de ejecución) distinto a aquel ante el que se ha incoado un proceso penal y que solicita la obtención de dicha muestra (autoridad de emisión). Estas normas son esenciales para garantizar la licitud de la prueba. A este respecto, a nivel UE, se han adoptado específicamente normas sobre la obtención de una muestra de ADN de persona identificada (26). Pero, lo cierto es que en materia de obtención de pruebas en general, no se ha aprobado aun la norma europea que plasme el principio de reconocimiento mutuo en cuanto a la obtención y traslado de las pruebas al Estado miembro requirente y que resulte aplicable a la prueba de ADN. Por el contrario, en la actualidad, coexisten distintas normas relativas a la obtención de pruebas, referidas tanto a procedimientos de asistencia judicial, como a instrumentos de reconocimiento mutuo. En concreto, coexisten cinco instrumentos jurídicos (27): 1) Convenio europeo de asistencia judicial en materia penal de 1959; 2) Convenio de aplicación del Acuerdo de Schengen 1990 (CAAS); 3) Convenio de asistencia judicial en materia penal de 2000; 4) Decisión Marco 2003/577, de 22 de julio de 2003, relativa a la ejecución en la Unión Europea de las resolu-

(26) (27)

Art. 7 de la Decisión marco 2008/615. Bachmaier Winter (2006).

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ciones de embargo preventivo de bienes y de aseguramiento de pruebas, desarrollada en España por la Ley 18/2006, de 5 de junio; 5) Decisión Marco 2008/978, de 18 de diciembre de 2008, relativa al exhorto europeo de obtención de pruebas para recabar objetos, documentos y datos destinados a procedimientos en materia penal. Con las dos mencionadas Decisiones marco se ha ido progresivamente avanzando en la regulación sobre la obtención de pruebas entre Estados miembros. Pero no se logrará una regulación integral hasta que no se apruebe la Directiva sobre el exhorto europeo de investigación (28), que continua tramitándose en la actualidad. Con ella, se pretende lograr una nueva y única regulación en materia de obtención de pruebas. Dicha norma constituirá un punto de inflexión en materia de obtención, entre los Estados miembros, de las pruebas y, en particular, de la prueba de ADN, dado que en la actualidad no resultan de satisfactoria aplicación ni la Decisión marco 2003/577, ni la Decisión 2008/978 por las siguientes razones: En cuanto a la Decisión marco 2003/577, de 22 de julio de 2003, plantea un problema esencial y es que dicha norma solo cubre la parte de la cooperación judicial penal en cuanto a la obtención de pruebas, si bien el traslado subsiguiente de las mismas se deja a los procedimientos de asistencia judicial, como son los Convenios relativos a la asistencia judicial en materia penal entre los Estados miembros de la Unión Europea. Visto lo anterior, se consideró necesario mejorar más la cooperación judicial aplicando el principio de reconocimiento mutuo a una resolución judicial bajo la forma de exhorto, con el fin de que pudiera obtenerse cualquier objeto, documento o dato para su uso en los procedimientos en material penal. Por ello, se aprobó la Decisión marco 2008/978, que aun

(28)

Iniciativa de Bélgica, Bulgaria, Estonia, España, Austria, Eslovenia y Suecia, con vistas a la adopción de una Directiva del Parlamento y del Consejo relativa al exhorto europeo de investigación en materia penal — JAI (2010) 3, publicada en el DOUE 24de junio 2010, C 165. Puede verse el “Libro Verde sobre la obtención de pruebas en materia penal en otro Estado miembro y sobre la garantía de su admisibilidad”, COM (2009) 624 final de 11 de noviembre 2009. Asimismo, léase, Bachmaier Winter (2011). Regulação e direito

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no se ha desarrollado en España. A diferencia de la Decisión 2003/577, esta nueva norma cubre la obtención, análisis y traslado. Sin embargo, cuenta con un aspecto negativo y es que solo se aplica a determinados medios de prueba, porque se limita a pruebas ya existentes o disponibles en forma de objeto, documentos o datos. Por lo tanto, no es aplicable a la obtención de la muestra de ADN pues, conforme a dicha Decisión marco no cabe dictar un exhorto sobre pruebas que no existen o que, aun existiendo, no están directamente disponibles sin una investigación o examen posterior, como ocurre con las muestras de ADN, que requieren de un posterior análisis para extraer su perfil. Así pues, esta Decisión marco sustituye, en las materias que caen bajo su ámbito de aplicación, al sistema de asistencia judicial en materia penal. Pero en el caso de pruebas que no pueden obtenerse y trasladarse conforme a la Decisión 2008/978, se aplicarán los correspondientes convenios de Asistencia Judicial en materia penal. En consecuencia, el exhorto previsto en la Decisión marco 2008/978 está llamado a coexistir con los actuales procedimientos de asistencia judicial. Sin embargo, dicha coexistencia es transitoria hasta que los tipos de obtención de pruebas excluidos del ámbito de aplicación de esta Decisión marco estén sujetos igualmente a un nuevo instrumento de reconocimiento mutuo. Dicho instrumento será la Directiva sobre el exhorto europeo de investigación, que cuando se apruebe (29), sustituirá a las Decisiones Marco 2003/577/JAI y 2008/978/JAI, así como a varios instrumentos sobre asistencia judicial en materia penal, por lo que respecta a la obtención de pruebas para su uso en procedimientos penales. De esta nueva Directiva resulta altamente positivo el hecho de que con su aprobación se pretende evitar que las pruebas sean inadmisibles o que tengan un valor probatorio reducido en el marco de un proceso penal que se desarrolla en un Estado miembro por la forma en que se obtuvieron en otro. Para ello, el art. 8.2 de la Iniciativa adopta la regla forum regit actum, pues dispone que la autoridad de ejecución observará las formalidades y procedimientos

(29)

La Iniciativa de varios Estados miembros se ha publicado en el DOUE 24.06.2010 (C 165/22). Asimismo, puede consultarse en: http://eur-lex.europa.eu/ LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2010:165:0022:0039:ES:PDF Coimbra Editora ®

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expresamente indicados por la autoridad de emisión, salvo que la presente Directiva disponga lo contrario y siempre que tales formalidades y procedimientos no sean contrarios a los principios jurídicos fundamentales del Estado de ejecución. Sin embargo, dicha Directiva resulta insatisfactoria en una cuestión esencial y es que no ha incidido suficientemente en el respeto a los derechos fundamentales que pueden verse afectados a la hora de obtener una prueba en otro Estado miembro. En este sentido, la Iniciativa efectúa en el art. 1.3 (30) una alusión muy genérica al respeto a los derechos fundamentales, cuando debiera haber establecido, al menos, las salvaguardias propias del principio de proporcionalidad. Sería deseable que el texto final las incluyera. 5. PARTE DE LA SECUENCIA DEL ADN A ANALIZAR: ¿REGIÓN NO CODIFICANTE O CODIFICANTE? Orientados a la consecución del mencionado fin, desde el punto de vista de la licitud de la prueba, en su primera manifestación, el análisis del perfil de ADN en el laboratorio ha de llevarse a cabo con el máximo respeto a los derechos fundamentales afectados, esencialmente, el derecho a la intimidad. Ello introduce la cuestión relativa a qué parte de la secuencia del ADN, si la no codificante o también la codificante, puede analizarse. El legislador español ha regulado la parte de la muestra de ADN que ha de analizarse en el laboratorio con el fin de extraer su perfil. Así la norma española (art. 4 Ley Orgánica 10/2007) indica que solo se inscribirán en la base de datos los “identificadores obtenidos a partir del

(30)

Dispone el art. 1.3 “La presente Directiva no podrá tener por efecto modificar la obligación de respetar los derechos fundamentales y los principios jurídicos consagrados en el artículo 6 del Tratado de la Unión Europea, y cualesquiera obligaciones que correspondan a las autoridades judiciales a este respecto permanecerán inmutables. Asimismo, la presente Directiva no podrá tener por efecto exigir a los Estados miembros la adopción de medidas que entren en conflicto con sus normas constitucionales relativas a la libertad de asociación, la libertad de prensa y la libertad de expresión en otros medios de comunicación”. Regulação e direito

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ADN, en el marco de una investigación criminal, que proporcionen, exclusivamente, información genética reveladora de la identidad de la persona y de su sexo”. Por el contrario, el art. 12.º 1 de la ley Portuguesa n.º 5/2008, de 12 de febrero, reguladora de las bases de datos policiales de ADN para fines de identificación civil y criminal, indica en cuanto al ámbito de análisis, que el análisis de la muestra se restringe a aquellos marcadores de ADN que sean absolutamente necesarios para la identificación de su titular para los fines de la presente ley, si bien lo limita a la parte no codificante del ADN, tal y como se prevé en el art. 2.º e) de la misma Ley. Sin embargo, en virtud de dicho precepto español, cabe preguntarse si, resultaría respetuoso con tal disposición, la extracción de información genética de la identidad de la persona, mediante el análisis de la parte codificante del ADN, que es la que también contiene información genética que revela otros datos sensibles, tales como los relativos a la salud de un sujeto. La respuesta es que lamentablemente dicho precepto no parece impedirlo. Y ello, a pesar de que el preámbulo de dicha Ley restringe expresamente el análisis a la parte no codificante del ADN. Pero, dicha afirmación, loable, no se encuentra en el articulado de la norma y, por ello, carece de valor vinculante alguno. Dicho esto, en la práctica, los 15 marcadores STRs más utilizados en España (31) junto con la amelogenina parecen formar parte de la región no codificante de la secuencia del ADN (32), pero ciertamente, nuestro art. 4 LO 10/2007 no impediría analizar partes del ADN codificante, que permitieran asimismo la identificación física de la persona, como su color de ojos. A mi juicio, ello no sería imposible de justificar jurídicamente porque aunque el color de ojos se situara en la parte codificante, dicha información no revela datos que vulneren el derecho a la vida privada. Por el contrario, a nivel UE, la Decisión 2008/615, de 23 de junio de 2008 (art. 2.2) indica expresamente que los “índices de referencia contendrán exclusivamente perfiles de ADN obtenidos a partir de la

(31)

Son: D3S1358, VWA, D8S1179, D21S11, D18S51, FGA, D7S820, TH01, D13S317, D16S539, D2S1338, D19S433, TPOX, D5S818, CSF1P0, Amelogenina. (32) Dicha cuestión ha de ser aun estudiada por nuestra parte. Coimbra Editora ®

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parte no codificante del ADN y un número de referencia”. La norma europea sí limita el análisis del perfil de ADN a la parte no codificante. El art. 36.1 de esta Decisión indica que los Estados miembros han de tomar las medidas necesarias para dar cumplimiento a lo dispuesto en las disposiciones del capítulo 2, donde se encuentra el citado art. 2.2. Cuando esto ocurra, el futuro desarrollo de esta Decisión puede obligar a la utilización exclusivamente del ADN no codificante en los Estados miembros, incluido España, por lo que, en ese momento, tendremos que plantearnos si se modifica o no el art. 4 de la LO 10/2007 en el sentido de indicar legalmente y de forma expresa la limitación del análisis del ADN a la parte no codificante. Para lograr una regulación satisfactoria en este sentido, podría resultar oportuna una definición legal en el ordenamiento jurídico español que recogiera este conocimiento genético. Ello nos permitiría, en el ámbito jurídico, saber exactamente qué es la parte codificante y no codificante de la secuencia del ADN y qué marcadores se encuentran en cada sector. Y, ello, a los efectos de poder determinar, en función de la información genética que contiene cada una, qué partes pueden analizarse y cuáles no, sin que resulten vulnerados injustificadamente los derechos fundamentales a la intimidad y protección de datos personales, de cara a la obtención de una prueba lícita. 6. ARMONIZACIÓN DE LOS MARCADORES DE ADN A NIVEL UE En la UE se ha legislado recientemente, como he indicado con anterioridad, con el fin de lograr coincidencias entre perfiles de ADN a nivel transfronterizo. Sin perjuicio de que dichas normas europeas aun no se han desarrollado en los Estados miembros, lo cierto es que una de ellas, la Resolución del Consejo de 30 de noviembre de 2009, que identifica los marcadores que debieran utilizar tales Estados, planteará, en sí misma, un problema de fiabilidad. Y, ello, porque los Estados miembros difícilmente llegarán a utilizar los mismos marcadores de ADN establecidos en dicha Resolución, dado que carece de valor vinculante. En efecto, el uso forense del ADN y las bases de datos policiales de ADN tienen como fin la identificación de la muestra dejada en el lugar Regulação e direito

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del delito, lo que podrá ocurrir si se logra una coincidencia entre su perfil y otro perfil identificado, ya inscrito en la base de datos. Una coincidencia tiene lugar cuando concuerda un determinado número de “alelos” de los dos perfiles que se están comparando. Generalmente, hay dos alelos en cada “loci”, por lo que el número de coincidencias tendría que ser de 2x n.º de “loci” o marcadores que se determinen. Sin embargo, cada Estado ha determinado los marcadores que sus laboratorios han de utilizar. Así, por ejemplo, Inglaterra (33) o Alemania utilizan 10 “loci” y España 16 “loci”. Dada la diferencia existente entre los marcadores utilizados por cada Estado miembro, cuando se logre una coincidencia a nivel transfronterizo entre dos perfiles, procedentes de distintos Estados, su fiabilidad será muy cuestionable. Ante esta situación, y a efectos de uniformar los marcadores utilizados entre los Estados miembros que van a intercambiar sus perfiles en virtud de la Decisión Prüm y la Decisión 2008/616 que la desarrolla, la propia Decisión 2008/616, exigió que, al menos, de los 24 “loci” que pueden contener el perfil, 7, constituyan el ESS y el conjunto normalizado de “loci” de INTERPOL (ISSOL). Entre otras, esta cuestión científica, la identificación de los marcadores que han de analizarse para extraer el perfil de una muestra de ADN, es analizada por diversas asociaciones internacionales y europeas (34), como la ENFSI, que es la que ha promovido la regulación de la Resolución del Consejo de 30 de noviembre de 2009. Dicha Resolución ha ampliado estos 7 marcadores o “loci” a 12 (35), pues, dado que la bases de datos nacionales están aumentando en tamaño y número y que el intercam-

(33)

El sistema utilizado se denomina SGM+ y, en concreto, utilizan los marcadores D2S1338, D19S433, D16S539, D18S51, D8S1179, D3S1179, D3S1358, THO1, VWA, FGA, D21S11 y la amelogenina. Vide en este sentido, McCartney, C., Williams, R, Wilson, T., The future of forensic bioinformation, May 2010, ed., Nuffield Foundation, p. 69. (34) Son, como ya hemos indicado ISFG, el GEP—ISFG y el Grupo de Trabajo en ADN de la ENFSI. (35) Los 12 marcadores, que se enumeran en el anexo de la Resolución: D3S1358, VWA, D8S1179, D21S11, D18S51, HUMTH01, FGA, D1S1656, D2S441, D10S1248, D12S391, D22S1045. Coimbra Editora ®

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bio de datos de ADN entre los Estados miembros se está incrementando, ha sido necesario mejorar la probabilidad de coincidencia entre perfiles. En virtud de dicha norma, los Estados miembros habrán de adaptarse a la utilización de esos 12 marcadores para contribuir a la obtención transfronteriza de una prueba de ADN lo más fiable posible. Y, ello, porque los marcadores utilizados en cada uno de los Estados miembros no coinciden con los previstos en la Resolución de 30 de noviembre de 2009. Pero es que, además, resulta improbable que todos los Estados miembros lleguen a utilizar esos 12 marcadores ESS. Ello es debido a que, desde un punto de vista jurídico, dicha resolución constituye una invitación a los Estados miembros, sin carácter vinculante, lo que, desde el punto de vista de la economía de los Estados miembros resulta paradójicamente favorable, dado el alto coste que esta adaptación supondría. Asimismo, aunque los Estados miembros llegasen a utilizarlos, el problema entonces se planteará en el intercambio de perfiles de ADN con terceros países, como USA (36), porque utiliza otros 13 marcadores (37). En el caso de España, que utiliza 16 marcadores, si los comparamos con los 12 que establece la Resolución europea, no coinciden 6 (38). Ante esta situación, cabe señalar que entre las funciones de la Comisión para el uso forense de ADN está la de aprobar diversos protocolos técnicos oficiales sobre el análisis de las muestras, incluida la determinación de los marcadores homogéneos sobre los que los laboratorios acreditados han de realizar los análisis (art. 3. c) RD CNUFADN). Sería deseable

(36)

Al menos España, Portugal y Alemania han firmado acuerdos de intercambio de perfiles de ADN con USA. (37) Dichos 13 marcadores fueron elegidos porque, con su uso, la probabilidad media de coincidencia aleatoria es menor que una entre un trillón entre individuos no relacionados. Los 13 marcadores son: CSF1PO, FGA, TH01,TPOX, VWA, D3S1358, D5S818, D7S820, D8S1179, D13S317, D16S539, D18S51, D21S11 y Amelogenina (Butler, 2005: 94-95). (38) En concreto, no coinciden los siguientes marcadores: HUMTH01, D1S1656, D2S441, D10S1248, D12S391, D22S1045. Regulação e direito

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que cumpliese con esta función lo antes posible pero con el menor coste. Y, en última instancia, se aprobasen en una norma. 7. CONTENIDO DEL INFORME PERICIAL Desde la perspectiva de la fiabilidad, es necesario que la coincidencia alcanzada entre perfiles pueda cuantificarse en términos de probabilidad, mediante la aplicación adecuada del método probabilístico, que se ha entendido pacíficamente hasta ahora que debe utilizarse, a la prueba de ADN. Dicho método es el Teorema de Bayes (39). El problema es que, existiendo unanimidad respecto a su utilización en la prueba de ADN, no se ha consolidado aun, en nuestra doctrina, la fórmula mediante la cual dicho Teorema se aplica a la prueba de ADN. Dicho trabajo debe realizarse por estadísticos expertos en probabilidad y su resultado tendría que ser asumido, no sólo por nuestro legislador, sino también por los peritos que han de comunicar al Tribunal esta información en su informe pericial, así como por los órganos jurisdiccionales encargados de valorar la prueba de ADN. Así pues, si hay coincidencia entre perfiles, se elaborará un informe pericial (arts 723-725 Ley de Enjuiciamiento Criminal española), cuyo contenido se refiere a la fiabilidad de la prueba de ADN. En concreto, dicho informe debiera incluir un doble contenido. En primer lugar, ha de poner en conocimiento del órgano jurisdiccional toda la información relativa al procedimiento de obtención y conservación de la muestra y sobre la extracción del perfil en el laboratorio. En definitiva, debe indicarse si se han llevado a cabo dichas fases utilizando los métodos científico-tecnológicos adecuados que, como hemos indicado anteriormente, debieran estar previstos normativamente.

(39)

Uno de los primeros estudios en los que se plantea la aplicación el Teorema de Bayes para la vinculación de un sujeto con un delito, mediante otros medios que no eran aún el ADN, es Finkelstein y Fairley (1970). En España, se ha afirmado por Carracedo Álvarez (2004), que para valorar correctamente la probabilidad de que una muestra de ADN provenga de un individuo, es necesario recurrir al Teorema de Bayes. Puede consultarse en: http://www.cej.justicia.es/pdf/publicaciones/fiscales/FISCAL39.pdf, p. 6. Coimbra Editora ®

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En segundo término, se debe poner comunicar al órgano jurisdiccional una información cuya obtención es compleja. Se trata de indicarle al Tribunal la probabilidad de que habiendo una coincidencia, los titulares de los perfiles que han resultado coincidentes, sean la misma persona. En definitiva, se trata de cuantificar la probabilidad de que, habiendo coincidencia entre los dos perfiles, el identificado (correspondiente al sospechoso) y el no identificado o dubitado (asociado al de la muestra tomada del lugar del delito), el sujeto identificado o sospechoso sea el titular de la muestra no identificada. Si el perito explica exhaustivamente al órgano jurisdiccional esta doble información y si, además, dicho órgano jurisdiccional la asimila convenientemente, podrá valorar libremente la prueba de ADN, de conformidad con el principio de libre valoración de la prueba que rige en nuestro proceso penal. En relación con la segunda información, que es la más compleja, estamos trabajando, en primer lugar, sobre cómo incluir dentro del Teorema de Bayes las distintas variables que pudieran ser relevantes a la hora de valorar estadísticamente la prueba de ADN, y, segundo término, sobre cómo y cuándo debiera el perito comunicar dicha información al Tribunal. La segunda cuestión será expuesta en otro artículo. Aquí, vamos a indicar una aproximación preliminar al primer problema, en base a la ayuda prestada por expertos en estadística. El análisis bayesiano sería el modo correcto de valorar la prueba; es decir, calcular la probabilidad condicional de un suceso aplicando el teorema de Bayes, que permite calcular el valor de una probabilidad teniendo en cuenta datos previos. Los sucesos a considerar en el análisis serían: A) Primeramente, el que denominaremos suceso C: que la muestra recogida en el lugar del delito pertenezca al sospechoso. Y su complementario, no C, que denominaremos suceso I: que la muestra recogida en el lugar del delito no pertenezca al sospechoso B) A continuación, el suceso directamente asociado a la utilización del ADN, suceso M: que haya coincidencia entre el perfil de ADN procedente de la muestra y el del sospechoso. Regulação e direito

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El correspondiente suceso complementario, no M, sería que no hubiera coincidencia. El Teorema de Bayes puede usarse para mostrar el efecto que la prueba de ADN puede tener sobre la creencia en la ocurrencia sobre los sucesos C e I. La fórmula genérica resultante de la aplicación del Teorema de Bayes a la prueba de ADN es la siguiente:

Según dicha fórmula, el perito debería indicar al Tribunal cuál es la P(C/M), esto es, la probabilidad, dada la coincidencia, de que los titulares de ambos perfiles (el del sospechoso y el extraído de la muestra abandonada en el lugar del delito) sean la misma persona. Dicha probabilidad viene expresada por la fórmula indicada arriba donde: P(C) es la probabilidad a priori de que el sospechoso o imputado es el titular de la muestra recogida en el lugar del delito; P(M/C) es la probabilidad, siendo que los titulares de ambos perfiles son la misma persona, de que haya una coincidencia; P(I) es la probabilidad a priori de que el sospechoso o imputado no es el titular de la muestra recogida en el lugar del delito; P(M/I) es la probabilidad, siendo que los titulares de ambos perfiles no son la misma persona, de que el perfil del sujeto coincida con el perfil de la muestra. A cada una de dichas variables ha de asignársele un valor. Pero no todos los números han de ser suministrados por el perito. En concreto, el perito asigna valores a P(M/C) y fundamentalmente a P(M/I). El valor de P(M/C) es uno, dado que si el sujeto es el titular de la muestra, habrá certeza absoluta (probabilidad igual a uno) de que los dos perfiles coincidan. En cuanto a P(M/I), su valor es la probabilidad con que el perfil de la muestra puede encontrarse en la población considerada, y dicha información la obtiene gracias al uso de las bases de datos poblaCoimbra Editora ®

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ciones. Sin embargo, P(C) y P(I) son probabilidades a priori que ha de cuantificar el órgano jurisdiccional relativas a información distinta a la asociada al ADN. Debido al hecho de que son probabilidades a priori que el órgano jurisdiccional ha de cuantificar, es por lo que se piensa que una forma efectiva de indicar, por el perito, la valoración biológica-estadística del ADN es hacer uso de la expresión siguiente:

Conforme a dicha expresión el cociente entre las probabilidad a posteriori de que, dada la coincidencia, los titulares de ambos perfiles (el del sospechoso y el extraído de la muestra abandonada en el lugar del delito) sean la misma persona o no lo sean es igual al cociente de las probabilidad a priori multiplicada por la LR (“likelihood ratio”), y que puede denominarse “razón de verosimilitud”. De esta forma, es el órgano jurisdiccional quien puede y debería valorar de forma objetiva la prueba científica multiplicando su grado de creencia previa sobre la culpabilidad del acusado, por el factor LR, que el perito debe proporcionarle. Siendo LR, el cociente entre las probabilidades condicionadas de que siendo que los titulares de ambos perfiles son la misma persona, haya una coincidencia y de que, no siendo que los titulares de ambos perfiles son la misma persona, haya una coincidencia:

Sin embargo, en nuestro país, el perito no le suministra esta información al Tribunal. Por el contrario, se le informa únicamente de la probabilidad con que el perfil coincidente se da en una población, gracias al uso de las bases de datos poblacionales. En concreto, se dice, entre otras afirmaciones “este perfil aparece en una población infinita en un caso de cada trescientos cinco trillones, seiscientos mil billones”. CiertaRegulação e direito

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mente, esto es una probabilidad bajísima, lo que le lleva al juez a creer firmemente en la culpabilidad del sujeto, o, al menos, en que es el titular de la muestra abandonada en el lugar del delito. Dicha información no es el resultado de la aplicación del Teorema de Bayes sobre la prueba de ADN, sino que se trata de P(M/I), esto es, de la probabilidad, dada la inocencia, de que haya una coincidencia. En definitiva, se pone en conocimiento del Tribunal únicamente una parte de la información que debiera suministrársele. Nótese sin embargo, que sabiendo que P(M/C) es igual a uno, la información suministrada puede utilizarse en términos de LR, al ser el inverso de P(M/I). Conforme a lo indicado, cabe efectuar las siguientes afirmaciones: en primer lugar, se ha reconocido que el Teorema de Bayes es el instrumento más adecuado para valorar estadísticamente la prueba del ADN; en segundo lugar, sería esencial que el desarrollo del Teorema de Bayes sobre la prueba de ADN fuera comúnmente admitido en el ámbito jurídico; en tercer lugar, ambas cuestiones, que pertenecen al ámbito de la probabilidad, debieran preverse normativamente; finalmente, resultaría necesario que la formula resultante de la aplicación del Teorema de Bayes a la prueba de ADN, normativamente prevista, fuese utilizada en todos y cada uno de los informes periciales. 8. CONCLUSIONES El uso forense del ADN y sus bases de datos policiales no es una herramienta infalible, pero posee un extraordinario potencial. Pero, para que dicha potencialidad se vaya haciendo realidad es necesario identificar qué aspectos referidos a cuestiones jurídicas, de genética forense, probabilísticas e incluso de tecnología informática, están por desarrollar para que, una vez solucionadas, dicho potencial se haga realidad. Y, ello, porque, en última instancia, la norma jurídica es el producto final donde se tiene que reflejar los avances alcanzados en todos los ámbitos mencionados. Así pues, ciertamente se podría lograr una fiabilidad del 100% en la identificación del investigado y en la prueba obtenida, si se aplicasen los avances científicos y tecnológicos a la prueba del ADN. Sin embargo, también lo es que, a la hora de obtener una prueba de ADN fiable, Coimbra Editora ®

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tenemos que asumir la necesidad de que se cumplan asimismo una serie de requisitos constitucionales y legales cuya inobservancia impide valorar esa prueba obtenida. En definitiva, es necesario que, además, la prueba sea lícita, esto es, obtenida con el máximo respeto a los derechos fundamentales afectados y a otras garantías esenciales legalmente previstas. En este sentido, al limitarse la fiabilidad debido al establecimiento de estos requisitos jurídicos, hablaremos del logro de una prueba de ADN lo más fiable posible, lo cual ya es en sí mismo un extraordinario reto. En consecuencia, hay que identificar dónde está el límite legal a los avances científicos y tecnológicos. Y es al limitarse la fiabilidad en aras de la licitud de la prueba cuando la fiabilidad de la prueba de ADN ya no es del 100% y, por ello, tiene que entrar en juego la aplicación del Teorema de Bayes en la valoración judicial de la prueba de ADN. En virtud de dicho Teorema, es posible medir o cuantificar la probabilidad, dada la coincidencia entre dos perfiles de que ambos sean de la misma persona. Y, además, permite cuantificar una probabilidad muy alta, dado que la frecuencia con que el perfil de ADN que ha coincido se da en la población es bajísima. Por ello, el enfoque metodológico que proponemos para abordar el estudio del conjunto de normas reguladoras del “uso forense de la tecnología del ADN” es el siguiente: desde un punto de vista jurídico y, en particular, jurídico procesal, hasta ahora, consideramos que las bases de datos policiales de ADN serán eficaces en la lucha contra la criminalidad grave, nacional y transfronteriza, en particular, la criminalidad organizada y el terrorismo, si su regulación cumple dos requisitos: 1) en primer lugar, si dicha regulación posibilita la obtención de una prueba de ADN lo más fiablemente posible; 2) en segundo término, si permite la obtención de una prueba de ADN lícitamente; ello, a su vez, significa que ha de obtenerse, de un lado, con el máximo respeto a los derechos fundamentales que puedan verse afectados y, de otro, en cumplimiento de los correspondientes requisitos legalmente previstos. Pero, dado que, como he denominado, “el uso forense de la tecnología del ADN” incluye tres fases, esto es, A) la fase de obtención de una muestra de ADN, B) la segunda etapa, relativa al análisis de su perfil en el laboratorio y, finalmente, C) la tercera fase de tratamiento del dato de ADN en la base de Regulação e direito

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datos, tal prueba pericial de ADN podrá ser altamente valorada por el órgano jurisdiccional competente en el correspondiente proceso penal español, si fue obtenida de forma lícita y lo más fiablemente posible, en cada una de las tres fases indicadas. Estamos aplicando nuestro planteamiento metodológico sobre el conjunto de normas reguladoras del “uso forense de la tecnología del ADN” adoptadas a nivel nacional, en concreto, español, UE e internacional. Ello nos está conduciendo al análisis de la mayor fiabilidad posible, de un lado, y de la licitud, de otro, a través de las tres fases que conforman dicha tecnología, como son las fases de obtención de la muestra de ADN, de extracción del perfil de ADN y la relativa al tratamiento del dato de ADN en la base de datos. En virtud de dicho análisis, hemos identificado en este capítulo de libro cinco nuevas cuestiones controvertidas. 1. En cuanto a los protocolos de actuación, su elaboración, a nivel internacional, que era necesaria, no resultará plenamente eficaz si no se da un paso más, como es su previsión normativa, con el fin de lograr que dichos protocolos resulten de obligado cumplimiento con carácter general. En España, en la elaboración y aprobación de los protocolos técnicos oficiales sobre la obtención de la muestra, la CNUFADN ha tomado en cuenta los citados estudios elaborados, a nivel internacional, por la ISFG. Pero sería deseable que se previeran normativamente. 2. Respecto a la obtención transfronteriza de la muestra de ADN la inminente aprobación de la nueva Directiva sobre el exhorto europeo de investigación resulta altamente positivo en cuanto a que la adopción de este nuevo instrumento dará lugar a un régimen completo de reconocimiento mutuo que sustituirá a los procedimientos de asistencia judicial actuales. Y, asimismo, que haya adoptado la regla forum regit actum. Sin embargo, dicha Directiva resulta insatisfactoria en una cuestión esencial y es que no ha incidido suficientemente en el respeto a los derechos fundamentales que pueden verse afectados a la hora de obtener una prueba en otro Estado miembro. En este sentido, la Iniciativa efectúa una alusión muy genérica al respeto a los derechos fundamentales, cuando debiera haber establecido, al menos, las salvaguardias propias del principio de proporcionalidad. Sería deseable que el texto final las incluyera. Coimbra Editora ®

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3. En cuanto a parte de ADN que debiera analizarse si la parte no codificante o asimismo, la parte codificante podría resultar oportuna una definición legal en el ordenamiento jurídico español que recogiera este conocimiento genético. Ello nos permitiría, en el ámbito jurídico, saber exactamente qué es la parte codificante y no codificante de la secuencia del ADN y qué marcadores se encuentran en cada sector. Y, ello, a los efectos de poder determinar, en función de la información genética que contiene cada una, qué partes pueden analizarse y cuáles no, sin que resulten vulnerados injustificadamente los derechos fundamentales a la intimidad y protección de datos personales, de cara a la obtención de una prueba lícita. 4. En relación con marcadores, en el caso de España, que utiliza 16 marcadores, si los comparamos con los 12 que establece la Resolución europea, no coinciden 6. Ante esta situación, cabe señalar que entre las funciones de la Comisión para el uso forense de ADN está la de aprobar diversos protocolos técnicos oficiales sobre el análisis de las muestras, incluida la determinación de los marcadores homogéneos sobre los que los laboratorios acreditados han de realizar los análisis (art. 3. c) RD CNUFADN). Sería deseable que cumpliese con esta función lo antes posible pero con el menor coste. Y, en última instancia, que se previeran normativamente. 5. Finalmente, respecto al contenido del informe pericial, la parte esencial de dicho informe tiene como fin indicarle al Tribunal la probabilidad de que, habiendo una coincidencia entre los perfiles, sean de la misma persona. Asimismo, cabe efectuar las siguientes afirmaciones: en primer lugar, se ha reconocido que el Teorema de Bayes es el instrumento más adecuado para valorar estadísticamente la prueba del ADN; en segundo lugar, sería esencial que el desarrollo del Teorema de Bayes sobre la prueba de ADN fuera comúnmente admitido en el ámbito jurídico; en tercer lugar, ambas cuestiones, que pertenecen al ámbito de la probabilidad, debieran preverse normativamente; finalmente, resultaría necesario que la formula resultante de la aplicación del Teorema de Bayes a la prueba de ADN, normativamente prevista, fuese utilizada en todos y cada uno de los informes periciales. Todos estos temas continúan siendo objeto de estudio junto con otras cuestiones nuevas. Especialmente, continuamos trabajando en la aplicación del Teorema de Bayes sobre la prueba de ADN. Regulação e direito

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AGRADECIMIENTOS Este trabajo ha sido realizado en el marco del Proyecto de Investigación DER 2009-08071, financiado por el Ministerio de Ciencia e Innovación y titulado “Intercambio y protección de datos personales en la Unión Europea: la prueba de ADN y su eficacia procesal en España”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Alonso Alonso, Antonio (2004), “Las bases de datos de ADN en el ámbito forense”, Estudios Jurídicos. Bachmaier Winter, Lorena (2006), “El exhorto europeo de obtención de pruebas en el proceso penal”, El Derecho Procesal Penal en la Unión Europea, 131-178. Bachmaier Winter, Lorena (2011), “La orden europea de investigación y el principio de proporcionalidad”, Revista General de Derecho Europeo, 25. Butler, John M. (2005), Forensic DNA typing: Biology, technology and genetics of STR markers. 2.ª ed. Burlington, MA: Elsevier. Cabezudo Bajo, María José (2011), “La obtención transfronteriza de la prueba de ADN en la UE y su repercusión en España: el problema de las ‘búsquedas (del ADN) de familiares’”, Revista de Derecho Comunitario Europeo, 15(40), 737-765. Carracedo Álvarez, Angel (2004), “Valoración e interpretación de la prueba pericial sobre ADN ante los Tribunales”, Estudios Jurídicos, 1892 e ss. Farfan Espuny, María José (2004), “Introducción a la tecnología del ADN aplicada en el laboratorio forense”, Estudios Jurídicos, 3934 e ss. Finkelstein, Michael O.; Fairley, William B. (1970), “A Bayesian approach to identification evidence”, Harvard Law Review, 83(3), 489-517. McCartney, Carole et al. (2010), The future of forensic bioinformation. Nuffield Foundation. Consultado a 24.01.2013, em http://www.law.leeds.ac.uk/assets/files/ research/ccjs/forensic-bioinformation-report.pdf.

LEGISLACIÓN Decisión 2008/615/JAI del Consejo de 23 de junio de 2008 sobre la profundización de la cooperación transfronteriza, en particular en materia d lucha contra el terrorismo y la delincuencia transfronteriza. Diario Oficial de la Unión Europea, 6 agosto 2008, L210/1-11. Decisión 2008/616/JAI del Consejo de 23 de junio de 2008 relativa a la ejecución de la Decisión 2008/615/JAI sobre la profundización de la cooperación transfronteriza, en particular en materia de lucha contra el terrorismo y la delincuencia transfronteriza. Diario Oficial de la Unión Europea, 6 agosto 2008, L210/12-72. Coimbra Editora ®

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Decisión Marco 2003/577/JAI del Consejo de 22 de julio de 2003 relativa a la ejecución en la Unión Europea de las resoluciones de embargo preventivo de bienes y de aseguramiento de pruebas, Diario Oficial de la Unión Europea, 2 agosto, L196/45-55. Decisión Marco 2008/977/JAI del Consejo de 27 de noviembre de 2008 relativa a la protección de datos personales tratados en el marco de la cooperación policial y judicial en materia penal. Diario Oficial de la Unión Europea, 30 desembro 2008, L350/60-71. Decisión Marco 2008/978/JAI del Consejo de 18 de diciembre de 2008 relativa al exhorto europeo de obtención de pruebas para recabar objetos, documentos y datos destinados a procedimientos en materia penal. Diario Oficial de la Unión Europea, L350/72-92. Decisión Marco 2009/905/JAI del Consejo de 30 de noviembre de 2009 sobre acreditación de prestadores de servicios forenses que llevan a cabo actividades de laboratorio. Diario Oficial de la Unión Europea, 9 desembro 2009, L322/14-16. Declaración de aplicación provisional del Convenio de asistencia judicial en materia penal entre los Estados miembros de la Unión Europea, hecho en Bruselas el 29 de mayo de 2000. Boletín Oficial del Estado, 247, 36894-36904. Instrumento de Ratificación de 14 de julio de 1982 del Convenio Europeo de Asistencia Judicial en Materia Penal, hecho en Estrasburgo el 20 de abril de 1959. Boletín Oficial del Estado, 283. 25166-25174. Instrumento de ratificación del Acuerdo de Adhesión del Reino de España al Convenio de aplicación del Acuerdo de Schengen de 14 de junio de 1985 entre los Gobiernos de los Estados de la Unión Económica Benelux, de la República Federal de Alemania y de la República Francesa, relativo a la supresión gradual de los controles en las fronteras comunes, firmado en Schengen el 19 de junio de 1990, al cual se adhirió la República Italiana por el Acuerdo firmado en París el 27 de noviembre de 1990, hecho el 25 de junio de 1991. Boletín Oficial del Estado, 81, 10390-10422. LECRIM, Real decreto de 14 de septiembre de 1882 por el que se aprueba la Ley de Enjuiciamiento Criminal. Boletín Oficial del Estado, Legislación Consolidada — 23 de febrero de 2013. Consultado a 31.07.2013, http://www.boe.es/buscar/ pdf/1882/BOE-A-1882-6036-consolidado.pdf. Lei 5/2008, 12 fevereiro. Aprova a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal. Diário da República, 1.º série, n.º 30, 962-968. Ley 18/2006, de 5 de junio, para la eficacia en la Unión Europea de las resoluciones de embargo y de aseguramiento de pruebas en procedimientos penales. Boletín Oficial del Estado, 134, 21218-21228. Ley Orgánica 10/2007, de 8 de octubre, reguladora de la base de datos policial sobre identificadores obtenidos a partir del ADN. Boletín Oficial del Estado. Consultado a 31.07.2013, em http://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2007-17634. Regulação e direito

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Ley Orgánica 15/1999, de 13 de diciembre, de Protección de Datos de Carácter Personal. Boletín Oficial del Estado, 298, 43088-43099. Real Decreto 1720/2007, de 21 de diciembre, por el que se aprueba el Reglamento de desarrollo de la Ley Orgánica 15/1999, de 13 de diciembre, de protección de datos de carácter personal. Boletín Oficial del Estado, 17, 4103-4136. Real Decreto 1977/2008, de 28 de noviembre, por el que se regula la composición y funciones de la Comisión Nacional para el uso forense del ADN. Boletín Oficial del Estado. Consultado a 31.07.2013, em http://www.boe.es/boe/ dias/2008/12/11/pdfs/A49596-49598.pdf. Real Decreto 1977/2008, de 28 de noviembre, por el que se regula la composición y funciones de la Comisión Nacional para el uso forense del ADN. Boletín Oficial del Estado, 298, 49596-49598.

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PARTE II GOVERNABILIDADE E MEDIAÇÕES

BIOVIGILÂNCIA E GOVERNABILIDADE NAS SOCIEDADES DA INFORMAÇÃO DANIEL MACIEL HELENA MACHADO 1. INTRODUÇÃO O combate à criminalidade por via de dispositivos tecnológicos e pela informatização e manuseamento massivo de informação biogenética sobre os cidadãos reflete a expansão, crescentemente global, de aparatos de biovigilância burocrático-estatais. Estes, por sua vez, produzem efeitos na governabilidade dos corpos e nos processos culturais identitários de populações “suspeitas” que são alvos preferenciais de recolha de dados pessoais, armazenados e geridos em redes de circulação transfronteiriça. No presente texto, usamos o conceito de governabilidade dos corpos criminais e da criminalidade para discutir os processos de biovigilância nas sociedades da informação. O enfoque no fenómeno da governabilidade da criminalidade é explorado a partir da aceção desenvolvida por Michel Foucault, a propósito da passagem histórica de uma sociedade “disciplinar” para uma sociedade da “segurança” (Foucault, 2004, para uma sistematização desta mudança histórica consultar Cunha, 2009), orientada não para a erradicação do crime mas para uma intervenção necessária e suficiente que torne a criminalidade tolerável e assegure o equilíbrio societal. Essa nova forma de governabilidade, em crescente expansão nas duas últimas décadas, fundamenta-se em práticas de gestão governamental caracterizadas por um “conjunto” formado por instituições, procedimentos, análises e reflexões, em que os cálculos e as táticas que permitem o exercício deste tipo de poder específico e complexo têm a sua população-alvo, a sua Governabilidade e mediações

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principal forma de economia política do conhecimento, e os seus principais meios e aparatos técnicos de segurança (Foucault, 1979 apud Hannah, 2000: 22, tradução dos autores). Esta modalidade de governabilidade legitima-se pelo recrutamento de conhecimentos especializados na área da ciência e do direito e a ordem social segue orientações normativas provenientes desses saberes científico-jurídicos que, por sua vez, se apresentam como ferramentas imprescindíveis para assegurar o progresso da sociedade e a segurança e tranquilidade públicas. O objetivo deste texto é sistematizar as principais linhas orientadoras de debate em torno das questões éticas, sociais e políticas suscitadas pela criação e expansão de bases de dados de informação biogenética sobre os cidadãos orientadas para o controlo social e a gestão do risco do crime, explorando os seguintes tópicos de reflexão: (i) cientifização da justiça e do trabalho policial; (ii) governabilidade do risco, tecnologia e informação; (iii) cultura de controlo e biovigilância. Partimos do argumento de que a crescente expansão de bases de dados de informação sobre os cidadãos se enquadra numa nova cultura de controlo, de governabilidade e de gestão do risco ancorada em práticas tecnológicas associadas à transformação do Estado moderno e das suas fronteiras num modelo de “governo-à-distância” (Rose e Miller, 1992 apud Aas, 2004; ver também o conceito de “regulação-à-distância” de Braithwaite, 2000). Este modelo assenta, sobretudo, na ideia da gestão racional de populações de risco e afasta-se de princípios de responsabilidade social e moral e da intervenção visando a integração social de ofensores criminais (Loader e Sparks, 2002). Argumentamos que esta “nova” realidade projetada pela criação e desenvolvimento de bases de dados sobre os cidadãos reproduz fluxos dinamizados por dispositivos sociotécnicos que alimentam a sua operacionalidade pelo reforço tanto do controlo social, como de mecanismos de hierarquização social e de estigmatização étnica ou racial. 2. CIENTIFIZAÇÃO E MERCADORIZAÇÃO DA JUSTIÇA As ciências sociais e humanas têm focado com crescente atenção o desenvolvimento das tecnologias genéticas forenses com aplicabilidade Coimbra Editora ®

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Biovigilância e governabilidade nas sociedades da informação

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na investigação criminal e na produção de prova científica para os tribunais. Não é surpreendente que tal aconteça pelas decorrentes implicações sociais, culturais, económicas e políticas. Antes de mais, é importante atender à dimensão do fenómeno da criação e expansão de bases de dados que contém informação biogenética sobre condenados e mesmo suspeitos, e que são utilizadas por agentes de investigação criminal com o objetivo de identificar autores de crime (por exemplo, pela recolha de vestígio de cena de crime ou pela colheita de amostra biológica de um indivíduo identificado, e comparação dessa informação com os perfis genéticos já inseridos nas bases de dados forenses? Estamos perante um projeto técnico-genético e biopolítico crescentemente global e imbricado em imaginários coletivos assentes no medo do crime e do criminoso. A globalização e crescente visibilidade política deste fenómeno não deixam o cientista social indiferente, sobretudo porque suscitam interrogações múltiplas e complexas relacionadas com a defesa dos direitos humanos e com os mecanismos de transparência e democraticidade nas sociedades atuais. Em termos simplistas e, como tal, necessariamente redutores, é possível afirmar que políticos e cientistas forenses tendem a projetar uma visão otimista das bases de dados genéticos forenses, salientando as suas potencialidades no combate e prevenção do crime (Kazemian et al., 2010; Tseloni e Pease, 2010; Van Camp e Dierickx, 2008); enquanto académicos da área das ciências sociais e humanas, comités de bioética, organizações não-governamentais vocacionadas para a proteção dos direitos e garantias dos cidadãos apresentam uma perspetiva que acentua a compressão dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (Machado et al., 2012; McCartney et al., 2010). Os avanços científicos na área da genética forense têm sido consideráveis e o poder político, um pouco por todo o mundo, revela ser um aliado entusiástico desta ferramenta que promete uma elevada eficácia no combate ao crime: hoje, estima-se que 56 países no mundo detenham bases de dados de perfis de DNA (24 dos quais na União Europeia) e que 26 países estejam correntemente em processo de criação de bases de dados deste tipo (Council for Responsible Genetics, 2012). Inclusive, países como as Bermudas, Emirados Árabes Unidos, Uzbequistão e Governabilidade e mediações

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Paquistão estão a planear construir bases de dados universais, isto é, contendo os dados genéticos de toda a população (idem). Os EUA detêm a maior base de dados genéticos forense do mundo (com perto de 10 milhões de registos de perfis genéticos) (FBI, 2012). Proporcionalmente, a base de dados de Inglaterra e País de Gales tem uma dimensão similar, pois cerca de 10% da população residente tem o seu perfil de DNA inserido, armazenado e sujeito a manuseamento pelas autoridades policiais e judiciais (Toom, 2012). A importância política da proteção face ao crime e de reforço da segurança (Garland, 2001; Lyon, 2001a), a crença na melhoria da justiça apoiada na ciência (McCartney, 2006) e a pressão política para a necessidade de acompanhar as tendências científicas globais assumem, nas sociedades atuais, uma natureza social e coletiva, como se estivessem presentes em todos os indivíduos e, de certo modo, os transcendessem (Durkheim, 1984 [1893]). Por outras palavras, a criação, desenvolvimento e expansão de uma base de dados genéticos forense são legitimados pela retórica da busca do bem coletivo, traduzido na promessa de maior segurança e tranquilidade e obtenção da “verdade” que permitirá identificar criminosos e ilibar inocentes. A sobrevalorização das promessas tecnológicas e a suavização dos riscos produzem determinados efeitos sociais, culturais e éticos, que convergem para dispositivos retóricos destinados a apoiar mecanismos de construção da confiança pública, dirigidos simultaneamente à justiça e à ciência. As bases de dados de informação genética sobre indivíduos que passaram pelo sistema de justiça criminal são ilustrativas da coprodução ideológica da ciência e do direito, o que pode ser descrito como um fenómeno de cientifização do sistema de justiça (Jasanoff, 1997), que converte uma tecnologia cientificamente reconhecida num dos mais poderosos meios de auxílio na ‘busca da verdade’. Revela-se neste dispositivo uma “cumplicidade epistemológica e uma circulação de sentido entre a ciência e o direito moderno, resultantes da submissão da racionalidade moral-prática do direito e da ética à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência” (Santos, 2000: 153). A tríade “tecnologias de identificação — bases de dados — sistema de justiça criminal” envolve-se num movimento direcionado para a goverCoimbra Editora ®

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nabilidade racional de populações (Lemke, 2010) que se fundamenta não só em novas redes de regulação e vigilância tecnológica, mas também em “regimes de verdade” eficazmente definidos e aplicados (Jasanoff, 1997; Santos, 2002). Neste contexto de expansão massiva de bases de dados de informação, ciência e lei agem em conjugação no sentido de otimizar a gestão e controlo dos fluxos de informação, assim como na produção constante de novos conhecimentos e saberes periciais. Surge, por exemplo, uma figura que agrega o imperativo prático da lei com a sustentação teórica científica: o perito, figura híbrida entre o político, o jurista e o cientista (Jasanoff, 2005), conjuga aspetos de ambas as esferas da sociedade (lei e ciência) e é chamado a intervir nas zonas de interseção entre a utilização de conhecimento científico e a sua adaptação às necessidades da sociedade (Jerónimo, 2006). O perito é, por isso, uma figura de poder na hierarquização social dos regimes tecnocientíficos de produção da verdade, em nome do “bem comum”. Ao mesmo tempo, afasta da esfera de decisão a participação dos leigos, no fundo o primeiro alvo do controlo social exercido pelas bases de dados, aqui colocados numa posição de submissão perante o perito jurídico-científico (Machado, 2011). Ao mesmo tempo, o desenvolvimento das bases de dados de perfis de DNA reflete mudanças sociais que vão de encontro às necessidades do mercado e do capitalismo (como parte de um movimento geral para a mercantilização das ciências da vida — ver Garcia, 2006), descritas por alguns autores como ilustrativas de um aparato de governância genómica (Gottweis, 2005). Esta perspetiva reconhece um processo social e político de naturalização do capitalismo, pela via do qual, de acordo com a sugestão de Boaventura de Sousa Santos, a ordem e o progresso se desenrolam “sob a égide do princípio do mercado, que se afigura mais hegemónico que nunca no seio do pilar da regulação” (Santos, 2000: 143). Este processo justifica o desenvolvimento societal do capitalismo e convoca, na sua legitimação, diversos atores e sistemas de saberes e fazeres heterogéneos, evocando mais as promessas de utilidade imaginada (Williams, 2010) e de eficácia na identificação de criminosos do que os riscos e incertezas. O reconhecimento do primado do princípio do mercado na esfera da regulação passa pela desconstrução crítica das condições epistemolóGovernabilidade e mediações

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gicas tanto do campo jurídico como da ciência moderna, assentes no princípio da sua relativa autonomia. Este posicionamento considera ainda os processos de hierarquização que produzem efeitos na despolitização do conflito social e de moralização dos criminosos, sobretudo daqueles que pertencem a grupos sociais desapossados, pela via da crescente criminalização da pobreza (Wacquant, 2000, 2007). Além disso, reconhecer a importância da esfera económica nos processos sociais de construção e expansão de base de dados de perfis de DNA deve problematizar a sua utilidade face aos custos e riscos envolvidos (Guillén, 2000; Simoncelli, 2006; Águas et al., 2009). Será que os benefícios desta tecnologia justificam esse investimento, em particular na sociedade portuguesa, com carências a vários níveis e cujo sistema de política criminal defende “a prevenção geral de integração e a prevenção especial de socialização” (Moniz, 2002: 245)? Ou seja, pode argumentar-se que esses meios serão melhor aplicados em políticas de prevenção do crime por medidas de socialização preventiva de reinserção social de condenados pela prática de crime e outros ofensores criminais e em medidas de reforço de proteção a pessoas mais vulneráveis e vítimas potenciais. A dominação jurídico-racional alimenta-se do cientismo, por via da qual o direito se transforma em artefacto científico e se promove uma utopia de regulação social que convoca o direito estatal mas que o converte numa “utopia isomórfica da utopia automática da tecnologia” (Santos, 2000: 133). Neste processo, configuram-se um dispositivo da “universalidade” que se alimenta tanto da verdade científica, como das funções esperadas da justiça, pelo cumprimento e aplicação da lei (igual para todos). A universalidade é aqui apoiada na crença do perfil de DNA como um método de identificação individual inequívoco e universalmente estabelecido (Aas, 2006) que pode revelar à justiça aquilo que de outro modo permaneceria oculto — isto é, sustenta-se na construção do primado dos saberes e conhecimentos da ciência e na defesa da aproximação do direito ao ideal de objetividade e certeza proporcionada por esta (Jasanoff, 2006). Em suma, a legitimidade política da criação e expansão das bases de dados genéticos com finalidades forenses assenta, em boa medida, no casamento entre ciência, justiça e mercadorização, que promete formar Coimbra Editora ®

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uma ferramenta poderosa na prevenção, deteção e investigação da criminalidade, capaz de providenciar níveis adequados de segurança e tranquilidade públicas e de constituir a base de uma ‘nova justiça’ — mais credível, célere e eficaz. A cientifização da justiça e do trabalho policial de investigação criminal (Williams e Johnson, 2008) surge plasmada nos argumentos que sustentam a criação e expansão de bases de dados genéticos para investigação criminal: estamos perante novas formas de controlo e de gestão da ordem social baseadas no conhecimento da individualidade biológica. Esta forma de conhecimento é construída por um cientismo que torna aparentemente intocável a aura de verdade e de infalibilidade que rodeia a utilização de tecnologia de DNA na investigação do crime, entrecruzando-se o poder estatal com a autoridade jurídico-científica em nome da segurança e tranquilidade públicas. 3. GOVERNABILIDADE DO RISCO, TECNOLOGIA E INFORMAÇÃO Na perspetiva das teorias da sociedade do risco (Beck, 1992; Beck et al., 2000; Giddens, 1991, 1999), os mecanismos de controlo social e de gestão da confiança pública acionados pelo Estado estão muito dependentes de dois vetores: (i) da acumulação, informatização e manuseamento de quantidades massivas de dados sobre os cidadãos; (ii) de desenvolvimentos tecnológicos e científicos aplicáveis ao sistema de justiça criminal. Nesta secção discutiremos cada uma dessas dimensões das práticas estatais de governabilidade das populações e do risco da criminalidade. O final do século XX trouxe o desenvolvimento tecnológico na área da vigilância em quatro campos fundamentais (Graham, 1998): redes interconectadas de partilha de informação; o poder de processar, manusear, transmitir e armazenar dados; a transformação de computadores em aparelhos de visualização, simulação e processamento de dados; e o surgimento das tecnologias de localização geográfica em tempo real, como o Global Positioning System GPS. Estas tecnologias aceleraram uma reconfiguração dos mecanismos clássicos de controlo da ordem pública e da criminalidade por parte do Estado. De acordo com vários autores (ver, por exemplo, Haggerty e Ericson, 2000; Van der Ploeg, 2003; Lyon, Governabilidade e mediações

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2002; Lyon, 2004; Aas, 2004), trata-se de enraizar o conhecimento construído sobre as populações num tipo de linguagem traduzível e legível por máquinas (Dodge e Kitchin, 2004) e transmissível em padrões de informação que se organizam em “pacotes” mobilizáveis por diversos agentes de controlo social, como as instituições de investigação criminal. Um dos casos mais reconhecíveis pelo cidadão comum será a implementação e expansão da videovigilância tanto em espaços de acesso restrito como em espaços abertos e públicos, com o intuito de registar imagens para posterior identificação (Hempel e Töpfer, 2009); poderíamos incluir aqui também tecnologias de geolocalização (GPS) ou de identificação biométrica (impressão digital, perfil de DNA). Observa-se uma tendência para reunir o conhecimento produzido sobre os cidadãos em dados “objetiváveis”, passíveis de armazenamento em grandes bases de dados. De acordo com Aas (2004, 2006), criam-se assim “condições de virtualidade” que decompõem o indivíduo em algo identificável com certeza e precisão (“este perfil pertence à pessoa X e não à pessoa Y”), independentemente da sua presença. A pessoa é assim reescrita virtualmente, numa produção de “cultura-à-distância” que descreve uma nova forma de identidade que pressupõe que o corpo é uma fonte de ordem. Dispensa-se desta forma o contributo pessoal do sujeito observado, já que o seu testemunho subjetivo passa a ser visto como uma fonte de incerteza e erro (principalmente face à certeza produzida pela tecnologia com recurso ao corpo). Deparamo-nos portanto com um novo tipo de identidade: uma “individualidade somática” que restringe as possibilidades de participação cidadã à contribuição certeira da informação providenciada pelos corpos e dissecada pela tecnologia. Neste sentido, o poder manifesta-se de forma “molecularizada” (Rabinow e Rose 2003 apud Raman e Tutton 2009), ou seja, procurando a circunscrição e autorresponsabilização do indivíduo, aparentemente despido da influência do contexto social, representado pelo elemento identificante armazenado em bases de dados. Trata-se de informação “desprovida de narrativa” (Aas 2004), onde noções como “raça”, classe social ou género são entendidas como meros indicadores subjetivos pelos profissionais forenses que manuseiam a informação (por exemplo, os dados que são obtidos do indivíduo no momento de colheita de amostra bioCoimbra Editora ®

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lógica no âmbito de uma investigação criminal), que não interferem significativamente na identidade da pessoa, na medida em que a sua identificação ‘objetiva’ estará já, à partida, assegurada no código biológico (para uma crítica a esta postura nas ciências forenses, ver Duster, 2006). Esta “nova ontologia do corpo” está evidenciada no debate sobre as bases de dados genéticos para fins de investigação criminal e a distinção entre “DNA codificante” e “DNA não codificante” (Van der Ploeg, 2003): teoriza-se que apenas parte da cadeia de genes que caracteriza a molécula de DNA é ativa na codificação das características que garantem o desenvolvimento e funcionamento normal do corpo humano; o resto da molécula será composto por DNA-lixo, genes que não são utilizados. Apenas o chamado “DNA não codificante” é utilizado na criação do perfil para inserção nas bases de dados genéticos com finalidades de identificação criminal (1). Isto acontece em concordância com um princípio de preservação do direito à privacidade que está intimamente enraizado na configuração do corpo em informação, aqui dividida em graus de relevância (codificante vs. não codificante). Emerge, então, o direito a uma privacidade que já não surge ligada à intrusão no corpo do indivíduo, mas sim à intrusão do Estado na informação “guardada” no código genético. O controlo e gestão da informação têm centralizado o debate sobre as novas formas de concetualizar direitos e garantias fundamentais do cidadão. Esta relação entre governabilidade e cidadania é mobilizada, sobretudo da parte das ciências sociais e humanas, para a reflexão crítica em torno de novas configurações de cidadania e de participação pública (Rose, 2000; Lyon, 2002; Hert, 2005). Como refere Rose (2000), verificamos que os processos sociais de reprodução de mecanismos de desigualdade e de diferenciação social surgem cada vez mais mediados pelo controlo tecnológico e reforçados por uma cultura securitária. São prá-

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O princípio de que o perfil de DNA deduzido é inócuo, no entanto, é falso, pelo menos em termos absolutos, como vemos no comentário de Cole (2007a). Argumenta-se, no entanto, que o seu valor informativo é mínimo e irrelevante do ponto de vista da identificação pessoal, já que estima-se que apenas perto de 1,2% do genoma é “codificante” (Niu e Jang, 2013), servindo a grande parte do genoma funções bioquímicas (ENCODE, 2012). Governabilidade e mediações

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ticas que validam, quotidianamente, a correta participação cidadã através de processos tecnológicos de “securitização da identidade” — nos quais se incluem as tecnologias de vigilância e de verificação/confirmação de identidades. Ao mesmo tempo, uma camada de cidadãos, por infortúnio, origem ou pelo seu comportamento, são excluídos enquanto “não-cidadãos”, “cidadãos falhados” ou “anti-cidadãos”, na medida em que são diferenciados no acesso a essas tecnologias: passaportes, cartas de condução ou cartões bancários delimitam e controlam, pela criação de códigos individuais de legitimação, uma nova geografia urbana. Falamos, portanto, de uma reformulação da governabilidade de populações a partir do controlo dos fluxos de informação e da gestão de circuitos de inclusão e exclusão, fundamentada no cálculo e na previsão do risco, apontando a investigação criminal para a pesquisa em bases de dados que circunscrevem “suspeitos estatísticos” determinados pela probabilidade de uma correspondência de perfis (Cole e Lynch, 2006). A informação sobre os cidadãos — ou em particular, sobre determinadas populações consideradas de risco — é estruturada e organizada de forma a poder ser interpretada e devidamente aplicada de acordo com uma determinada moldura legal e em coerência com o dispositivo burocrático do Estado e com os acordos internacionais de cooperação entre países. Exemplo disso é o chamado Tratado de Prüm de 2005, um acordo internacional entre sete países da UE, entretanto incorporado como disposição legal europeia em 2008 (Decisão 2008/615/JHA de 23 de Junho; ver Walsch, 2008, que retrata o Tratado de Prüm como uma extensão dos pressupostos do acordo de Schengen) e cujas obrigações se alargarão a todos os países da UE. Segundo o Tratado de Prüm, os países comprometem-se a partilhar informação sobre veículos, perfis de DNA e impressões digitais (pressupondo, portanto, a construção dos três tipos de bases de dados nacionais em países que ainda não as têm), de forma a contribuir para uma maior eficácia no combate ao crime e ao terrorismo perante a abertura da mobilidade entre as fronteiras dos países. O Tratado de Prüm e subsequente decisão integram-se num conjunto de redes integradas de partilha e gestão de dados (tais como o Schengen Information System, o Eurodac e o Visa Information System, sistemas de controlo, registo e partilha de informação sobre migrações na Europa Coimbra Editora ®

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— ver Broeders, 2007) que expandem e fortalecem as novas tecnologias de vigilância de forma a acomodar as exigências governamentais, tendo em conta a crescente exigência de liberdade na mobilidade das populações e dos mercados. A partilha de dados aparece então como o foco de um conjunto de políticas que, ao mesmo tempo, incrementam a incidência do dispositivo governamental sobre a vida das pessoas e das populações e obrigam a novas disposições legais e pactos internacionais que regulem a circulação e uso dessa informação. A título de exemplo, poderíamos incluir aqui a Diretiva de Retenção de Dados 2006/24/EC da Comissão Europeia, que estende e regulamenta o armazenamento de informação de telecomunicações potencialmente identificativa, como transferências bancárias, registos de chamadas/SMS ou logins no email, com o objetivo de combater o crime internacional e o terrorismo (Maras, 2012). Os avanços legislativos ao nível europeu são apresentados como uma solução que garante não só o aumento da eficácia na pesquisa criminal e no combate ao terrorismo, mas que também procura uma maior proteção e segurança dos cidadãos. Este “casamento entre segurança e liberdade” configura a segurança como “direito fundamental” (Gonçalves e Gameiro, 2012) e encontra legitimação no discurso político, que tende a veicular a ideia que as bases de dados forenses para identificação criminal constituem uma ferramenta poderosa para “apanhar criminosos”, o que justifica a compressão dos direitos individuais em nome do bem coletivo (i.e. a segurança dos cidadãos) (Williams, 2010), conforme iremos discutir na próxima secção deste texto. 4. CULTURA DE CONTROLO E BIOVIGILÂNCIA A incorporação da genética em modalidades de vigilância e monitorização dos cidadãos cria formas de biovigilância, facilitadas pelo apoio público na luta contra o crime e o terrorismo. Neste âmbito, as bases de dados de perfis de DNA podem ser perspetivadas como uma das instâncias pela qual se têm configurado novas e eficazes modalidades de controlo social, associadas a estratégias políticas e governamentais de prevenção e controlo do crime, em sociedades cada vez menos tolerantes em relação aos cidadãos “suspeitos” e favoráveis à incorporação de regiGovernabilidade e mediações

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mes mais intensivos de regulação, inspeção e controlo (Norris e Armstrong, 1999; Garland, 2001; Lyon, 2001a; Marx, 2002). Utilizamos aqui o conceito de “vigilância” na aceção avançada por Lyon (2004) e que diz respeito ao “controlo racionalizado de informação em organizações modernas”, interligado com a “produção e consumo capitalista” e com o funcionamento burocrático do Estado, imbricada na rotina quotidiana das populações e cada vez mais acoplada à mediação de risco. Referimo-nos sobretudo à configuração biométrica dos novos mecanismos de controlo e vigilância estatais. A aplicação de biometrias (2) à categorização de populações não é um fenómeno novo (ver, por exemplo, a história do surgimento e aplicação das impressões digitais em Cole, 2001). Esta começou ao nível da identificação criminal e, subsequentemente, como identificador predileto dos cidadãos pelo Estado, sendo notória a celeridade com que o estado português, por exemplo, as integrou no conjunto de categorias definidoras de cidadania ao inserir a impressão digital do sujeito no seu bilhete de identidade (Frois, 2009; Machado e Prainsack, 2012). No entanto, é na inovação tecnológica recente que a biometria integrou o aparelho vigilante de forma mais eficaz, prevalente e quotidiana (Hert, 2005; Wilson, 2007). Tornou-se possível difundir um conjunto de tecnologias de identificação, a custo relativamente baixo e inconspicuamente (Introna, 2005), desde a videovigilância à verificação informática (por exemplo, por cartões de identificação, como é o caso de caixas multibanco ou de transações monetárias). Tal disseminação foi acompanhada pela capacidade crescente de armazenamento de grandes volumes de informação em bases de dados de acesso e manutenção fácil. Esta conjugação poderá permitir, de acordo com alguns autores (Graham, 1998; Aas, 2004; Dror e Mnookin, 2010), que essas tecnologias sejam socialmente adotadas num curto período de tempo, operando assim na reconfiguração das formas de lidar com e organizar a partir de uma sociedade cada vez mais globalizada.

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Biometria refere-se aqui à medição e/ou registo de aspetos biológicos específicos do corpo humano, seja altura/peso, impressões digitais, cor de olhos e cabelo ou código genético, entre outros. Coimbra Editora ®

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Ao mesmo tempo, torna-se evidente que o Estado moderno, que controla e vigia de forma centralizada e discursivamente marcada, se decompõe em diferentes modalidades de vigilância — ou diferentes “vigilâncias” (Lyon, 1992), Cada uma destas modalidades está disposta a agir sobre o indivíduo em diferentes dimensões, decompondo-o em identidades observáveis e absorvidas pelas diferentes tecnologias em diferentes contextos: uma câmara reconhece uma face (Introna e Wood, 2004; Introna, 2005), um scanner reconhece a íris do olho ou uma impressão digital (ver Kabatoff e Daugman, 2008, em uma entrevista com John Daugman, inventor de um algoritmo para deteção e reconhecimento da íris do olho, para uma explicação desta tecnologia). Nesta nova configuração social, a governabilidade das populações é decomposta em mecanismos de controlo demográfico a partir de noções de normalidade aferidas estatisticamente (Cole e Lynch, 2006). Ao mesmo tempo, espera-se que o cidadão seja responsabilizado pelo seu comportamento ao assumir ativamente a vigilância sobre si próprio. Este aspeto de autorregulação individual espelha a popularidade de discursos do tipo “quem não deve, não teme” (3) na política penal (Crossman, 2008), justificando a proliferação massiva de tecnologias de vigilância com um grau de aceitação pública elevado (Graham e Wood, 2003), implementadas independentemente da sua verdadeira eficácia — ver, por exemplo, o caso do software de reconhecimento facial utilizado em videovigilância, cuja ineficácia, argumentam Introna e Wood (2004), demonstra que a tecnologia terá aqui mais um papel ordenador e categorizador do que propriamente de deteção. Esta nova forma da sociedade se organizar foi observada por vários autores e descrita de formas diferentes: sociedade de controlo (Deleuze, 1997), sociedade (bio)vigilante (Marx, 2002; Fox, 2003; Wood, 2009; Bunyan, 2010) ou securitária (Foucault, 2004 apud Cunha, 2009). Observa-se também que a própria incidência do aparelho vigilante é diferenciada em diferentes focos e com diferentes intensidades (Norris, 2007). Espaços públicos de forte afluência — centros comerciais, par-

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Tradução livre da expressão “nothing to hide, nothing to fear” (Crossman, 2008).

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ques ou outras áreas urbanas de lazer — são também zonas prediletas para a intensificação de sistemas de vigilância que visam a manutenção de um espaço agradável e seguro (Kanashiro, 2008); ao mesmo tempo, as zonas de elevada mobilidade observam uma intensidade proporcional dessas mesmas tecnologias, por exemplo, aeroportos, por serem também zonas de fronteira (Wilson, 2007; Gschrey, 2011; Maras, 2012). As tecnologias de vigilância operam assim de diferentes formas, consoante o contexto: se no centro comercial a identificação poderá facilitar uma transação monetária (Fox, 2003), num procedimento muitas vezes voluntário e acordado por ambas as partes, já no aeroporto a vigilância foca-se no reforço da legalidade na mobilidade, interessando-se por identificar e afastar aqueles que estão em situação irregular (Gschrey, 2011). Em ambos os casos, no entanto, podemos reconhecer o papel das tecnologias vigilantes no reforço da cidadania participante — seja através de processos de normalização de comportamentos e da recompensa pelo correto engajamento na vida pública, enaltecendo o “supercidadão” que maximiza a sua “liberdade, autonomia e sentido de bem comum” (Machado e Silva, 2008: 162); seja na deteção de indivíduos indesejados pela identificação de ilegalidades ou pela exclusão moral de determinados comportamentos e posturas (Garland, 2001 apud Owen, 2007). Deste modo, criar-se um sistema de tecnologias de vigilância que se alimenta de agentes envolvidos numa malha de socialidades que é reorganizada, quotidianamente, e que contribui para a própria afirmação e confirmação de identidades sociais (Aas, 2006; Prainsack e Toom, 2010; Ajana, 2012). Ser “europeu”, por exemplo, não se esgota na geografia deste continente nem somente numa filiação ou ascendência histórica, sendo a própria identidade inscrita nos corpos, reformulada e legitimada de cada vez que, em zonas de fronteira, é aceite ou negada a passagem ao indivíduo após a confirmação da sua identidade em bases de dados (Broeders, 2007; Prainsack e Toom, 2010; Gschrey, 2011). Este controlo é especialmente sentido por quem, sendo oriundo de fora da Europa, pretende entrar neste espaço, já que o processo de entrada no espaço da UE obriga ao imigrante a cedência de um conjunto de informações biométricas e a sua inclusão em diferentes bases de dados para posterior confirmação Coimbra Editora ®

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da legalidade da sua presença em cada posto de vigilância (Broeders, 2007). Falamos por isso não só de uma identidade genética sediada na virtualidade dos sistemas de informação (Aas, 2004) — uma forma de biocidadania (Ajana, 2012) — mas também da configuração de “fronteiras digitais” (Broeders, 2007) ou “fronteiras virtuais” (Gschrey, 2011) mediadas por tecnologias de vigilância. A pessoa é “transcrita” pelas tecnologias vigilantes em unidades irredutíveis de identificação (uma impressão digital, um padrão da íris, um perfil de DNA), informação compartimentada que será reconstruída num perfil. Esta unidade de identificação será autorizada ou desautorizada a usufruir da liberdade de mobilidade, sediada nas diferentes bases de dados que, por sua vez, se interconectam numa rede de identificação. Trata-se daquilo a que Haggerty e Ericson (2000, ver também a respeito Prainsack e Toom, 2010) chamam de “montagem vigilante” (surveillant assemblage) e que caracteriza as modalidades de controlo, identificação e vigilância transfronteiriça da europa contemporânea. Os cidadãos tornam-se alvos e beneficiários destas novas técnicas de governabilidade: são alvo, pois os seus dados são mais facilmente arquivados e analisados pelas equipas de perícia policial; ao mesmo tempo, gozam de um controlo que não só é mais restrito como uniformizado e reforçado em lei internacional. O cidadão é por isso parcialmente destituído de direitos à privacidade, ao mesmo tempo que é emancipado na liberdade de movimento, refletindo um (des)empoderamento situado (Prainsack e Toom, 2010), num contexto em que o poder político pressupõe a existência de um elevado grau de aceitação pública em relação a estas novas disposições legais. São, portanto, tecnologias que por si próprias operam esse controlo da circulação de indivíduos suspeitos de envolvimento em atividades criminais, mas também em imigração ilegal, de uma forma que é ao mesmo tempo próxima — por serem situadas e individualizantes — e distanciada, por se organizarem em bases de dados centrais e interligadas (Prainsack e Toom, 2010). Há, na expansão do aparelho vigilante, alguns paralelos com a figura foucaultiana do panótico de Bentham (Foucault, 1986). Desenhado no século XIX com o propósito de propor uma arquitetura prisional que, ao mesmo tempo, permitisse uma vigilância constante (com poucos Governabilidade e mediações

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recursos humanos) e uma disciplinarização dos corpos vigiados, o panótico de Bentham consiste num tipo de cárcere no qual as celas se dispõem circularmente e viradas para o centro, onde se localiza um observatório que permite a uma pessoa vigiar todas as celas em seu redor. Ao mesmo tempo, o recluso não consegue perceber se está a ser vigiado, já que não consegue ver para dentro desse observatório, pelo que se impõe sobre ele um sentimento omnipresente de controlo invisível. Assim, o recluso procurará constantemente interiorizar o “bom comportamento”, independentemente de estar a ser vigiado ou não, e assim caminhará no sentido de incutir sobre si próprio a reeducação e reabilitação que a prisão procura. Este é um processo de “normalização” do vigiado que está no fundamento do discurso que sustenta a implementação e expansão das tecnologias de vigilância — ou seja, não somente estas tecnologias permitem apanhar mais rapidamente um criminoso, como também agem no sentido de dissuadir o crime ao obrigar as pessoas a controlarem os seus próprios comportamentos (Foucault, 2004 apud Cunha, 2009). No entanto, a ideia de que as tecnologias de vigilância, por si próprias, configuram uma forma contemporânea de “panótico” (Norris, 2007) — ou superpanótico (Graham e Wood, 2003), tendo em conta a respetiva abrangência — não é consensual. Em primeiro lugar, porque nem todas as vigilâncias possuem uma conotação negativa; pelo contrário, a participação em mecanismos de controlo social pode ser uma atividade gratificante (Lyon, 1992) como evidencia a popularidade dos reality shows (aquilo a que chamaríamos um sinótico [Mathiesen, 1997], um sistema em que muitas pessoas vigiam um pequeno grupo — o inverso do panótico). Aliás, como argumentam Haggerty et al. (2011), a literatura sobre as novas formas de vigilância propôs já uma panóplia de “novos ‘óticos’” (4). Em segundo lugar, a

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Estes “novos óticos” são referidos por Haggerty e colegas no seguinte extrato: Surveillance scholars from a wide range of disciplines have subsequently posited a plethora of new ‘opticons’, including the ‘superpanopticon’, ‘post-panopticon’, ‘periopticon’, ‘neo-panopticon’ and ‘ban-opticon’, to name but a few (Haggerty et al., 2011: 232). Coimbra Editora ®

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vigilância não implica necessariamente uma atitude passiva do vigiado, como a imagem do panótico foucaultiano tende a fazer crer (Aas, 2004), havendo, como vimos, aceitação e engajamento público na implementação, manutenção e na própria gestão das tecnologias vigilantes. Em terceiro lugar, a disseminação das tecnologias de vigilância não é universal e, na maior parte das situações, dirige-se a alvos ou circunstâncias específicas. Nestes casos, falamos de um ban-opticon (Bigo, 2006 apud Hempel e Töpfer, 2009), ou seja, um sistema em que um grupo de pessoas ou instituições específicas (por exemplo, a polícia) monitoriza um grupo de pessoas e comportamentos suspeitos. Aqui remetemos para uma forma de controlo e governabilidade que não opera “no local”, por observação direta, mas sim através de um dispositivo complexo que interliga tecnologias de vigilância, bases de dados e redes de cooperação nacionais e internacionais entre diversas instituições. 5. CONCLUSÃO: BASES DE DADOS GENÉTICOS E BIOVIGILÂNCIA O controlo das populações pelas tecnologias de biovigilância configura uma governabilidade característica das sociedades contemporâneas, tornada possível por um tipo de vigilância que não busca as pessoas ou comportamentos subjetivamente avaliados como desviantes, mas sim parâmetros de exclusão previamente inseridos (numa lógica de contenção de riscos) e determinados por padrões identificáveis nas bases de dados — aquilo a que Clarke (1988) chamara de dataveillance (ver também Lyon, 2001b). Não se identifica apenas o (potencial) ofensor, mas também o próprio perfil de risco, em processos de identificação e definição de grupos e identidades que, pelas suas características, se tornam suspeitos aos olhos das bases de dados. Referimo-nos a “suspeitos estatísticos” (Cole e Lynch, 2006), assim assumidos pela racionalidade da frequência probabilística e a partir de uma base discursiva aparentemente desinteressada das conotações éticas/morais deste tipo de categorização. Parafraseando Gilles Deleuze (1997 apud Aas, 2004), diríamos que o indivíduo é decomposto em divíduos, unidades de identificação que operam autonomamente na construção das identidades a partir do aparelho vigilante. Uma asserção que se conGovernabilidade e mediações

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juga com a constatação de que presenciamos um novo tipo de configuração social sustentada na responsabilização individual e na mobilidade como valores fundamentais a defender, ligados intimamente a novas noções de liberdade e direito civil (Haggerty e Ericson, 2000; Lyon, 2002; Aas, 2004; Broeders, 2007; Wilson, 2007). Noções de etnia, raça e identidade nacional são recicladas pelos operadores de bases de dados genéticos enquanto categorias práticas mobilizadas apenas por um imperativo organizador e assim sustentadas numa frieza racional que assume essas categorias como dados adquiridos (Fujimura e Rajagopalan, 2010). No entanto, vários autores (Duster, 2006; Cole, 2007b; Risher, 2009) chamam a atenção para o facto de as novas tecnologias de vigilância terem, ao invés, reforçado a legitimidade de velhos preconceitos e inclusivamente criado novas formas de estigmatização e exclusão social ao reinventarem os critérios que fundamentam a cidadania: por um lado, ao nível legal/burocrático, definindo-se a partir de disposições legais nacionais, assim como de tratados internacionais (Broeders, 2007), novas formas de categorização e delimitação de populações; por outro, a partir do momento em que as próprias tecnologias de vigilância operam pela produção de distinções entre indivíduos suspeitos e não-suspeitos (Van der Ploeg, 1999). Enquanto outros dispositivos de vigilância recolhem informação externamente visível, o funcionamento das bases de dados genéticos está dependente de uma intromissão direta sobre o indivíduo, da recolha de um tipo de informação que não é evidente, à partida, mas que é muito mais poderosa na identificação, não só da pessoa, mas também dos seus parentes genéticos (Williams e Johnson, 2004; Van Camp e Dierickx, 2007; Machado, 2011). A determinação de perfis de DNA inscreve no indivíduo precisamente essas categorias que, à partida, se definem como determinantes para a correta manutenção da rede de sistemas de vigilância — se é importante para um sistema de videovigilância haver um conhecimento prévio do aspeto do(s) suspeito(s) e se é possível determinar com alguma exatidão o fenótipo das amostras de DNA recolhidas, então torna-se evidente que será prioridade permitir essa determinação no sentido de garantir a otimização da investigação criminal (Kayser e Schneider, 2009). Coimbra Editora ®

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É no sentido de imperativo funcional (Dahl e Sætnan, 2009) que um conjunto de práticas que, à partida, poderiam suscitar alguma preocupação ética e moral se aplicam em investigação forense, suavizando-se as suas consequências ao nível da compressão dos direitos individuais, nomeadamente: a pesquisa familiar, ou seja, o ato de pesquisar na base de dados perfis que sejam geneticamente próximos de uma amostra desconhecida recolhida em cena de crime (Greely et al., 2006; Bieber et al., 2006); a pesquisa de ancestralidade geográfica, feita após uma determinação da distribuição estatística de perfis genéticos por zona e da subsequente aproximação da amostra desconhecida a uma zona provável de proveniência (Shriver et al., 2005); a pesquisa “por arrastão” (dragnets), que consiste na recolha em massa de perfis de DNA numa determinada área onde se presume ser provável residir o suspeito (Chapin, 2004), assim como outros métodos e usos futuros a desenvolver, tais como a criação de perfis genómicos expandidos, que identificam a ancestralidade e algumas características físicas determinadas a partir do DNA (Haga, 2006). Pela articulação do argumento da eficácia da investigação criminal com a manutenção do direito fundamental à segurança, perfis, populações e áreas geográficas são “tornadas suspeitas” pela incidência diferenciada da ação das bases de dados genéticos (Cole e Lynch, 2006), que se constitui cada vez mais com tipos-alvo de perfis suspeitos e dessa forma mantém e reforça estigmas historicamente presentes no sistema judicial e penal (Duster, 2006). Apesar destas preocupações, as bases de dados genéticos e as tecnologias que lhes estão associadas continuam, como vimos, em plena expansão, incorporadas em redes internacionais de vigilância e controlo de populações. As tecnologias genéticas tornam-se, por isso, um elemento integrante da “montagem vigilante” (Prainsack e Toom, 2010) que organiza uma transformação global das estruturas do Estado e das sociedades em torno de dispositivos tecnológicos e vigilantes. Aqui, novas concetualizações de identidade e corpo ganham forma, assim como uma valoração reforçada da participação e engajamento dos cidadãos na manutenção dessas tecnologias. A organização da sociedade em torno dos fluxos de informação traz, por isso, novas condições de emancipação ao decompor as estruturas tradicionais de poder em dinâmicas mais fluídas. Ao mesmo Governabilidade e mediações

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tempo, reforça-se a centralidade do conhecimento científico, da área das biociências como pilar de novos regimes de produção de verdades que integram, simultaneamente, o poder político e a ação judicial. O desenvolvimento de saberes e tecnologias associadas à recolha, armazenamento e processamento de informação sobre os cidadãos com vista à gestão e prevenção da criminalidade poderá passar no futuro por mecanismos mais democratizados de governabilidade dos corpos e das populações? Restará nas mãos de organizações cívicas com capacidade de influência pública, assim como nas instituições envolvidas neste aparelho tecnocientífico, a capacidade de assumir a responsabilidade e apresentar soluções para o futuro? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Aas, Katja (2004), “From narrative to database: Technological change and penal culture”, Punishment & Society 6(4), 379-393. Aas, Katja (2006), “‘The body does not lie’: Identity, risk and trust in technoculture”, Crime, Media, Culture, 2(2), 143-158. Águas, Cíntia et al. (2009), “DNA databases and biobanks: The Portuguese legal and ethical framework”, in Kris Dierickx; Pascal Borry (eds.), New challenges for biobanks: Ethics, law and governance. Antuérpia: Intersentia, 209-223. Ajana, Btihaj (2012), “Biometric citizenship”, Citizenship Studies, 16(7), 851-870. Beck, Ulrich (1992), Risk society: Towards a new modernity. New Delhi: Sage. Beck, Ulrich et al., (2000), Modernização reflexiva: Política, tradição e estética no mundo moderno. Oeiras: Celta. Bieber, Frederick et al. (2006), “Finding criminals through DNA of their relatives”, Science, 312(5778), 1315-1316. Bigo, Didier (2006), “Globalized (in)security: The Dield and the Ban-opticon”, in Didier Bigo; Anastassia Tsoukala (eds.), Illiberal practices of liberal regimes: The (in)security games. Paris: L’Harmattan, 5-49. Braithwaite, John (2000), “The new regulatory state and the transformation of criminology”, British Journal of Criminology, 40(2), 222-238. Broeders, Dennis (2007), “The new digital borders of Europe: EU databases and the surveillance of irregular migrants”, International Sociology, 22(1), 71-92. Bunyan, Tony (2010), “Just over the horizon: The surveillance society and the state in the EU”, Race & Class, 51(3), 1-12. Chapin, Aaron (2004), “Arresting DNA: Privacy expectations of free citizens versus post-convicted persons and the unconstitutionality of DNA dragnets”, Minnesota Law Review, 89, 1842-1875. Coimbra Editora ®

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MEDIAÇÕES, TIPOS E FIGURAÇÕES: REFLEXÕES EM TORNO DO USO DA TECNOLOGIA DNA PARA IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL CLAUDIA FONSECA 1. INTRODUÇÃO Em 2 de maio de 2012, a Câmara de Deputados deu aprovação final e encaminhou para sanção presidencial em Brasília a proposta legislativa de criação do banco de perfis de DNA para crimes violentos. Entre outros itens, a lei 12.654-12 reza que: Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes [.hediondos…], serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA […], por técnica adequada e indolor. § 1.º A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo. Assinada pela presidente no dia 29 de maio (2012) e regulamentada quase um ano depois (no 12 de março, 2013), a lei deve ser implementada nos próximos meses. Proponentes da lei afirmam que ela é bem-vinda, pois vem “preencher uma lacuna” na legislação brasileira sobre práticas que já existem, mas que não eram reguladas. Eu acrescentaria que é bem-vinda também porque a formulação de uma nova Governabilidade e mediações

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lei abre espaço para uma discussão ampla e pública sobre os efeitos práticos e éticos das novas tecnologias de governo. Em outras palavras, esse tema fornece uma oportunidade para a sociedade — os governantes e o público em geral — repensar criticamente uma série de questões importantes sobre direitos, cidadania e discriminação. Instiga antes de tudo a considerar como elementos aparentemente neutros — da ciência e da tecnologia — provocam rearranjos em nossa maneira de pensar e lidar com questões de justiça. Seguindo essa linha, proponho nesse ensaio apelar para alguns instrumentos analíticos dos estudos de ciência e tecnologia para afinar nossa percepção dos novos saberes científicos no campo da investigação criminal, documentando seus usos e avaliando seus efeitos na prática em lugares onde o banco de perfis genéticos já foi implantado há tempo. Comentários entusiastas prometem que o banco de perfis genéticos para fins de identificação criminal vai contribuir para a resolução do problema número um do país — a insegurança causada pelo crime violento, resultado por sua vez da “cultura da impunidade”. Aparecem repetidamente na mídia histórias emblemáticas, geralmente importadas dos Estados Unidos e da Inglaterra, sobre tal e tal estuprador que foi preso graças à tecnologia do DNA, e sobre tal e tal assassino em série que poderia ter sido preso antes de cometer tantos crimes se somente tivesse existido na época um banco de perfis genéticos. Por outro lado, ouvimos falar muito dos casos em que o DNA conseguiu exonerar pessoas injustamente suspeitas de um crime, inocentar determinados presos e até tirar alguns condenados do corredor da morte. Parece haver nessas histórias uma associação automática entre tecnociência e justiça — como se os elementos “impessoais” do DNA pudessem finalmente introduzir no sistema de justiça uma objetividade livre de preconceitos para levar adiante a causa do bem-estar de todos. E, sem dúvida, há instâncias em que o uso da ciência — em particular da informação genética — tem avançando a causa dos direitos humanos. Basta pensar no trabalho de cientistas para identificar os corpos de pessoas assassinadas durante ditaduras sangrentas na África ou América Central ou, mais perto de casa, para identificar os filhos de desapareciCoimbra Editora ®

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Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso da tecnologia…

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dos da ditadura argentina (Penchaszadeh, 2012). Também tem permitido a reunificação de famílias separadas por migrações ou políticas estatais autoritárias. Eu mesma estou envolvida atualmente numa pesquisa sobre os estragos de uma política de saúde pública no Brasil que, dos anos 40 aos anos 70 do último século, decretou o internamento compulsório de pessoas atingidas pela hanseníase em colônias hospitalares, completamente isoladas do convívio social e familiar. Nesse caso, a técnica de DNA está servindo para identificar e reunir parentes que se perderam de vista por causa da política autoritária, se mostrando inclusive um instrumento poderoso para a demanda jurídica de reparação (INAGEMP, 2012). Mesmo numa área tão polêmica quanto a investigação criminal, parece haver certo consenso de que a tecnologia de DNA veio para ficar, apresentando-se como recurso importante, se não indispensável, para o trabalho do sistema judiciário. A coleta de vestígios genéticos na cena de crimes para comparação com o DNA de pessoas suspeitas indicadas por testemunhas (ou outros indícios) é acolhida como um suplemento importante a impressões digitais e outras técnicas de identificação. Até agora, no Brasil, é este o uso que tem despontado em manchetes anunciando como a tecnologia de DNA permitiu prender tal estuprador. Vestígios não identificados de diferentes cenas de crime são estocados para serem comparadas ao perfil genético de cada novo suspeito. O novo banco de dados de perfis genéticos inverte esse processo, estocando o código de DNA de pessoas identificadas a ser comparado ao material colhido na cena de novos crimes. No campo crítico em que me situo — dos estudos da ciência e tecnologia — especialistas (envolvendo peritos, juristas, filósofos, geneticistas e cientistas sociais) levantam uma série de questões sobre a necessidade deste último tipo de um banco. Alguns observadores chamam atenção para a ameaça que um banco de perfis genéticos representa para o direito à privacidade. Concentram suas críticas na extensão de um poder central capaz de vigiar, produzir e controlar informações sobre aspectos íntimos da vida de seus cidadãos (Lazer e Meyer, 2004; Bieber et al., 2006). Outros se concentram em problemas da coleta clínica do material genético, sublinhando a invioGovernabilidade e mediações

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labilidade do corpo humano e especulando sobre a hierarquia de lugares íntimos — indo de superfícies menos controvertidas (cabelo, pele) aos líquidos (sémen, sangue) e orifícios corporais (boca, cavidade vaginal) (5). Outros especialistas se preocupam com aspectos políticos do fenômeno — localizando suas dúvidas no fato de que a tecnologia para investigação criminal recebe seu impulso principal de certo país — os USA —, certo órgão — o FBI —, e certa empresa — a Life Technologies (Wallace, 2012). Outros especialistas questionam as condições técnicas do processo laboratorial e se é possível, nos variados contextos, garantir resultados exatos. Chamam atenção para possíveis falhas na “cadeia de custódia” do material genético — uma cadeia que inclui a coleta por policiais na cena do crime, o condicionamento e transporte da amostra, o manuseio no laboratório, e muitos outros elementos técnicos (Lynch et al., 2008). Ou, fitando a etapa posterior de investigação questionam a capacidade de juristas (e juris) de entender a lógica dos resultados probabilísticos da identificação de um indivíduo via DNA (Jasanoff, 2006) (6). Todas essas questões apontam para pistas interessantes de investigação, e pretendo voltar a algumas delas no final desse artigo, mas, por enquanto, me concentro aqui em três pistas oferecidas pelos estudos de ciência: 1. Como as leis e outras mediações jurídicas no atual sistema de justiça condicionam os efeitos do banco de perfis genéticos;

(5)

Nos anos 80, por causa da tecnologia rudimentar, a única maneira de fazer um teste de DNA era por extração de sangue. Hoje a tecnologia permite a coleta de amostras a partir de muitas outros “vestígios” corporais. Não é dificil ver a relação do avanço tecnológico com mudanças de legislação em muitos paises que tornaram a boca um lugar “não-íntimo” do corpo, de onde é possível extrair amostras sem o consentimento da pessoa (Williams e Johnson, 2008). (6) Como lembra Jasanoff (2006: 337), “O risco de inferir, a partir de informações científicas, mais do que elas podem estabelecer com certeza razoável é particulmente agudo no caso da ciência genética que carrega conotações de precisão e infalibilidade”. Coimbra Editora ®

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2. Como os perfis genéticos operam para criar novas categorias de percepção, fabricando novos tipos de ser humano e quais os efeitos destes tipos para a identidade das pessoas; e 3. Quais as “figurações” dessa tecnologia, isto é, qual a maneira em que diferentes atores, incluindo a mídia, o direito, determinadas categorias profissionais e observadores críticos angariam esforços materiais e semióticos para produzir certa imagem da tecnologia do DNA? Enquanto cientista social, tomo como ponto de partida do meu argumento os efeitos da tecnologia para os sujeitos mais visados — aqueles que já estão ou que têm grande possibilidade de entrar no banco de dados. Já que o fenômeno ainda é incipiente no Brasil, recorro a pesquisas realizadas em outros contextos onde já foram documentados protestos e resistências ao banco de dados. Seguindo a pista desses protestos, de alguns presos numa cadeia portuguesa, de dois estudantes negros nos Estados Unidos e de um pré-adolescente na Inglaterra, espero encontrar hipóteses para pensar os possíveis efeitos do banco de perfis genéticos no contexto brasileiro. 2. A IMPORTÂNCIA DAS MEDIAÇÕES — LEIS E “CRIMINOSOS” Introduzo meu primeiro tema — a importância das “mediações” jurídicas — examinando os efeitos potencialmente positivos da tecnologia de DNA para reverter a condenação de pessoas inocentes. Cita-se nos jornais com bastante insistência cada novo sucesso da organização norte-americana, Projeto Inocência, cujo objetivo é comprovar, com ajuda do DNA, a inocência de pessoas já condenadas pelos tribunais e servindo longas sentenças no sistema prisional. A ideia é re-analisar a evidência da cena de crime para ver se o perfil de DNA do malfeitor corresponde ou não ao da pessoa condenada pelo crime. Foi justamente por desconfiar da mediação do sistema rotineiro de justiça, que uma dupla de advogados norte-americanos criou o “Projeto Inocência” em 1992. Hoje, longe de ficarem satisfeitos com a libertação de quase 300 pessoas encarceradas apesar de sua inocência (incluindo pelo menos 17 que estavam Governabilidade e mediações

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aguardando uma injeção letal no corredor da morte), esses ativistas dos direitos humanos parecem ainda mais inquietos. Dizem que vimos até agora apenas “o topo do iceberg” de um sistema em que há milhares de pessoas inocentes nas cadeias — pessoas condenadas injustamente por causa de defensores incompetentes, investigações policiais parciais, confissões falsas, testemunhas compradas e a compreensão limitada do júri quanto à relevância de análises laboratoriais de sangue e cabelo (Jasanoff, 2006; Lynch et al., 2008). Em outras palavras, para determinados observadores, ao revelar falhas básicas no sistema, o DNA parece estar — paradoxalmente — servindo para exacerbar a desconfiança no andamento da justiça. Uma pesquisa realizada em 2011 em cadeias portuguesas, sugere que os próprios presos associam o DNA mais a essas falhas do sistema do que à possibilidade de reverter uma condenação injusta (Machado, 2012) (7). Artur, condenado a 12 anos de cadeia por roubo, explica por que se negou a fornecer uma amostra de sangue para determinada investigação: Era um caso de uma morte. A Polícia Judiciária já andava há muitos anos em cima daquilo e não encontrava um culpado! (…) a Judiciária é dos maiores bandidos que anda aí, não é? (…) E ao fim daqueles anos [decidiram] “Não encontramos o autor, não temos ninguém a quem [acusar], vamos ali à fábrica do lixo, a cadeia, vamos ali e olha, pronto, é este” (Machado, 2012: 78). Henrique, servindo três anos por furto, entra em maior detalhe: Não estou de acordo [que se possa ilibar inocentes…]. Porque lhe digo por experiência própria (…) Tenho é que ter um bom advogado que é para a [prova] ser interpretada [a meu favor]. A prova de DNA é pior para nós [indivíduos que já foram condenados/

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Os entrevistados de Machado incluem desde pessoas condenadas por abuso de cartão de crédito até condenadas por homicídio — cumprindo penas de prisão desde 5 meses a 25 anos — de modo a captar diversidade de experiências e representações. Coimbra Editora ®

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potenciais suspeitos]. Sem dúvida que é pior. (…) Um cabelo, você agarra um cabelo e mete-o lá [na cena de crime]. E pronto, metem uma pessoa na prisão (Machado, 2012: 75-76). Todos os entrevistados de Machado afirmaram conhecer algo das técnicas DNA de investigação, principalmente através dos episódios na televisão de CSI (Crime Scene Investigation). Nenhum contestou a capacidade dessa tecnologia “mostrar os fatos”. Entretanto, a maioria expressou uma profunda desconfiança quanto ao manuseio dessa tecnologia e a vontade do sistema judiciário de usá-la para comprovar a inocência de uma pessoa já condenada. Os presos parecem estar direcionando suas dúvidas para agentes corruptos e a adulteração intencional dos fatos. Analistas acadêmicos levantam outro tipo de suspeita, direcionada pra as mediações legais e administrativas que condicionam a implementação dos testes de DNA. Apelo à noção de mediações (8) (Latour, 2005) justamente para romper com análises governadas por um determinismo tecnológico. Tal como qualquer outra tecnologia, o uso do DNA na investigação criminal não segue nenhum rumo automático. Conforme os diferentes “conectores” — que incluem leis e outros elementos do sistema de justiça — a tecnologia pode ser usada para avançar a causa dos direitos humanos ou para acirrar a discriminação contra pessoas vulneráveis. Para os que endossam os esforços do Projeto Inocência, sobra a pergunta: quais são as mediações necessárias para institucionalizar o uso “pós-condenação” do DNA — trazendo os benefícios dessa tecnologia para reverter lacunas na justiça rotineira e garantir os direitos das pessoas já condenadas? Conforme observadores, as leis — na maioria dos lugares — não favorecem o uso pós-condenação do DNA (Lazer e Meyer, 2004). Em primeiro lugar, geralmente, existe um prazo relativamente curto — às

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Ao contrastá-los com “intermediários” (que transmitem mecanicamente os significados), Latour insiste no caráter imprevisível dos mediadores que “transformam, traduzem, distorcem, and modificam o significado dos elementos que carregam” (2005: 39). Governabilidade e mediações

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vezes só seis meses — para o condenado apelar de sua sentença. Ironicamente, a longa vida do DNA — o fato de ser possível usá-lo como prova mesmo 20, 30 anos depois do crime — tem levado a mudanças de legislação no mundo inteiro para aumentar ou mesmo abolir prazos para a prescrição de diferentes crimes. Não houve preocupação semelhante de ampliar os prazos para condenados apelarem da sentença, nem de facilitar o acesso por defensores aos vestígios genéticos para rever as provas materiais da condenação. Em segundo lugar, mesmo quando o preso consegue reabrir seu processo, é bem provável que — até um novo julgamento — seja impossível se valer da tecnologia de DNA em seu favor pois faltam estrutura adequadas para a armazenagem e preservação das provas. Os advogados do Projeto Inocência, por exemplo, não conseguiram levar adiante 75% das causas que tentaram abraçar. Por causa da inépcia dos serviços judiciários, as provas materiais que embasaram a condenação tinham sido perdidas ou deterioradas, tornando impossível rever as evidências à luz da técnica de DNA. Observadores lembram que, na organização administrativa do judiciário, em geral quem decide se “novas evidências” justificam reverter o princípio sagrado da “coisa julgada” é o promotor de justiça, justamente a pessoa que tem menos interesse em ver escancarados seus erros ou as falhas do sistema. Como esperar que esse “mediador” apoie: Os casos pós-condenação [que] desviam recursos da missão organizacional prioritária — a de condenar criminosos — e solapam a credibilidade do serviço [judiciário]? (Lazer e Meyer, 2004). Por causa das dúvidas levantadas pelas exonerações alcançadas por mais de quarenta organizações não-governamentais emulando o Projeto Inocência original, diversos estados norte-americanos abriram um serviço pós-condenação dentro do próprio aparelho da burocracia pública. Curiosamente, pelo menos até 2004, nenhum dos recursos iniciados por um desses serviços públicos tinha resultado na exoneração de um condenado… (Lazer, 2004: 6). Finalmente, deveríamos observar que esforços tais como esse do Projeto Inocência não têm qualquer relação direta com o banco de dados Coimbra Editora ®

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de perfis genéticos. Têm a ver com a comparação dos vestígios do crime com um “suspeito” (nesse caso, já preso e condenado) específico. Em outras palavras, no Brasil, já podíamos ter esses “projetos” há tempo… e, por algum motivo, não ocorreu. Deduzimos, portanto, que os usos “positivos” do uso de DNA para inocentar pessoas injustamente condenadas não ocorre sem que haja investimentos políticos e financeiros nesse tipo de projeto. Por outro lado — e o que preocupa observadores críticos —, o banco de dados parece causar certos efeitos que não foram conscientemente projetados — a saber, a criação de novos tipos de ser humano. 3. NOVOS TIPOS DE SER HUMANO Ao falar de “novos tipos”, estou me referindo à discussão lançada por Ian Hacking (1999) e retomada por Nikolas Rose (2007) e outros. São pesquisadores que procuram operacionalizar conceitos amplos como “medicalização” ou “genetização” da sociedade, definindo os diversos mecanismos que seriam constitutivos desses processos e perguntando quais os efeitos sobre as subjetividades. A ideia é que “habitamos” diversos mundos ao mesmo tempo e criamos sentido a partir dessa diversidade, selecionando ou re-inventando categorias relevantes de percepção. Fitando, nos seus diversos estudos, uma série de categorias que foram cunhadas ao longo do último século — esquizofrenia, abuso sexual, autismo — Hacking mostra como esses novos termos são “world-making”, isto é, criam “tipos” que não só formam a nossa percepção dos objetos (identificação), mas também — quando são “interativas” (dizendo respeito a humanos) — alcançam a própria identidade das pessoas. Assim, os “novos tipos” de pessoas, classificatórios e portanto valorativos, se mostram “mediadores” por excelência entre tradições do passado e inovações do momento — entre saberes científicos, invenções tecnológicas, categorias de percepção e modos de ação (Hacking, 1999). A genética se presta de forma particularmente eficaz a esse tipo de “fabricação de pessoas”. Revelar o tipo do indivíduo (as características e inclinações pessoais), além de meramente identificá-lo é exatamente o que as tecnologias anteriores — frenologia, antropometria ou impressões Governabilidade e mediações

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digitais — tentavam e não conseguiam fazer de forma convincente (Cole, 2001). O “excepcionalismo” da tecnologia de DNA reside justamente no seu potencial de finalmente dar uma resposta a esse programa de investigação. Aplicada à área criminal, esse “excepcionalismo” encerra problemas particulares. Durante toda a era vitoriana, pesquisadores como Lombroso e Galton tinham tentado em vão estabelecer uma conexão científica entre biologia e comportamento, em particular o comportamento desviante e criminoso (ver Rabinow, 1996). Associada às atrocidade nazistas perpetradas durante a Segunda Guerra Mundial, essa linha de investigação caiu de moda durante várias décadas. Será por acaso que renasce a antropologia criminal, agora na forma da “biocriminalidade”, logo nos anos 80, quando a genética passa a dar saltos surpreendentes (Rose, 2000)? No lugar dos arquivos contendo retratos de criminosos (e rebeldes políticos) onde Lombroso procurava encontrar na fisionomia dos presos a chave de leitura para seu comportamento anti-social, o banco de dados genéticos de condenados fornecerá uma ferramenta atualizada (e ajustada à estética do século XXI) para fazer conjeturas científicas sobre o “tipo criminal”. O problema é que essas análises serão realizadas a partir de um universo (os “criminosos”) forjado pelos mecanismos discriminatórios da sociedade contemporânea. É geralmente reconhecido que, no Brasil, tal como em outros países ocidentais, existe um número desproporcional de afro-descendentes nas cadeias (Adorno, 1995). Da mesma forma, Duster (2004) mostra, com estudos longitudinais sobre a população encarcerada nos Estados Unidos, que o número desproporcional de negros na cadeia se acentuou ao longo do século XX, recebendo inclusive um claro impulso da “guerra contra as drogas” da era Reagan. Em 1933, 77% dos presos eram brancos; até o final dos anos 80, os brancos e não-brancos estavam empatados. Hoje, a franca maioria dos presos é afro-descendente, o que significa uma taxa de encarceramento oito vezes a da população branca (Duster, 2004) (9).

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Se, por um lado, esses dados indicam uma discriminação contra pessoas de pele escura, por outro lado, devemos lembrar que as classificações raciais são parte Coimbra Editora ®

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Ativistas de direitos humanos estão de acordo. Consideram que a vigilância potencial proporcionada pelos bancos de dados exacerba desigualdades inerentes no sistema, de justiça, visando categorias já vitimadas pelo preconceito racial. Na Inglaterra, por exemplo, onde atualmente há mais de 6.000.000 de perfis no banco nacional (ou seja cerca de 10% da população), constata-se um número desproporcional de indivíduos negros. Em 2006, uma fonte jornalística (The Guardian), fazendo inferências a partir da informação disponível, estimou que 37% dos homens afro-caribenhos e 13% dos asiáticos no território do Reino Unido estavam incluídos no banco de dados, contra 9% dos homens brancos (Lynch et al., 2008). Cabe acrescentar que o uso de técnicas de DNA na investigação policial acaba por ter implicações não só para determinados indivíduos mas também para suas famílias e comunidades. A comunidade se torna relevante especialmente durante um dragnet (como o que ocorreu em Charlottesville) — quando a policia, tendo uma amostra da cena do crime, procura submeter todos os moradores de determinada localidade a um exame de DNA para identificar o criminoso. Em alguns casos, a amostra do suposto culpado sugere determinado fenótipo (branco, negro…) permitindo fazer uma pré-triagem de suspeitos (Hacking, 2006; Bieber et al., 2006). A família passa a ser implicada especialmente com o banco de perfis. Quando os policiais ainda não definiram nenhum suspeito, podem procurar um acerto “frio”, comparando a amostra da cena de crime com as centenas de milhares de perfis de pessoas identificadas no banco. Nesse caso, podem fazer uma busca rigorosa, procurando apenas o indivíduo com código idêntico à amostra, ou podem fazer uma busca “frouxa” (low stringency), em que aparecem indivíduos com código próximo ao da amostra. Neste caso o resultado sugere que o criminoso é um tio, irmão ou outro parente do indivíduo no banco de dados. Lembramos que o banco britânico de dados hoje inclui muito mais do que pessoas condenadas. Inclui pessoas inocentadas, meramente

integrante das dinâmicas sociais. Vieira (2011) descreve com detalhes etnográficos como a classificação de um mesmo suspeito tende a variar de mais branco para mais preto a medida que o processo penal se aproxima da condenação. Governabilidade e mediações

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indiciadas e, de fato, qualquer individuo que já foi suspeito de ter cometido um delito. Considerando a grande quantidade de afro-descendentes já enquadrada no sistema penal, estima-se que, com as buscas “frouxas” (via familiares), o banco de dados dá conta de quase toda a população negra da Inglaterra (o caso dos Estados Unidos não sendo muito diferente) (Lazer e Meyer, 2004; Wallace, 2008). Vista contra esse pano de fundo, o uso da tecnologia de DNA em investigações policiais aparece como mecanismo não para combater e, sim, para exacerbar o caráter discriminatório já inscrito no sistema penal, permitindo a vigilância acirrada de certos tipos mais do que outros. Duster (2006) tem sido particularmente evocativo quanto à maneira em que as novas tecnologias policiais são vividas por jovens das minorias étnicas. Ao sublinhar a “confiança diferencial” no uso forense da tecnologia, ele descreve um episódio de 2003 em que dois estudantes negros da Universidade de Virginia (Charlottesville, EUA) se negaram a cuspir numa jarra para fornecer uma amostra de seu DNA. Por qual motivo eles se recusariam a colaborar com a investigação policial em busca de um estuprador que aterrorizava a comunidade há mais de cinco anos? Conforme Duster, esses estudantes, tal como boa parte de seus colegas negros da universidade, queriam contestar o que viam como uma premissa teórica inerente na coleta de amostras: que o mero fato de serem homens negros os colocaria na categoria de pré-suspeitos. Tal como no caso dos presos portugueses descritos por Machado, vemos aqui pessoas que não aceitam dar carta branca à escalada de tecnologias policiais. Só que no caso descrito por Duster, trata-se de indivíduos que nem sequer foram indiciados por um crime, mas que, por causa de seu grupo étnico ou sua vizinhança, são particularmente visados pela polícia. 4. DE ADULTOS A CRIANÇAS: CORTANDO O MAL PELA RAIZ A primeira vista, o banco de perfis genéticos diz respeito apenas aos indivíduos condenados por crimes hediondos. Falamos acima de casos em que o banco tem potencial para afetar um raio muito maior de pessoas. O exemplo seguinte, tirado do “berço” do banco de perfis genéCoimbra Editora ®

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ticos para identificação criminal — a Inglaterra —, descreve como o banco chega a incluir até crianças e adolescentes nunca indiciados. Quem inicialmente dirigiu minha atenção a esse caso foi uma conceituada ONG, já com mais de duas décadas de experiência na análise ética e política de inovações científicas, o Genewatch. No site desta organização, encontra-se destacada uma ação judicial movida em 2008 contra o Banco britânico de perfis genéticos que chegou até a Corte Europeia de Direitos Humanos. Trata-se de um menino de 11 anos, acusado por furto mas nunca condenado, cujos dados genéticos estavam guardados nos arquivos policiais (Genewatch, 2013a). Em outros lugares, há previsões legais que, teoricamente, permitem expurgar um registro depois de determinado tempo ou quando o suspeito não for indiciado ou condenado. Não é o caso do banco de dados de Inglaterra e País de Gales onde os dados de qualquer indivíduo ficam retidos por um período indefinido. Ao julgar esse caso, o Tribunal Europeu considerou que, já que o menino nunca foi legalmente condenado, a retenção de seus dados no Banco Nacional de perfis genéticos era uma interferência desproporcional no seu direito à vida privada — constituindo uma violação de direitos pelo próprio Estado que não devia ser tolerada numa sociedade democrática (ver também Williams e Johnson, 2008). Lembramos que o banco britânico de dados iniciou em 1995 de forma cautelosa — incluindo apenas pessoas adultas condenadas por crimes sexuais e violentos. Sob Tony Blair, o banco se expandiu para incluir o registro permanente do DNA de pessoas suspeitas de qualquer infração, a partir de 10 anos de idade. Conforme o Genewatch, até 2008, entre os mais de seis milhões de pessoas no sistema, existe quase um milhão que deu entrada com menos de 18 anos de idade, e meio-milhão com menos de 16 anos. Encontram-se no banco os perfis de um menino de 12 anos acusado de roubar as cartas de Pokemon de um colega de aula, de outro com 13 anos cujo crime foi atirar uma bola de neve contra um carro policial, e ainda outro de 10 anos, cujo material genético foi coletado quando ele fez queixa de ser vítima de bullying (Genewatch, 2013b). Pergunta-se: qual a lógica que justifica a incorporação de dados genéticos sobre crianças num banco para uso policial? Nesse ponto, podemos citar um relatório do próprio banco britânico que, em 2003, Governabilidade e mediações

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ainda estava preparando o caminho para a inclusão de crianças e adolescentes no acervo: Dessa maneira, vamos poder detectar infratores mais cedo, antes de qualquer acusação formal ser feita, poupando assim tempo e custo dos policiais (NDNAD, 2004 apud Lynch et al., 2008: 152). Chegamos aqui de volta à discussão sobre “tipos”, pois estamos falando de uma medida baseada não na constatação de um fato do passado, mas na previsão do que provavelmente vai ocorrer. É um exemplo supreendentemente franco da construção de um tipo criminal que, presumivelmente, pode ser identificado por fatores de risco, detectados já na infância. É subentendido tratar-se de jovens com tendência de eventualmente desenvolver características antissociais, tornando-se uma ameaça à segurança pública (Hacking, 2006). Nikolas Rose (2000) situa essa preocupação com segurança dentro da ótica da saúde pública, típica da segunda metade do último século. Visa não só o controle, mas também a terapia preventiva — um tipo de ortopedia social — implicando uma nova equipe de profissionais (girando agora em torno de geneticistas e neurocientistas) como especialistas no assunto. Só que, no campo da saúde, o risco envolve uma eventual ameaça de doença ao indivíduo em questão. No campo de segurança pública, o risco fala da ameaça que o próprio indivíduo apresenta para a sociedade. Ao identificar “pré-suspeitos” — tipos de pessoa com tendência a comportamento antissocial — considera-se que a tecnologia está permitindo “cortar o mal pela raiz” (ver Fonseca, 2012). Os laboratórios forenses, especificamente voltados para o combate ao crime, e com material genético à disposição graças aos bancos de dados, se tornam o local por excelência para a ciência de previsão. Em alguns países, existe uma orientação de guardar apenas o código informatizado do perfil genético. Em outros lugares a amostra biológica original é estocada para consulta e re-exame futuros. Neste último caso, a amostra também poderia ser usada para pesquisa… como é o caso em muitos laboratórios forenses nos Estados Unidos. (Convenientemente, a inclusão desses “sujeitos” na pesquisa prescinde de qualquer consentiCoimbra Editora ®

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mento informado — Weiss, 2011). É bem possível que, a partir desse universo particular de pesquisa fornecido pelo banco de dados, sairá uma associação também bastante particular sobre a relação entre classe, raça e indivíduos de risco. 5. FIGURAÇÕES A última “voz” de um sujeito em carne e osso que trago aqui vem da minha experiência incipiente de pesquisa de campo numa Vara de Júri em Porto Alegre (10). Trata-se de uma promotora que, a partir de quase vinte anos de experiência na Vara, expressou certo ceticismo frente às vantagens do banco de perfis genéticos. Explicou que a maioria de crimes violentos ocorre em lugares públicos onde, muito antes da polícia chegar, a cena do crime é tomada por familiares, vizinhos e simples transeuntes. Nessas condições, há pouca esperança de isolar o DNA do agressor. O laboratório forense do estado para onde se mandaria a “prova material” para análise tem peritos competentes, mas estão sobrecarregados de trabalho e os resultados de análise, demorando até dois anos para sair, podem chegar tarde demais para serem aproveitadas no julgamento. Em todo caso, a impunidade do assassino não acontece, em geral, por falta de provas materiais — mas por falta de testemunhas com coragem para apontar o dedo. Sem a corroboração de testemunhas com narrativas que constroem o contexto do crime, a mera presença de determinado suspeito na cena do crime não é suficiente para condená-lo. É interessante que as dúvidas da promotora, assim como as de outros sujeitos citados ao longo desse artigo quanto à eficácia de um banco de perfis genéticos não aparecem na mídia, nem parecem entrar nas considerações dos legisladores nacionais. Pergunta-se: de onde vem a visão otimista que encontramos diariamente nessas arenas públicas? A resposta a essa pergunta traz à tona o que chamo de “figurações” — a maneira

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Entrevista realizada em junho de 2012 no âmbito do projeto CNPQ, “A produção e uso de novos conhecimentos científicos nas tecnologias do governo” em companhia dos demais pesquisadores do tema de perícia forense, Vitor Richter e Lucas Besen. Governabilidade e mediações

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pela qual diferentes saberes científicos, junto com uma variedade de outros atores — a mídia, o direito, as empresas, os cidadãos com sua agenda de preocupações — angariam esforços materiais e semióticos para dar corpo a novos (e velhos) fenômenos (Castañeda, 2002). A presença da mídia, por exemplo, está evidente naquilo que diversos observadores denominam o “imaginário forense” — um efeito produzido por seriados de televisão tais como CSI (Crime Scene Investigation) e que transmite ao público uma convicção de que a ciência, com seus instrumentos afiados de “bioidentificação”, é uma arma eficaz para prevenir e combater a criminalidade: Pela mistura “credível” de elementos ficcionais e elementos com sustentação nos procedimentos reais da ciência forense e da investigação criminal apoiada em tecnologias avançadas (…), o CSI configura uma performance cultural que cria mitos em torno do que a ciência-deveria-ser (wishful-thinking science)” (Machado e Costa, 2012: 65). Diante do público leigo, a ciência — e, em particular, o gene (ver Nelkin e Lindee, 1995 sobre esse “ícone do século”) — tem um poder de fascínio que extrapola o entusiasmo dos próprios cientistas. Estes em geral evitam promessas proféticas calcadas em raciocínios reduccionistas (Lewontin, 1972 apud Hacking, 2006). É geralmente reconhecido, por exemplo, que “nenhum geneticista sério” diria que existe um gene único para um traço comportamental (Brodwin, 2002). Mas esse tipo de raciocínio aparece com bastante frequência nas reconstruções populares da ciência. Tanto entre leigos quanto entre muitos juristas, parece existir uma fé no caráter “objetivo” da ciência que faz abstração das contingências sociais (e altamente humanas) de sua prática. A insistência com a qual juristas apontam para as vantagens das provas “infalíveis” de DNA sobre as provas testemunhais “sujeitas ao erro humano” sugere uma visão ingênua da ciência. Conforme analistas dos estudos sociais da ciência e tecnologia (STS), caberia uma perspectiva mais circunspecta das provas científicas — uma perspectiva que fala em termos de “verdades acessíveis” (serviceable truths), úteis para avançar a causa da justiça, mas que, pressupondo os alicerces inevitavelmente sociais da ciência, não nutrem a miragem de infalibilidade (Jasanoff, 2006: 332; Lynch et al., 2008). Coimbra Editora ®

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A tradução de informações entre o campo científico e o campo do direito traz suas próprias complicações. Já há uma série de diferenças na produção de uma “verdade” em um campo e outro (Jasanoff, 2006). Na ciência, essa produção é um processo a longo prazo, direcionado à busca de leis gerais, e envolvendo constantes reformulações em razão do exame e contestação por pares. Um fato científico produzido para a arena jurídica é submetido às contingências do novo contexto: tempo limitado, resultados circunscritos a um caso particular que devem ser contundentes e formulados de maneira a prevenir a contestação. Na tradução de uma arena para outra, a própria percepção dos “fatos” e da sua relação com a realidade é alterada, cedendo para o que analistas consideram as inclinações “essencializantes” da lei (idem). Outro protagonista da figuração do uso forense do DNA é o setor empresarial que produz o software, máquinas e reagentes necessários para aplicar a tecnologia. Por exemplo, a CODIS (Combined DNA Index System) — uma tecnologia de identificação aperfeiçoada pelo FBI (Polícia Federal dos Estados Unidos), em parceria com a empresa de biociências aplicadas, Life Technologies — é promovida no âmbito de uma rede internacional de empresas privadas e organizações governamentais. Conforme informações divulgadas via congressos e cursos de formação mundo afora, o CODIS já foi implementado por mais de 30 países, além da própria Interpol. Conforme um perito da Polícia Federal brasileira, o FBI “doou” o sistema CODIS ao país em 2010, mas, por diferentes motivos, alguns laboratórios estaduais optaram, na época, por “ficar fora da iniciativa” (Mariz, 2012; ver também Schiocchet, 2012). A partir de 2011, a Life Technologies, em parceria com associações profissionais e universidades no Brasil, foi protagonista na organização de uma série de encontros em diferentes capitais (São Paulo, Salvador, Brasília, Porto Alegre, etc.) sobre técnicas forenses e o uso de DNA para identificação humana. Nesses eventos, há repetido destaque dado a certas personalidades (por exemplo, um ex-policial norte-americano “formado em ciências criminais pelo FBI”, que oferece uma aula prática sobre investigação de cenas de crime) e certos produtos, incluindo a linha completa de tecnologia para o banco de perfis genéticos. Governabilidade e mediações

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Participam desses seminários, além de leigos curiosos e alguns juristas, peritos forenses — uma categoria em plena expansão. Trata-se de especialistas altamente qualificados com formação em biologia, bioquímica ou genética, com diplomas de pós-graduação e outros cursos de capacitação dirigidos especificamente para a área de perícia genética. Atentos às novas tecnologias que podem contribuir para a eficácia de seu trabalho, alguns deles mostram porém certa reticência diante do evidente marketing de novos produtos (Pessoa e Garrido, 2012). Contudo, outros demonstram o entusiasmo de “consumidores precoces” (early adopters) de inovação tecnológica — aqueles que, por circunstâncias particulares, são especialmente convencidos das vantagens gerais da tecnologia em questão e que tendem a subestimar seus riscos, ambiguidades e imprecisões (11). Um ou dois desses entusiastas acabam servindo como espécie de porta-voz da categoria, emprestando o prestígio da perícia forense para o endosso do banco de perfis genéticos. Nas conferências que proferem durante encontros profissionais, nas entrevistas que dão na televisão, nos artigos que escrevem para os jornais ou revistas científicos, trazem essencialmente os mesmo argumentos. Destacam o poder do DNA de inocentar pessoas injustamente condenadas. Antecipam criticas à nova lei, lembrando que o banco brasileiro de informação genética deve incluir apenas aquelas pessoas condenadas por crimes sexuais e hediondos. Mostram fotos e contam histórias sobre serial killers pegos graças à tecnologia do DNA (12). Frisam que a tecnologia de coleta hoje é fácil e indolor, não representando nenhuma invasão da integridade corporal do

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Jasanoff (2002: 897) usa a “early adopters” para descrever um grande leque de “consumidores precoces” — incluindo, por exemplo, as pessoas sofrendo de infertilidade involuntária. São pessoas que militam através da legislatura, das políticas públicas e outros espaços estratégicos onde, estancando o debate sobre possíveis problemas complicadores, exercem pressões para o pronto desenvolvimento e acesso de todos a certa tecnologia. (12) Em quase todos os casos citados, trata-se de vestígios da cena de crime comparados ao perfil de determinado suspeito — processo que prescinde de um banco de perfís de pre-suspeitos tal como aquele criado pela a Lei n.º 12.654. Coimbra Editora ®

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indivíduo. Garantem que, do jeito que a lei está formulada, haverá no banco de dados apenas cifras matemáticas — tal como um “código de barra” no supermercado — que não revelam mais do que a singularidade do individuo. Em suma, dão a impressão de que, a partir do banco de perfis genéticos, entraremos numa nova era de justiça. E louvam repetidamente a Inglaterra, país mais “avançado” nesse assunto, onde o banco de dados supostamente acabou com a impunidade dos criminosos. Encontram-se no Brasil argumentos semelhantes em determinados volumes da Revista de Perícia Forense centrados especificamente nesse tema. Em um artigo o entusiasmo do autor desemboca numa recomendação implícita pela expansão do banco para muito além dos limites estipulados na atual Lei brasileira: “Obviamente, quanto maior a abrangência do banco de perfis genéticos de referência, maior será a eficiência deste banco de dados”. (Buchmuller Lima, 2008: 10) Frente ao fascínio inspirado pela mídia, a eficácia almejada pela justiça e o entusiasmo dos “consumidores precoces”, parece sobrar pouco espaço para dúvidas quanto à acolhida dessa nova tecnologia. A ONG britânica Genewatch tem procurado criar justamente este tipo de espaço onde, em seminários, revistas acadêmicas, sites da internet e outras arenas de discussão, tenciona o debate com recomendações de cautela. Antes mesmo da regulamentação da nova lei, a diretora dessa ONG, Helen Wallace, publicou um artigo em português numa conceituada revista on-line (Wallace, 2012) sobre as práticas e discursos que garantiram a “venda” do banco de dados em diferentes países do mundo. No artigo, a autora descreve o programa eficiente de relações públicas coordenado por Life Technologies e seus assessores em que, por sofisticados sites na internet, realça-se o potencial para usos humanitários de seus produtos (que ajudam a combater o tráfico de crianças, reparar a violência genocida na África, contribuir para a reunificação de famílias separadas por guerras e outros desastres, etc.). Menciona também como essa empresa financia familiares de vítimas de violência em diferentes países para que pressionem por tecnologias mais eficientes no combate ao crime comum. Entretanto, falando especificamente da expansão dos bancos de perfís genéticos nos mais diversos países, Wallace sugere que, além de Governabilidade e mediações

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apresentar uma séria ameaça às liberdades civis, a tecnologia do banco de dados traz promessas de difícil sustentação. Por exemplo, contesta afirmações de que o NDNAD quase eliminou a impunidade de criminosos na Inglaterra, sendo responsável por resolver uma enorme porcentagem dos crimes. Sua ONG calcula que, pelo contrário, apenas cerca de 0.03% das identificações criminais foi fruto de acertos com um indivíduo no banco de perfís genéticos. Ilustrando o caráter questionável dos dados citados incansavelmente por entusiastas dos bancos, Wallace descreve uma cena que testemunhou: Lobistas de Gordon Thomas Honeywell [empresa contratada para advogar os interesses de Life Technologies] fizeram uma apresentação em Brasília em 2010 na qual afirmavam que 3000 estupros cometidos por pessoas estranhas à vítima puderam ser resolvidos por ano no Reino Unido graças à amplitude do banco de dados naquele país. Na verdade, é possível calcular, usando estatísticas oficiais, que de 13.000 estupros por ano no Reino Unido, apenas uns poucos casos (entre 5 e 27, aproximadamente) são solucionados usando a base de dados de DNA (Wallace, 2012). Essa atitude de “ceticismo organizado” encontra eco entre alguns observadores no Brasil. Além de pesquisadores (particularmente da área do direito) colocando perguntas quanto às repercussões dos bancos de perfis para os direitos civis, há analistas que comentam certas incongruência na lei 12.654. Por exemplo, a lei estipula: “As informações genéticas contidas nos bancos de dados de perfis genéticos não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas”. Entretanto, até certos peritos brasileiros reconhecem que “As técnicas de identificação genética permitem burlar com relativa facilidade tais restrições” (Pessoa e Garrido, 2012). Além do mais, a lei cala sobre o destino das amostras biológicas que dão origem ao perfil numérico (“um simples código de barra”) estocado no banco de dados. Levando em consideraçãos artigos do Código Penal — sobre a necessidade de guardar provas para permitir controle posterior às análises (Schiocchet, 2012) —, é difícil imaginar que essas amostras serão destruídas em vez de estocadas em biobancos onde poderão eventualmente ser exploradas para uma diversidade de fins. Coimbra Editora ®

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Durante o trâmite do Projeto de Lei, o Ministério da Justiça, visando dar subsídios ao trabalho dos legisladores, financiou pesquisa sobre os bancos de perfis genéticos que rendundou numa reflexão ponderada de vários pontos controvertidos (idem). Apesar desses esforços, o projeto de lei avançou na sua forma original, quase inalterado até sua aprovação final. Podemos supor que o caso brasileiro não é muito diferente do descrito por Levine et al. (2008) para os Estados Unidos. Neste país, policiais e procuradores desempenharam um papel chave na promoção dos bancos de DNA. Chamadas a solucionar crimes, essas categorias profissionais procuram implementos para tornar seu trabalho mais eficaz e, muitas vezes, dispõem de armas políticas para alcançar seus objetivos. Por outro lado, críticos da expansão dos bancos de perfís genéticos são, em geral, acadêmicos individuais, membros de pequenas ONGs ou jornalistas — pessoas e entidades que não chegam nem perto de possuir os recursos ou a influência política dos órgãos de segurança pública (Levine et al., 2008). Uma relação assimêtrica acaba estancando o debate e produzindo uma imagem sem ambiguidades das virtudes do “avanço” tecnológico. 6. GOVERNANÇA POR E DAS TECNOLOGIAS Não há dúvida de que, com a tecnologia ligada ao banco de dados de perfis genéticos para fins de persecução criminal, estamos lidando com uma “forma global articulada numa situação específica” (Ong e Collier, 2005). Nesse artigo, nos concentramos na escuta de autores e sujeitos críticos em lugares onde o banco de perfis genéticos já foi implantado há tempo, nos alertando para determinadas preocupações “globais” da nova tecnologia. No mundo inteiro, a possibilidade de recorrer a pericias genéticas opera ajustes no sistema judiciário — um redimensionamento de prazos, equipamentos e organização administrativa. Também, na grande maioria de lugares onde os bancos de dados foram implantados, houve uma rápida expansão do leque de indivíduos incluídos. Nenhum país chegou tão longe quanto a Inglaterra (pelo menos, quanto à inclusão de indivíduos de baixa idade), mas boa parte deles já expandiu muito além do alvo original (condenados por crimes sexuais e hediondos) para incluir as pessoas condenadas, e — frequenGovernabilidade e mediações

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temente — meramente suspeitas, de furto e outros crimes contra o patrimônio. A sobrerepresentação de grupos social e economicamente discriminados — minorias étnicas, imigrantes, etc. — também parece ser uma constante nos bancos de perfis genéticos. Finalmente, as empresas que promovem a tecnologia, assim como os movimentos de direitos humanos que criticam a expansão dos bancos também agem em escala global, transportando as narrativas, as propagandas e os debates críticos de um continente para outro. Aqui, apenas arranhamos a superfície de temas que estão sendo aprofundados por outros autores quanto a esse tipo de “forma global” (ver, por exemplo, o volume de Hindmarsh e Prainsack, 2010). Há um consenso de que as tecnologias não são neutras. À medida em que viajam através do globo, carregam com elas “imaginários do bem e do mal” sobre o que (e quem) deve ser promovido para o bem-estar da sociedade, e o que (e quem) deve ser suprimido (Jasanoff, 2010). Junto com inúmeros outros elementos científicos e tecnológicos incluídos nesse processo, o banco de perfis é capaz de provocar um “reposicionamento do humano” (idem) digno da atenção de analistas críticos. Tal como outros fenômenos tecnológicos, o banco de dados se insere dentro dos itinerários de determinadas formas de governança — de vigilância e controle — que perpassam as fronteiras nacionais. Por outro lado, existem as “situações específicas” que provocam ressignificações, produzindo práticas e debates muito diferentes dependendo do local. Processos de “biolegalidade” — isto é, envolvendo ajustes entre novas tecnologias do corpo e as demandas do sistema legal (Lynch e McNally, 2008) — ocorrem em grande medida ao nível nacional, impulsionados por atores em busca de estratégias para aprimorar a governança através das novas tecnologias. Machado e Costa (2012), na sua pesquisa sobre a introdução de novas técnicas forenses em Portugal, demonstram o impacto de mediações “locais” para os variáveis efeitos da genética forense. A partir de entrevistas com membros de diferentes órgãos da polícia portuguesa, sugerem como, além dos problemas previsíveis envolvendo a cadeia de custódia, a coleta de vestígios de DNA na cena dos crimes é submetida a orientações administrativas que “amarram as mãos” de uma parte Coimbra Editora ®

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estratégica da polícia. Ainda mais, em Portugal, os diferentes debates políticos (incluindo marcada influência de militantes de direitos humanos) resultaram numa legislação que torna a coleta de registros refém das sensibilidades de juízes individuais. Ressaltando as limitações muito reais de seu contexto, os entrevistados preveem que, de imediato, o uso forense do DNA não trará as vantagens que o “imaginário forense” projeta. O trabalho de Machado e Costa sublinha a importância de variáveis contextuais para a compreensão das preocupações em torno dos bancos de perfis genéticos, assim como dos efeitos precisos dessa nova tecnologia. As relações de força entre instituições e as atitudes de confiança ou desconfiança públicas em relação a essas instituições constam, entre outros, como fatores de extrema pertinência. Será a tecnologia mais eficaz no Brasil? Críticos colocam a pergunta implícita: quais serão as possibilidades de contestar as “provas científicas” apoiadas agora na “certeza absoluta” do DNA que, dada a tendência “inquisitorial” do sistema jurídico, chegam com a aura da “verdade real”? No sistema jurídico brasileiro, onde o direito dogmático é calcado numa visão idealizada da sociedade, como resistir à tentação de uma visão idealizada da ciência — a “ciência-como-deveria-ser”? A realidade parece, contudo, longe de ideal. Por exemplo, conforme recente levantamento da Secretaria Nacional de Segurança Pública sobre perícia forense, não existe sistema coordenado no país para monitorar a cadeia de custodia (SENASP, 2012). Na maioria das unidades de perícia, os vestígios da cena de crime não são lacrados, não são guardados em lugar seguro e seu percurso não é rastreável por procedimentos administrativos rigorosos. Nessas unidades falta pessoal, equipamento e organização. Em blogs de peritos, encontramos queixas até sobre a falta de papel para imprimir laudos. Conforme os dados, os laboratórios de DNA são apenas levemente melhor organizados, mas a que custo? Sem se referir diretamente à tecnologia de DNA, um perito federal, escrevendo numa revista de grande difusão, fala do perigo de “elitização” da perícia forense — com muitos recursos indo para uma parte pequena dos casos “com maior repercussão”… (Rosa, 2013). E mesmo supondo uma tecnologia realizada com todo rigor, dado o que muitos consideram o caráter discriminatório e elitista da justiça Governabilidade e mediações

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brasileira, quais serão os efeitos para a “biocidadania” das pessoas cadastradas? É significativo que, em 2011, a primeira doação voluntária de material genético para um banco estadual de perfis genéticos foi realizada por um condenado que ganhou, em troca, o abrandamento de sua pena (Schiocchet, 2012: 36). É também interessante que, em março de 2013, logo depois da regulamentação da lei 12.654, uma das primeiras notícias na internet sobre o banco nacional de perfis genéticos anuncia com aparente orgulho que certo estado já está começando a coleta de dados entre “presos e acusados de crimes violentos e hediondos” (Ribeiro 2013, grifos meus). Ao que tudo indica, nem as poucas salvaguardas inseridas na lei conseguirão controlar o entusiasmo de operadores do sistema judiciário. É evidente que, para ter consequências na arena pública, a discussão deve ir além de posições maniqueístas postas em termos de simplesmente aceitar ou rejeitar o uso da nova tecnologia. Para tanto, observadores acentuam a urgência de debate público (Hindmarsh e Prainsack, 2010). O “envolvimento cidadão” no Brasil, contudo, fica sob constante pressão de uma taxa de homicídio considerada dez vezes maior que a da maioria dos países ocidentais. Cria-se um clima em que a preocupação com direitos civis e direitos humanos é vista como “assunto de bandido”, isto é, algo que favorece a criminalidade. Nesse contexto, não é surpreendente que os militantes dos direitos humanos dirijam suas energias para causas mais consensuais (discriminação racial, violência contra a mulher). Dado o otimismo que permeia a atual “figuração” da genética forense, e a fragilidade de frentes críticas que pudessem tencionar o debate, os analistas de STS podem parecer por vezes exagerados nas suas críticas. Mas, a seriedade da discussão não deve ser subestimada. Estamos lidando com os desafios de governança — por e das tecnologias. E, para uma trajetória futura bem ponderada, ambas as dimensões devem ser enfrentadas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Adorno, Sergio (1995), “Discriminação racial e justiça criminal”, Novos Estudos CEBRAP, 43, 45-63. Bieber, Frederick et al. (2006), “Finding criminals through DNA of their relatives”, Science, 312: 1315-1316. Coimbra Editora ®

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PARTE III INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

AS FUNÇÕES DO DNA NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL — ESTUDO DE CINCO CASOS EM PORTUGAL

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FILIPE SANTOS 1. INTRODUÇÃO As tecnologias de identificação por perfis de DNA têm vindo a afirmar-se como o “padrão-ouro” na identificação individual (Lynch, 2003). Com o desenvolvimento dos procedimentos de recolha de vestígios em cena de crime, aliado a técnicas de análise mais sensíveis e robustas, as tecnologias de DNA têm vindo a assumir crescente importância nos sistemas de justiça criminal por todo o mundo, introduzindo um novo paradigma de identificação forense (Murphy, 2007; Saks e Koehler, 2005). Paralelamente têm vindo a permear o imaginário popular através de séries televisivas de ficção científica forense como CSI (Crime Scene Investigation), Dexter, NCIS, entre muitas outras. Neste género de ficção, as tecnologias de DNA são frequentemente retratadas como poderosas ferramentas de investigação criminal, capazes de obter

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Este texto foi produzido no âmbito de uma bolsa de doutoramento concedida pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BD/72253/2010), e do projeto de investigação “Base de dados de perfis de ADN com propósitos forenses em Portugal: Questões atuais de âmbito ético, prático e político”, com a referência FCOMP—01—0124—FEDER—009231 (2010-2013), coordenado por Helena Machado e desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Investigação criminal

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resultados decisivos, categóricos e objetivos, de modo fácil e rápido, não traduzindo as limitações e contingências que enfrentam no mundo real do inquérito e processo criminal (Machado e Santos, 2011). A introdução das tecnologias de DNA no sistema de justiça criminal em Portugal suscita duas questões que se podem enquadrar no âmbito dos estudos sociais da ciência: de que modo, e para que fins, as tecnologias de DNA são utilizadas na prossecução dos objetivos do inquérito criminal? Como é que a sua utilização é percecionada e representada nos meios de comunicação social? Assim, o objetivo principal deste capítulo incide sobre o papel desempenhado pelas tecnologias de DNA em casos criminais amplamente mediatizados que ocorreram em Portugal. Para este efeito, será desenvolvida uma caracterização, ainda que exploratória, dos diferentes usos do DNA no âmbito da investigação criminal. Simultaneamente, afigurou-se relevante proceder a uma breve análise das representações acerca das tecnologias de DNA que circularam na imprensa escrita no âmbito da cobertura mediática de cada caso. O intervalo temporal para a seleção dos casos foi estabelecido entre 1995, altura em que se iniciou o uso de prova de DNA em Portugal e 2010. Foram selecionados cinco casos que ocorreram entre 1997 e 2007 e que ficaram publicamente conhecidos como Meia Culpa (1997), Tó Jó (1999), Joana (2004), Serial-Killer de Santa Comba Dão (2006) e Madeleine McCann (2007). Por um lado, trata-se de casos onde se procedeu à recolha de vestígios biológicos em cadáver ou em cena de crime e nos quais, ao longo de cada inquérito criminal, foram usadas tecnologias de DNA para produzir elementos que pudessem ter significado para a resolução de cada caso. Por outro lado, todos os casos selecionados foram alvo de ampla cobertura mediática, sendo que o papel das ciências forenses em geral, e das tecnologias de DNA em particular, tiveram destaque enquanto elemento auxiliar da investigação criminal. A opção pela seleção de casos que foram mediatizados tem que ver com o facto de serem eventos com potencial para perdurarem na memória coletiva e, assim, constituírem referências nas representações públicas acerca do crime e da justiça, mas também no modo como os cidadãos Coimbra Editora ®

Parte III

As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos…

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compreendem e aceitam a utilização das tecnologias de DNA no combate ao crime. Porém, nem todos os casos criminais são alvo de idêntica mediatização. O fenómeno da criminalidade quotidiana tende a uma cobertura jornalística localizada e pode dizer-se que relativamente poucos casos originam vários artigos noticiosos ao longo de mais de uma semana. Surgem, episodicamente, casos criminais cujas características permitem ultrapassar a escala noticiosa local ou mesmo nacional e logram manter-se sob o foco mediático durante largos períodos de tempo. Ao procurar compreender quais são estas características, Yvonne Jewkes (2004) elencou uma lista do que designou como os “valores noticiosos para o novo milénio” e que configuram, isoladamente ou em constelação, o potencial de noticiabilidade de um crime. Por exemplo, crimes que envolvam temas como sexo, violência, celebridades e pessoas de elevado estatuto, ou crianças, tendem a ter maior destaque nos órgãos de comunicação social e durante mais tempo. Assim, dos casos criminais que constituem a rotina do jornalismo judiciário, apenas alguns cujas características se enquadram nos valores de noticiabilidade dominantes são alvo de cobertura extensa e detalhada, configurando o que alguns autores designam como julgamento mediático ou media trial (Fox et al., 2007; Surette 1998). A mediatização destes casos proporciona às audiências algumas pistas para apreender as complexidades do sistema de justiça criminal. Todavia, a informação transmitida pelos meios de comunicação social tende a ser prismada por um imaginário mítico-simbólico frequentemente inserido em enquadramentos e temáticas semelhantes a formatos ficcionais e de entretenimento (Jewkes, 2004; Machado e Santos, 2008). Convém ressalvar que o público não é um mero recetor passivo das mensagens mediáticas, podendo internalizar e atribuir significados em função das suas próprias circunstâncias e experiências (Sacco, 1995). Na secção seguinte começaremos por sintetizar alguns dados dos casos criminais selecionados, descrevendo de modo breve os seus contornos. Depois, a secção principal deste texto, refletirá sobre os usos das análises de DNA que foram efetuadas no seu contexto, procurando dar forma a uma tipologia das funções que desempenharam. Por fim, serão Investigação criminal

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abordadas as representações mediáticas acerca das tecnologias de DNA veiculadas na cobertura dos casos criminais selecionados. 2. SELEÇÃO E DESCRIÇÃO DOS CASOS CRIMINAIS O critério de seleção incidiu sobre casos criminais amplamente mediatizados, isto é, que tenham tido cobertura em órgãos de informação de âmbito nacional e que tenham sido acompanhados até ao seu desfecho judicial. Foram necessariamente selecionados casos em que tenha sido mencionado o uso de prova de DNA. Tendo sido estabelecido um intervalo temporal para a pesquisa entre 1995, altura em que se iniciou o uso de prova de DNA em Portugal e 2010, foram selecionados cinco casos que ocorreram entre 1997 e 2007 (Tabela 1). Tabela 1 Descrição dos casos selecionados

Designações dos casos

“Meia Culpa”

“Tó Jó”

“Joana”

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Data do(s) crime(s) — Sentença judicial (desfecho)

16 de abril de 1997 a 1 de junho de 1998

12 de agosto de 1999 a 17 de abril de 2001 12 de setembro de 2004 a 11 de novembro de 2005

Local

Arguido(s)

Tipo de crime

Álvaro Pinto Jaime Curval Incêndio [1]; Octávio Alves Furto [1]; Homicídio César Fonseca Amarante qualificado [13]; Aloísio Oliveira Homicídio qualificado Ricardo Rocha na forma tentada [22] José Queirós Artur Santos António Jorge Machado (Tó Jó) Homicídio Ílhavo Nuno Lima qualificado [2] Sara Machado Portimão

João Cipriano Leonor Cipriano

Homicídio qualificado [1]; Ocultação de cadáver [1] Parte III

As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos…

Designações dos casos

“Serial Killer de Santa Comba Dão”

Data do(s) crime(s) — Sentença judicial (desfecho) 24 de maio de 2005 (1.º desaparecimento) a 31 de julho de 2007

3 de maio de 2007 a 21 de “Madeleine julho de 2008 McCann” (arquivamento do inquérito)

Local

Santa Comba Dão

Lagos

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Tipo de crime

Homicídio simples [1]; Homicídio qualificado [2]; Ocultação de António Costa cadáver [2]; Profanação (Tói) de cadáver [1]; Tentativa de coação sexual [2]; Denúncia caluniosa [1] Hipóteses de investigação: Rapto para exploração sexual ou outros (sem Gerald McCann homicídio); Rapto Kate Healy seguido de homicídio Robert Murat com ou sem ocultação de cadáver; Morte acidental com ocultação de cadáver

Nota: Entre parêntesis retos encontra-se discriminado o número de crimes que resultaram em condenação, conforme a sentença judicial.

Após a seleção dos casos procedeu-se à recolha de artigos relativos à cobertura noticiosa em jornais diários portugueses com distribuição nacional e em atividade durante o intervalo de seleção dos casos (Correio da Manhã, Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Público), nas edições impressas e nas respetivas versões eletrónicas disponíveis na Internet. Procurou-se fazer uma recolha tão abrangente quanto possível, desde a publicação do primeiro artigo sobre cada caso, até à sua sentença ou desfecho judicial. A etapa seguinte conduziu à recolha de informação junto dos processos judiciais, tendo sido enviados requerimentos aos vários tribunais onde se encontravam os processos, solicitando autorização para a sua consulta. Foi efetuada uma revisão de todos os conjuntos de volumes de cada processo, recolhendo a documentação relevante para Investigação criminal

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a compreensão do desenrolar do inquérito e julgamento e, em particular, toda a documentação referente a exames e perícias forenses. Para além do resumo da informação (Tabela 1), importará agora fornecer alguns detalhes contextuais acerca de cada caso, tomando como referência os dados apurados junto dos processos judiciais. O caso “Meia Culpa” recebe a sua designação a partir do nome da “boîte” que funcionava como bar de alterne em Amarante. Na madrugada do dia 16 de abril de 1997 três homens usando gorros que cobriam completamente o rosto com exceção dos olhos e da boca (balaclavas ou passa-montanhas) entraram no bar e, ameaçando os presentes com armas de fogo, despejaram um pequeno bidão de gasolina, incendiando o local e escapando de seguida. O fogo, o pânico, e o facto de a saída de emergência se encontrar bloqueada, levaram à morte de 12 pessoas no local e uma outra após hospitalização, tendo causado ferimentos graves em 9 pessoas. O caso “Tó Jó” (diminutivo de António Jorge) diz respeito a um duplo homicídio ocorrido em Ílhavo a 12 de agosto de 1999. Nesta data, que coincidia com o último eclipse solar total do milénio, António Jorge, então com 23 anos, terá esfaqueado o seu pai no andar superior de sua casa. A sua mãe, que entretanto terá tentado fugir para o exterior, foi também esfaqueada. Foram detetadas tentativas de limpeza dos vestígios, incêndio dos cadáveres e simulação de roubo. Em menos de uma semana, a 16 de agosto de 1999, o António Jorge era constituído arguido, tendo confessado ser o único autor dos crimes. Contudo, vários elementos suscitavam suspeitas de que teria havido envolvimento de terceiros, nomeadamente os elementos da sua banda de black metal (Agonizing Terror), da qual fazia parte a sua esposa Sara, assim como dois amigos que faziam parte de uma outra banda do mesmo género (Summum Malum). O caso “Joana” refere-se ao desaparecimento de uma criança de 8 anos de idade na aldeia da Figueira, perto de Portimão, a 12 de setembro de 2004. A versão inicial foi de que a sua mãe, Leonor Cipriano a teria mandado comprar um pacote de leite e duas latas de atum a um estabelecimento próximo e que a Joana não teria regressado a casa. Após vários dias de buscas efetuadas pela Guarda Nacional Republicana Coimbra Editora ®

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(GNR), e por se concluir que o desaparecimento não teria sido voluntário, o caso passa a ser investigado pela Polícia Judiciária (PJ). Pouco tempo depois, a hipótese de rapto ou sequestro de Joana é colocada de parte dando lugar a suspeitas sobre a sua mãe e um tio que na altura se encontrava a viver em sua casa. Após vários interrogatórios, estes são constituídos arguidos com base em fortes indícios de que teriam agredido a Joana, provocando-lhe a morte e ocultado o seu cadáver. O caso que ficou conhecido como “Serial Killer de Santa Comba Dão” envolve três homicídios perpetrados por um mesmo indivíduo, na altura cabo da GNR aposentado. Os crimes ocorreram com intervalos de 6 meses (24/05/05, 14/11/2005 e 08/05/06), sendo estas as datas em que foram dadas como desaparecidas três raparigas de uma localidade próxima de Santa Comba Dão chamada Cabecinha de Rei. O principal suspeito era bem conhecido e estimado na comunidade, tendo colaborado no programa Escola Segura. No entanto, após o desaparecimento da terceira rapariga (Joana), a reconstituição do seu trajeto conduziu a investigação a um caminho de terra próximo da residência de António Costa (ou Tói, como era conhecido na localidade). Aí foram encontrados os seus óculos e, posteriormente, outros vestígios num edifício de arrecadações nas proximidades. A conjugação de elementos coincidentes levou os investigadores a colocar a hipótese de os três desaparecimentos terem sido perpetrados pelo mesmo indivíduo e, na sequência de buscas à residência e ao automóvel de António Costa, foram encontrados vestígios cuja análise veio a revelar pertencerem às três vítimas. O desaparecimento de Madeleine McCann terá sido um dos casos mais mediatizados de sempre à escala global. Em maio de 2007, um casal de cidadãos britânicos encontrava-se de férias num aldeamento turístico na Praia da Luz, no Algarve, com os seus três filhos (Madeleine de 3 anos, e os gémeos Sean e Amelie de 2 anos). Por volta das 22 horas do dia 3 de maio, a mãe, Kate, alerta para o desaparecimento da sua filha Madeleine do quarto onde dormia com os seus irmãos, enquanto os pais jantavam com um grupo de amigos num restaurante do aldeamento. Após o uso de cães especialmente treinados para detetar odores de sangue e cadáver, foi colocada a hipótese de que Madeleine teria morrido e que o seu cadáver fora oculto. O inquérito viria a ser Investigação criminal

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arquivado a 21 de julho de 2008 por falta de indícios de que os então arguidos (Gerald McCann, Kate Healy (2) e Robert Murat (3)) tivessem cometido qualquer crime, sendo que Madeleine, tal como Joana, permanece desaparecida. O propósito desta secção foi o de situar o leitor relativamente aos materiais analisados, fornecendo apenas algumas coordenadas essenciais na caraterização de cada caso. Na secção seguinte serão abordados os usos das análises de DNA pelas autoridades de investigação criminal em Portugal, tomando por referência os autos dos respetivos processos judiciais. 3. OS USOS DAS ANÁLISES DE DNA Ao longo de um inquérito criminal os agentes de investigação elaboram vários relatórios onde dão conta dos “factos” apurados e das hipóteses e conjeturas tecidas em torno destes, tendendo a tomar a forma de uma narrativa criminal (4). Uma cena de crime constitui um objeto frágil e precário, cujos limites são frequentemente desconhecidos (Braz, 2010) (ver capítulo de Susana Costa neste volume). Daí que a abordagem inicial a uma cena de crime seja fundamental para a sua resolução, no sentido em que marca o início de um processo de discriminação dos vestígios, das pessoas e da informação relevante, em cenários muitas vezes caóticos, onde as primeiras interpretações e significados são passíveis de influenciar o rumo da investigação. Williams e Johnson (2007: 371)

(2) Kate não acrescentou o nome McCann ao seu nome de solteira e é assim identificada nos autos. Contudo, neste texto, e nos artigos noticiosos citados o casal é referido como os “McCann”. (3) Robert Murat foi constituído arguido a 14 de maio de 2007 na sequência da denúncia, por parte de uma jornalista, de alegados comportamentos suspeitos. Até então, Robert Murat vinha prestando auxílio à investigação como tradutor-intérprete em depoimentos de cidadãos britânicos. (4) O uso da expressão “narrativa criminal” é empregue com o propósito de transmitir o carácter provisório e frequentemente indutivo inerente ao desenvolvimento da investigação criminal e da interpretação dos indícios, sendo que a abordagem de qualquer crime tende a partir de guiões cultural e profissionalmente estabelecidos (Kruse, 2012).

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falam de um “impulso central” que leva os investigadores criminais a procurar “reconstruir” a sequência de eventos de cada crime, recorrendo para tal à interpretação de sinais de atividade e movimento na cena de crime, a aplicação de reportórios de conhecimento acerca de comportamentos criminais tipificados, bem como conhecimento geral acerca de cada tipo de crime. Todavia, as tentativas de reconstrução são exercícios necessariamente imprecisos, tendo o intuito de reduzir a complexidade inerente a cada cena de crime e suportando-se nos elementos indiciários provisórios (interpretação de vestígios materiais e declarações de testemunhas) que vão surgindo e complementando a narrativa criminal. De salientar que, de um modo geral, a situação e a dimensão da cena de crime são definidas pela interpretação do(s) primeiro(s) agente(s) a comparecer na cena de crime, desde logo estabelecendo se houve crime e a quem compete a investigação. A definição da situação irá permitir o desenvolvimento de um contexto, à luz do qual se definirão circunstâncias, atores e vestígios que poderão estar associados ao crime. Irei argumentar acerca do modo como, nos casos analisados, os usos da prova de DNA por parte dos agentes que conduzem as investigações constituem recurso a um conhecimento especializado do qual se espera obter informações que possam contribuir para, por um lado, reduzir a complexidade de cada caso e, por outro lado, para consubstanciar as narrativas criminais. Assim, da análise dos volumes processuais de cada caso foi possível construir uma tipologia composta por quatro “funções” que pretendem descrever os usos das análises de DNA no contexto dos inquéritos e que designei por: função exploratória; função assertiva; função incriminatória; e função exculpatória. Estes usos ou funções resultam em grande medida do estudo dos chamados quesitos, isto é, sempre que qualquer vestígio é remetido para o laboratório para análise, o agente tende a indicar o tipo de análises que deverão ser efetuadas e que informação se pretende obter (5). Todavia, a caracterização das fun-

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Principalmente nos casos mais antigos, verifica-se que os quesitos são formulados de modo relativamente vago. Por exemplo, após discriminar os vestígios e os locais onde foram recolhidos, o agente que requer os exames solicita: “… a efectivação Investigação criminal

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ções decorre também dos efeitos e consequências que os resultados das análises produzem no desenrolar das investigações. Por via das interações entre a ciência e a justiça, entre as cenas de crime e os laboratórios, e entre os atores judiciários e os peritos forenses, assiste-se à co-construção social da narrativa criminal onde a prova de DNA desempenha um importante papel. Segue-se uma exposição das várias “funções” encontradas, sendo estas exemplificadas através de referências e descrições de detalhes relevantes dos casos analisados. 3.1. A função exploratória A função exploratória das análises de DNA é central na condução do inquérito criminal. Após uma primeira abordagem, as equipas de cena de crime executam várias tarefas no local (ou locais) onde se suspeita que ocorreu um crime no sentido de fazer a documentação fotográfica e verbal do local do crime, sendo usados vários instrumentos e técnicas para revelar e caracterizar os vestígios (6). Por função exploratória pretendo traduzir as questões que se colocam a partir do momento em que são detetados vestígios, nomeadamente vestígios biológicos que possam conter células nucleares, tais como sangue, saliva, esperma, raízes capilares, suor, urina, etc. Portanto, esta função é principalmente expressa nos quesitos anexos aos vestígios enviados aos laboratórios e que procuram atribuir significados provisórios aos vestígios recolhidos, ao mesmo tempo que podem servir para corroborar declarações de testemunhas e suspeitos. Designadamente, a função exploratória das análises de DNA pretende averiguar: que indivíduos estiveram presentes?; há vestígios que não se enquadrem na primeira abordagem ao local; qual a natureza dos

dos competentes exames com vista a identificar, DNA, de eventuais suspeitos” (sic) (fls. 40 do processo 704/99.9JAAVR). (6) Nos casos analisados, após localização visual de manchas suspeitas na cena de crime, são conduzidos testes para determinar a sua natureza. O mais frequente é o chamado teste de Kastle-Meyer que consiste no uso de uma solução de fenolftaleína, a qual é incolor em meio básico, mas que sofre oxidação por peroxidase na presença de hemoglobina, tornando-se cor-de-rosa (Williams e Johnson, 2004: 7). Coimbra Editora ®

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vestígios?; poderão os vestígios constituir indícios de ilícito criminal? os vestígios encontrados corroboram os depoimentos? Seguem-se alguns exemplos dos usos desta função. O caso Joana começou por ser encarado como um desaparecimento de uma criança. Contudo, quando se colocou a hipótese de o desaparecimento não ter sido voluntário, a competência da investigação passou para a Polícia Judiciária, tendo efetuado a primeira diligência de busca e apreensão à casa onde vivia a Joana a 17 de setembro de 2004, cinco dias após o desaparecimento, nada tendo sido encontrado com relevância para a investigação. Entretanto, foram ouvidos familiares e vizinhos com o intuito de compreender os eventos e movimentações no dia do desaparecimento, as relações pessoais e de reconstituir os passos de Joana na altura do seu desaparecimento. Quando Leonor é ouvida como testemunha na PJ no dia 21 de setembro de 2004, já recaíam sobre si suspeitas de envolvimento no desaparecimento de Joana. Viria a constar em relatório da PJ que as entrevistas que dera a vários órgãos de comunicação social levantaram suspeitas, na medida em que vestia de luto e falava da filha no passado (fls. 2196 do processo 330/04.2JAPTM). No mesmo dia, Leonor e Carlos Alberto Silva (que partilhava um quarto com a Joana e que foi apontado por Leonor como a última pessoa a ver a Joana após uma discussão com esta) foram constituídos arguidos e, prescindindo de defensor, foram novamente ouvidos nessa condição, tendo assinado uma “declaração” permitindo a recolha de material biológico. No dia seguinte (22 de setembro) foram efetuadas duas diligências de busca: uma de manhã — por dois inspetores —, nada tendo sido encontrado; e outra ao fim da tarde — esta realizada por inspetores acompanhados de técnicos-especialistas — a qual resultou na recolha de vestígios biológicos, nomeadamente uma escova de dentes, uma escova de cabelo e uma fita, objetos estes supostamente pertencentes à Joana. O auto indica também que foram encontrados vestígios hemáticos junto à porta de entrada no interior e no exterior, junto a um interruptor, nuns ténis do Carlos Silva, numa esfregona e num balde. O desenvolvimento deste caso surge como um exemplo adequado da função exploratória dos usos do DNA, na medida em que, ao longo Investigação criminal

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da investigação foram requisitadas várias análises de DNA para determinar se os vestígios podiam constituir indício de um crime violento dentro da habitação, nomeadamente vestígios de sangue para os quais não havia explicação plausível. Para tal foi necessário identificar os dadores dos vários vestígios biológicos recolhidos, confrontando os resultados com os depoimentos dos arguidos e das testemunhas. Poder-se-ia dizer que nas primeiras inspeções à casa nada foi encontrado de relevante porque o local não se afigurava como cena de crime e não se inseria na narrativa criminal que se desenrolava em torno de um alegado sequestro. Deduz-se, então, que só a partir do momento em que os órgãos de polícia criminal colocam a hipótese de ter havido um crime perpetrado após a Joana ter chegado a sua casa com as compras foi possível fazer o uso exploratório das análises de DNA a partir dos vestígios que, entretanto, foram visualizados na suposta cena de crime. Por outras palavras, não havia ainda uma contextualização de eventos, pessoas e circunstâncias que pudessem enquadrar eventuais interpretações e significados dos vestígios biológicos que foram recolhidos na sequência da alteração da narrativa criminal. Assim, a estratégia adotada foi a de procurar materializar os indícios (principalmente a descoberta dos vestígios hemáticos) por forma a suportar a nova direção da narrativa e resolver as contradições e diferentes versões dos depoimentos dos arguidos. Também no caso do desaparecimento de Madeleine McCann foi predominante a função exploratória. Com efeito, dos casos analisados, este foi o que recorreu à colheita de amostras biológicas de mais indivíduos, mais diligências de busca e apreensão e exames periciais. Procurava-se, assim, averiguar a presença de algum elemento estranho ao contexto. Contudo, e o facto é destacado com frequência no processo, a cena de crime teria sido comprometida pela presença de muitas pessoas no apartamento alugado pelos McCann. Mais adiante, e na sequência da utilização de uma equipa cinotécnica especializada na deteção de odores de vestígios hemáticos e cadavéricos em julho de 2007, foram recolhidos vestígios no carro alugado pelo casal McCann após o desaparecimento da sua filha e no apartamento onde passavam férias, especulando-se que o corpo da criança pudesse ter sido transportado após a sua morte no apartamento. Coimbra Editora ®

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3.2. A função assertiva A função assertiva diz respeito do uso das análises de DNA para obter confirmação laboratorial de elementos que de outra forma haviam já sido dados como assentes. Por exemplo, a confirmação da identidade do dador de um vestígio recolhido num objeto pertencente a suspeito que havia já confessado o crime e a propriedade do objeto. A lógica desta função assenta na credibilização por via da cientifização da narrativa criminal. Esta função pode ser ilustrada com o exemplo do caso Meia Culpa. Na sequência da notícia do crime, e após a intervenção dos bombeiros, foi efetuada a inspeção ao local do crime onde ficou documentada a destruição causada pelo incêndio da boîte “Meia Culpa”. No próprio dia 16 de abril de 1997, e na sequência das diligências que incluíram o seguimento do percurso de fuga dos perpetradores, há notícia de que teriam sido encontrados dois gorros abandonados na berma da estrada nacional que liga a Lixa a Felgueiras, bem como um Rover 213SE com os vidros abertos e com sinais de ter sido feita uma ligação direta na ignição. A viatura tinha sido dada como furtada na noite de 14 para 15 de Abril junto da PSP da Maia. No dia 17 de abril é descoberto um terceiro gorro por um cidadão que o entrega à GNR dentro de um saco de plástico. Os gorros (ou passa-montanhas) são remetidos para o Laboratório de Polícia Científica em Lisboa, solicitando “busca de cabelos e eventual estudo do DNA, para possível comparação com suspeitos” (fls. 7 do processo 102/97). O relatório de exame aos cabelos que foi possível recolher nos gorros é datado de uma semana antes da conclusão do inquérito, quando os suspeitos já se encontravam suficientemente indiciados pelos vários crimes. Após comparação com os perfis elaborados a partir de amostras de sangue dos 3 suspeitos de perpetrar o incêndio e com amostras de cabelos de indivíduos que poderão eventualmente ter contaminado os vestígios, apenas um dos gorros continha um vestígio de origem de origem humana (um cabelo) com “identidade de polimorfismos para o conjunto dos loci estudados” e o perfil de um dos arguidos (fls. 1858 e ss. do processo 102/97). Investigação criminal

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Segundo um relatório da GNR de Vila do Conde, a chave para a resolução deste caso terá sido a mãe de um dos indivíduos (Octávio) que furtou o veículo que viria a ser usado pelos perpetradores (Aloísio, César e Ricardo). De acordo com o depoimento desta, notou um comportamento estranho no seu filho após este ter tomado conhecimento dos eventos em Amarante, tendo partilhado as suas suspeitas de envolvimento do filho com uma pessoa conhecida, a qual comunicou anonimamente à GNR de Vila do Conde. A mãe do Octávio prestou depoimento no dia 25 de abril de 1997 e, alertada a PJ no próprio dia, e em colaboração com o comandante do posto da GNR de Vila do Conde, foi detido o Octávio e o seu colaborador (Jaime) no furto do automóvel. Foi também identificado e detido o intermediário (Artur Jorge), levando à detenção dos perpetradores do incêndio e do autor moral do crime — José Queirós (o proprietário de um estabelecimento similar ao Meia Culpa na mesma localidade, chamado “Diamante Negro) —, no dia 26 de abril, pouco mais de uma semana após o crime. Resulta daqui que o uso das análises de DNA desempenhou uma função assertiva no sentido de fazer a ligação entre um objeto associado ao crime e um dos suspeitos. Coincidentemente, o único indivíduo identificado nas análises de DNA (Ricardo) foi também o único dos três perpetradores que, em contestação ao despacho de acusação, declarou arrependimento, lamentando as consequências dos seus atos. O caso Tó Jó, cujo desenvolvimento será abordado mais adiante, também poderia exemplificar esta função na medida em que, tendo sido António Jorge o autor confesso dos homicídios, as análises de DNA que identificaram o seu perfil com os vestígios hemáticos recolhidos na cena de crime e nas unhas das vítimas vieram apenas confirmar e complementar os fatos estabelecidos. 3.3. A função incriminatória Aquilo que aqui designo por função incriminatória pretende descrever o modo como as análises de DNA podem servir para deduzir associações entre o suspeito e a vítima. Se na função exploratória se pretende saber qual a natureza dos vestígios e se existe uma explicação Coimbra Editora ®

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lícita e verosímil para a presença dos vestígios nos locais e objetos onde foram recolhidos, na função incriminatória foi já possível determinar que a presença dos vestígios só pode ser enquadrada em circunstâncias de ilicitude. Neste sentido, as análises de DNA podem ser usadas para obter uma confissão de um suspeito. O caso que ficou conhecido como “Serial Killer de Santa Comba Dão” afigura-se um bom exemplo do modo como as tecnologias de DNA podem ser usadas com eficácia e proficiência na fase de inquérito, auxiliando a condução da investigação ao gerar informação determinante para a resolução de um caso, naquilo que pode ser designado como forensic intelligence (Ribaux et al., 2006) — entendendo-se intelligence como os elementos úteis e significativos para uma investigação que emergem do processamento e análise dos dados de um caso. Conforme foi descrito anteriormente, a circunstância de os crimes terem ocorrido num meio relativamente pequeno, onde todos se conhecem e o principal suspeito ser estimado na comunidade, terá levado a que os responsáveis da investigação tenham tido o maior cuidado em não avançar com uma detenção até que tivessem reunido indícios suficientes. Quando, a 8 de maio de 2006, uma jovem de 17 anos (Joana) residente em Cabecinha de Rei, Santa Comba Dão, é dada como desaparecida, a reconstituição do percurso que teria tomado desde a sua escola casa conduz os inspetores a um caminho de terra batida, procurando averiguar se os habitantes da zona teriam visto a jovem naquele dia, sabendo que não teria chegado a entrar em sua casa. Verificaram também que as três jovens desaparecidas habitavam na mesma zona, tendo por hábito percorrer o mesmo trajeto. Entretanto, é assinalado nos autos um indivíduo (“Nelo”) cujo perfil e comportamentos são vistos como comprometedores (preferência por teenagers, frequência de certos locais e ligações com a primeira vítima — Isabel), mas que não possuía relações evidentes com as restantes vítimas (Mariana e Joana). Contudo, o Ministério Público assume existirem indícios de que o “Nelo” seria suspeito nos três casos. Nos dias seguintes (17/18 maio de 2006), foram efetuadas novas buscas no terreno, tendo sido encontradas fogueiras com vestígios de roupa e calçado. Foi encontrado um par de óculos que foram associados Investigação criminal

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aos usados pela Joana e uma pulseira de missangas. A partir daí, a inspeção do local permitiu encontrar vários vestígios (cabelos) que foram fotografados e recolhidos pelos elementos do Laboratório de Polícia Científica no local para posterior identificação e comparação. A 9 de junho, os inspetores regressam a Cabecinha de Rei para tentar uma abordagem “menos formal” no contacto com os habitantes, apurando-se várias declarações relativamente ao comportamento “suspeito” de António Costa — porque teria insistido em explicações junto de várias pessoas para os seus ferimentos e eventuais vestígios biológicos seus que pudessem ser encontrados; e porque, residindo no local onde foram encontrados os óculos de Joana e por onde as três raparigas habitualmente passavam, não se afigurava possível que algo tivesse sucedido sem que aquele o soubesse. A 22 de junho é conduzida uma diligência de busca para apreensão no carro e na habitação de António Costa, tendo sido apreendidos vários objetos que pudessem estar relacionados com os crimes (sacos de ração, fios de cobre, telemóveis) bem como vários vestígios biológicos. No mesmo dia, na forma de um contacto pessoal com a PJ, o INML informa que os cabelos encontrados perto do caminho de terra batida onde foram encontrados os óculos da Joana se identificam com o perfil genético da Mariana. Na sequência da busca, o António Costa foi constituído arguido, tendo sido interrogado nessa condição, prescindindo de defensor. Nesse interrogatório, António Costa confessa que manteve relações sexuais com a primeira vítima (Isabel) no seu carro e explica os vestígios de sangue com ferimentos seus numa ocasião em que esteve a cortar lenha ou por ter transportado carne adquirida num supermercado. Mais, autorizou a colheita de material biológico e adiantou em forma de explicação que tem por hábito deixar o carro estacionado com as chaves na ignição, por isso, a existir sangue que não seja seu deverá ter sido lá colocado por pessoas que o queiram incriminar. Por ter sido soldado da GNR, o arguido possuía algumas noções de investigação criminal e da importância dos vestígios, possivelmente enquadrando-se naquilo que Beauregard e Bouchard (2010) designaram por forensic awareness, isto é, um conjunto de conhecimentos e estratégias que operam no sentido de evitar o abandono de vesCoimbra Editora ®

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tígios. Tal pode inferir-se do modo como os corpos das vítimas foram ocultos (as duas últimas vítimas foram depositadas em albufeiras, e não no mar como a primeira, em conjunto com objetos pesados para evitar o retorno à superfície), e das tentativas de consumir pelo fogo os objetos pessoais das vítimas e de providenciar justificações legítimas para os vestígios. Contudo, no mesmo dia, e após ter sido novamente questionado acerca dos vestígios hemáticos na bagageira do seu carro, António Costa admite ter agredido Isabel no seu carro. Julgando-a morta, e tomado pelo pânico, procurou ocultar o cadáver, atirando-o ao mar na Figueira da Foz. Confessa também as circunstâncias em que matou e os locais onde ocultou os cadáveres da Mariana e da Joana, o que viria a ser confirmado em auto de reconstituição e no interrogatório judicial de arguido. A função incriminatória terá sido empregue também no caso Madeleine McCann, embora com resultados distintos. Durante o interrogatório a Kate McCann, e após ter sido constituída arguida a 7 de setembro de 2007, esta foi confrontada com um grande número de questões face às quais manteve o seu direito, enquanto arguida, de não responder. Algumas dessas questões incidiam sobre os vestígios biológicos recolhidos no carro e no apartamento, sendo explicitamente dito que teria sido recolhido o “ADN da Madeleine” (fls. 2560 do processo 201/07.0GALGS). No entanto, num email referente aos vestígios enviados para o Forensic Science Service (7) datado de 3 de setembro (fls. 2617 e ss do processo 201/07.0GALGS) é dito que os resultados das análises de DNA são demasiado complexos para uma interpretação significativa. Para além de não ter sido possível identificar que tipo de fluido originou os vestígios, os perfis resultantes eram incompletos. No vestígio encontrado na bagageira do carro, o perito indica que apesar de os componentes do perfil de Madeleine corresponderem a parte do perfil do vestígio, há uma (7)

O Forensic Science Service era, à data dos acontecimentos, o laboratório do Reino Unido que providenciava serviços forenses às forças policiais de Inglaterra e do País de Gales. Em 2010, o governo britânico anunciou que, devido à sua situação financeira deficitária, o Forensic Science Service deveria ser progressivamente encerrado (Rincon, 2013). Investigação criminal

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grande probabilidade de a correspondência ser fortuita, na medida em que, para além de partilhar 50% do seu perfil com os seus pais, contém ainda componentes que são muito comuns na população. Uma vez que é a combinação dos componentes que tornam um perfil “único”, não foi possível determinar quais os componentes que constituem o perfil de Madeleine a partir de um perfil que contém uma mistura dos perfis de mais de duas pessoas (8). Os resultados preliminares enviados por email viriam a ser confirmados num relatório formal do Forensic Science Service. Assim, ao exibir as imagens da inspeção cinotécnica e ao confrontar os arguidos com a alegada existência do DNA de Madeleine McCann no carro alugado, a investigação terá “exagerado” e “forçado” a interpretação das análises de DNA num quadro incriminatório que pudesse suscitar uma confissão. Por seu turno, Gerald McCann respondeu às questões durante o interrogatório sem oferecer explicações para os vestígios. 3.4. A função exculpatória Finalmente, a função exculpatória possui uma caracterização mais complexa, no sentido em que, nos casos analisados, a sua utilização estratégica pelos investigadores não foi explícita e intencional, mas antes veio a revelar-se uma consequência da conjugação de outros fatores a jusante do curso do inquérito. Em geral, poderia definir-se como uma função útil no processo de eliminação de potenciais suspeitos e pode conjugar-se com a função exploratória no sentido de estabelecer as presenças e ausências, na presunção de que a presença implica o abandono de vestígios biológicos. Deste modo, as análises de DNA podem servir para eliminar suspeitas sobre determinado(s) indivíduo(s). Contudo, a função exculpatória pode também estar associada, não apenas à inter-

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De um modo geral, e no uso para efeitos de investigação criminal, designa-se um perfil como uma “mistura” quando podem ser observados mais do que dois alelos em vários loci (ou marcadores) estudados no perfil de uma amostra (Buckleton et al., 2007). Coimbra Editora ®

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pretação em função das circunstâncias de um caso, mas também à degradação dos vestígios e aos limites, contingências e ao estado da arte da biologia forense. Por outras palavras, pode haver usos “exculpatórios” quando não é possível retirar conclusões das análises que sejam relevantes para a narrativa criminal em curso. Porém, pelo conteúdo dos casos analisados, pode dizer-se que a função exculpatória tende a surgir após a fase de inquérito em resultado da frustração da “função incriminatória”. Foi já referido como no caso Madeleine McCann a inconclusividade das análises de DNA aos vestígios recolhidos na bagageira do carro foram interpretados no sentido de assumirem uma “função incriminatória”, mas acabando o inquérito por ser arquivado por falta de indícios de crime. No caso Tó Jó, houve também lugar ao uso da “função incriminatória” das análises de DNA em relação a um dos arguidos que viria a ser revertida em sede de julgamento. Com efeito, as análises aos vestígios hemáticos recolhidos na cena de crime revelaram várias misturas de perfis em diferentes locais, tendo sido possível identificar misturas de perfis entre as vítimas e o perpetrador. Porém, foram recolhidos dois vestígios com perfis de “mistura” para os quais o relatório do INML Coimbra coloca a hipótese de “compatibilidade”, nos marcadores estudados, da presença conjunta das duas vítimas e de um dos suspeitos (Nuno), acrescentando não poder ser excluída a presença dos outros dois suspeitos (António Jorge e Sara) e, eventualmente, de outro material biológico “contaminante” (fls. 807 do processo 704/99.9JAAVR). Não obstante as conclusões do relatório apontarem para uma “compatibilidade” com o perfil do Nuno, mas não excluindo outros dadores, o “uso” que é feito dos resultados implicou a incriminação do Nuno. Com efeito, um despacho do Ministério Público extrapola do relatório pericial que “tudo aponta para que o quarto elemento seja o Nuno…” (fls. 807) e durante o interrogatório judicial de arguido a magistrada do MP declara que: Os resultados dos exames efetuados pelo IML que dão como certa a existência do sangue do arguido em dois locais distintos e na viatura das vítimas, permitem-nos concluir que o Nuno esteve Investigação criminal

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no local dos crimes na data em que os crimes ocorreram e que neles terá participado. (fls. 826 do processo 704/99.9JAAVR). Deve-se salientar que estas funções operam “fora” do laboratório, constituindo-se como fatores na lógica e na gramática operacional da polícia, mas não dos laboratórios de biologia forense. Por outras palavras, quando a polícia remete vestígios biológicos a um laboratório está procurar obter significados para questões que só fazem sentido no âmbito do seu próprio corpo de conhecimentos profissionais e para as circunstâncias particulares de cada caso. Daí que os quesitos, não raramente, expressem os resultados que se pretende obter com as análises de DNA, o que poderá, no limite, excluir outras hipóteses de investigação e limitar as conclusões dos laboratórios. Ou seja, quando a definição da situação inicial orienta a narrativa criminal num determinado sentido, pode ocorrer uma limitação da informação procedente dos laboratórios, na medida em que estes se cingem aos quesitos colocados. Procurava-se, então, que as análises de DNA viessem confirmar as suspeitas sustentadas noutros elementos. Conforme um dos relatórios (fls. 866 e ss.), um dos inspetores no caso Tó Jó, argumenta que “os elementos disponíveis para a compreensão da verdade dos factos viriam a ser acrescentados, de forma decisiva, com provas científicas” e, acrescentando letras de canções das bandas de black metal que abordam temáticas entendidas como mórbidas, conclui que pode ser afastada decisivamente a hipótese de o duplo homicídio ter ocorrido num quadro familiar motivado por interesses meramente económicos, e que os contornos do crime (dia do eclipse solar, uso de facas e os poemas acerca da morte) são indicadores de um crime premeditado e praticado num quadro de liturgia de grupo. A função exculpatória viria a surgir pelo empenho do defensor do arguido Nuno. Primeiro, ao desconstruir a legitimidade das ilações extraídas das conclusões do relatório de exame ao questionar o modo e as circunstâncias como os vestígios surgiram na cena de crime e, segundo, ao requerer novo exame pericial a um outro laboratório e ao nomear um consultor técnico para acompanhar a elaboração dos quesitos e a realização das perícias. As conclusões do novo relatório tamCoimbra Editora ®

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bém identificam material biológico de pelo menos dois indivíduos. Contudo, em vez de assinalar a “compatibilidade” com o perfil do Nuno, é dito que não é possível concluir com segurança, da possibilidade de um dos contribuidores das duas misturas analisadas ser o Nuno. Assim, o acórdão acabou por absolver o Nuno na medida em que as provas produzidas em audiência e nos autos não permitiram estabelecer, para além de qualquer dúvida razoável, que praticou os fatos pelos quais vinha acusado. Outro exemplo de como os quesitos podem ser formulados no sentido de obter suporte para uma determinada narrativa criminal será, novamente, o caso Joana. Aqui, a PJ procurava confirmar uma das hipóteses para a localização do cadáver da criança, suspeitando-se que partes do corpo poderiam ter sido ingeridas por porcos, fazendo-as assim desaparecer. Num terreno cercado próximo da aldeia da Figueira teria operado uma suinicultura onde foram recolhidas amostras de fezes dos suínos e algumas fibras têxteis que foram enviadas para análise. Nas imediações terá sido também encontrado um chapéu de pala vermelho (com a sigla NY a preto), e procurava-se confirmar a hipótese de o chapéu pertencer a um dos arguidos e, deste modo, conseguir associá-lo ao local para onde, alegadamente, o cadáver teria sido transportado. Assim, o ofício que acompanha o chapéu indica o local onde o mesmo foi encontrado e informa que uma testemunha ocular o reconheceu como pertencendo ao arguido. Os quesitos solicitam: “a identificação de vestígios biológicos; a identificação do ADN do utilizador do referido boné; comparação do ADN identificado com o ADN do arguido João…” (fls. 747 do processo 330/04.2JAPTM). Da parte dos laboratórios, os relatórios de exame constituem objeto de demarcação de fronteira onde os vestígios enviados da cena de crime são “purificados” do seu contexto original e excisados das possíveis interpretações subjetivas que possam emergir nos quesitos. Como tal, todos os vestígios recebidos são sujeitos a traduções que visam a demonstração das várias etapas da “vida laboratorial” dos vestígios, documentando as técnicas utilizadas e as análises efetuadas. Quando são enviados objetos nos quais se pensa que poderão existir vestígios biológicos relevantes, os mesmos são fotografados e descritos verbalmente quanto Investigação criminal

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às suas dimensões, aspeto, composição e eventuais inscrições e etiquetas. Segue-se um exemplo retirado de um dos processos de como os objetos podem surgir descritos: VI.18 Uma camisa em tecido branco com motivos estampados nos tons azul, verde, vermelho, amarelo e preto, na qual se detetou uma etiqueta que apresentava as referências “14A Z 100% COTTON” (Foto a fls. 28). No caso de vestígio biológicos que são recolhidos no local e transportados para o laboratório é adotado o mesmo procedimento descritivo das “condições” do que é recebido e de que modo é recebido. Note-se a eliminação de qualquer presunção quanto aos conteúdos recebidos e à sua prévia classificação: Um envelope timbrado da Polícia Judiciária, Diretoria de Coimbra, aberto, contendo um tubo de plástico transparente, vedado com tampa branca com a seguinte identificação: “Vestígio 2 (hemático) bagageira (interior do fecho da mala)” e o número “2” na tampa. Dentro do tubo encontrava-se um cotonete manchado de cor acastanhada. Vimos como as tecnologias de DNA podem ter vários usos e assumir diversas funções ao longo de um inquérito judicial. Embora as funções exploratória, assertiva, e incriminatória tendam a constituir ferramentas dos investigadores na construção da narrativa criminal que pode vir a materializar-se durante a acusação e a abertura da instrução do processo judicial, nos casos analisados foi possível observar como a intervenção das restantes partes a jusante da fase de inquérito pode ser fulcral no desenvolvimento da função exculpatória. Poderá também dizer-se que o “diálogo” entre a polícia e os laboratórios se caracteriza por um “pragmatismo evidenciário” do lado da polícia e por um “distanciamento epistemológico” da parte dos laboratórios. Por “pragmatismo evidenciário” entendo a interpretação localizada e situacional dos vestígios levada a cabo pelos investigadores e que tende Coimbra Editora ®

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a inferir consequências para o desenvolvimento das narrativas criminais. O “distanciamento epistemológico” dos laboratórios é patente, como foi atrás descrito, no isolamento discursivo dos vestígios recolhidos na cena de crime, sendo alvo de medições e inscrições com o propósito de lhes conferir atributos científicos, sendo a tradução quantitativa um aspeto essencial na construção da objetividade (Derksen, 2000). É assinalável que junto aos autos dos vários processos também se possam encontrar recortes da imprensa escrita, o que denota a relevância da cobertura jornalística dos casos para a própria investigação, particularmente porque os jornalistas também procuram recolher informação de testemunhas e elaboram conjeturas sobre os eventos. Tomando por referência a cobertura mediática acerca dos mesmos casos selecionados, a secção seguinte irá abordar as imagens e representações acerca das tecnologias de DNA veiculadas na imprensa escrita. 4. As representações mediáticas do DNA Os casos criminais que são mediatizados tendem a reunir um conjunto de características que incrementam o seu valor de noticiabilidade (Jewkes, 2004). Para além daqueles que foram já referidos, e que por si evidenciam os fatores de noticiabilidade dos casos selecionados, o modo como os média desenvolvem as suas narrativas também tende a apoiar-se numa definição da situação inicial e que tende a ser equivalente à definição policial — frequentemente a fonte privilegiada —, condicionando o seu desenvolvimento dramático — quem são as vítimas e os vilões da história, e que abordagem será feita à história. A cobertura mediática de casos criminais constitui uma oportunidade de estudo da produção simbólica coletiva por via da disseminação de elementos discursivos e significados culturais que contribuem para a definição das questões sociais e das ameaças à sociedade (Altheide, 2009). Com efeito, cada caso suscitou a problematização de temáticas paralelas à investigação. Deste modo, a cobertura do caso Meia Culpa abordou a temática dos bares de alterne, incidindo também sobre os “seguranças” em estabelecimentos de diversão noturna e as suas eventuais ligações com atividades criminais. O caso Tó Jó foi desde o Investigação criminal

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início enquadrado no âmbito das ligações entre a estética do estilo musical black/death metal e alegadas práticas de satanismo. O caso do “Serial Killer de Santa Comba Dão” distingue-se dos restantes no sentido em que a cobertura noticiosa (excluindo notícias regionais isoladas acerca dos desaparecimentos) só se inicia com a detenção do António Costa, quando a autoria dos crimes já se encontrava “estabelecida”. Assim, de um modo geral, as narrativas noticiosas concentraram-se em torno da personagem principal (António Costa), enfatizando a monstruosidade dos crimes por via do contraste com a caracterização do arguido enquanto indivíduo de grande religiosidade que era estimado e respeitado por toda a comunidade. Após a recuperação dos corpos das vítimas, boa parte da cobertura foi dedicada ao processo judicial e à possibilidade de o arguido ser declarado inimputável pelos crimes em função dos exames de psiquiatria forense requeridos pelas partes. De modo notório, e em virtude da incerteza que dominou os casos e por não terem sido encontradas as vítimas ou as eventuais armas do crime, os casos dos desaparecimentos de Joana Cipriano e de Madeleine McCann, foram aqueles onde a temática da ciência forense e das tecnologias de DNA mais se destacaram na cobertura noticiosa. Na sequência da análise dos usos e da importância que as tecnologias de DNA tiveram no desenvolvimento dos inquéritos dos vários casos, importa agora descrever quais as imagens e representações acerca do papel e contributo da ciência forense para a resolução dos casos. O objetivo não será o de detalhar ou quantificar as referências às tecnologias de DNA ou outras disciplinas forenses, mas o de procurar compreender quais as dimensões qualitativas que são destacadas e valorizadas em função da construção e disseminação de um imaginário popular em torno da ciência forense. No que respeita ao lugar das tecnologias de DNA na investigação criminal e, particularmente, às expectativas depositadas nas suas potencialidades, vários autores enfatizam o seu papel enquanto ferramenta auxiliar do trabalho da polícia (Baskin e Sommers, 2010; Roach e Pease, 2006). Todavia, o discurso dominante na imprensa acerca das tecnologias de DNA nos casos analisados tende a elaborar sobre uma visão mitificada Coimbra Editora ®

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da infalibilidade da ciência forense que, frequentemente, exagera os significados e impactos no decurso da investigação criminal. Por exemplo, numa notícia do Público acerca da detenção do Nuno no caso Tó Jó, denota-se a surpresa face aos desenvolvimentos do caso e é atribuída à biologia forense a concretização da identificação do quarto elemento para além das vítimas e do perpetrador: Para surpresa de todos, Nuno Lima acabou por ser detido na passada segunda-feira, quase um ano após os acontecimentos. Os testes de ADN foram fatais para o jovem do Porto. As conclusões técnicas a que os peritos do IMLC chegaram corroboravam alguns indícios e davam consistência à tese da polícia. E o certo é que um dos perfis individualizados pelos peritos do IMLC era perfeitamente compatível com o do jovem (Amaro e Campos, 2007). No caso Tó Jó, mas também no caso Meia Culpa, o jornal Público parece sobrevalorizar os aspetos científicos que de certa forma minimizam os esforços investigativos no terreno, na sequência de artigos noticiosos que destacavam a “novidade” das “impressões digitais genéticas” que poderiam ser usadas para identificar vestígios biológicos a partir dos gorros que foram encontrados. As investigações ao “caso Meia Culpa” foram uma espécie de teste à própria Polícia Judiciária a que esta respondeu com eficácia. Apesar das pressões da opinião pública e do próprio Governo, a polícia científica trabalhou durante dez dias e dez noites consecutivas, para ao 12.º dia chegar a algumas conclusões importantes (Lage et al., 1997). Estes discursos podem enquadrar-se na projeção daquilo que Helena Machado designou por “dispositivo de universalidade” que atua nas intersecções entre a justiça e a ciência, nomeadamente no fator que diz respeito à afirmação do distanciamento entre o saber e a ação dos peritos e os que não detêm esse conhecimento (Machado, 2011: 156), e que atua no reforço da posição dominante do conhecimento científico. Investigação criminal

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A cobertura mediática dos casos Joana, “Serial Killer de Santa Comba Dão” e Madeleine McCann terá sido marcada, particularmente na imprensa popular, pela popularização das tecnologias de DNA em séries de televisão como CSI — Crime Scene Investigation que atuaram como matriz cultural de referência e como metáfora das expectativas geradas em torno dos usos da ciência forense para a resolução dos casos. No caso da cobertura do caso “Serial Killer de Santa Comba Dão”, os jornais Público, Diário de Notícias e Jornal de Notícias, fazem uma reportagem circunstanciada do decorrer do julgamento, recorrendo a elementos processuais e a testemunhos de conterrâneos para elaborar o perfil do arguido e, no que respeita à resolução do caso, citam a descoberta dos óculos de Joana Oliveira como fulcral. De um modo geral, as narrativas dos jornais analisados enquadram-se naquilo que Moira Peelo (2006) designou por “testemunho mediado” (mediated witness) e que consiste em construir o caso criminal de forma a suscitar a adesão emocional do leitor, convidando-o a tomar partido e a desenvolver experiências emocionais que, segundo Katz, são usadas no quotidiano como “ginásio moral” (moral workout) (Katz, 1987). Contudo, na medida em que as narrativas têm que ser adaptadas para consumo das audiências dos média, por vezes há lugar a excessiva simplificação e até distorção dos fatos (Ericson, 1998). Assim, nas interseções entre ciência e justiça, pode suceder que os temas sejam enquadrados de formas atrativas e compreensíveis para o público (Holliman, 2004), recorrendo ao imaginário da ficção televisiva, como foi o caso do Correio da Manhã referindo-se à investigação do caso “Serial Killer de Santa Comba Dão”: A investigação foi, na realidade, semelhante a uma mistura de duas séries televisivas — ‘CSI — Crime sob Investigação’, em que a análise das mais insignificantes provas é fundamental, e ‘Ossos’, onde o estudo dos cadáveres é um elemento essencial. É que, em sede de julgamento — o cabo António Costa será julgado até meados de Abril na Figueira da Foz — não bastam a confissão, nem mesmo a reconstituição dos homicídios como o militar na reserva fez com minúcia (Ferreira, 2007). Coimbra Editora ®

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Os casos Joana e Madeleine McCann destacam-se dos restantes em função do volume e saliência conferida às temáticas associadas à ciência forense e às tecnologias de DNA, particularmente na imprensa popular, conforme explanado anteriormente por Machado e Santos (2011). Nos artigos noticiosos dos jornais analisados nestes dois casos, o Correio da Manhã destacou-se pela assunção de um estilo e de uma retórica sensacionalista, cujo dispositivo de “testemunho mediado” coloca quer o jornalista quer o leitor numa posição de meta-inquiridor dos factos, indícios e provas que vão sendo estabelecidos ao longo do inquérito. Este dispositivo é materializado na frequente anonimidade das fontes citadas, na exploração de possíveis deduções, inferências e significados dos elementos revelados no processo ou das meras especulações que foram emergindo, como se pode verificar no seguinte extrato de um artigo noticioso acerca do caso “Madeleine McCann”: Não é apenas o facto de terem sido encontrados vestígios coincidentes com o ADN de Maddie que leva os investigadores a acreditarem que estão perante um caso de morte. São também os locais onde os mesmos foram encontrados (…) Em primeiro lugar, os cães ingleses detetaram odores de cadáver no quarto, na bagageira do carro e nas roupas que Kate usava naquela noite. Depois, foram encontrados os vestígios de sangue, não visíveis a olho nu, que indicam a presença do cadáver da menina atrás de um sofá do quarto e na mala do carro que só foi alugado 22 dias depois. (…) Foi também nesse primeiro local (bagageira) que os animais voltaram a encontrar vestígios biológicos de um ADN que corresponde ao da menina inglesa e cujos resultados afastam a possibilidade de pertencerem aos irmãos gémeos (Dâmaso e Laranjo, 2008) Conforme pode ser verificado no extrato, as tecnologias de DNA vêm desempenhar um papel central no desenvolvimento deste tipo de narrativa, fazendo eco de um imaginário mítico propalado nas séries de ficção e disseminado na cultura popular no qual a ciência forense é retratada como a “chave” para resolver crimes (Cole e Lynch, 2006). Neste cenário mediático, é atribuído um estatuto de certeza e infalibiliInvestigação criminal

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dade à “prova” produzida em laboratório por cientistas que contribui para o reforço da “autoridade moral” da polícia (Cavender e Deutsch, 2007). Tal foi particularmente visível durante o caso “Madeleine McCann” em que a PJ era sujeita a duras críticas. Assim, a elaboração sobre este género de conceções, associado ao imediatismo e à fusão de informação e entretenimento característicos dos média modernos (Surette, 1998), tende a gerar traduções equívocas ao apelar a um imaginário onde é a “ciência” e não o investigador criminal que providencia as respostas para o problema do crime. Em suma, quer o caso Joana, quer o caso Madeleine McCann, constituíram pretexto para a disseminação pública de informação acerca das tecnologias de DNA aplicadas à investigação criminal e que não deverá ser dissociada dos valores de noticiabilidade de cada caso e dos critérios editoriais de cada jornal. Para além da vertente de entretenimento, a mediatização de temas afastados do quotidiano do indivíduo comum, como é o caso das tecnologias de DNA pode atuar também como uma forma de pedagogia (Nelkin, 1994: 29), informando o público acerca das potencialidades, mas também dos riscos e limitações da ciência forense. 5. CONCLUSÃO Este capítulo incidiu sobre o estudo de cinco casos criminais que ocorreram em Portugal e nos quais houve recurso às tecnologias de DNA. A análise dos processos judiciais focou o desenvolvimento dos inquéritos com particular atenção ao papel e funções das tecnologias de DNA. Não obstante o valioso potencial destas tecnologias no apoio à investigação criminal, verifica-se que os seus usos práticos não se inserem maioritariamente nas expectativas disseminadas na cultura popular, isto é, de que são capazes de proporcionar uma solução “mágica” para o crime (Cole e Lynch, 2006). A investigação de um crime é um processo complexo e exigente e que apela a uma vasta e diversificada gama de práticas e saberes formais e informais por parte dos investigadores (Innes et al., 2005), cujos esforços são expressos na construção de uma narrativa criminal desenvolvida a partir da reconstrução do contexto e das circunstâncias anteriores e posteriores ao evento criminal. Coimbra Editora ®

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Da análise dos casos resulta que o principal elemento dos esforços de credibilização das narrativas e, consequentemente, das funções do DNA descritas neste texto, assenta naquilo que Robin Williams (2010) designou por “imaginário forense” e que se baseia nos princípios de transferência e de individualização, ou seja, de que qualquer contacto entre pessoas e objetos resulta na transferência de vestígios e de que na natureza não existem duas coisas exatamente iguais. Assim, o recurso às técnicas e conhecimentos científicos dos laboratórios forenses durante a fase de inquérito insere-se nas tentativas de materialização dos eventos (Kruse, 2010). Porém, a materialização dos vestígios em prova nem sempre corresponde às expectativas formuladas nos quesitos. Conforme foi atrás exemplificado, as interações formais entre os investigadores no terreno e os peritos nos laboratórios revelam contornos de uma rede sociotécnica em que os vestígios recolhidos em cenas de crime são alvo de variadas inscrições e traduções que marcam fronteiras e assimetrias. Noutros termos, os quesitos policiais são frequentemente expressos em termos binários que pressupõem a confirmação ou negação de hipóteses e que podem produzir consequências no desenvolvimento dos casos, naquilo que designei por “pragmatismo evidenciário”. Por seu turno, os peritos dos laboratórios elaboram na tradução dos vestígios em objeto de conhecimento científico, que se inicia com o registo detalhado das características dos objetos recebidos no laboratório e termina com a redação do relatório pericial, num processo de “distanciamento epistemológico”. Nos relatórios, as observações acerca dos objetos são traduzidas numa linguagem neutralizante, quanto possível, de quaisquer efeitos remotos. Não só os vestígios são identificados por um código, mas também as conclusões são elaboradas numa linguagem que salvaguarda possíveis inferências categóricas e universais, ou referências diretas aos casos (por exemplo, quando é dito que o perfil A possui identidade com os marcadores estudados do perfil B). A interpretação contextual e circunstancial dos relatórios periciais cabe ao Ministério Público e pode produzir consequências nas várias instâncias do processo criminal — por exemplo, pode levar um juiz de instrução criminal a decretar medidas de coação mais gravosas com base Investigação criminal

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nos indícios apresentados. Na medida em que as análises de DNA tendem a ser interpretadas como elemento de objetividade e certeza no âmbito de uma narrativa e de hipóteses previamente estabelecidas, existe a manifesta possibilidade de enviesamento contra os suspeitos (Dahl, 2007). A análise dos processos judiciais e o estudo da sua cobertura na imprensa revelaram idêntica submissão simbólica à supremacia da ciência e ao conhecimento produzido em espaço laboratorial. Em ambos os contextos, as tecnologias de DNA parecem ser entendidas como algo que transcende a agência humana sendo capazes de produzir justiça por si mesmas (Gerlach, 2004: 132). Se a raiz científica das tecnologias de DNA marca uma transição de paradigma relativamente às disciplinas forenses tradicionais, albergando a promessa de maior precisão e fidedignidade na identificação dos culpados e na exculpação dos inocentes (Saks e Koehler, 2005), sobre elas recaem também as expectativas de produção de contributos decisivos para a resolução dos casos — o que tende a ser amplamente disseminado junto do público por via das representações mediáticas e ficcionais. Em conjunção com estas expectativas, por vezes exageradas, surgem riscos associados com a abdução determinista das conclusões periciais. Conforme argumentam Roach e Pease (2006), as tecnologias de DNA não servem apenas para identificar os culpados e podem até tornar mais difícil a obtenção de uma condenação se as circunstâncias permitirem argumentar quanto à plausível legitimidade do abandono de vestígios. Assim, como foi possível constatar nos casos analisados, as tecnologias de DNA são ferramentas que auxiliam e complementam o trabalho dos investigadores, sendo que a experiência, o conhecimento e o trabalho destes constitui fator fundamental na interpretação dos indícios e na resolução dos casos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Altheide, David L. (2009), “Moral panic: From sociological concept to public discourse”, Crime, Media, Culture, 5(1): 79-99. Amaro, José Bento; Campos, Alexandra (2007), “Detido incriminado pelos testes genéticos”, Jornal Público, 22 de julho. Baskin, Deborah; Sommers, Ira (2010), “The influence of forensic evidence on the case outcomes of homicide incidents”, Journal of Criminal Justice, 38(6): 1141-1149. Coimbra Editora ®

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OS CONSTRANGIMENTOS PRÁTICOS DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL EM PORTUGAL E SUAS REPERCUSSÕES NA APLICABILIDADE DA BASE DE DADOS DE ADN (1) SUSANA COSTA 1. INTRODUÇÃO A tecnologia de identificação por perfis de ADN por muitos considerada como uma “máquina da verdade”, ou o “padrão-ouro”, estando imune a erros (Lynch, 2003; Lynch et al., 2008; Dror e Hampikian, 2011), tem permitido transformações relevantes nos sistemas de justiça criminal, devido à convicção da sua maior credibilidade científica em contexto legal relativamente aos métodos de identificação tradicionais — como a lofoscopia, a prova testemunhal ou a confissão (Barra da Costa, 2011). A sua aceitação, um pouco por todo o mundo, é fortemente marcada por alguns argumentos decisivos: a possibilidade de tornar a justiça mais científica e, por isso, mais eficaz e mais credível, porque baseada na biologia, (Dahl e Sætnan, 2009), a possibilidade de ilibar inocentes e, ainda, como forma de uniformização de procedimentos nos vários países, contribuindo para a cooperação transfronteiriça (McCartney, 2004; Pinheiro, 2011; Machado e Santos, 2012).

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Este texto foi desenvolvido no âmbito da bolsa de pós doutoramento, com a referência SFRH/BPD/63806/2009, da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Investigação criminal

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Em sociedades cada vez mais dominadas pelo medo, a identificação por perfis de ADN e a existência de bases de dados surgem como ferramentas essenciais no combate ao crime (Machado et al., 2011), que, ao promoverem a ideia de segurança (2), eficácia, certeza e infalibilidade (Williams e Johnson, 2004), apazigua receios sob o argumento de que os suspeitos, ou potenciais suspeitos (Machado et al., 2008), passam a estar identificados, catalogados e circunscritos num ficheiro de dados permitindo a sua vigilância. Com base na necessidade de uma nova cultura de controlo dos indivíduos, surge assim uma espécie de “sociedade administrada” (Nelkin e Lindee, 1995; Garland, 2001; Palmer e Polwarth, 2011) que supostamente apazigua os medos. A crença no potencial desta tecnologia assenta em duas ideias fundamentais: por um lado, que os potenciais suspeitos inseridos na base de dados de perfis genéticos, estarão sempre vigiados e, por outro lado, ao estarem vigiados, permite que os seus comportamentos e atitudes se tornem mais previsíveis e, como tal, tornando-se mais facilmente administrados. Assim, ter o perfil inserido numa base de dados de perfis genéticos assegura uma inspeção e vigilância de todos aqueles que aí se encontram, já que “uma vez na base de dados estamos constantemente numa ‘linha virtual’ de potenciais suspeitos” (3) (Dahl e Sætnan, 2009: 91) e apazigua o sentimento de insegurança daqueles que se encontram fora da base, transformando “(…) a incerteza e imprevisibilidade das classes perigosas no conhecível, calculável e controlável”(Kemshall, 2003 apud McCartney, 2004: 166). Ao diferenciar as classes perigosas é transmitida a ideia de maior segurança aos cidadãos. E, desta forma, as bases de dados de perfis de ADN foram-se constituindo, ao longo dos últimos anos, não apenas como um instrumento de governação poderoso, que permite detetar criminosos

(2)

A este propósito cf. Frois (2012: 13) que considera que “[o] modelo português, tal como outros europeus, assenta numa estratégia muito em voga atualmente que se relaciona com a prevenção e dissuasão da criminalidade. Prevenção, neste domínio, traduz-se numa lógica de atuação em que a polícia antecipa e evita a ocorrência criminal”. (3) A tradução de citações são da responsabilidade da autora. Coimbra Editora ®

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e ilibar os inocentes, como também se constituíram como uma “tecnologia de vigilância” (Harcourt, 2007) necessária face aos riscos (McCartney, 2004), receios e medos que as sociedades hoje enfrentam tentando, desta forma, identificar essas classes perigosas em “circuitos fechados” (Williams e Johnson, 2004) ou “circuitos de segurança” (Rose, 2000). Foram estes argumentos que, em grande parte, contribuíram para criar as condições para a sua boa aceitação e para que, paulatinamente, fosse utilizada como instrumento de governação por vários países (Hindmarsh e Prainsack, 2010; Kaye, 2006; Dahl e Sætnan, 2009), nos quais Portugal se insere. Não obstante as inúmeras potencialidades reconhecidas a esta tecnologia ao serviço da justiça, também acarreta ameaças (McCartney, 2004: 158) que serão tanto maiores, segundo alguns autores, quanto mais permissiva for a lei que em cada país regula o funcionamento das bases de dados de ADN (4). O grau de risco e de vigilância a que cada sociedade está sujeita, depende, porém, de outros fatores. Portugal apresenta uma lei mais restritiva comparativamente a outros países (5) e, como tal, teoricamente salvaguardando muitos desses riscos associados à utilização desta tecnologia. Porém, partilha esta utilização com diversos países avançados, mas, com saberes e práticas de investigação criminal distintas das observadas nesses países. Assim, se no Reino Unido ou nos Estados Unidos da América a introdução dos perfis de ADN na investigação criminal permitiram a profissionalização e cientifização do trabalho policial (Cole, 2001, Nuffield Council on Bioethics, 2007; Williams, 2003; Williams et al., 2004, Machado e Santos: 2012), a escassez de recursos humanos e materiais e as práticas e saberes distintos para atuar em contexto de investigação criminal verificados em Portugal com diferentes Órgãos de Polícia Criminal (OPC) a intercederem na cena de crime pode criar obstáculos aos objetivos propostos pela lei que regulamenta as bases de dados de ADN (lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro).

(4)

Para uma análise dos países permissivos, restritivos e laissez-faire cf. Machado et al., 2008; Machado e Santos, 2012. (5) Cf. Machado et al., 2008 e Pereira, 2008. Investigação criminal

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2. A LEI N.º 5/2008 Em Portugal a tecnologia de identificação por perfis de ADN deu os primeiros passos na década de 90 do século XX para fins de identificação civil, particularmente em casos de investigação de paternidade, bem como no apoio à investigação criminal. Cerca de duas décadas depois, a Lei n.º 5/2008 de 12 de fevereiro veio estabelecer a criação da Base de Dados de Perfis de ADN em Portugal para fins de identificação civil e criminal. Na dependência do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF, IP) e sob tutela do Ministério da Justiça, as únicas entidades com competência para proceder a análises (artigo 5.º, n.º 1) são o próprio Instituto Nacional de Medicina Legal (INML) e o Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária (LPC), embora apenas o primeiro seja a autoridade com competência legal para o tratamento dos dados aí armazenados (artigo 16.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008). Estipula a lei que a base de dados portuguesa é constituída por ficheiros com informação relativa a amostras de voluntários, ficheiros com amostras referência (6) de pessoas desaparecidas, amostras de pessoas condenadas por crime com pena efetiva igual ou superior a três anos de prisão (7), mediante consentimento expresso do titular da amostra e com despacho do juiz a ordenar a recolha da amostra (8) (artigo 8.º, n.os 1 e 2), considerando que esta é a única via de não violar o direito à auto-determinação informacional do indivíduo, constante no artigo 35.º do Constituição da República Portuguesa (9) e, por fim, amostras dos profissionais

(6)

“(…) amostra utilizada para comparação” (artigo 2.º, al. d), da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro. (7) “(…) a recolha de amostras em condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída” (artigo 8.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro). (8) “A recolha de amostras em processo-crime é realizada a pedido do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz, a partir da constituição de arguido, ao abrigo do disposto no artigo 172.º do Código do Processo Penal” (artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro). (9) E também plasmado no artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro. Coimbra Editora ®

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que procedem ao tratamento das amostras (recolha e análise) (artigo 15.º). Estes diferentes ficheiros deverão, segundo a lei, ser armazenados de forma separada, lógica e fisicamente, manuseados por distintos profissionais de forma a garantir a confidencialidade e inviolabilidade dos dados constantes na base, não permitindo a introdução de dados pessoais no ficheiro dos perfis de ADN ou que possa ser efetuada, pesquisa nominal (artigo 15.º, n.º 2) garantindo, de igual modo, a codificação de todos os dados aí constantes (artigo 17.º, n.º 3, al. e)). As amostras devem ser recolhidas através de método não invasivo (10), respeitando a integridade física e moral do indivíduo através da colheita de zaragatoa bocal (artigo 10.º) e recolhida em quantidade suficiente de forma a garantir o princípio do contraditório que permita a realização de uma contra-análise (11). Os perfis resultantes desta recolha apenas podem ser introduzidos na base de dados após consentimento livre, informado e escrito por parte do seu titular (12) (artigo 18.º, n.º 1) e despacho do juiz (artigo 18.º, n.º 2), constituindo ainda “(…) pressuposto obrigatório para a inserção dos dados a manutenção da cadeia de custódia (13) da amostra respetiva” (artigo 18.º, n.º 4). Verificados estes procedimentos, cabe ao INML comunicar ao juiz competente do processo os dados obtidos, mediante requerimento fundamentado (artigo 18.º, n.º 1, al. a)),

(10)

A este propósito cf. Oliveira, 1999. Artigo 11.º: “1 — Salvo em casos de manifesta impossibilidade, é preservada uma parte bastante e suficiente da amostra para a realização de contra-análise. 2 — Quando a quantidade da amostra for diminuta deve ser manuseada de tal modo que não impossibilite a contra-análise” (Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro. (12) Refere o artigo 2.º, al. n), que este é a “manifestação de vontade livre e informada, sob a forma escrita, nos termos da qual o titular aceita que os seus dados pessoais sejam objecto de tratamento” (Lei n.º 5/208, de 12 de fevereiro). Esta noção de consentimento livre, informado e irrevogável é “(…) diferente da noção de voluntário no Reino Unido, em que a recolha de amostras pode ser feita em massa no decurso de uma investigação a um grupo específico de indivíduos (intelligence mass screening)” (Machado et al., 2008: 152). Cf. também Kaye, 2006; Williams et al., 2004). (13) “Processo usado para documentar o seu trajecto cronológico, a fim de ser atestado e acautelado a sua autenticidade em processo judicial” (Pinheiro, 2011: 60). Cf. tb. definição dada por Barra da Costa, 2008: 221 ss.). (11)

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ao qual, por sua vez, cabe comunicar ao Ministério Público e/ou aos OPC competentes esses mesmos dados, através de despacho fundamentado (artigo 18.º, n.º 1, al. b)). De forma a poder ser executada uma interconexão dos dados constantes na base de dados com novos dados inseridos, a lei prevê que os perfis de ADN (14) de arguidos possam ser cruzados com amostras problema (15) de local de crime, amostras de cadáver ou parte de cadáver ou em local onde se proceda a recolha, e ficheiro de profissionais. No que respeita aos perfis de ADN de voluntários, estes podem ser cruzados com todos os perfis inseridos nos diversos ficheiros previstos na lei (artigo 20.º, n.º 3). Os perfis de ADN de amostras problema provenientes de locais de crime ou de pessoas condenadas a pena concreta superior a 3 anos podem ser cruzados com o ficheiro dos voluntários, com o ficheiro das amostras problema recolhidas no local do crime, com o ficheiro de outros indivíduos condenados e com o ficheiro que congrega os perfis dos profissionais que lidam com o manuseamento das amostras (artigo 20, n.º 3 e 4). Porém, fica fora deste leque o cruzamento da informação obtida com o ficheiro que detêm as amostras referência de pessoas desaparecidas ou familiares, sendo apenas permitido, em casos excecionais, mediante requerimento fundamentado, prévia autorização da Comissão Nacional de Proteção de Dados Pessoais (CNPD) e parecer prévio, quer desta entidade, quer ainda do Conselho de Fiscalização, a possibilidade de outros cruzamentos entre ficheiros que não estes expressos na lei (artigo 20.º, n.º 5). Se estas são as prerrogativas no que respeita à interconexão de dados no domínio nacional, o artigo 21.º considera que estas não podem colidir com as obrigações internacionais assumidas por Portugal no que toca a cooperação internacional transfronteiriça (artigo 21.º, n.º 2) ao abrigo do

(14)

Segundo a al. f ) do artigo 2.º da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro, o perfil de ADN é “(…) o resultado de uma análise da amostra por meio de um marcador de ADN obtido segundo as técnicas cientificamente validadas e recomendadas a nível internacional”. (15) “(…) a amostra, sob investigação, cuja identificação se pretende estabelecer” (artigo 2.º, al. c)), da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro. Coimbra Editora ®

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Tratado de Prüm, de 27 de maio de 2005 (16). Como tal, embora não permitindo a transferência de amostras biológicas para nenhum outro país (artigo 21.º, n.º 2), a lei prevê a possibilidade de entidades de outros países que detêm a custódia da base de dados no seu próprio país, possam ter acesso aos dados registados na base de dados de perfis de ADN portuguesa. Quanto ao período de tempo que os dados ficam armazenados a lei portuguesa, no seu artigo 26.º, prevê que o ficheiro de perfis de ADN de voluntários deve permanecer indefinidamente na base, salvo revogação por parte do indivíduo. Relativamente às amostras referência de indivíduos desaparecidos ou seus familiares, a remoção do perfil deverá ser efetuada após identificação bem sucedida ou quando os familiares solicitem a remoção do seu perfil da base de dados. No que respeita às amostras problema referentes a colheitas na cena de crime, o perfil deve permanecer na base de dados até ao término do procedimento criminal e eliminado 20 anos após a sua introdução sem que tenha havido coincidência entre estas e o arguido. No que concerne ao arguido, cujo perfil tenha sido introduzido na base, este deve ser removido na data em que finda o registo criminal. E, por último, no caso dos profissionais, o seu perfil deverá ser removido da base 20 anos após terminarem as suas funções. Obtido um perfil de ADN devem as amostras ser destruídas no caso do ficheiro de voluntários e arguidos sendo que, no que toca a estes últimos, essas amostras recolhidas só podem ser usadas como prova no processo em concreto em que o indivíduo está a ser julgado (artigo 34.º, n.os 1 e 2). A lei faz ainda alusão à proteção das amostras no seu artigo 33.º, reiterando a obrigatoriedade de as amostras colhidas para efeito de introdução de perfil na base de dados de ADN ter que ser realizada pelas

(16)

“O Tratado define um quadro legal que visa o desenvolvimento da cooperação entre os Estados-Membros no domínio da luta contra o terrorismo, a criminalidade transfronteiras e a imigração ilegal. Mais especificamente, regula o intercâmbio de informações sobre ADN, impressões digitais, registo de veículos e dados pessoais e não pessoais no âmbito da cooperação policial transfronteiriça entre as partes contratantes” http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2004_2009/documents/ dt/660/660824/660824pt.pdf [consultado em 30 de abril de 2013]. Investigação criminal

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entidades para tal competentes e plasmadas no artigo 5.º, isto é, o INML e o LPC. E, refere ainda o n.º 2 do mesmo artigo que: As entidades responsáveis pelas amostras devem tomar as medidas adequadas para: a) Impedir o acesso de pessoas não autorizadas às instalações; b) Permitir o correcto e seguro armazenamento das amostras; c) Permitir o seguro e correcto transporte das amostras para as instalações das entidades referidas no artigo 31.º (artigo 33.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro). Neste contexto o juiz surge como o detentor do poder legal, único e exclusivo, para ordenar a recolha de amostras, ordenar a inserção e a remoção do perfil da base de dados (artigo 8.º, n.º 2), onde “[o] acesso da polícia à informação genética no curso de uma investigação criminal é assim profundamente limitado, hierarquizado e burocratizado” (Machado e Santos, 2012: 159) Resulta daqui que ao dotar o sistema judicial de ferramentas científicas que permitem a introdução de perfis de ADN em ficheiros automatizados, aumentou-se o potencial para fazer identificações e, com mais certezas, fazer coincidir perfis de indivíduos condenados com cenas de crime onde estiveram envolvidos, aumentando, em teoria, a eficácia, diminuindo o tempo da investigação e, consequentemente, onerando menos o sistema (17). Consequentemente, ao permitir mais certezas na obtenção da prova, conduz ao aumento da confiança dos cidadãos na tecnologia e, desse modo, pode contribuir para dissuadir a prática de crime, levando a que os próprios governantes reforcem a importância do seu uso e, logo, legitimando as suas opções como forma de governar os cidadãos e da necessidade de os vigiar. Feito um breve resumo dos principais aspetos contemplados na lei, no que se refere às entidades que detêm a competência de análise e manu-

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Não porque este tipo de tecnologia seja dispendiosa, mas porque ao permitir respostas mais céleres, diminui o tempo da investigação, logo tornando-a mais financeiramente mais acessível. Coimbra Editora ®

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seamento das amostras, critérios de introdução de perfis, critérios de remoção de perfis e tipos de ficheiros possíveis, importa ter em conta um aspeto de crucial importância quando pensamos, não apenas, no potencial que esta lei encerra ao nível português, como também os riscos que apresenta quando a analisamos à luz da Lei de Organização da Investigação Criminal portuguesa (a Lei n.º 49/2008, de 24 de agosto) — LOIC. É precisamente na confluência destas duas Leis (Lei n.º 5 /2008 e LOIC) que este capítulo pretende focar-se, tentando evidenciar de que forma é que os problemas associados à preservação da prova, fundamental para manter a cadeia de custódia intacta, podem ser enquadrados à luz da Lei n.º 5/2008; como é que os OPC que intercedem diretamente na cena do crime avaliam o alcance desta lei, e, por último, de que forma é que em termos práticos esta lei veio contribuir e auxiliar o trabalho realizado. 3. A CIENTIFIZAÇÃO DO TRABALHO POLICIAL A credibilização do trabalho policial depende, em grande medida, da sua capacidade de integrar as novas tecnologias de identificação genética no seu trabalho (Williams e Johnson, 2008) (18). Em muitos países o avanço desta tecnologia de identificação levou ao aumento dos poderes das polícias (Kaye, 2006), permitindo, em muitos casos, que estes façam o trabalho crucial da investigação criminal. No caso inglês, por exemplo, são as próprias polícias que detêm a autorização para proceder a recolhas de perfis de ADN para introdução na base de dados. “Em nenhum país do mundo a polícia tem poderes tão amplos como no Reino Unido no que toca a recolha de amostras biológicas e armazenamento e processamento de informação genética” (Machado e Santos, 2012: 158). Em Portugal, porém, para além de a polícia, como já referido, ter um acesso muito limitado, hierarquizado e burocrático ao processo

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Os polícias surgem, deste modo, como “agentes técnicos da racionalidade científica” (Williams e Johnson, 2004). Investigação criminal

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judicial e às bases de dados, e de apenas o juiz ser autorizado a ordenar a inserção e remoção de perfis da base de dados (artigo 8.º, n.º 2), também a própria LOIC se rege por certas peculiaridades. Deste modo, embora a Polícia Judiciária (PJ) seja, por excelência, a entidade que detém a gestão da investigação criminal, a Polícia de Segurança Pública (PSP) e a Guarda Nacional Republicana (GNR) são também órgãos de polícia criminal, cada uma com funções específicas atribuídas (artigo 3.º, n.º 1, da LOIC). E, não obstante, a lei portuguesa estabelecer que a primeira diligência a tomar pela polícia após conhecimento de um crime é comunicá-lo ao Ministério Público (artigo 44.º do Código de Processo Penal (19), e artigo 2.º, n.º 3, da LOIC), os OPC (seja a PJ, GNR ou PSP), mesmo antes de receberem ordens da autoridade judiciária competente, podem proceder aos atos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, podendo de igual modo, e após a intervenção do MP, desenvolver diligências para assegurar novos meios de prova de que venham a ter conhecimento (respetivamente, n.os 1 e 3 do artigo 249.º do Código de Processo Penal (20) e artigo 2.º, n.º 3, da LOIC). Este articulado tem implícito que todos os OPC estão preparados para uma intervenção célere e eficiente no local do crime e que o primeiro OPC a ter conhecimento do crime, deverá deslocar-se ao local, desenvolver os primeiros atos cautelares, tão importantes para a futura investigação e proceder às primeiras diligências com vista à preservação

(19) Compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo por iniciativa própria, colher notícia dos crimes e impedir quanto possível as suas consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os actos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova. (20) O n.º 2 do art. 249.º do Código de Processo Penal indica os atos e diligências que podem ser tomadas pelos OPC: “a) Proceder a exames de vestígios do crime, em especial as diligências previstas no artigo 171.º, n.º 2, e no artigo 173.º, assegurando a manutenção do estado das coisas e dos lugares; b) Colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição; c) Proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou perigo na demora, bem como adoptar as medidas cautelares necessárias à inserção ou manutenção dos objetos apreendidos”.

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da cena do crime. Esta situação pode colocar em risco todo o procedimento subsequente, consequência da falta de conhecimentos, falta de meios, má interpretação da lei, ou, simplesmente, os conflitos que se geram em torno dos diferentes OPC e que podem condicionar o trabalho futuro. Nesse sentido, importa perceber de que forma as tecnologias estão a ser incorporadas na atuação policial em Portugal e de que forma é que a base de dados de perfis de ADN está ou não a contribuir eficazmente para os seus desígnios atendendo, não só às limitações impostas à polícia em termos de recolha e acesso à informação de ADN, a escassez de recursos humanos e tecnológicos existentes na polícia de investigação criminal, mas também os aspetos de pendor ético e legislativo que têm criado entraves à eficácia da base de dados em Portugal. Com base em 12 entrevistas semiestruturadas realizadas entre 2011 e 2012 (21) aos três OPC portugueses que maioritariamente intercedem na cena de crime (PJ, PSP e GNR) argumentamos que a relação entre a crença no potencial do ADN e a sua aplicabilidade na Lei n.º 5/2008 é inversamente proporcional. Isto é, se o seu otimismo é manifesto relativamente ao potencial desta nova tecnologia ao serviço da verdade, o pessimismo instala-se quando se analisa na prática a eficácia da Lei n.º 5/2008. E, pese embora os entrevistados identifiquem com clareza os constrangimentos associados às práticas quotidianas da investigação criminal em Portugal, esse reconhecimento acaba por não ter peso na avaliação que tecem ao que, para eles, se constituem como os grandes entraves à eficácia da base de dados portuguesa. Desta forma, começaremos por analisar os constrangimentos identificados pelos entrevistados no que se refere aos procedimentos de investigação criminal e que traduzem os saberes e práticas em cenário de crime dos diferentes OPC portugueses para, numa segunda fase, analisarmos os seus discursos no que se refere à atual lei que regulamenta as bases de dados de perfis de ADN em Portugal.

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No âmbito deste estudo foram realizadas um total de 17 entrevistas, 5 das quais no Reino Unido, mas não contempladas para este capítulo. Investigação criminal

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3.1. Os constrangimentos da investigação criminal em Portugal Formação específica em cenário de crime Embora, como já referido, os crimes de cenário sejam da competência exclusiva da Polícia Judiciária (22), as polícias de proximidade (PSP e GNR) são as primeiras a abordar o local, com implicações e encadeamentos sucessivos na investigação criminal. Assim, podem ser identificadas discrepâncias notórias ao nível de formação que os diferentes OPC recebem, evidenciando saberes e práticas distintas das polícias que intervêm na cena do crime, com fragilidades na formação de elementos das polícias de proximidade, que podem comprometer o sucesso da investigação criminal, já que nas palavras de um inspetor da PJ “(…) uma coisa com que nos deparamos é o facto de haver outras polícias que não estão … ou alguns elementos das outras polícias que não estão bem sensibilizados para aquilo que há a fazer” (E2, PJ). No entanto, e independentemente da lei lhes atribuir essa competência ou não, e de ser assumido pelos próprios atores da investigação criminal a impreparação das “outras” polícias para uma abordagem eficaz no terreno, é também assumido que a própria lei determina que tenham que se deslocar ao local e, inclusivamente, proceder aos primeiros atos cautelares (artigo 2.º, n.º 2, da LOIC). E, muito embora, esta intervenção seja considerada parte natural e muito importante das funções da polícia de proximidade, eles próprios têm consciência de que a sua intervenção vai para além do mero acautelamento dos vestígios, reconhecendo que “(…) ainda se consegue ver que muita coisa é inviabilizada por ter havido uma má gestão do local” (E9, UPT (23), PSP). Perceção idêntica têm os elementos da PJ que, igualmente confirmando o papel relevante que as polícias de proximidade

(22)

Cf. artigo 7.º da LOIC sobre a competência da Polícia Judiciária em matéria de investigação criminal. (23) Unidade de Polícia Técnica Coimbra Editora ®

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têm, consideram que a escassa formação dada a estes profissionais pode condicionar as etapas seguintes da investigação (24). A impreparação, se quiser, da polícia de proximidade que (…) na sua esmagadora maioria não está preparada para saber trabalhar no local do crime ou saber estar no local do crime. Não está, não tem formação para isso. (E7, PJ). Esta presença da polícia de proximidade no local, de extrema relevância no sentido de identificar prontamente a situação pode acabar, por vezes, a uma má tipificação e interpretação do crime em causa, o que terá consequências para o delinear de uma estratégia de gestão do local do crime. Dotação de recursos humanos Uma intervenção adequada no local do crime pressupõe ainda que os atores estejam bem equipados, sendo espectável que façam uso de alguns instrumentos básicos, face às imposições que a cientifização do trabalho policial e a utilização de novas metodologias com vista à recolha de vestígios biológicos implicam, de forma a minimizar ao máximo a possibilidade de contaminação (25). Porém, a análise das entrevistas realizadas permitiu concluir também que a escassez de recursos materiais constitui outro dos entraves a uma boa intervenção em cenário de crime em Portugal, já que não só são as polícias de proximidade, com pouca formação, que primeiro abordam o local, como ainda o fazem com nítida falta de recursos materiais. Argumentam que “

(24)

Embora a LOIC no seu artigo 15.º, n.º 2, al. b), faça menção explícita a que se garanta “(…) a partilha de meios e serviços de apoio de acordo com as necessidades de cada órgão de polícia criminal”. (25) “(…) luvas, suportes auxiliares de colheita de vestígios (quadrados de tecido 100% algodão), zaragatoas pequenas; zaragatoas (cotonetes, pinças e tesouras; água destilada; caixas de plástico para recolher o material; envelopes de papel; zaragatoas bocais, faca ou bisturi; pipetas de plástico descartável; papel higiénico; álcool; e sacos para o lixo” (Barra da Costa, 2008: 160). Investigação criminal

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(…) o fato teria que ter outros melhoramentos, mas é o que nos dão… É um fato simples que, numa primeira abordagem, serve perfeitamente para não contaminar (…) a patrulha não. A patrulha não tem rigorosamente nada” (E9, UPT, PSP). Para além disso, embora o fato exista em algumas unidades de polícia técnica da PSP, por exemplo, é diferente do que é fornecido aos elementos da PJ. O uso de luvas, instrumento mínimo indispensável a qualquer agente policial, independentemente das suas competências, é quase inexistente, assumindo um dos elementos da UPT que “[n] em luvas. Às vezes têm mas, se calhar, é por bondade de fulano e sicrano que tem uma amiga enfermeira e que vai fornecendo” (E9, UPT PSP). Acondicionamento dos vestígios Porém, mesmo em situações em que os recursos materiais estão disponíveis, as práticas relatadas conduzem para situações incorretas de processamento do local. Nós temos uns envelopes específicos para fazer o transporte de um vestígio biológico, por exemplo. Mas, se na altura, uma equipa, por acaso, for a um cenário e gastar esses envelopes … eles escasseiam … tem duas opções: ou chama uma equipa e a equipa vai reforçar o stock, ou vê que no envelope de papel (…), por exemplo este [apontando para um envelope timbrado da PSP], se colocar aqui uma … uma calça … um calcinha com esperma ou uma camisola com sangue … se eu colocar aqui até à sede o sangue não se vai deteriorar, porque a base fundamental do acondicionamento é o papel (…). Depois, na sede, é colocado no envelope que deve ser e que deve seguir. Mas são situações muito pontuais! (E8, UPT, PSP) A forma como são preservados os vestígios de cena de crime revela, de novo, os distintos saberes e práticas dos atores em processo de cientifização da atividade policial. (…) a regra do bom acondicionamento prevê hoje um conjunto de sacos de prova para cada um dos objetos adequados à sua natuCoimbra Editora ®

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reza e à sua dimensão, que obedecem a dois princípios (…): primeiro, o que é vivo, embrulha-se (…) em saco de papel, o que é volátil recolhe-se em saco hermético. Às vezes, na prática confrontamo-nos com coisas exatamente ao contrário! (E3, LPC) (26). Esta situação é assumida pelo lado de quem tem competência para manusear o local. No entanto, também a UPT da PSP tem a perceção desta situação, argumentando que, quando os recursos são escassos há necessidade de contornar essas contingências através de algumas práticas assumidas. Destaquem-se os improvisos que o momento pós-crime os leva a realizar, não se limitando às medidas cautelares e à salvaguarda dos vestígios encontrados, procurando também preservá-los e, até, acondicioná-los, parecendo partirem do pressuposto de que mais vale acondicionar com os instrumentos disponíveis do que correr o risco de os perder. Para além da possibilidade de danificar e contaminar vestígios, considerados como a informação física mais básica e a evidência remanescente do acontecimento (Robertson e Roux, 2010) através da pró-atividade dos OPC de proximidade, as entrevistas realizadas permitiram perceber que, em determinadas situações, quando têm consciência de que poderão ter realizado procedimentos que extravasam as suas competências e/ou que realizaram procedimentos incorretos acabam por ocultar essa informação. Quase sempre não é dado seguimento ao vestígio que foi colocado nesse … Porque aquilo inviabiliza, ou pode inviabilizar. E o facto de poder inviabilizar, nós estamos a quebrar a cadeia da prova. Portanto, (…) não faz sentido enviar para o laboratório um vestígio que já foi contaminado! (E8, UPT). Embora as polícias de proximidade tenham consciência da importância da preservação da cadeia de custódia, muitas vezes optam por (26)

Segundo explicação dada por Barra da Costa (2008: 160) “[n]unca devem ser preservados vestígios hemáticos em fitas autocolantes e as palavras-chave são luvas e papel que permite trocas gasosas, por exemplo, algo molhado seca no papel, mas se for em plástico não seca”. Investigação criminal

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uma atitude dinâmica que pode danificar irreversivelmente a investigação. Não deixa de ser curioso que, na consciência de que podem quebrar a cadeia de custódia, são ele próprios que a quebram ao ocultar procedimentos. No entanto, não são apenas os OPC de proximidade que cometem erros na cadeia de custódia da prova. Mesmo os órgãos com competência para intervir neste tipo de contexto, embora com uma maior dotação de recursos, melhor formação e maior consciencialização para a importância da cadeia de custódia, ao longo de uma vida, habituaram-se a intervir num cenário de crime de determinada forma. Desse modo, torna-se complexo fazê-los perceber que as práticas a utilizar nos dias de hoje têm que ser diferentes, sob pena de destruição de provas que possam ser importantes para o deslindamento de determinado caso. Assim, a resistência à mudança, por parte de alguns elementos da “velha guarda” poderá também ser considerado um fator que vem contribuir para que os procedimentos não sejam cumpridos segundo a letra da lei. É o caso do uso do fato apropriado para intervir na cena de crime que, sendo um instrumento fundamental para evitar a contaminação, mesmo dentro da PJ tem um uso restrito, justificado ora porque a situação pode não o exigir: “ (…) são aqueles indivíduos que vestem um fatinho branco, quando vestem!” (Entrevista 10, GNR), ora pela resistência à mudança: As pessoas não estão muito motivadas para ao fim de 20 anos de carreira a fazer as coisas sempre da mesma maneira, de repente agora aparece um indivíduo e diz que tenho que vestir um [fato] macaco destes. As pessoas resistem a isto, isto é válido para esta casa como para outras (E7, PJ). Posicionamento face ao local Constatando-se a falta de formação e de recursos materiais para uma intervenção eficaz no local e atendendo às competências que aos first attenders (UNODOC, 2010) estão destinadas, então seria de esperar que estando no local se limitassem a salvaguardá-lo. Porém, a análise das entrevistas não aponta nesse sentido, permitindo aqui fazer uma clara Coimbra Editora ®

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distinção entre aquilo que pode ser entendido como uma atitude passiva ou estática que, não obstante poder deixar a ideia de incompetência tem o intuito de salvaguardar a prova; e uma atitude dinâmica ou pró-ativa por parte dos OPC que, ao excederem o âmbito das suas competências no sentido de apresentar trabalho e tentar auxiliar o órgão competente, podem estar a enviesar o local do crime (27). Uma atitude dinâmica é entendida neste contexto como uma ação que tem como objetivo prestar auxílio, levando a que o agente de patrulha acabe, muitas vezes, por fazer mais do que as suas competências lhe permitem, danificando, ou podendo danificar, os vestígios encontrados, como relatado por um agente da GNR: Imagine que há um homicídio. A gente tem que preservar o corpo. Começa a chover, nós devíamos tapar aquilo, montar ali qualquer coisa para não cair água. A nós o que nos dizem (…) seria colocar um jipe da guarda por cima da vítima. Parece um bocado fora do contexto, mas é-nos sugerido isso. (…) é óbvio que se for um carro baixo não dá, mas se for um jipe da Guarda, se tenho um homicídio, prefiro tapar a vítima com o carro, não calcando a vítima obviamente, portanto, a água já não [lhe] vai cair em cima. (E11, GNR) (28) Diferentes perspetivas de gestão da cena de crime As diferentes abordagens à cena do crime, como já referido, podem estar associadas às distintas interpretações que cada OPC faz da própria legislação no que respeita à competência da gestão da cena do crime. Assim, se as polícias estão hoje mais sensibilizadas para o cenário do crime, as dificuldades associadas à transferência de competências de umas polícias para outras à medida que o cenário se vai alterando pode continuar a trazer dificuldades na resolução dos casos.

(27) (28)

A este propósito cf. Robertson e Roux, 2010. A este propósito cf. Palmer e Polwarth, 2011.

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A “passagem de testemunho” de uns para outros em função das situações concretas pode criar alguns constrangimentos adicionais, nomeadamente a quem compete a gestão da investigação (29). Esta situação porém, é potenciada pela própria LOIC que no seu artigo 8.º, sobre a competência deferida para a investigação criminal, possibilita que, “(…) desde que tal se afigure, em concreto, mais adequado ao bom andamento da investigação e, designadamente quando a) Existam provas simples e evidentes, na aceção do Código do Processo Penal (…) d) A investigação não exija especial mobilidade de atuação ou meios de elevada especialidade técnica” (LOIC, artigo 8.º, n.º 1, als. a) e b)). Assim, na ótica da PSP, [p]or exemplo, tudo o que for assalto à mão armada que não seja com arma de fogo é da competência da PSP e da GNR. Se for com arma de fogo passa automaticamente para a competência da Polícia Judiciária. Tudo o que escape a isso: crime violento, violações de todo o género é tudo com a Polícia Judiciária. (E7, PSP) (30) Estas distintas interpretações que cada OPC faz da LOIC e do âmbito das suas competências, associado ao facto de muitos casos não poderem ser tipificados no momento inicial leva a que surjam dúvidas quanto à competência de investigação (31). De facto, “(…) 90% das situações tratam de dúvidas, não que sejam muito difíceis, mas porque a formação que têm não lhes permite averiguarem essas questões”. (E8, UPT, PSP) Estas dúvidas acabam por potenciar conflitos (32) entre os diferentes OPC permitindo identificar as diferentes conceções que as distintas

(29)

Cf. artigo. 238.º do CPP, Detenção em flagrante delito; artigo 239.º do CPP, Flagrante delito; artigo 240.º do CPP, Detenção fora de flagrante delito. (30) Cf. a este propósito o artigo 7.º da LOIC. (31) Note-se que, segundo o artigo 10.º, n.º 2 “(…) os órgãos de polícia criminal devem comunicar à entidade competente, no mais curto prazo, que não pode exceder vinte e quatro horas (…)” (artigo 10.º, n.º 2, da LOIC). (32) Refere o artigo 15.º, n.º 2, al. a), que compete aos sistemas de coordenação “[v]elar pelo cumprimento da repartição de competências entre órgãos de polícia criminal de modo a evitar conflitos” (artigo 5.º, n.º 2, al. a), da LOIC). Coimbra Editora ®

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entidades fazem da abordagem ao crime. Assim, para a GNR a questão reside na lei que impõe limites à sua atuação: “Mas a legislação se fosse feita com mais calma, se fosse pensada na nossa ótica, na ótica de quem anda na rua, fazíamos as coisas, isso sim!” (E4, GNR) Deste modo, para estes agentes a lei deveria estar coadunada com o que se passa na realidade. E, sendo que estes agentes andam na rua e mais rapidamente chegam ao local, deveriam ter mais competências de intervenção, considerando-se aptos a desenvolver determinadas tarefas de forma idêntica à PJ. Argumentam ainda que essa transferência de competências e as burocracias (33) que lhe estão associadas, pode levar a que elementos de prova importantes se percam, quando se tivessem a possibilidade de dar seguimento aos primeiros atos, tal talvez não acontecesse. (…) nós não podemos fazer recolha de provas sem haver um indício óbvio de que foi aquela pessoa que o fez e a polícia tem que ter um mandado judicial. Ou seja, há situações em que quanto mais depressa se atuar, mais depressa as coisas se resolvem. Obrigam-nos no tempo a ir, a fazer o processo, vai para tribunal, depois o juiz é que ordena: “sim senhor, podem fazer as coisas”. E, entretanto, as coisas já desapareceram, já foram (E4, GNR). Em sentido inverso vai a posição da PJ para quem os outros OPC devem apenas preservar e nada mais. O facto de a polícia de proximidade por vezes recolher vestígios no local, nomeadamente objetos com o argumento que é para preservar está a alterar a cena do crime. Portanto, não deve tocar. Guardar, preservar… guardar é proteger, mas que permita uma leitura por quem vai ter que investigar, que permita uma leitura do todo e do particular (…) (E17, PJ).

(33)

Também Machado e Santos (2012: 155) abordaram esta questão evidenciando que um dos constrangimentos relacionados com a atividade policial respeita à “(…) a existência de legislação que faz depender de uma ordem de um juiz a atuação policial em matéria de recolha de amostra biológica em suspeitos de prática de crime”. Investigação criminal

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Atendendo à função que lhes compete, e não sendo da competência dos outros OPC a investigação, consideram os elementos da PJ que os meios de que aqueles dispõem são suficientes. Porém, na prática, não só intervêm como podem corromper o local. Não pode acontecer como já aconteceu um dia de se chegar ao local e estarem 12 elementos da PSP presentes, mais as três pessoas que coabitavam com a vítima, mais dois do INEM. Isto não pode acontecer no local do crime, porque senão que garantias temos nós que estamos a processar o local conforme ele está? Este local de certeza que foi corrompido (E17, PJ). A realidade encontrada leva a que em inúmeras situações, não apenas os inspetores da PJ quando entram na cena de crime se deparem, como vimos, com várias pessoas no local, como ainda se verifica que os outros OPC circulam e manuseiam o local. (…) o que é certo é que, por regra, [os outros OPC] mexem no cadáver, entram no local, fazem fotografia de pormenor, o que significa que estiveram muito próximos dos vestígios, andam pelo local do crime, não se sabe muito bem como, mas pelo ar não é! De certeza que introduzem alterações e contaminam o local. E depois quando concluem que é crime, contactam a Polícia Judiciária para ir ao local (E17, PJ). De novo, as ambiguidades da própria LOIC e o facto de a priori, ser difícil tipificar um crime, pode gerar situações de incerteza e, consequentemente, permitir alguns atropelos às competências de cada OPC. Umas, devido simplesmente a dúvidas quanto ao cenário que presenciam, outras em que os primeiros elementos a chegar ao local pensam tratar-se de uma situação, vindo-se a revelar outra: Mas então, aparece um cadáver e a PSP ou a GNR, a polícia de proximidade vai ao local, chama os seus investigadores e eles fazem ali um exame, que eu digo ad hoc, sem grandes regras, sem grandes cuidados e concluem: isto é um suicídio. Pronto, é um Coimbra Editora ®

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suicídio, não comunicam à PJ! O cadáver segue para o necrotério, é feita autópsia, são feitos exames complementares, e às tantas chega-se à conclusão que não era suicídio, era homicídio. (…) E a PJ fica com quê? Fica com um homicídio nas mãos, não houve inspeção ao local, a inspeção nunca mais se pode fazer, a inspeção faz-se na hora, não se faz depois (…) (E17, PJ). Outras, ainda, em que a PSP ou a GNR fazem um entendimento diferente e atuam sem dar conhecimento ao órgão competente. E, saliente-se, ainda, que dadas as dúvidas geradas pela própria LOIC, casos há em que, no limite, a PJ nem sequer é chamada, apenas havendo intervenção das polícias de proximidade, muitas vezes sem que a própria PJ tenha consciência dessa situação. “Então eu estava de prevenção, houve um homicídio em Sacavém e eu não sou chamado? O que é que se passa? Só tomamos conta da história pelo ponto de vista do jornal no dia seguinte” (E7, PJ). Assim, se estamos longe da investigação criminal que se fazia na era pré-ADN parece, porém, que a introdução de novas tecnologias no auxílio à investigação criminal, embora sendo já uma realidade no nosso país, continua a reger-se por certos particularismos (Costa, 2003). Num contexto de cientifização de trabalho policial pobre e procedimento frouxo (Palmer e Polwarth, 2011), importa perceber de que forma é que as especificidades da investigação criminal portuguesa se coadunam com a Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro. 4. A BASE DE DADOS DE PERFIS DE ADN NO TERRENO Para além de as entrevistas se terem centrado com grande ênfase nos procedimentos realizados na investigação criminal, seria incontornável não abordar a questão da lei das bases de dados de perfis de ADN e de que forma é que os agentes de terreno a percecionam. Da análise dos extratos dessas mesmas entrevistas encontram-se duas posições de certo modo conflituantes: quando questionados sobre as potencialidades da identificação por ADN e recurso às bases de dados o otimismo é notório, porém, quando confrontados com a atual legislação em vigor, a descrença instala-se. Investigação criminal

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4.1. O potencial da identificação por ADN contexto português Não obstante o reconhecimento de que a tecnologia de identificação por perfis de ADN “[é] extremamente importante” (E17, PJ), é igualmente dada particular relevância ao facto de a prova de ADN se constituir como um meio de prova adicional ao conjunto das outras provas à disposição da justiça e que possibilita um grau de certeza maior, sendo considerado que “[o] ADN é mais uma prova (E6, PJ) “(…) mas que (…) pesa muito mais porque o ADN é uma prova identificativa a 100%” (E6, PJ). Esta visão é partilhada também pelas polícias de proximidade, para quem “[n]esse tipo de crimes [homicídios] tenho a certeza absoluta que é essencial o ADN” (E4, GNR), porém, revelando algumas dúvidas quanto ao potencial deste novo instrumento para a sua atividade quotidiana e no auxílio à investigação, tendo em conta a legislação que a enquadra. Os entrevistados destacam ainda o poder da prova de ADN relativamente às suas antecessoras, ressaltando a cientificidade deste novo meio de prova que veio alterar a forma como o crime é investigado, tendo a confissão do autor dado lugar à prova de ADN. (…) o investigador passou a ter uma ferramenta que facilita muito o seu trabalho. Eu não preciso que o autor confesse coisíssima nenhuma, não é? O seu corpo coloca-o nos locais. Ou seja, a prova rainha deixou de ser a confissão, passou a ser a prova científica. Nós, investigadores da PJ, temos perfeita consciência disto! Eu preciso é de colocar o indivíduo no local. E depois os vestígios falam por si, não é? (E17, PJ). Outra alteração de monta verificada com a introdução do ADN respeita à perceção transmitida de infalibilidade da ciência. Encontrávamos uma ponta de cigarro no local do crime, a ponta de cigarro era valorizada, mas o que é que nos dava? Só nos dava se o tipo que a fumou, se o homem que o fumou … se era do grupo ORH positivo ou ORH negativo. (…) Atualmente essa mesma ponta de cigarro diz-nos quem foi exatamente (E7, PJ). Coimbra Editora ®

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Esta certeza que o ADN veio trazer à investigação é considerada pelos entrevistados como crucial tendo proporcionado “ (…) uma revolução completa” comparável apenas à introdução das impressões digitais (E7, PJ). Esta revolução de que fala o entrevistado, na verdade, refere-se à introdução do ADN na investigação criminal mas com a base de dados de perfis genéticos no horizonte. E aqui coloca-se então a questão de perceber de que forma é que as práticas policiais se ajustaram à evolução da ciência ou, melhor, de que forma é que a cientifização do trabalho policial com vista à eficácia que, alegadamente, esta tecnologia ao serviço da justiça acarreta, contribuiu para a melhoria da investigação criminal. E, a este nível, o discurso de euforismo anteriormente constatado perde ímpeto. É assim, olhe, eu gostaria muito de lhe dizer que passamos a ter uma taxa de sucesso muito maior, mas não, mas não. A taxa de sucesso tem vindo a decrescer não obstante o ADN. Agora quanto é que ela não desceria mais se não tivéssemos o ADN? (E7, PJ). Assim, se a introdução do ADN nos procedimentos policiais é entendido como tendo provocado uma revolução na investigação criminal que veio conferir mais certeza e economia de tempo e de custos à investigação, a introdução da base de dados deveria ser considerada como o culminar de um processo tendente à maximização da eficácia deste instrumento. No entanto, parece que não é isso que se tem verificado, como analisaremos de seguida. 4.2. Descrença na eficácia da base de dados genéticos forense no contexto português A euforia manifestada em relação às possibilidades trazidas com a introdução do ADN na investigação criminal parece não ter correspondência quando se passa para uma discussão mais centrada na lei que regula o funcionamento das bases de dados de perfis de ADN em PorInvestigação criminal

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tugal, podendo mesmo considerar-se que a relação entre a crença no potencial do ADN e a sua aplicabilidade na Lei n.º 5/2008 é inversamente proporcional, sendo vários os fatores que contribuem para a descrença na eficácia da atual legislação. A posição dos entrevistados revela-se assaz crítica, sendo a tónica colocada na maior parte das vezes, no escasso número de perfis de ADN que comportam a base de dados e que, consequentemente a tornam ineficaz: (…) eu não sei porque é que esta base tem sido um sucesso! Não, não compreendo! Quer dizer, ouço queixas de todos os lados. Acho que também fizeram mal os cálculos, fizeram mal os cálculos. Contabilizavam como seis mil loads todos os anos… (E1, PJ). E, embora as previsões fossem mais otimistas (34), na realidade, os números reais surgem bastante aquém — “[n]ão chegamos à centena! E há muita nebulosidade à volta disto! (E3, LPC). O escasso número de perfis de ADN já inseridos na base, embora sendo a questão que mais ênfase tem nos discursos, tem múltiplas causas que foram igualmente identificadas pelos entrevistados, destacando alguns aspetos da lei que mitigam essa mesma eficácia. Em particular, a questão da: a) recolha de amostras; b) ordem de introdução; c) o consentimento; d) suspeito vs condenado; e) permanência dos perfis na base de dados; f) compressão de direitos; e, por último, g) o ADN como prova rainha. a) Recolha de amostras O n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 5/2008 refere-se à recolha de amostras para efeitos de investigação criminal estipulando que esta, em processo-crime, “(…) é realizada a pedido do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz, a partir da constituição

(34)

Para uma análise dos países mais otimistas (permissivos) e mais pessimistas (restritivos) cf. Machado et al., 2008; Machado e Santos, 2012, Parry, 2008. Coimbra Editora ®

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de arguido (…)”. Este é um dos artigos que mais celeuma tem provocado junto dos atores que intervêm na investigação criminal, dando a possibilidade ao arguido de pedir a recolha o que, na opinião dos entrevistados, parece não fazer sentido. Por outro lado, embora se entenda que esta possa ser uma forma de salvaguardar os interesses do arguido, será difícil perceber as motivações de um arguido para desejar ver o seu perfil inserido na base de dados. Mas alguém acredita que um arguido vai pedir que o seu perfil conste de uma base de dados? Que vai ficar ali, que vai estar disponível para comparar com todos os vestígios que venham a aparecer no resto da vida dele? Mas alguém acredita nisto? Só se eu for ingénuo! (E17, PJ). b) Ordem de introdução Coloca-se ainda neste ponto a questão da ordem de introdução. Sendo que a lei refere expressamente no seu artigo 8.º que a ordem de introdução cabe “oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz”, parece que têm surgido resistências por parte deste ator à introdução do perfil na base de dados de ADN, ora por desconhecimento da lei (Machado e Prainsack, 2012) (35), ora por entendimento diferente de que terá que realizar um despacho para recolha de ADN e outro despacho para introdução do perfil, ora, ainda por questões de ordem financeira (36) que uma tal decisão implica. Depois temos ordenada por despacho do juiz … Pois, mas isto tem custos! Quem é que paga? Os tribunais não têm dinheiro!

(35)

“The fact that judges do typically not order the inclusion of DNA profiles of individuals receiving prison sentences of three years or more, apparently due to insufficient information on how the forensic DNA database operates, was reported by the press as the main cause of this delay” (Machado e Prainsack, 2012: 48). (36) Segundo Machado e Prainsack (2012) um teste de ADN para inclusão na base de dados pode custar entre 204 e 714 euros Investigação criminal

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O juiz vai ordenar, mas quê? A partir do momento em que condena? Porque até lá, até trânsito em julgado presume-se a inocência do indivíduo! Então, pode-se recolher mas não se pode meter na base de dados (E17, PJ). c) O consentimento Outro entrave mencionado pelos entrevistados respeita à necessidade de consentimento livre, expresso e informado por parte do indivíduo, argumentando que, tratando-se de um procedimento simples, a autorização do indivíduo pode constituir-se como mais um obstáculo ao bom andamento do processo. “(…) a recolha de ADN é muito simples — faz-se com uma zaragatoa bocal, parece que estamos a escovar os dentes… É uma coisa natural, mas carece de autorização da pessoa. Outro empecilho legal!” (E5, PSP). d) Suspeito vs Condenado Os entrevistados deste estudo referem-se também à distinção entre suspeito e arguido como mais uma limitação ao bom funcionamento da lei. Enquanto em Portugal apenas os indivíduos condenados a uma pena efetiva superior a três anos podem ser incluídos na base de dados, a legislação de outros países (como a da Irlanda ou Inglaterra) contempla a introdução de suspeitos (McCartney, 2004; Kaye, 2006; Pereira, 2008). Desta forma, esta restrição da lei portuguesa ajuda igualmente a limitar o escopo de indivíduos inseridos na base de dados e, consequentemente, limitando o trabalho dos investigadores criminais. Para além disso, ao não contemplar os suspeitos, de novo, garantindo a salvaguarda dos direitos de cidadania, segundo os entrevistados, acaba por colocar em desigualdade as vítimas, os suspeitos e os agressores protegendo mais, nesta ótica, os agressores e os suspeitos do que as vítimas. Denota-se, igualmente, alguma nebulosidade relativamente aos critérios de inserção na base de dados, suscitando muitas dúvidas, não só relativamente à ordem para inserção do perfil, já referida, mas que Coimbra Editora ®

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tipo de amostra pode ser inserida, em particular, as amostras-referência e as amostras-problema. Então, se eu tiver aqui um vestígio, se tiver aqui um termo de comparação e se tiver aqui a amostra-problema e tiver já a amostra, posso comparar diretamente, ou tenho que esperar que a amostra-problema seja ordenada pelo juiz? A amostra-problema, não, a amostra-referência (37) seja ordenada pelo juiz, tenha o estatuto de arguido, ou posso fazer comparação imediata? E dizem alguns: Não, não! Pode fazer comparação direta (…) à base de dados! Ok, não se aplica, mas o que é que eu faço a um perfil quando o determinei? Estou logo no mesmo dia a comparar? E se não for no mesmo dia? Retenho o perfil, mas retenho o perfil em que base ilegal? Na minha memória? Num apontamento que foi … num papel? No meu computador? (E3, LPC). A tecnologia de identificação por perfis de ADN sendo já usada há alguns anos no nosso país, permitia identificar alguns hits que, agora com a introdução da Lei n.º 5/2008 veio de novo trazer dúvidas acrescidas acerca do que fazer com as amostras problema recolhidas em cena de crime. Estas, que segundo a lei, não podem ser introduzidas na base de dados, poderiam vir engrossar o número de perfis inseridos, no entanto, à luz da atual lei, não é possível dar-lhes um enquadramento legal claro. Apenas com uma alteração legislativa, estes perfis poderiam vir alimentar a base de dados, permitindo aumentar também a sua eficácia. e) Permanência dos perfis na base de dados Outro entrave assinalado diz respeito ao tempo de permanência dos perfis na base de dados que, segundo um dos entrevistados, uma vez

(37)

“(…) a amostra utilizada para comparação” (artigo 2.º, al. d), da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro. Investigação criminal

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mais, deve-se ao excesso de garantismo da lei e que, ao querer limitar o tempo de permanência desse registo na base de dados, ajuda a restringir o número de perfis possíveis de aí constar, considerando que “[s]e nós tivéssemos nas impressões digitais regras dessas, as nossas bases eram praticamente ineficazes também!”(E3, LPC) f) Compressão de direitos Na parte inicial deste capítulo referimos que, não obstante o potencial desta tecnologia ao serviço da justiça, a sua operacionalização implica riscos, e, em particular, riscos para os cidadãos e para os direitos de biocidadania (38). Nas palavras de Machado e colegas: As bases de dados genéticos por perfis de ADN representam o reforço dos poderes do Estado, em nome do bem colectivo — a segurança e a tranquilidade; mas essa necessidade pode significar a compressão e limitação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (Machado et al., 2011: 11). De facto, as conquistas efetuadas ao nível das tecnologias, se proporcionam mais segurança, acarretam perda de direitos e, em particular, da liberdade dos indivíduos. Como refere McCartney (2004: 165), “[a] provisão de segurança sempre foi negociada com a perda de liberdade para os cidadãos (…)”. Deste modo, quanto mais se alarga a vigilância no combate ao crime, através do aumento da base de dados, mais se restringem os direitos dos cidadãos. E, se uns a entendem como uma forma de mitigar os direitos e de certa forma, uma violação dos direitos de cidadania, outros consideram que esse é o preço a pagar para uma sociedade mais segura. A Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro, tentou, de

(38)

O conceito de biocidadania ou cidadania genética foi proposto por Rose e Novas (2005) no sentido de descrever os processos pelos quais os indivíduos vão construindo e reconstruindo a sua identidade em função do avanço do conhecimento científico e tecnológico associado aos genes e à biotecnologia. Coimbra Editora ®

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certa forma, encontrar um equilíbrio entre a necessidade de gerar segurança e combater eficazmente o crime, mas não descurando direitos básicos de cidadania. Porém, ao balançar estes dois elementos, segundo os entrevistados, acabou por retirar, mais uma vez, potencial de eficácia à base de dados, sob a capa de “velhos fantasmas” e falácias de que os marcadores utilizados podem permitir o conhecimento de outras informações acerca dos indivíduos inseridos (39) (40). Aquele perfil genético não é uma parte da pessoa, é uma marca que a pessoa deixou! Eu não tenho que tratar um vestígio de ADN da mesma maneira como trato uma parte da pessoa! Não tenho que tratar como se fosse uma peça do corpo da pessoa! Não tenho que lhe dar uma dignidade pessoal! Ela deixou ali uma marca, que ficou lá! Ela marcou através da sua biologia, ela marcou a sua passagem, mas não comprimiu a sua personalidade! (E3, LPC) (41). g) ADN como prova rainha Por último, refere claramente o artigo 38.º da Lei n.º 5/2008 que não pode haver condenação com base numa única prova levando a que,

(39) O artigo 2.º, al. e), da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro define o marcador de ADN com “a região específica do genoma que tipicamente contém informações diferentes em indivíduos diferentes, que segundo os conhecimentos científicos existentes não permite a obtenção de informação de saúde ou de características hereditárias específicas, abreviadamente ADN não codificante”. (40) Machado et al. (2008: 123), consideram que “(…) o crescente processamento e armazenamento de informação de carácter individual tem vindo a despoletar inquietudes e incertezas, acompanhadas pela expansão sobre o potencial poder informativo do ADN e por receios de que tais dados possam ser usados de modo indesejável, tanto por agentes estatais como privados”. A propósito de outros usos que podem ser feitos cf. McCartney, 2004; Dahl e Saetnan, 2009; Williams et al., 2004, Palmer e Polwarth, 2011. (41) A este propósito cf. Oliveira, 1999 e a distinção realizada entre partes íntimas (sangue ou sémen) e não íntimas (como os cabelos, unhas ou saliva) do corpo humano. Cf. também Kaye, 2006.

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em inúmeras situações em que os vestígios são escassos, mas havendo um que poderia levar à condenação de um indivíduo, acabem por não permitir uma condenação. Consequentemente, embora podendo haver vestígios recolhidos no local do crime, no suspeito ou na vítima que, eventualmente, poderiam vir auxiliar na descoberta da verdade, atendendo aos condicionalismos e cautelas da lei, acabam por ter uma utilidade, em muitas situações, nula. É que nós temos o raio de um artigo 38.º, se não estou em erro, dessa base de dados que vai deitar tudo por terra! Ou seja, nós até aqui, tínhamos um crime, por exemplo, um abuso sexual. A senhora não era capaz de reconhecer o fulano. Mas nós tínhamos uma suspeita relativamente a um fulano. Fomos fazer comparação de teste de ADN com aquele fulano. Ele ia dentro, era condenado, sem apelo nem agravo (E7, PJ). Assim, a introdução da Lei n.º 5/2008 em vez de ter possibilitado uma maior abertura do sistema e um acesso mais fácil da identificação dos autores de crimes, ao não permitir que a prova de ADN se constitua como prova única num processo acaba, mais uma vez, por limitar o trabalho de investigação criminal. 4.3. Um balanço preliminar da lei em vigor Desta forma, concluem os entrevistados que esta base de dados é marcada pela resistência e medo de quem a desenhou, implementou e legislou sendo que “[o]s medos levaram a melhor!” (E2, PJ) Eu acho que o legislador português continua a viver com o fantasma da velha senhora e então tudo serve para … repare que se falou da base de dados … a base de dados de perfis de ADN. Isto vai ser utilizado para determinar quem tem doenças infeciosas, quem tem tendências homossexuais, quem tem não sei o quê! Quem é filho de preto, quem é filho de branco! Isto chega a raiar o ridículo, não é? (E17, PJ). Coimbra Editora ®

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Não obstante as críticas feitas a esta lei nenhum dos entrevistados propõe outro modelo. Reconhecem, aliás, que não existe um modelo ideal, embora conscientes de que o modelo encontrado para Portugal tem sido inoperante. E, independentemente de haver modelos mais expansivos ou mais restritivos (Machado et al., 2008; Machado e Santos, 2012; Parry, 2008), consideram que o modelo adotado em Portugal fracassou, sobretudo por não ter permitido atingir a eficácia a que se propôs. A conclusão natural a que chego também é que não existe um modelo único de importação. Não vale a pena dizer que vamos fazer como os ingleses, ou como os franceses ou como os espanhóis! Quer dizer, cada um encontrou o seu próprio modelo. Ehhh… Mas todos se organizaram para uma perspetiva de eficácia. (E3, LPC). Esta perspetiva da eficácia parece, de facto, ter fracassado em Portugal, argumentando um dos entrevistados que, em parte, essa responsabilidade se deve aos políticos e à falta de vontade da Comissão Nacional de Proteção de Dados Pessoais (CNPDP) que, não sendo apologista da sua implementação, criou muitos obstáculos. “A culpa disto é dos políticos, da Comissão de Proteção de Dados, é de quem fez a Lei” (E7, PJ). E enfatiza também as cedências que foram necessárias para se conseguir ter uma legislação desta natureza, em que “(…) para conseguirem essa base de dados foi uma cedência brutal face àquilo que queríamos inicialmente” (E7, PJ). São precisamente as cautelas criadas pela própria lei que, ao limitarem o tipo de crimes e de perfis que podem ser inseridos na base, de novo, limitam a sua eficácia. Assim, os entrevistados questionam se uma base de dados universal não permitiria maior eficácia e de que forma é que uma tal decisão poderia limitar os direitos dos cidadãos. Porque é que nós temos que ter uma Comissão de Proteção de Dados com mais poderes ao nível da Europa? Somos assim um país assim tão respeitador dos Direitos Humanos? Claro que somos, obviamente que somos. Mas temos que ter, de facto, temos que ser Investigação criminal

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nós o país com uma Comissão de Proteção de Dados que tem mais poderes que em todo o lado a nível europeu? (E7, PJ). Para além disso, sustentam existir há muito em Portugal uma base de dados de impressões digitais e que ninguém questiona o seu uso e com a qual todos convivemos pacificamente há várias décadas (Frois, 2012). “Para não irmos ao exemplo do DNA, mas um outro que é muito mais antigo — todos temos as nossas impressões digitais no Bilhete de Identidade, todos” (E2, PJ). Sendo idêntico argumento usado também pela PSP. Uma recolha de uma impressão digital é a mesma coisa! (…) Os bebés tiram o cartão de cidadão já em bebés! E vão deixar lá a sua identificação lofoscópica, como também deixam a sua identificação biológica quando lhe é feito o registo. Isto é uma falsa questão! (E8, UPT, PSP). Por que não, quando as pessoas nascem, ser logo coaxados na base de ADN? Porquê? Porque é que havemos de estar só a comparar com suspeitos? Todos somos suspeitos! (E5, PSP). E, se em relação às impressões digitais tradicionais a polícia pode aceder sem reservas, já o mesmo não se passa em relação às impressões genéticas, já que à polícia está interdito o acesso à informação constante nos dados inseridos na base de dados. Atendendo aos baixos níveis de eficácia e o número insatisfatório de perfis inseridos na base de dados de ADN em Portugal até ao momento relativamente às pretensões iniciais, é sustentado pelos entrevistados a necessidade imperiosa de fazer um balanço e analisar com seriedade o que falhou, permitindo propor alterações à lei vigente. Não é para se andar aqui dois, três anos a olhar para as coisas! Um grupo de reflexão que em dois, três meses possa produzir um documento de análise, seja ele feito por pessoas do Ministério da Justiça, seja ele feito por pessoas … académicos, seja ele feito por magistrados, seja ele feito por quem entenderem! Mas em que se Coimbra Editora ®

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tente fazer uma análise muito objetiva do ponto, do estado a que chegámos e de quais sejam os estrangulamentos, para se poder propor um upgrade, para se poder propor uma retoma do modelo e não tem com isto que se cobrar a quem fez este modelo! (E3, LPC). E se uns apresentam uma visão mais moderada, propondo uma reflexão interdisciplinar com vista a alterar a lei, outros atores, porém, apresentam uma visão mais expansionista, argumentando pela necessidade de alargar o âmbito da lei a todos os suspeitos e tipos de amostras. Portanto, para mim é uma coisa simples, é assim: há o suspeito, há alguém que é arguido, há indícios que seja autor, faz-se uma recolha de ADN e fica na base de dados. Logicamente que estava lá, depois a identidade dele. Alguém que tivesse cometido um delito se tivesse deixado um vestígio de ADN naquele local, em detrimento da base de dados, e se batesse com alguma das pessoas que já estavam lá identificadas, então era identificada (E6, PJ). No entanto, e independentemente de, futuramente, esta lei poder vir a ser alterada no sentido de alargar o leque de situações a serem incluídas na base de dados, o sentimento geral no conjunto dos indivíduos entrevistados é de manifesto desagrado com um instrumento de grande potencial, mas muito limitado na prática, e, consequentemente, sem utilidade. (…) perante a recolha de um vestígio, nós temos … vai ter que ser comparado com alguma coisa, não é? Com um dador. Se a investigação criminal nunca chega a um suspeito, aquele vestígio não serve de nada. Se, à imagem do que acontece noutros países, poucos, pelos vistos, mas existe, houvesse uma base de dados … suficientemente … alimentada … seria … tipo CSI! Mete-se o perfil no computador e ele diz-nos: o indivíduo é este! (E17, PJ). Desta forma, sustentam, ao ser cauteloso e garantista na formulação encontrada para a lei em vigor, o legislador acabou por limitar de tal forma as situações passíveis de constar numa base de dados que a tornam obsoleta. Investigação criminal

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“Mas se apertarmos tanto a malha do filtro daqui a pouco não passa nada! Passam aqueles que voluntariamente, ou melhor, voluntariamente não, a pedido… pretendem que o seu perfil conste da base de dados” (E17, PJ). A situação de auto-esvaziamento a que o próprio legislador conduziu esta base de dados, garante assim, a permanência de perfis de voluntários, carecendo de medidas adicionais que permitam repensar formas de a alimentar e, consequentemente, dar-lhe utilidade, preenchendo de forma efetiva os fins a que se propôs. Desta forma, “(…) se nós tivermos capacidade para ‘encher’ essa base de dados do ADN, obviamente que no futuro, ajudará com certeza a resolver algumas situações” (E9, UPT, PSP). E esse engrossar de perfis da base de dados passa, simultaneamente, por lá poder inserir perfis de voluntários, mas igualmente de arguidos, de suspeitos e de vestígios de cenas de crime. Só desta forma, segundo os entrevistados, as comparações serão possíveis e, produzir resultados positivos que permitam que a ciência auxilie a justiça. (…) é tão importante ter uma base de dados dos autores, dos que mataram, dos que violaram, como ter uma base de dados dos elementos que foram recolhidos na cena do crime. Até para comparar! Por exemplo, temos este perfil, recolhido nesta cena do crime. Não sabemos a quem pertence! Não é? Desenhámos o perfil. Está desenhado, está lá arquivado. Há outro crime — eh pá, descobre-se o novo perfil … (E1, PJ). É pois notório o pessimismo evidenciado pelos operadores da investigação criminal em contexto de entrevista quanto à operacionalidade da base de dados em funcionamento em Portugal e a forma como pode auxiliar a investigação criminal na busca da verdade. Esta descrença leva-os mesmo a considerar que a atual lei não passará de “(…) um bonito projeto …” (E2, PJ), ou “à boa moda portuguesa!” (E2, PJ), uma base de dados “muito debilzinha” (E7, PJ) que, ao invés de ter vindo dar um contributo para a cientifização do trabalho policial acabou por ser “uma experiência” e uma “opção política”. Os preconceitos que a nortearam, não permitiu, segundo os entrevistados, o aprofundamento da sua eficácia, “[n]inguém quer[endo] assumir que o rei vai nu!” (E3, LPC). Coimbra Editora ®

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5. CONCLUSÃO Defendi em 2003 que a adoção de novas tecnologias de identificação por perfis genéticos em Portugal “(…)está sujeita a uma imensidade de problemas de ordem técnica e prática que a podem tornar controversa e fonte de abusos e de erros judiciais, podendo pôr em causa princípios fundamentais da cidadania e da vida democrática” (Costa, 2003: 19). Alguns desses problemas, então identificados, referiam-se a contingências ligadas à recolha, acomodação e circulação de material entre a cena do crime e o laboratório. Passada uma década, verifica-se que, não obstante os desenvolvimentos verificados nesta matéria, onde se inclui uma maior consciencialização da necessidade de preservação da cadeia de custódia e o melhor apetrechamento dos atores para a recolha de vestígios em cena de crime, continuamos a assistir a um desfasamento entre a globalização da técnica e os localismos associados à sua concretização. Num mundo em que as tecnologias de identificação genética avançam a um ritmo galopante e estas servem de forma crescente para uma sociedade vigiada, parece que em Portugal a introdução de uma base de dados de perfis genéticos em 2008 andou de forma dessincronizada com um elemento crucial para a sua credibilidade e implementação no seio da justiça criminal. A preservação da cadeia de custódia, cuja integridade se encontra permanentemente ameaçada pelas práticas rotineiras dos atores da investigação criminal e os constrangimentos que norteiam a sua atividade quotidiana resultante, em grande medida, do choque entre diferentes culturas policiais, modos de saber e práticas distintas que, juntamente com a escassez de recursos humanos e materiais, contribuem de forma negativa para a cientifização do trabalho policial e o rigor que lhe está associado (Machado e Costa, 2012). Não basta, portanto, dotar o sistema judicial de ferramentas que, em teoria, garantem maior cientificidade quer à atividade policial, quer à justiça, se o acionamento desses instrumentos esbarra na fase inicial da investigação com procedimentos incorretos por deficiente formação de quem primeiro entra no terreno. Em última análise, o não cumprimento rigoroso deste pressuposto fundamental da legislação que enquadra as bases de dados em Portugal Investigação criminal

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(o artigo 18.º, n.º 4, da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro), acaba por colocar a descoberto os potenciais riscos que esta tecnologia acarreta para os direitos de cidadania. E, se a base de dados tem como intuito vigiar e controlar os cidadãos, permitindo selecionar de entre eles os potencialmente perigosos, trazendo assim mais segurança, parece que em Portugal as bases de dados não estão a cumprir eficazmente esse desígnio, pelo excesso de garantismo que a própria lei encerra. Ao restringir o leque de potenciais suspeitos acaba por poucos poder incluir. Por outro lado, se pensarmos no seu alargamento, como preconizado por muitos, talvez não estejam reunidas as condições necessárias para garantir que, com os procedimentos reais (42) da polícia, qualquer cidadão que se veja refém da base de dados, esteja devidamente catalogado. Resulta assim desta análise o claro descontentamento dos operadores policiais quanto a este Lei n.º 5/2008 que não permite alcançar a eficácia. No entanto, este descontentamento não parece transparecer nas práticas quotidianas da investigação criminal, passando à margem dos discursos os próprios constrangimentos da investigação criminal em Portugal e que está a montante da possibilidade de introdução na base de dados. Tendo em consideração os constrangimentos identificados à investigação criminal em Portugal e as suas especificidades seria de esperar que os problemas associados à preservação da prova, fundamental para manter a cadeia de custódia intacta, pudessem ter sido devidamente acautelados numa fase prévia à introdução da Lei n.º 5/2008, sob pena de, por essa via, não haver perfis de ADN que assegurem a cadeia de custódia da prova. Por outro lado, ao ter-se avançado desta forma e, até ao momento se verificar que não se está a dar resposta cabal às boas práticas inerentes à cadeia de custódia da prova, em última análise, poderemos estar a colocar os cidadãos duplamente reféns da tecnologia: pela via da atuação policial em contexto de investigação criminal e pela via da Lei n.º 5/2008.

(42)

A este propósito cf. Machado e Santos (2012) em que abordam a polícia real por contraposição à polícia ficcional, transmitida pelas séries televisivas do género CSI. Coimbra Editora ®

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A expansão da base de dados, apenas fará sentido se primeiramente houver um trabalho prévio de munir os atores da investigação criminal de instrumentos e conhecimentos que permitam atuar com rigor em cenário do crime. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Barra da Costa, José (2008), Maddie, Joana e a investigação criminal — A verdade escondida. Lisboa: Publicações Dom Quixote, Livros d’Hoje. Barra da Costa, José (2011), “Elementar, meus caros!”, Revista de Investigação Criminal, 2, 131-144. Código de Processo Penal (2007), Aprovado pelo Decreto-Lei 78/87, 17 fevereiro, republicado pela Lei 48/2007, 29 agosto. Consultado a 31.07.2013, em http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=929&tabel a=leis&ficha=1&pagina=1. Cole, Simon (2001), Suspect identities: A history of fingerprinting and criminal identification. Harvard: Harvard University Press. Costa, Susana (2003), A justiça em laboratório: A identificação por perfis genéticos de ADN. Entre a harmonização transnacional e a apropriação local. Coimbra: Almedina. Dahl, Johanne Y.; Sætnan, Ann R. (2009), “’It all happened so slowly’ — On controlling function creep in forensic DNA databases”, International Journal of Law, Crime and Justice, 37(3), 83-103. Dror, Itiel; Hampikian, Greg (2011), “Subjectivity and bias in forensic DNA mixture interpetation”, Science and Justice, 51(4): 204-208. Frois, Catarina (2012), “Prefácio”, in Susana Durão; Márcio Darck (orgs.), Polícia, segurança e ordem pública. Perspetivas portuguesas e brasileiras. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 12-14. Garland, David (2001), The culture of control: Crime and social order in contemporary society. Oxford: Oxford University Press. Harcourt, Bernard (2007), Against prediction. Punishing and policing in an actuarial age. Chicago: University of Chicago Press. Hindmarsh, Richard; Prainsack, Barbara (eds.) (2010), Genetic suspects: Global governance of forensic DNA profiling and databasing. Cambridge: Cambridge University Press. Kaye, Jane (2006), “Police collection and access to DNA samples”, Genomics, Society and Policy, 2(1), 16-27. Kemshall, Hazel (2003), Understanding risk in criminal justice. Open University Press: Berkshire. Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro. Diário da República n.º 30/2008 — I série. Assembleia da República. Lisboa. Consultado a 31.07.2013, em http://www.dre.pt/ pdf1s/2008/02/03000/0096200968.pdf. Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto. Diário da República, n.º 165/2008, 1.ª série. Consultado a 31.07.2013, em https://dre.pt/pdf1sdip/2008/08/16500/0603806042.pdf. Investigação criminal

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PARTE IV TECNOLOGIAS NO PRESENTE, PASSADO E FUTURO

NOVAS FERRAMENTAS DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL — POTENCIALIDADES E LIMITES DA PREVISÃO DE CARATERÍSTICAS FÍSICAS ATRAVÉS DA ANÁLISE DE ADN HELENA COSTA LUÍS MIRANDA 1. INTRODUÇÃO Quando uma amostra cujo dador é desconhecido (amostra problema) dá entrada num serviço de genética forense, o seu perfil de identificação é determinado e posteriormente comparado com amostras referência (1) e/ou perfis que constam numa base de dados de ADN nacional ou internacional. Esta comparação tem como objetivo identificar o dador da amostra problema. No entanto, muitos são os casos em que a identificação não é estabelecida por não haver correspondência entre o perfil da amostra problema e qualquer perfil das amostras referência ou perfis da base de dados. Nesses casos, outras informações sobre o dador da amostra problema, nomeadamente, informações sobre o seu aspeto físico (fenótipo), podem ser importantes para a sua identificação. Muitas caraterísticas físicas (por exemplo, cor dos olhos, do cabelo e da pele, altura e traços faciais) têm por base fatores genéticos que, quando conhecidos, podem ser utilizados para prever essas mesmas caraterísticas a partir da análise de ADN. Para além disso, existindo

(1)

Amostras referência são amostras cujo dador é conhecido.

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um padrão geográfico de variação (como no tom de pele), a previsão pode ser realizada de forma indireta com base na informação relativa à origem biogeográfica do indivíduo (ancestralidade biogeográfica). Esta informação foi utilizada pela primeira vez em 2002 no Louisiana, Estados Unidos da América, na investigação de um caso de violações e homicídios em série (Frudakis, 2008). Contrariando as alegações de testemunhas oculares que afirmavam ter visto sair de um dos locais do crime um indivíduo caucasiano, o perfil de ancestralidade biogeográfica determinado com base na análise de amostras do local de crime (DNAWitnessTM 1.0 da DNAPrint Genomics) determinou que o dador das amostras apresentava caraterísticas de ancestralidade 85% africana subsariana e 15% nativo-americana. Com base nestes dados, foi apontada a probabilidade de que o suspeito teria pele escura, o que levou a uma total mudança de rumo da investigação. Um mês depois da aplicação do teste de ancestralidade e após a reconsideração de suspeitos que haviam sido excluídos por não corresponderem às caraterísticas físicas apontadas pelas testemunhas, foi capturado o perpetrador das violações e homicídios. Também no Canadá foi noticiada em 2005 a utilização do método indireto de previsão, à data disponibilizado pela ADNPrint Genomics (Abraham, 2005). Em Espanha a determinação da origem biogeográfica de indivíduos alegadamente envolvidos nos atentados de 11 de março de 2004 ajudou a restringir o número de suspeitos a considerar na investigação bem como a sua eventual afiliação a organizações terroristas que poderiam estar envolvidas no atentado (Phillips et al., 2009). Os casos apresentados revelam a utilidade dos métodos de previsão de caraterísticas fenotípicas na análise de amostras de local de crime ou até de corpos em avançado estado de decomposição, permitindo a poupança de tempo e outros recursos importantes para as investigações. É, no entanto, importante salientar que a previsão de caraterísticas físicas do dador de uma amostra a partir da análise do ADN, ao contrário da determinação e comparação de perfis de identificação, não tem por objetivo identificar inequivocamente o dador da amostra, mas sim limitar as possibilidades a considerar no âmbito de uma identificação. Outra diferença significativa entre os métodos de previsão de caraterísticas Coimbra Editora ®

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físicas e os métodos de determinação e comparação de perfis de identificação diz respeito ao tipo de marcadores genéticos utilizados, como adiante será explicado. 2. MARCADORES POLIMÓRFICOS DE ADN O genoma humano contém a informação sobre como o organismo deve crescer, configurar-se e funcionar, informação essa que se encontra armazenada no ADN sob a forma de um código — o código genético. Este código está “escrito” em quatro letras (A, G, C e T) cuja ordem (ou sequência) determina, em parte, a diferença entre ser alto ou baixo, ter olhos castanhos, azuis ou verdes, ter ou não predisposição para desenvolver cancro, Alzheimer, etc. Estas informações encontram-se em locais específicos do genoma (designados de loci; singular — locus). Existem também loci que apresentam uma enorme variação entre indivíduos mas que não estão relacionados com qualquer característica física, patológica ou comportamental, sendo utilizados na distinção individual ou identificação. Assim, quando se pretende estudar determinadas caraterísticas com base genética ou identificar indivíduos com base em amostras biológicas, recorre-se à análise de marcadores genéticos. Os marcadores genéticos são segmentos de ADN cuja sequência e posição no genoma é conhecida. Tem sido proposta a distinção entre marcadores distintivos e marcadores preditivos. Os marcadores distintivos são usados na determinação de perfis de ADN, sendo que esta informação pode ser armazenada em bases de dados nacionais, enquanto os marcadores preditivos são usados na previsão de caraterísticas físicas (Kayser e Schneider, 2009). Tanto os marcadores distintivos como os preditivos apresentam uma caraterística comum: são polimórficos, ou seja, no local do genoma (locus) onde se situa o marcador, observam-se diferentes configurações da sequência de ADN (diferentes alelos) em diferentes indivíduos. As diferentes configurações observáveis ao nível da sequência de ADN variam entre uma simples substituição de um único nucleótido na sequência até alterações de maiores dimensões que envolvem longos fragmentos de ADN, pelo que existem vários tipos de polimorfismos de ADN. Tecnologias no presente, passado e futuro

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No âmbito da análise de ADN em contexto forense destacam-se dois tipos de polimorfismos: os STRs (Short Tandem Repeats — curtas repetições em tandem) e os SNPs (Single Nucleotide Polymorphisms — polimorfismos de um único nucleótido) que se encontram esquematizados na Figura 1.

Figura 1 — Esquema ilustrativo dos polimorfismos STR e SNP. Os STRs (em cima na figura) são polimorfismos nos quais se observa um número variável de repetições. Neste caso, o STR TPOX apresenta dois alelos com 7 e 8 repetições da sequência AATG. Nos SNPs (em baixo na figura) o polimorfismo reside na alteração de um único nucleótido na sequência de ADN

Os STRs, também designados microssatélites, consistem em sequências em que se observa um padrão (de um a seis nucleótidos) que se repete um número variável. Assim, a título de exemplo, no STR TPOX (esquematizado na Figura 1), usado na identificação forense, o tetranucleótido (sequência de 4 nucleótidos) (AATG)n é repetido “n” vezes (com “n” a variar entre 5 e 16) (2).

(2)

De acordo com os dados disponíveis no sítio “ALFRED — The ALleleFREquancy Database”, que disponibiliza dados de frequências genéticas em populações humanas e é apoiado pela Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos (http:// alfred.med.yale.edu/ consultado a 09.01.2013). Coimbra Editora ®

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Entre as principais caraterísticas dos STRs destacam-se o seu elevado poder informativo como marcadores genéticos (uma vez que apresentam vários alelos), a possibilidade de serem testados (ou genotipados (3)) por métodos baseados em PCR (técnica laboratorial que permite aumentar de forma exponencial o número de cópias de um segmento genético de interesse) e a facilidade de partilha de informação sobre os marcadores. Estas caraterísticas fazem dos STRs os marcadores de eleição na identificação forense. Os mais recentes kits multiplex (painéis com vários marcadores) usados na identificação forense permitem a obtenção de perfis com probabilidades de correspondência aleatória de 1,36x1028 (cerca de um em dez mil quatriliões de indivíduos (4)). O desenvolvimento desses painéis em conjunto com os avanços técnicos, nomeadamente ao nível das tecnologias de análise de genomas (em particular a eletroforese capilar), tornou possível o desenvolvimento de bases de dados de ADN nacionais que constituem importantes ferramentas na investigação criminal. Por seu turno, os SNPs correspondem a polimorfismos nos quais se observa a alteração de um único nucleótido na sequência de ADN (Figura 1). Trata-se do tipo de polimorfismos mais frequente no genoma humano representando cerca de 85% das variações ao nível da sequência de ADN, encontrando-se distribuídos por todo o genoma. A maioria dos SNPs apresenta apenas dois alelos (são bialélicos), o que os torna menos informativos do que os STRs, que tipicamente apresentam entre 5 e 20 alelos, pelo que a substituição dos STRs pelos SNPs ao nível da identificação implica a análise de um conjunto mais alargado de marcadores para que o mesmo nível de distinção seja atingido. Na prática, para se obter o mesmo nível de distinção obtido com 13 STRs são necessários cerca de 50 SNPs, em ambos os casos, loci especialmente selecionados para o efeito (Budowle e Daal, 2008). Esta (3)

O processo de genotipagem corresponde à determinação do(s) alelo(s) presente(s) numa amostra, num determinado locus ou em vários loci. (4) Dados relativos ao PowerPlex® Fusion System da Promega disponíveis em: http://www.promega.com/products/pm/genetic-identity/powerplex-fusion/ consultados a 21.01.2013. Tecnologias no presente, passado e futuro

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limitação tem vindo a ser ultrapassada com o desenvolvimento de novas tecnologias de genotipagem que permitem a análise de milhares de SNPs em cada teste; para além disso, a reduzida dimensão dos fragmentos de ADN que é necessário amplificar por PCR na genotipagem de SNPs torna-os vantajosos na análise de amostras degradadas o que constitui uma vantagem importante no campo forense. Sendo frequentes em regiões codificantes (5) ou próximo das mesmas, e uma vez que estas regiões influenciam de forma direta as caraterísticas fenotípicas, os SNPs assumem um papel relevante na sua previsão. Em contraste, os STRs apresentam uma relativamente baixa prevalência no genoma e apenas alguns destes polimorfismos se encontram associados a efeitos funcionais, como, por exemplo, na doença de Huntington (Orr e Zoghbi, 2007). A menor taxa de mutação associada aos SNPs (comparativamente com os STRs) contribui para efeitos de subestruturação da população. Este efeito é fruto da influência das forças evolutivas (mutação, deriva genética, mistura e seleção natural) que faz com que em determinados loci se observem diferentes frequências alélicas em diferentes grupos de seres humanos. Em termos práticos, um conjunto de 10 SNPs permite obter uma informação sobre a ancestralidade biogeográfica de um indivíduo semelhante à obtida recorrendo à análise de 377 STRs (Lao et al., 2006). Assim, apesar de ambos os tipos de polimorfismo (SNPs e STRs) poderem ser usados para determinar a ancestralidade biogeográfica de um indivíduo, os SNPs são os polimorfismos de eleição. Em suma pode então dizer-se que, apesar de ambos os tipos de polimorfismos poderem ser usados como marcadores distintivos e preditivos, os STRs são mais vantajosos do que os SNPs no campo da identificação mas que no campo da previsão os SNPs são os polimorfismos de eleição.

(5)

Regiões codificantes são segmentos do genoma que contêm as instruções para sequências de aminoácidos que compõem as proteínas. Este tema será desenvolvido adiante. Coimbra Editora ®

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Recapitulando, marcadores distintivos e marcadores preditivos distinguem-se ao nível dos polimorfismos analisados (tipo de variação ao nível da sequência de ADN) e nível de variação com que se relacionam: com a variação interindividual, interpopulacional, ou fenotípica (caraterísticas físicas), como se encontra esquematizado na Tabela 1. Por outras palavras, analisando marcadores distintivos identificamos indivíduos, pois estes marcadores apresentam um elevado grau de variação intrapopulacional ou interindividual, enquanto com marcadores preditivos pelo método indireto prevemos a população biogeográfica de origem e pelo método direto prevemos caraterísticas físicas (ou fenótipos). Tabela 1 Caraterísticas dos marcadores distintivos e dos marcadores preditivos Marcadores preditivos Marcadores Variação

Marcadores distintivos

Tipo de polimorfismo mais utilizado

STR

Tipo de variação observado

Interindividual

Método indireto

Método direto

SNP Interpopulacional

Fenotípica

3. PREVISÃO DO ASPETO FÍSICO A PARTIR DA ANÁLISE DE ADN Como foi anteriormente referido, a previsão de fenótipos é útil quando o dador de uma amostra não pode ser identificado pela correspondência de perfis de identificação e pode ser realizada de duas formas — indireta (através da determinação da ancestralidade biogeográfica) e direta (através do estudo de marcadores genéticos diretamente relacionados com as caraterísticas fenotípicas). Os métodos de previsão permitem obter informações acerca da aparência do dador da amostra que Tecnologias no presente, passado e futuro

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se pretende identificar, mas não a sua identidade, funcionando como uma espécie de testemunha ocular. 3.1. Previsão pelo método direto O método direto de previsão de caraterísticas fenotípicas baseia-se na determinação da probabilidade de que num indivíduo se observe uma determinada caraterística com base na análise do seu ADN. A aplicação deste método é apenas possível quando são conhecidas as bases genéticas da caraterística em causa, o que muitas vezes não se verifica relativamente aos traços físicos. A maioria das caraterísticas físicas como a altura, os traços faciais e a cor dos olhos, do cabelo e da pele, são determinadas por vários genes o que torna complexa a tarefa de prever estas caraterísticas pelo método direto. No entanto, nos últimos anos têm vindo a ser criadas bases de dados com informações relativas a milhares de marcadores em diversas populações (6), o que, em paralelo com o número crescente de estudos de associação que envolvem todo o genoma (GWAS) (7), têm avolumado o conhecimento relativo às determinantes genéticas dos traços complexos. 3.2. Género ou sexo No âmbito forense, a dedução do género ou sexo é geralmente realizada através da análise do gene da amelogenina que está presente em ambos os cromossomas sexuais. Na cópia deste gene presente no cromossoma X observa-se a ocorrência de uma deleção de 6 pares de bases (8),

(6)

Exemplos: Human Genome Diversity Cell Line Panel (HGDP, CEPH), the allele frequency database (ALFRED), Database of single nucleotide polymorphisms of the National Centre for Biotechnology Information (NCBI dbSNP), HapMap e 1000 Genomes. (7) Os estudos de associação que envolvem todo o genoma (GWAS — do inglês Genome-Wide Association Studies) são utilizados para identificar os fatores genéticos que influenciam as caraterísticas fenotípicas, sejam elas morfológicas, bioquímicas ou patológicas. (8) Ocorrência de uma deleção de 6 pares de bases — nesta região observam-se menos 6 pares de bases do que na região correspondente do cromossoma Y. Coimbra Editora ®

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pelo que a deteção dessa diferença permite prever o sexo do dador da amostra (Figura 2).

Figura 2 — Determinação do sexo pelo marcador da amelogenina. Através da amplificação por PCR obtêm-se fragmentos de tamanho diferente nos cromossomas X e Y, consoante a presença ou ausência de deleção (à esquerda na figura). Em eletroforese capilar (9) (à direita na figura), os fragmentos de diferente dimensão originam 2 picos (em cima — X, Y) enquanto os fragmentos de igual dimensão (ausência de deleção) originam um só pico (em baixo — X, X)

O marcador descrito está incluído na maioria dos testes de identificação forense, não estando, no entanto, livre de erro. Existem outras metodologias que permitem identificar o sexo do dador da amostra, como, por exemplo, uma abordagem recentemente proposta (Keating et al., 2012) que integra SNPs da região não recombinante do cromossoma Y (NRY) e do cromossoma X. 3.3. Traços relacionados com a pigmentação Tratando-se de um conjunto de caraterísticas com forte componente hereditária, os traços relacionados com a pigmentação tornaram-se um alvo preferencial de pesquisa genética ao longo das últimas décadas. O tom de pele, a cor dos olhos e a cor do cabelo partilham o facto de serem traços influenciados principalmente pela quantidade e tipo de melanina presente nessas mesmas estruturas.

(9)

Eletroforese capilar — método de análise que permite a separação dos fragmentos de DNA consoante o seu tamanho. Tecnologias no presente, passado e futuro

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A investigação sobre as bases genéticas da pigmentação humana permitiu já identificar uma série de genes com influência nestas características (destacando-se o HERC2, OCA2, e o MC1R). Trata-se, porém, de um conjunto de características nas quais se observa uma variação gradual e não discreta, o que levanta problemas no que toca à sua classificação (fenotipagem). Por exemplo, a cor dos olhos varia entre o azul e o castanho escuro/preto, mas entre os tons extremos observa-se um grande conjunto de tons que variam de forma gradual, sendo difíceis de classificar e distinguir. Estas dificuldades são também observadas ao nível da classificação do tom da pele e da cor do cabelo. Neste sentido, a opção por classificar estas características de forma mais objetiva (métodos quantitativos de análise de fotografia, por exemplo) é defendida por alguns investigadores (Edwards et al., 2012; Frudakis, 2008; Liu et al., 2010). Por outro lado, outros (Branicki et al., 2011; Mengel-From et al., 2010) defendem que, para além de não existirem evidências de que os métodos de avaliação quantitativa sejam melhores do que os métodos baseados em auto e heterodescrição, a aplicação da previsão da cor dos olhos na prática forense implica a classificação dessa caraterística com base na interpretação humana das cores e não em medições objetivas. Há ainda quem defenda o recurso a um especialista (no caso, um dermatologista) como método mais fiável do que a autodescrição (Pośpiech et al., 2012). Importa ainda referir em relação às caraterísticas relacionadas com a pigmentação que estas sofrem uma grande influência de fatores ambientais e da idade. A cor do cabelo, por exemplo, pode mudar ao longo da vida, sendo que indivíduos loiros durante a infância vêm a sua cor de cabelo escurecer na adolescência devido à ação das hormonas sexuais, assim como o cabelo grisalho ou branco são típicos de idades avançadas devido à drástica redução da melanina, quer seja resultante da menor capacidade de produção de melanina pelos melanócitos (10), ou devido à perda desses mesmos melanócitos. A cor do cabelo pode também ser alterada pelo uso de tintas de coloração. Também a cor dos olhos sofre

(10)

Os melanócitos são células produtoras de melanina que se localizam ano nível da pele, bolbo capilar e íris (no olho). Coimbra Editora ®

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alterações, sobretudo ao nível da saturação (Liu et al., 2010), podendo até ser mascarada de forma voluntária (por exemplo, o uso de lentes de contacto coloridas) ou até alterada por cirurgia laser (Strōma Medical Corporation, 2012). Também o nível de pigmentação constitutiva (cor natural da pele) bem como a capacidade de pigmentação facultativa (bronzeado) variam ao longo da vida do indivíduo. Apesar das limitações referidas, encontram-se já disponíveis conjuntos (ou painéis) de marcadores genéticos para a previsão da cor dos olhos e cabelo com níveis de precisão de previsão bastante elevados. 3.4. Cor dos olhos A cor dos olhos é uma caraterística que apresenta maior variação na população europeia do que em qualquer outra população. A ocorrência de olhos azuis, por exemplo, encontra-se segundo Frudakis (2008) quase exclusivamente limitada a indivíduos com elevada proporção de ancestralidade europeia. Assim, o primeiro painel de previsão da cor dos olhos surgiu em 2004 (RETINOMETM) mas era exclusivamente aplicável a indivíduos com uma proporção de ancestralidade europeia superior a 80% (DNAPrint Genomics, 2004). Recentemente surgiu o sistema IrisPlex que inclui um painel de marcadores de previsão da cor dos olhos de aplicação forense patenteado (Kayser et al., 2011). Foram realizados vários estudos aplicando este sistema de previsão a amostras de indivíduos holandeses (Liu et al., 2009), indivíduos europeus (Walsh et al., 2012) e indivíduos de diversas populações (Walsh et al., 2011), observando-se, em todos estes trabalhos, taxas de precisão da previsão a rondar os 90% para os tons extremos azul e castanho e cerca de 70% para tons intermédios. A precisão da previsão pode subir para valores acima de 90% caso a classificação dos olhos (fenotipagem) inclua apenas duas categorias — claro e escuro (Pośpiech et al., 2012). 3.5. Cor do cabelo A cor do cabelo é outro traço relacionado com a pigmentação que apresenta uma variação contínua entre preto e o loiro, passando pelo ruivo. Tecnologias no presente, passado e futuro

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À semelhança do que se verifica no caso da cor dos olhos, também a variação na cor do cabelo é maior na população europeia. Exemplo disso é a ocorrência de indivíduos ruivos ser praticamente restrita à Europa. O fenótipo ruivo está também associado à presença de sardas e pele clara e risco aumentado de cancro de pele (Palmer et al., 2000; Sulem et al., 2008). A associação entre o fenótipo cabelo ruivo e o gene MC1R (melanocortin 1 receptor) foi já demonstrada em vários estudos, tendo este conhecimento sido transposto para a prática forense em 2001 (Grimes et al., 2001). A adição de marcadores de outros genes em estudos mais recentes veio permitir prever outros fenótipos do cabelo com taxas de precisão superiores a 80% (Branicki et al., 2011). Também o grupo de investigadores que desenvolveu o sistema IrisPlex publicou recentemente um trabalho (Walsh et al., 2013) sobre um novo sistema de previsão — o sistema HIrisPlex — que permite prever a cor dos olhos e do cabelo com base na análise de 24 marcadores genéticos. Os valores de precisão de previsão da cor do cabelo com a aplicação deste sistema variam entre 69,5 e 87,5%. 3.6. Cor da pele Na previsão da cor da pele através da análise de marcadores genéticos destaca-se o trabalho de Spichenok et al. (2011), que reporta uma taxa de erro de 2% para a previsão deste traço fenotípico. No entanto, o facto de a previsão ser realizada por exclusão (não-branco e não-negro) e não ter sido possível em 28% dos casos de amostras testadas devido ao tipo de abordagem utilizado é indicativo de sérias limitações desta metodologia. A possibilidade de prever a cor dos olhos, cabelo e pele de um indivíduo a partir de uma amostra de ADN apresenta potencialmente uma enorme utilidade em casos forenses. As limitações referidas, nomeadamente o facto de não existir um método de fenotipagem de traços relacionados com a pigmentação universalmente aceite (o que pode afetar a reprodutibilidade dos estudos e a interpretação dos resultados), a influência dos fatores ambientais e idade, não permitem ainda atingir Coimbra Editora ®

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níveis de precisão de previsão muito elevados, como seria de desejar (exceto para a cor dos olhos). Neste sentido, a previsão dos traços de pigmentação pode ser complementada com a previsão da idade, o que poderá ajudar a melhorar os resultados da previsão desses mesmos traços fenotípicos. Por outro lado, por exemplo a precisão na previsão dos tons intermédios poderá ser melhorada num futuro próximo dados os avanços nos estudos sobre interações epistáticas — fenómenos nos quais a ação de um gene é influenciada pela ação de outros genes (Branicki et al., 2009; Pośpiech et al., 2011; Ruiz et al., 2013). 3.7. Altura A altura ou estatura do adulto é uma caraterística fenotípica que apresenta uma forte componente hereditária, variando entre 80 a 90%. Apesar disso, os resultados dos diversos estudos publicados relativos às bases genéticas deste fenótipo têm demonstrado resultados muito limitados. A utilização de um número crescente de marcadores na previsão do fenótipo altura não melhora significativamente a precisão da sua determinação (Tabela 2). Assim, é esperado que nos próximos anos iniciativas como a criação do consórcio Genetic Investigation of Anthropometric Traits (GIANT) venham a revelar mais informações sobre esta caraterística. Tabela 2 Referência

N.º de marcadores

R2

Weedon et al. (2008)

20

3%

Lettre (2009)

47

5%

Lango Allen et al. (2010)

180

10%

Yang et al. (2010)

294 831

45%

Dados relativos ao número de marcadores utilizados e percentagem da variação fenotípica explicada pela variação dos marcadores genéticos analisados (R2) em estudos relativos às bases genéticas da altura. Por exemplo, os resultados do trabalho de Weedon et al. (2008) sugerem que a análise de 20 marcadores relacionados com a altura explicam apenas 3% da variação observada Tecnologias no presente, passado e futuro

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3.8. Traços faciais É possível perceber, através de simples observação, que indivíduos da mesma família (em particular os gémeos homozigóticos), apresentam mais semelhanças, no que toca a traços faciais, do que indivíduos sem parentesco. Algumas caraterísticas faciais são tidas como monogénicas e constam na base de dados Online Mendelian Inheritance in Man® (OMIM): presença ou ausência de covinhas na face (OMIM 126100), presença ou ausência de covinha no queixo (OMIM 119000), linha frontal do cabelo com bico saliente na parte central da testa (“pico da viúva”) ou linear (OMIM 194000), presença ou ausência de pelos nas orelhas (OMIM 139500), lóbulo da orelha preso ou solto (OMIM 128900). Relativamente a outros traços faciais (Figura 3), os poucos estudos publicados são bastante recentes e apresentam resultados muito limitados: foram identificados dois genes (GREM1 e CCDC26) como estando associados à variação da largura bizigomática (largura da face) e largura do nariz (Boehringer et al., 2011) e foi também reportada a associação entre um marcador do gene PAX3 e a posição do násio, ou ponto nasal (Paternoster et al., 2012). Um outro estudo reportou a associação entre 5 genes (PRDM16, PAX3, TP63, C5orf50 e COL17A1) e a determinação dos traços faciais (Liu et al., 2012). Figura 3

Representação esquemática do násio (1), distância bizigomática (2) e largura do nariz (3) Coimbra Editora ®

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O limitado conhecimento relativo às bases genéticas dos traços faciais deve-se, à semelhança do que se verifica em relação à altura, ao facto de estes serem determinados por um grande conjunto de genes, a maioria dos quais ainda não identificados. 3.9. Idade O envelhecimento é um processo natural que leva à ocorrência de alterações ao nível molecular, salientando-se três fenómenos ao nível do ADN: a acumulação de deleções no mtADN (ADN mitocondrial), a diminuição do tamanho dos telómeros (11) e a diminuição do número de moléculas de ADN circular nas células T (12). A acumulação de danos no ADN em particular a ocorrência de deleções ao nível do mtADN ocorre de forma aleatória em células únicas que, à medida que se replicam, promovem a expansão clonal dessas mesmas deleções. Por ter já sido alvo de extensa pesquisa em vários tecidos diferentes, o método de quantificação da deleção 4.977 bp ou “deleção comum” é tido como método potencialmente útil na previsão da idade de um indivíduo. No entanto, este método apresenta algumas limitações importantes, nomeadamente no que toca à exigência técnica e de amostragem, à grande heterogeneidade de resultados obtidos em diferentes tecidos, ao desconhecimento do processo que leva à formação das deleções e das variáveis influentes no processo e, por último, a margem de erro significativa de cerca de 40 anos (Meissner e Ritz-Timme, 2010). Outro processo decorrente do envelhecimento é a diminuição do comprimento dos telómeros. Ao longo do tempo, o comprimento destas estruturas diminui como consequência do problema da finalização (11)

Os telómeros são estruturas constituídas por milhares de repetições em tandem (TTAGGG/CCCTAA)n associadas a proteínas, localizadas nas extremidades dos cromossomas. São essenciais à sobrevivência e capacidade replicativa das células somáticas com capacidade de divisão. (12) As células T ou linfócitos T correspondem a um tipo de glóbulos brancos que sofrem maturação ao nível do timo e têm um papel preponderante na resposta imunitária mediada por células. Os linfócitos T apresentam na sua superfície recetores específicos — recetores das células C ou TCR (do inglês T-cell receptor). Tecnologias no presente, passado e futuro

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da replicação pela ADN polimerase, processamento dos telómeros a cada ciclo celular e exposição a stress oxidativo. Por outro lado as células possuem mecanismos de reparação que permitem adicionar sequências repetitivas na extremidade dos telómeros pela enzima telomerase, mecanismos esses que se vão tornando menos eficazes ao longo do tempo. As desvantagens da previsão da idade pelo comprimento dos telómeros residem na elevada exigência técnica, na grande influência dos processos da degradação nos resultados obtidos e na heterogeneidade observada nos comprimentos de telómeros, quer a nível tecidular, quer a nível dos cromossomas dentro da mesma célula (Meissner e Ritz-Timme 2010). Estas limitações traduzem-se na existência de casos de indivíduos com 40-50 anos de diferença que apresentaram comprimentos de telómeros semelhantes (Takasaki et al., 2003; Tsuji et al., 2002). Um grupo de especialistas norte-americano considera, no entanto, que a avaliação do tamanho dos telómeros constitui a abordagem mais promissora no que toca à previsão da idade, sendo sugerido que a avaliação de um único cromossoma como método alternativo à avaliação do tamanho médio dos telómeros (método que tem sido utilizado nesta abordagem) poderá melhorar os resultados (Saeed et al., 2012). O último fenómeno referido de alteração genética decorrente do envelhecimento (diminuição do número de moléculas de ADN circular nas células T) tem por base o rearranjo de genes que codificam os recetores dos linfócitos T (T-cell receptors — TCR) como consequência da diminuição do tamanho do timo ao longo da vida de um indivíduo. O número de círculos de excisão de TCR de sinal repartido (sjTRECs (13)), moléculas de ADN circular presentes nas células T, varia de forma inversamente proporcional à idade, refletindo o processo de involução do timo, pelo que a quantificação dessas mesmas moléculas permite prever a idade de um dador de uma amostra que contenha essas mesmas células (amostras de sangue, por exemplo). Este método não é muito exigente sob o ponto de vista técnico (Lang et al., 2011; Zubakov et al., 2010), não requer grandes quantidades de ADN (a quantidade mínima necessária é 5 ng) e

(13)

sjTRECs — do inglês signal joint T-cell receptor rearrangement excision circles.

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apresenta bons resultados em amostras com algum grau de degradação (Ou et al., 2012; Zubakov et al. 2010). Existem, no entanto, vários fatores (sexo, estado de saúde do sistema imunitário, incluindo doenças infeciosas como a SIDA, leucemia, ou ancestralidade biogeográfica) cuja influência nos resultados não foi ainda devidamente apurada, tendo sido apontado um desvio padrão deste método de ± 9 anos (Zubakov et al., 2010) o que, apesar de representar um intervalo menor do que os reportados para os métodos anteriormente referidos, é ainda um valor considerável. Outras abordagens têm sido sugeridas relativamente à previsão da idade com base na análise de material biológico que vão além do estudo da sequência e estrutura do ADN, nomeadamente a análise das alterações da expressão génica (Lu et al., 2004) e dos padrões de metilação (Bocklandt et al., 2011; Koch e Wagner, 2011; Teschendorff et al., 2010), abordagens que se espera virem a permitir o desenvolvimento de novos e mais precisos sistemas de previsão da idade. 4. PREVISÃO PELO MÉTODO INDIRETO Algumas caraterísticas físicas apresentam um padrão geográfico de variação que está diretamente relacionado com a adaptação da espécie aos vários ambientes aos quais os seres humanos estiveram sujeitos. A adaptação a novos ambientes fez com que determinadas caraterísticas conferissem maior adaptabilidade a determinados indivíduos, facto que levou a que esses indivíduos sobrevivessem e transmitissem os seus genes à descendência em detrimento de outros (seleção natural). Desta forma, essas caraterísticas tornaram-se mais frequentes em determinadas populações. São exemplos de caraterísticas físicas com variabilidade fenotípica observada em função da localização geográfica da população a altura, o índice de massa corporal, a pilosidade excessiva, a calvície, a dobra epicântica dos olhos, a arquitetura craniofacial, dimensões do crânio e dos dentes e as caraterísticas associadas à pigmentação como a cor dos olhos, cabelo e pele (Frudakis, 2008; Kayser e Schneider, 2009). Essas alterações também se fizeram sentir a nível molecular observando-se variações ao nível das frequências alélicas em determinados loci entre as diversas populações, como se encontra esquematizado na Figura 4. Tecnologias no presente, passado e futuro

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Estes loci correspondem aos marcadores informativos de ancestralidade (AIMs (14)), que, como foi anteriormente referido, são os marcadores genéticos usados na determinação da ancestralidade biogeográfica. Figura 4

Distribuição das frequências alélicas em africanos (AFR), europeus (EUR) e asiáticos orientais (EAS) das populações do 1000 Genomes e HapMap para o SNP rs3827760; pode dizer-se que a frequência do alelo G é 0% na população africana, inferior a 5% na população europeia e cerca de 90% na população asiática oriental, o que significa que uma amostra que apresente este alelo terá maior probabilidade de pertencer a um indivíduo com ancestralidade biogeográfica asiática (pelo menos parcial). A determinação da ancestralidade biogeográfica é sempre realizada com base em vários marcadores distribuídos pelo genoma possibilitando, inclusivamente, a determinação de proporções de ancestralidade de diferentes populações. Figura adaptada de Fondevila et al. (2013).

A determinação da ancestralidade biogeográfica de um indivíduo sob a forma de percentagem de pertença aos grupos considerados (grupos continentais ou intracontinentais) pode fornecer algumas informações limitadas e de forma indireta sobre algumas caraterísticas físicas do dador de uma amostra biológica, o que pode representar uma pista importante para a investigação quando a aplicação de métodos de identificação não produz resultados. A localização genómica dos AIMs é importante na fase de interpretação de resultados, uma vez que marcadores autossómicos e marcadores de linhagem (NRY e mtADN) produzem diferentes tipos de informação.

(14)

AIMs (do inglês Ancestry Informative Markers) são marcadores informativos de ancestralidade. Estes marcadores exibem diferenças ao nível das frequências alélicas em diferentes populações. Coimbra Editora ®

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Como foi referido atrás, um exemplo prático de aplicação deste método foi a análise de amostras biológicas no âmbito da investigação do atentado de 11 de Março de 2004 em Madrid. Neste caso, o objetivo da análise era determinar se os vestígios biológicos encontrados, por exemplo, numa mala com explosivos que não foram detonados, seriam de indivíduos com origem europeia ou do norte de África. O recurso a AIMs da NRY e mtADN poderia não ser conclusivo por duas razões: em primeiro lugar, Europa e norte de África são regiões geográficas muito próximas nas quais se observa a partilha de algumas linhagens resultante do fluxo genético (transferência de genes entre populações) ocorrido no passado nestas regiões. Em segundo lugar, mtADN e NRY correspondem a duas regiões do genoma humano que são transmitidas de forma independente e não sofrem recombinação, ou seja, o mtADN é transmitido de mãe para filho e filha sem alterações assim como a NRY é transmitida de pai para filho sem alterações. Isto significa que estas regiões incorporam apenas uma fração da informação sobre os antepassados do dador da amostra. Assim, a análise de AIMs distribuídos pelos autossomas (neste caso em concreto um painel com 34 marcadores, o 34-plex), regiões do genoma que sofrem recombinação (15), permite obter informações relativas à origem biogeográfica do dador da amostra mais rigorosas e abrangentes, por refletirem (potencialmente) a origem de todos os antepassados do indivíduo e não apenas os da linhagem materna ou paterna. Foram já publicados e/ou comercializados para uso forense vários painéis de AIMs autossómicos que permitem prever a ancestralidade biogeográfica (sob a forma de proporções dos grupos considerados) a nível continental (Frudakis, 2008; Halder et al., 2008; Lao et al., 2006; Pereira et al., 2012; Phillips et al., 2007) e intracontinental (Bauchet

(15)

A recombinação genética corresponde à troca aleatória de material genético durante a meiose. A meiose corresponde a um fenómeno de divisão celular que ocorre na produção de espermatozoides e óvulos que permite a obtenção de células com metade dos cromossomas da célula inicial; esta redução faz com que a célula resultante da fecundação (fusão do óvulo e espermatozoide) apresente uma quantidade de informação genética igual à das células dos progenitores. Tecnologias no presente, passado e futuro

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et al., 2007; Novembre et al., 2008) recorrendo a um número variável de marcadores (entre 34 e 197 146). A análise de AIMs permite prever a ancestralidade biogeográfica do dador de uma amostra, mas a questão que se coloca é: como converter essa informação em dados sobre a aparência? Eis uma questão que não reúne consenso: alguns especialistas em bioética e direito defendem que o processo envolve a inferência de um perfil racial ou étnico a partir dos dados genéticos e que é através desse perfil que é realizada a previsão das caraterísticas físicas. Nesse sentido, consideram a metodologia “frágil e falível” por se basear na complexa relação entre ancestralidade, raça e morfologia (Ossorio, 2006). Por seu turno, os especialistas forenses consideram desnecessária a elaboração de um perfil racial. Frudakis (2008) defende que “o objetivo primário da medição da ancestralidade genómica não é classificar pessoas por raça e etnia, mas sim, através da estimativa da mistura, obter informações acerca da provável aparência física” (16). O autor sugere, no entanto, o recurso a uma base de dados alargada de informações relativas às amostras e respetivos dadores, (incluindo, por exemplo, perfis genéticos; dados biométricos como a altura e medidas cefalométricas; cor dos olhos, cor do cabelo e cor da pele e até local de nascimento; língua materna, religião e autodescrição de raça e etnia (Frudakis, 2008: 443-470). Esta abordagem permite identificar a existência ou não de associações estatisticamente significativas entre os diversos dados colhidos e, consequentemente, constitui uma abordagem mais objetiva do que a que tem por base os estereótipos que povoam o senso comum. A principal limitação do método indireto de previsão prende-se com a existência de variação intrapopulacional, ou seja, indivíduos da mesma população podem apresentar diferentes caraterísticas físicas. No entanto este método é apontado como a melhor abordagem para a previsão de caraterísticas que apresentam variação interpopulacional e para as quais

(16)

“(…) the primary purpose of measuring genomic ancestry is not to classify people by race and ethnicity, but rather, through an appreciation of admixture, to learn something about likely physical appearance” (Frudakis, 2008: 616). Coimbra Editora ®

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o método direto de previsão não é ainda aplicável, quer porque não foram ainda identificados fatores genéticos em número suficiente, quer por se tratar de caraterísticas determinadas por um número muito elevado de genes, como a morfologia capilar, índice de massa corporal e traços faciais, por exemplo (Frudakis, 2008). Há ainda que referir outra modalidade de painéis de marcadores genéticos, que consiste na análise combinada de AIMs e marcadores de previsão direta (traços relacionados com a pigmentação) (Bulbul et al., 2011; Castel e Piper, 2011; Daniel et al., 2008). Recentemente foi apresentada uma ferramenta “all-in-one”, o Identitas v1 Forensic Chip (Keating et al., 2012), que permite a previsão de ancestralidade biogeográfica, sexo, cor dos olhos e cabelo e a determinação de parentesco a partir da análise de 201173 marcadores. Esta ferramenta faz uso de uma metodologia de genotipagem recentemente desenvolvida (chip de DNA) que permite genotipar uma grande quantidade de SNPs (na ordem das centenas de milhares) a partir de uma reduzida quantidade de ADN inicial (menos de 2ng) e com alguma degradação. Esta tecnologia implica, no entanto, a aquisição de equipamento específico que não é indicado para a genotipagem da STRs o que constitui uma desvantagem. Comparativamente, um método correntemente usado na genotipagem de SNPs (a minissequenciação) requer os mesmos equipamentos usados na genotipagem de STRs (termociclador para a amplificação dos fragmentos de interesse e sequenciador automático para a posterior deteção e identificação do alelos presentes na amostra), equipamentos esses que são já utilizados há vários anos nos laboratórios de genética forense por todo o mundo. O método de minissequenciação permite, no entanto, a análise de um número bastante inferior de marcadores em simultâneo (recomenda-se até 10 SNPs) e quantidade mínima inicial de ADN ligeiramente superior (3ng) comparativamente ao método de genotipagem em chip (Edenberg e Liu, 2009). Os resultados do trabalho de Keating et al. (2012) apontam para a possibilidade de prever o sexo do dador de uma amostra com elevada taxa de precisão, bem como a correspondência direta (identificação), parentesco entre primeiro e terceiro graus e previsão da ancestralidade biogeográfica (entre 88 e 100%). Outras caraterísticas apresentam resulTecnologias no presente, passado e futuro

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tados mais limitados, tendo sido reportadas taxas de precisão mais baixas para a previsão da cor dos olhos (70-85%) e da cor do cabelo (48-72%), facto que deverá mudar nas próximas versões da ferramenta com a adição de novos marcadores. 5. QUESTÕES ÉTICAS E LEGAIS RELACIONADAS COM A APLICAÇÃO DOS MARCADORES DE PREVISÃO Pese embora o seu potencial de fornecer pistas importantes, a aplicação dos métodos de previsão levanta questões relevantes de ordem ética e legal que têm sido discutidas por especialistas de diversas áreas. Segue-se a revisão dos principais pontos de discussão e argumentos. 5.1. Direito de privacidade Um dos assuntos em discussão diz respeito à eventual violação do direito de privacidade. Neste sentido, especialistas das ciências forenses (Kayser e Schneider, 2009) argumentam que as caraterísticas físicas como a cor dos olhos, cabelo e pele, traços faciais, altura entre outros, são visíveis para todos pelo que a sua previsão pelo estudo de marcadores genéticos não constitui uma violação do direito de privacidade. Por outro lado os mesmo autores admitem que em relação à ancestralidade biogeográfica a questão assume contornos diferentes, visto que esta caraterística nem sempre é totalmente percetível, ou seja, nem todas as pessoas saberão a sua origem biogeográfica. Assim, os autores admitem que a determinação desta caraterística com base na análise de ADN poderá constituir uma ameaça ao direito que o indivíduo tem de não saber a sua origem biogeográfica. 5.2. Discriminação étnica e/ou racial Outra questão em debate corresponde à possibilidade de que perfis de ancestralidade biogeográfica que reflitam afiliação étnica sirvam de desculpa para que todos os indivíduos que correspondam ao perfil e que habitem em regiões próximas ao local de crime sejam consideraCoimbra Editora ®

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dos suspeitos e obrigados a ceder amostra de ADN, facto que compromete a presunção de inocência e direito à integridade física e privacidade (M’charek et al., 2012; Quan, 2010). Quanto a este assunto os especialistas forenses defendem que a análise dos dados fornecidos de previsão deve ser cuidadosa e que todo o processo de implementação dos métodos de previsão deve ser acompanhado de avaliações de preconceitos e estereótipos que possam existir no seio das forças policiais e eventuais correções através de campanhas educacionais (Frudakis, 2008; Kayser e Schneider, 2009). 5.3. Informação genética vs testemunhas oculares Um dos assuntos que gera maior discórdia corresponde ao significado da informação obtida através dos métodos de previsão em comparação com os dados fornecidos por testemunhas. Nesta matéria, especialistas das ciências sociais atribuem às testemunhas oculares um papel de destaque na investigação, afirmando que, em muitos casos, a solução de um crime pode depender das testemunhas (M’charek et al., 2012). Por seu turno, os especialistas forenses consideram que os métodos de previsão com base na análise de marcadores genéticos poderão vir a substituir as testemunhas oculares por assentar em dados objetivos (probabilidades) sendo, por isso, uma abordagem neutra e, dependendo da caraterística em análise, esta abordagem permite obter informações tão ou mais fiáveis do que as fornecidas pelas testemunhas (Frudakis, 2008; Kayser e Schneider, 2009). De facto, segundo um trabalho publicado em 2010 nos Estados Unidos da América relativo a 250 exonerações de indivíduos condenados com base em análises de ADN (Innocence Project, 2010), 76% desses indivíduos foram condenados com base, pelo menos em parte, em identificações erradas de testemunhas oculares, sendo que 53% dessas identificações erradas foram relativas a indivíduos de outras raças (na maioria dos casos uma pessoa branca identificando uma pessoa negra). Por outro lado, os especialistas das ciências sociais defendem que, ao contrário do que se observa quando um indivíduo corresponde à descrição de uma testemunha tornando-se por isso suspeito, Tecnologias no presente, passado e futuro

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na previsão de caraterísticas físicas com base no ADN (em particular pelo método indireto), a “incriminação é conseguida através da genética populacional em vez de pistas relacionadas com o crime” (17). Neste sentido poder-se-á dizer que uma identificação será também uma forma de incriminação através da genética populacional tendo em conta que o cálculo das probabilidades de identidade se baseiam em dados populacionais? Ainda segundo os autores esta forma de incriminação (através da genética populacional) poderá não ser muito benéfica tendo em conta o facto de as “tecnologias de ADN serem vistas por muitas partes interessadas como ‘máquinas da verdade’ infalíveis (…), e o conhecimento das ciências forenses entre as forças policiais ser de um modo geral escasso” (18). Um dos factos relativos à utilização de marcadores preditivos que foi já referido e várias vezes enfatizado é a margem de erro associada aos mesmos. Ao contrário do que se observa na identificação, os métodos de previsão de caraterísticas físicas possuem limitações ao nível da precisão que residem no ainda limitado conhecimento sobre as bases genéticas da aparência (no caso do método direto) e na variabilidade intrapopulacional (no caso do método indireto). No entanto, e como foi também enfatizado, pretende-se com a sua aplicação limitar o número de suspeitos a considerar no âmbito das investigações e não identificar o suspeito — para isso recorre-se aos marcadores distintivos. 5.4. Relevância da informação obtida Quando se prevê pela análise de ADN que o dador de uma amostra de local de crime apresenta caraterísticas físicas ou a sua ancestralidade biogeográfica é comum à maioria da população, esta informação é muito (17)

“(…) the case of ADN-based EVC is different as incrimination here is achieved through population genetics instead of crime-related leads and clues” (M’chareck et al., 2012). (18) “(…) DNA-technologies are seen by many stake holders as infallible ‘truth machines’ (…), and knowledge of forensic science in the police force is generally low” (M’chareck et al., 2012). Coimbra Editora ®

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menos útil do que quando apresenta caraterísticas mais invulgares ou tem origem biogeográfica correspondente a um grupo minoritário (Ossorio, 2006). Por exemplo, se um crime ocorre em Portugal e se prevê, através da análise de uma amostra colhida no local de crime, que o indivíduo é do sexo masculino, de origem europeia e tem olhos castanhos e cabelo escuro, esta informação servirá no máximo para excluir as mulheres e mais alguns suspeitos visto que a maioria da população portuguesa corresponde a este perfil; no entanto, se a análise indicar que o indivíduo tem ancestralidade asiática oriental, as atenções dos investigadores voltar-se-ão para indivíduos de origem asiática que habitem na zona, o que poderá ser entendido como uma forma de discriminação racial. Mas, e se for uma testemunha a dizer que viu um asiático a fugir do local do crime, não será considerado o seu testemunho? O caso do assassino em série do Louisiana (referido na Introdução) é um exemplo prático de que a análise de ADN pode ser muito útil na restrição de suspeitos a considerar numa investigação, constituindo um método que apesar de apresentar limitações, é objetivo. 5.5. Limites de análise É também levantada a possibilidade de serem testadas regiões do genoma associadas a propensões genéticas ao desenvolvimento de perturbações mentais ou patologias físicas, traços de personalidade ou capacidades cognitivas, ou seja, teme-se que o espectro de análise seja alargado de forma descontrolada. Neste ponto é importante referir que as amostras forenses (em particular as amostras de locais de crime) apresentam, geralmente caraterísticas bastante particulares. Devido ao facto de estarem expostas às condições ambientais, estas amostras apresentam normalmente degradação e reduzida quantidade de ADN, o que faz com que muitas vezes, seja até difícil obter o perfil de identificação. Isto significa que, quanto mais não seja por estas limitações (já para não falar de outras como o tempo e os recursos materiais e humanos), as análises realizadas têm sempre por objetivo obter informação relevante para o caso. No entanto, saber que o dador de uma amostra de local de crime é diabético, por exemplo, poderá ser interessante Tecnologias no presente, passado e futuro

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para os investigadores, visto que isso poderá significar que compra insulina e que as pessoas que o conhecem sabem disso, o que pode ajudar a limitar o número de suspeitos a considerar. Mas será isto considerado como uma forma de discriminação eticamente aceitável? A informação relativa a patologias pode, no entanto, ser obtida através da análise de alguns marcadores, inclusivamente marcadores de identificação, de forma inadvertida. Determinadas patologias cromossómicas como a trissomia 21 (síndrome de Down) e trissomias dos cromossomas sexuais podem ser detetadas com a análise de marcadores situados nesses mesmos cromossomas (D21S11, no cromossoma 21 e Amelogenina, nos cromossomas sexuais) (Semikhodskii, 2007). Ainda na linha daquilo que poderá ser entendido como uso abusivo ou distorcido da informação obtida através da análise de DNA, um projeto do governo do Reino Unido, o Human Provenance Pilot Project (Projeto Piloto de Proveniência Humana), veio gerar controvérsia por recorrer a dados genéticos (ancestralidade biogeográfica) em conjunto com a análise de isótopos como prova da origem de refugiados em busca de asilo (Aspinall e Chinouya, 2011; Verma, 2010). O programa foi suspenso menos de um mês após o seu início devido à enorme controvérsia gerada em torno da validade dos métodos utilizados, de acordo com a página web Human Provenance Pilot Project: Resource Page (19). Outro aspeto importante em relação aos limites de análise impostos no estudo de ADN no âmbito forense, é a questão da análise de marcadores de regiões codificantes e não-codificantes. As regiões codificantes correspondem a segmentos de ADN que codificam proteínas correspondendo a aproximadamente 2% do genoma. Os restantes 98% correspondem a ADN não-codificante, que, apesar de não codificar proteínas, poderá, em alguns casos, ter um papel funcional, por exemplo, ao nível da regulação da expressão génica, promovendo, inibindo, aumentando ou diminuindo a produção de proteínas a partir das regiões codificantes. As porções codi-

(19)

Human Provenance Pilot Project: Resource Page: http://www.genomicsnetwork. ac.uk/cesagen/events/pastevents/genomicsandidentitypoliticsworkstream/title,22319,en. html, consultada a 23.05.2013. Coimbra Editora ®

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ficantes não estão, todavia, concentradas e distintamente separadas das porções não-codificantes. Assim, ao nível da estrutura dos genes (20) observa-se a coexistência de segmentos codificantes (exões) e segmentos não-codificantes (intrões e região promotora), de forma intercalada. Por se localizarem fisicamente próximos uns dos outros, alguns marcadores são tendencialmente transmitidos em bloco, o que significa que à presença de um alelo num determinado locus está associada a presença de um alelo específico noutro locus próximo — fenómeno designado de desequilíbrio de ligação. Isto significa que, considerando dois marcadores, um numa região não-codificante (A) e o outro numa região codificante próxima (B) e estes se encontrarem em desequilíbrio de ligação, analisando o marcador A acedemos à informação do marcador B. Neste sentido, a regra de “testar apenas ADN de regiões não-codificantes” pode, em muitos casos, não ter significado prático. 6. LEGISLAÇÃO E BASE DE DADOS PORTUGUESA A Holanda é o único país no mundo no qual é, em termos legais, explicitamente permitida e regulamentada a prática da fenotipagem de ADN em contexto forense. Em Portugal não são realizadas análises de ADN no contexto de previsão de caraterísticas fenotípicas, segundo as informações obtidas junto do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I. P. (INMLCF, I. P.) e Laboratório da Polícia Científica da Polícia Judiciária (LPC). Fontes do LPC revelam ainda que a não utilização destes métodos de análise se deve, por um lado, a limitações de meios técnicos e, por outro, a restrições legais. De facto, não existe legislação específica que proíba, permita ou regulamente a utilização de marcadores de previsão de fenótipo e ancestralidade com aplicação forense a nível nacional. A legislação portuguesa regulamenta apenas, no âmbito da análise forense de ADN, a utilização

(20)

O conceito simplificado de gene corresponde a um segmento de ADN que contém a informação necessária para a produção de uma proteína que, por sua vez, determina ou influencia um ou mais fenótipos. Tecnologias no presente, passado e futuro

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de marcadores genéticos de identificação civil e criminal a incluir na base de dados nacional (Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, e Portaria n.º 270/2009, de 17 de Março). A base de dados de ADN nacional foi criada em 2008, sendo à data de 21/11/2012 composta por 939 perfis classificados em 6 ficheiros diferentes. Tendo em conta que, sendo a população portuguesa constituída por pouco mais de dez milhões e meio de pessoas (21), apenas cerca de 0,009% da população nacional está representada na base de dados. O facto de a base de dados ter iniciado o seu funcionamento efetivo em fevereiro de 2010 juntamente com as restrições observadas nos critérios de inclusão (que implicam ordem judicial) explicam a baixa representação da população portuguesa na mesma. Este cenário torna ainda mais importante o desenvolvimento de outros métodos que auxiliem a investigação como é o caso dos métodos de previsão de caraterísticas físicas, mesmo que estes sejam apenas usados em último recurso (Koops e Schellekens, 2008). Além disso, um estudo recente (Candille et al., 2012) revela que a população portuguesa apresenta um nível de variação fenotípica considerável ao nível dos traços de pigmentação comparativamente a outros países europeus (Itália, Irlanda e Polónia), o que constitui um indicador da elevada importância que a previsão destes traços a partir da análise de marcadores genéticos poderá representar em contexto forense. É importante, no entanto, enfatizar o facto de que os marcadores de previsão não substituem os marcadores de identificação em nenhuma circunstância, constituindo somente uma forma de extrair informação relativa à aparência do dador de uma amostra que contenha ADN de forma a restringir o número de indivíduos a considerar nas investigações. A posterior utilização de marcadores distintivos continuará a ser essencial para que seja possível determinar que a amostra pertence de facto a um determinado indivíduo, ou seja, identificar o dador da amostra.

(21)

Dados dos Censos 2011 disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística: http://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_publicacoes&PUBLICACOESpub_ boui=122103956&PUBLICACOESmodo=2 consultado a 08.01.2013. Coimbra Editora ®

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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS E PERSPETIVAS FUTURAS Os progressos técnicos e científicos permitem atualmente prever algumas caraterísticas físicas a partir da análise de marcadores genéticos e essas informações já se revelaram bastante úteis na restrição do número de indivíduos a considerar no âmbito da investigação de crimes ou até identificação de cadáveres em avançado estado de decomposição. É atualmente possível prever pelo método direto com elevada precisão o sexo e a cor dos olhos e do cabelo. O mesmo não se verifica em relação à altura e traços faciais, devido ao elevado número de loci envolvidos na determinação dessas mesmas caraterísticas. Para o tom de pele, a melhor abordagem é o método indireto visto que esta apresenta uma grande variação interpopulacional e o conhecimento relativo às bases genéticas desta caraterística é ainda escasso. As limitações observadas ao nível da precisão de traços complexos (como a altura e os traços faciais) estão relacionadas com algumas limitações dos sistemas de previsão, nomeadamente ao nível dos modelos genéticos e análise estatística dos resultados. Por outro lado há que ter em conta o facto de que estes sistemas não captam toda a diversidade observada ao nível da variação genética e epigenética (22) subjacente à determinação de caraterísticas complexas. Por exemplo, a variação no número de cópias (copy number variation — CNV) e as alterações epigenéticas (alterações não sequenciais da molécula de ADN) não são avaliadas nos modelos de previsão atuais, apesar de se saber que influenciam a forma como o ADN é expresso e, inevitavelmente, o fenótipo observado. Tendo em conta que as caraterísticas físicas correspondem a traços complexos, torna-se necessária a análise de um número considerável de marcadores na sua previsão. As novas tecnologias de sequenciação per(22)

A variação epigenética corresponde às alterações observáveis ao nível da estrutura do ADN que influenciam a forma como este é expresso, não incluindo alterações na sequência de nucleótidos; exemplos de mecanismos epigenéticos são as metilações, que impedem a “leitura” de segmentos de ADN, influenciando assim a expressão genética. Tecnologias no presente, passado e futuro

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mitirão ampliar o conhecimento relativo às componentes genéticas subjacentes às caraterísticas físicas, através da identificação de novos marcadores e até alterações epigenéticas associadas a variações fenotípicas. Por outro lado, a possibilidade de obter resultados mesmo em amostras com reduzida quantidade de ADN e alguma degradação (como é frequentemente o caso das amostras forenses) potencia a utilização destas novas tecnologias na rotina forense. A previsão de caraterísticas físicas no âmbito forense coloca várias questões éticas e legais. Desde a violação da privacidade, descriminação étnica e/ou racial até ao potencial uso indevido destes métodos, a discussão sobre se se deve ou não fazer uso destas novas ferramentas na investigação criminal tem dado azo a manifestações de várias áreas do saber, desde a genética forense à sociologia passando pela bioética. São importantes as preocupações dos especialistas das ciências sociais relativamente às potenciais ameaças que a previsão de caraterísticas físicas poderá colocar em especial às minorias étnicas. Mas deveremos prescindir do conhecimento que está potencialmente à nossa disposição nas amostras de locais de crime sobre a aparência do perpetrador do crime? Há a possibilidade de os resultados da análise de marcadores preditivos apontarem para caraterísticas pouco comuns ou grupos minoritários, mas deveremos prescindir dessa informação? Se essa mesma informação fosse proveniente de uma testemunha ocular, não seria investigada? Então porquê tratar dados objetivos com margens de erro estatisticamente estabelecidas como “pistas de segunda categoria”? É importante realçar que a noção generalizada de que o ADN é uma ‘máquina da verdade’ corresponde a uma noção errada, em particular no que diz respeito à previsão de caraterísticas físicas, facto que se deve às diversas limitações que foram apontadas (em suma: influência de fatores ambientais e idade e desconhecimento de grande parte dos fatores genéticos subjacentes a várias caraterísticas). Para além disso, a prova biológica, tal como todas as restantes evidências, tem sempre de ser apreciada no contexto, sendo que a própria Lei 5/2008, de 12 de Fevereiro, no Art. 38.º refere: “Em caso algum é permitida uma decisão que produza efeitos na esfera jurídica de uma pessoa ou que a afete de Coimbra Editora ®

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modo significativo, tomada exclusivamente com base no tratamento de dados pessoais ou de perfis de ADN”. Este artigo realça a necessidade de ponderação da prova baseada na identificação biológica e existência de outros elementos para que haja uma condenação. Neste sentido é importante voltar a reforçar que a previsão de caraterísticas físicas não poderá nunca ser usada para condenar ninguém, apenas para restringir o número de suspeitos a considerar. Para finalizar, a aplicação dos métodos de previsão de caraterísticas físicas em Portugal carece de legislação específica que só poderá ser criada quando forem acauteladas as questões éticas, legais e técnicas subjacentes ao uso destas metodologias. Pretende-se que este texto contribua para a discussão dessas mesmas questões no nosso país, constituindo uma revisão dos aspetos fundamentais do tema, para que se venha a considerar num futuro próximo a aplicação destas metodologias na investigação criminal em Portugal. GLOSSÁRIO ADN (ou DNA) — Ácido desoxirribonucleico; grande molécula constituída por unidades mais pequenas, os nucleótidos que são representados nas sequências de ADN pelas referidas letras correspondentes às bases azotadas. AIMs — do inglês Ancestry Informative Markers: marcadores informativos de ancestralidade; marcadores genéticos que exibem diferenças ao nível das frequências alélicas em diferentes populações. Alelos — configurações alternativas que a sequência de ADN pode assumir num determinado locus. Amostra problema — amostra sob investigação cuja identificação se pretende estabelecer, proveniente, por exemplo, de um local de crime ou de um cadáver. Amostra referência — amostra considerada no âmbito de uma investigação (por exemplo, amostra de suspeito ou de pessoas desaparecidas) relativamente à qual se conhece a identidade do dador. Amplificação (de ADN) — processo de seleção e multiplicação de segmentos de ADN a partir de uma amostra conseguido através da reação de PCR. Ancestralidade Biogeográfica — caraterística estritamente biológica (genética) que reflete a população ou as populações de origem dos antepassados de um indivíduo a partir da análise de AIMs. Codificantes (regiões) — segmentos do genoma que contêm instruções para sequências de aminoácidos que compõem as proteínas. Tecnologias no presente, passado e futuro

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Deleção — perda de material genético que pode variar entre um par de bases e grandes porções de um cromossoma. Fenotipagem — classificação de fenótipos. Fenótipo — caraterísticas morfológicas (físicas), bioquímicas ou comportamentais observáveis num organismo. Genoma — conjunto completo de informação genética de um organismo. Genotipagem — determinação do(s) alelo(s) presente(s) numa amostra num determinado locus ou em vários loci. Loci — vários locais do genoma; plural de locus. Locus — local do genoma. Marcador genético — segmento de ADN cuja sequência e posição no genoma é conhecida. Marcadores distintivos — marcadores genéticos usados na determinação de perfis de ADN cuja informação pode, posteriormente, ser armazenada em bases de dados nacionais. Marcadores preditivos — marcadores genéticos usados na previsão de caraterísticas físicas. Meiose — fenómeno de divisão celular que ocorre na produção de espermatozoides e óvulos que permite a obtenção de células com metade dos cromossomas da célula inicial; esta redução faz com que a célula resultante da fecundação (fusão do óvulo e espermatozoide) apresente uma quantidade de informação genética igual à das células dos progenitores. Melanócitos — células produtoras de melanina que se localizam ao nível da pele, bolbo capilar e íris (no olho). Nucleótidos — unidades estruturais da sequência de ADN simbolizados por letras (A, G, T e C) que correspondem às bases azotadas que entram na sua composição (adenina, guanina, timina e citosina, respetivamente). PCR (Polymerase Chain Reaction) — reação bioquímica que permite obter um elevado número de cópias (amplificação) das regiões de interesse a partir de uma reduzida quantidade inicial de ADN. Polimorfismo de DNA — alteração ao nível da sequência de ADN que pode variar entre uma simples substituição de um nucleótido até alterações que envolvem longos segmentos da molécula. Os polimorfismos distinguem-se das mutações por apresentarem, na população considerada, uma frequência superior a 1%. Recombinação genética — troca aleatória de material genético durante a meiose. STR — do inglês “Short Tandem Repeat”; tipo de polimorfismo de ADN no qual se observa a repetição de unidades de um a seis nucleótidos num número de vezes variável. SNP — do inglês “Single Nucleotide Polymorphism”; tipo de polimorfismo de ADN no qual se observa a substituição de um único nucleótido na sequência. Variação Fenotípica — variação observada num determinado fenótipo. Variação Interpopulacional — variação observada entre populações ou entre indivíduos de diferentes populações Coimbra Editora ®

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Variação Intrapopulacional ou interindividual — variação observada entre indivíduos da mesma população.

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Parte IV

O TRAJETO HISTÓRICO DOS MÉTODOS DE IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL EM PORTUGAL (1) DIANA MIRANDA 1. INTRODUÇÃO A necessidade de identificar os autores de crime tem-se verificado ao longo da história e, para tal, servem de exemplo algumas formas arcaicas de identificação criminal como o cabelo rapado, as marcas ou até as mutilações corporais. As letras marcadas com ferro quente na pele dos criminosos eram uma prática habitual em Portugal e apenas no século XVI, no reinado de D. João III, foi ordenada a extinção deste costume (Pina, 1938). A partir do século XIX as práticas de recolha e sistematização de informação sobre os suspeitos e/ou condenados pela prática de crime têm vindo a desenvolver-se com o recurso à ciência e à tecnologia. Tem-se

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Gostaria de agradecer à Fundação para a Ciência e Tecnologia (Ministério da Educação e Ciência) pelo apoio concedido no âmbito da bolsa de doutoramento “A identificação criminal e a identidade do criminoso: percepções de reclusos e agentes de controlo sobre as práticas de vigilância e classificação do corpo delinquente” (SFRH/ BD/70055/2010) com orientação da Professora Doutora Helena Machado. Agradeço ainda aos funcionários do Arquivo Histórico dos Serviços Prisionais — norte e à Direção-Geral dos Serviços Prisionais pela autorização e cooperação na pesquisa. Sinto-me ainda grata pela disponibilidade dos funcionários da Polícia Judiciária, nomeadamente do Gabinete de Perícia Criminalística, por demonstrarem como decorrem as práticas atuais de identificação criminal nesta instituição. Tecnologias no presente, passado e futuro

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assistido à recolha, armazenamento e classificação de informação de caráter físico, visual e biológico. Se dado corpo é identificado e classificado como suspeito ou mesmo criminoso, o Estado torna essa identidade suspeita visível e sujeita-a a práticas de vigilância, monitorização e controlo. Inicialmente recorreu-se à antropometria para medir os corpos de indivíduos condenados a pena de prisão e registar sinaléticas particulares. O sistema antropométrico implementado no início do século XX em Portugal assumiu-se como método oficial na identificação de condenados por crime até se popularizar o uso da impressão digital. A datiloscopia teve um desenvolvimento mais rápido do que a antropometria e o recurso às impressões digitais foi rapidamente incorporado nas práticas policiais, sendo que o seu uso perdura até à atualidade. Na passagem do século XX para o século XXI surgem os métodos de identificação baseados na genética, nomeadamente a identificação de indivíduos por perfis de DNA. Apesar destas sucessivas transformações em termos científicos e tecnológicos, estas práticas procuraram sempre inscrever, codificar e documentar os suspeitos e/ou condenados pela prática de crime. Para analisar este trajeto dos processos de identificação criminal em Portugal foi consultada legislação e outra documentação relevante. É de realçar a consulta de registos e processos individuais de reclusos no Arquivo Histórico dos Serviços Prisionais — Norte (Direção-Geral dos Serviços Prisionais) no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo entre fevereiro e março de 2012. 2. SÉCULO XIX — SÉCULO XX No século XIX surge uma valorização das ações de vigilância e controlo das “populações perigosas” por parte do Estado. Os saberes científicos têm impacto nestas ações e verifica-se, no final do século XIX e início do século XX, um desenvolvimento no registo das características físicas dos presos. Começam a ser efetuadas medições antropométricas e são tiradas fotografias e impressões digitais aos indivíduos condenados por crime. A identificação pressupõe a procura das singularidades individuais e, como refere Tiago Pires Marques, a importância Coimbra Editora ®

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do conhecimento em torno do preso passa a ter “expressão prática mais evidente na prioridade atribuída ao desenvolvimento das técnicas de registo [e] identificação dos criminosos” (Marques, 2005: 130). 2.1. A descrição física e o surgimento da antropometria Surgiu, em finais do século XIX, por influência da Escola Positivista Italiana (Lombroso, 1924), uma série de estudos estatísticos em torno dos carateres físicos do criminoso que o associavam a um conjunto de características patológicas e o diferenciavam da população “normal” (Becker, 2006; Fernandes, 1896; Madureira, 2003, 2005; Marques, 2003, 2005, 2007; Serén, 1997; Vaz, 1998). A criminalidade era encarada como tendo uma causa biológica e poderia assim manifestar-se fisicamente no corpo (Branco, 1888; Lombroso, 1924; Freire, 1889; Frias, 1880). O método das ciências naturais foi aplicado no saber jurídico e no estudo do crime, suscitando a demanda por um “retrato científico” dos criminosos através da antropometria. Esta consiste “na mensuração de determinados ossos para auxiliar o reconhecimento da identidade dos reincidentes e dos frequentadores habituaes das prisões” (Sousa, 1903: 340). Em finais do século XIX, Alphonse Bertillon criou o primeiro sistema moderno que permitia às autoridades policiais identificarem indivíduos e cientificizar os seus arquivos. A tese que serve de base ao seu sistema de identificação é a de que o esqueleto humano varia de pessoa para pessoa e não sofre alterações a partir de determinada idade. A identificação por sinais antropométricos processava-se pelo que Bertillon denominou de portrait parlé. Neste processo pretendia-se a individualização do criminoso, transformando-se a sua identidade e corpo em linguagem. Para tal, eram registadas onze medidas antropométricas num boletim, juntamente com a classificação da orelha direita, o registo de marcas peculiares, cor dos olhos, cabelo, pele e fotografias de cara e perfil (Cole, 2001; Domingues, 1963; Finn, 2005; Locard, 1932; Malhado, 2001; Sainz, 1893). Em Portugal, a preceder as medições antropométricas estipuladas por Bertillon, os agentes policiais responsáveis pela investigação crimiTecnologias no presente, passado e futuro

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nal (2) procuravam identificar o criminoso através da elaboração de um cadastro, onde constavam os sinais característicos, a identificação (desde o nome, idade, estado civil, profissão, antecedentes, entre outros) e uma fotografia caso o juiz a mandasse anexar (Vaz, 1998). A este respeito é de salientar o registo policial organizado em 1825 pelo decreto de 25 de maio. Este decreto centraliza o primeiro serviço estruturado de registo policial (3) que pretendia reunir conhecimento dos antecedentes criminais dos indivíduos (Costa, 1984). Nesta altura mencionava-se o nome, sinais característicos, moradas, profissões, naturalidades e havia um livro em que se escreviam os nomes dos suspeitos ou criminosos e pronunciados. Além destas práticas policiais, estava previsto no Regulamento Provisório da Polícia das Cadeias de 1843 (4) a recolha e registo de informações como, por exemplo, os sinais, as marcas, altura, feições do rosto, deformidades, vestuário, alcunhas e a cor de olhos, barba e cabelo dos presos (5) (Marques, 2005). O decreto de 24 de agosto de 1863 também remetia para a obrigatoriedade da recolha de sinais físicos e uso da fotografia na identificação do delinquente (Pina, 1939b). Em 1884, o regulamento provisório da Cadeia Central Penitenciária de 20 de novembro referia igualmente a obrigatoriedade de recolha dos sinais físicos dos criminosos (Pina, 1936): “logo que entre algum preso será conduzido à

(2) Em 1867 foi criada a Polícia Civil pela Carta de Lei de 2 de Julho. A investigação criminal não tinha ainda nesta altura a autonomia necessária e só com a reforma dos corpos da Polícia Civil de 1893 há uma separação dos serviços de investigação criminal das outras áreas da Polícia Civil (Gonçalves, 2007; Pereira e Silva, 2012), passando a sua responsabilidade a pertencer à Polícia de Investigação Judiciária e Preventiva, sob a dependência do juiz de instrução criminal. (3) Este registo policial surge na Intendência Geral da Polícia, a primeira organização com funções policiais em Portugal relativamente moderna (Pereira e Silva, 2012). (4) Este Regulamento definiu as bases da administração interna das prisões até ao início do século XX (Marques, 2005). (5) Convém referir, contudo, que já desde o século XVIII é possível encontrar nos livros de registo de entrada dos presos nas cadeias termos rudimentares de identificação, como o nome, a estatura (baixa, ordinária…), cara (comprida ou não, por exemplo), cor de olhos, barba e cabelo.

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secretária, para se tomar nota dos seus sinais e proceder-se à inscrição no registo de entrada” (artigo 150.º). O decreto de 7 de novembro de 1872 criou um sistema de registo criminal (6) nas comarcas que pretendia organizar os boletins individuais onde deveriam constar informações de caráter biográfico e os sinais característicos (Marques, 2005; Pina, 1936, 1939b). Contudo, convém realçar que estas informações relativas aos condenados por crime apenas circulavam de modo eficiente ao nível local e não tanto ao nível nacional (Vaz, 1998). Na consulta de documentação do Arquivo Histórico dos Serviços Prisionais foi possível averiguar o registo rotineiro deste tipo de informações relativas aos criminosos. Foram consultados, por exemplo, registos de presos entre 1890 e 1899 do Fundo da Cadeia Civil do Porto e constatou-se a referência constante nos manuscritos a uma descrição sumária sobre a altura, rosto, vestuário e declarações sobre nunca antes terem estado presos. De modo a exemplificar estas descrições, segue de seguida a transcrição de parte de um desses registos datado de 1893: Estatura 1,62, rosto redondo, nariz e bocca regular, olhos castanhos, cabello e barba grisalha. Vestido com calça, collete e jaqueta de picotilho. Declarou que nunca aqui estivera preso e hoje vem reenviado d’aquella comarca onde foi condemnado na pena de 8 annos de prisão celular seguida de degredo… No caso dos livros de registo dos presos de Santa Cruz de 1895 também eram vulgarmente mencionados na secção dos sinais a altura, cor de cabelos e olhos, tipo de nariz, boca, rosto, bigode, vestuário, declaração de saber ou não ler/escrever e ser ou não a primeira vez que estivera preso. No registo dos presos da Cadeia da Comarca de Estarreja do final do século XIX consta informação semelhante, sendo de destacar a existência de uma coluna para registar os sinais (N’esta casa se devem

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No século XIII havia já um esboço de registo criminal designado por o Livro dos Culpados (Oliveira, 2012). Tecnologias no presente, passado e futuro

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pôr todos os signaes do preso, que roupa leva vestida, etc…). Nesta altura ainda não estava implementada a antropometria em Portugal e estes dados descritivos (os sinais, os traços físicos e o vestuário) eram os únicos elementos de identificação disponíveis. Na antiga identificação (…) primitiva, aproveitavam-se muitas particularidades individuais: estatura, corpulência, manchas da pele (…), tatuagens, cicatrizes de variada origem, aleijões e anomalias, assimetrias, côr da pele, dos íris e dos cabelos, gesto, voz, etc. (…) Êste primitivo sistema adoptava-se (…) no registo de condenados, (…), o que se prova com inúmeros documentos existentes nos Arquivos Históricos do país (Pina, 1939b: 35). Além destes elementos era constante a referência às declarações do preso quanto a ser ou não a primeira vez que entra na cadeia. Tal como diz Maria João Vaz, “geralmente fazia-se fé nos dados” (1998: 104) que os presos relatavam, uma vez que não havia qualquer tipo de registo eficaz. António Ferreira Augusto (1902a, 1902b), a quem se deve a iniciativa de instalar os postos antropométricos em Portugal (Sousa, 1903; Pina, 1938, 1940), referia que era necessária a vulgarização do sistema de Bertillon e a instalação de postos antropométricos nas cadeias de modo a verificar a identidade do preso e a sua situação jurídico-criminal. Isto permitiria solucionar o problema da identidade do criminoso de forma a que não fosse possível aos reincidentes ocultarem a sua verdadeira identidade (Augusto, 1902a; Branco, 1888; Costa, 1895; Pessoa, 1940; Sousa, 1903). Seria assim possível interditar a metamorfose e atribuir “a cada indivíduo uma identidade invariável e facilmente passível de demonstração” (Corbin, 1990: 432). Chegará uma época em que vulgarisado o systema de Bertillon, conhecidas as suas vantagens, o seu nome será abençoado e nos postos anthropometricos inscrever-se-hão as palavras que os antigos mandavão gravar nas portas dos seus tribunaes: Vigilat ut quiescant… (Augusto, 1902a: 9). Coimbra Editora ®

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No final do século XIX surgiram os primeiros postos rudimentares de medição antropométrica na Penitenciária Central e na Cadeia do Limoeiro em Lisboa e na Cadeia da Relação do Porto (Pessoa, 1940; Pina, 1939a, 1939b, 1940; Santos, 1999). Também no Comissariado Geral da Polícia do Porto se procurava trabalhar com a antropometria e se tentava criar um posto antropométrico policial (Pessoa, 1940; Madureira, 2003). Há referências que indicam que a sinalética antropométrica já era praticada em Portugal desde 1885 (Santos e Mendes, 1961). Em Lisboa, o funcionamento dos serviços antropométricos na Penitenciária Central é evidenciado pelas referências em relatórios e pela existência de álbuns de fotografia judiciária (Marques, 2005; Pina, 1938). No Porto existe um ofício de 30 de março de 1886 para o Governador Civil, da parte do Diretor da Cadeia da Relação, que solicita à polícia o envio de retratos dos “gatunos mais conhecidos”, evidenciando o uso da fotografia já nesta altura (Santos, 1999) (7). 2.2. As sinaléticas descritiva, antropométrica, fotográfica e datiloscópica A sinalética pode ser definida como a descrição de certo indivíduo com o fim de ser reconhecido e identificado (Domingues, 1963; Malhado, 2001; Zbinden, 1957), sendo indicadas de modo sintético e metódico as suas características visíveis. No início do século XX é possível averiguar a existência de diversas sinaléticas: a antropométrica, descritiva, fotográfica e datiloscópica. Tal como diz Luís de Pina, “podemos descrever os caracteres físicos do indivíduo que examinamos, reproduzi-lo por intermédio da fotografia, medir-lhe algumas partes do corpo, [e] reproduzir os desenhos papilares das suas polpas digitais” (1939b: 30). A identificação dos criminosos foi regulada em 1899 pela Lei de 17 de agosto e pelo regulamento dos Serviços Médico-Legais aprovado pelo

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Importa ainda referir que o artigo 7.º do decreto de 24 de agosto de 1863 já determinava o uso da fotografia para efeitos de identificação (Pina, 1939b). Tecnologias no presente, passado e futuro

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decreto de 16 de novembro (Maldonado, 1968; Marques, 2005; Pina, 1936, 1938, 1939a, 1939b, 1940; Santos, 1999; Serén, 2006; Sousa, 1903). A antropometria judicial foi assim instituída e os postos antropométricos oficialmente criados para “tomar as medidas antropométricas de todos os presos que derem entrada na Cadeia Central ou que para esse fim lhe fossem enviados pelos comissariados de polícia ou pelos juízes de instrução criminal” (art. 81.º, n.º 2 da Lei de 17 de agosto de 1899). Para tal, é ordenado no artigo 99.º dessa mesma lei a compra de instrumentos e livros para o estudo e exercício da antropometria (Pina, 1939a, 1939b; Sousa, 1903). Augusto (1902a) alertava, contudo, para a necessidade da criação real de postos antropométricos e não apenas de uma criação legal. Dois anos após a promulgação da Lei de 17 de agosto surge o Regulamento das Cadeias Civis (decreto de 21 de setembro de 1901) que reorganiza os serviços das cadeias, regulamenta a instalação dos postos antropométricos e lhes dá existência, estabelecendo procedimentos de identificação criminal (Augusto, 1902a, 1902b; Oliveira, 2012; Pessoa, 1940; Pina, 1931, 1936, 1938, 1939a, 1939b, 1940; Rocha, 1985; Sousa, 1903). As medidas mais importantes para uma identificação antropométrica precisa, segundo Bertillon, constam no artigo 87.º do decreto de 21 de setembro de 1901, sendo elas a estatura medida em pé, o comprimento dos braços abertos em cruz, a altura do indivíduo sentado (busto), o comprimento e largura da cabeça, a largura das arcadas bysogmaticas e os comprimentos da orelha direita, do dedo médio e anelar esquerdo, do pé esquerdo e do braço esquerdo desde o cotovelo até à ponta do dedo médio. Estas medições eram efetuadas através de procedimentos que exigiam todo um conjunto de instrumentos e posições da parte do preso e do operador (Augusto, 1902a; Sousa, 1903). Tal como refere Simon Cole, “each measurement was a meticulously choreographed set of gestures in which the exact positioning and movement of both bodies — prisoner and operator — were dictated by Bertillon’s precise instructions” (2001: 34). Convém ainda enaltecer que o preso a ser medido “para melhor exatidão das operações [deveria] estar em mangas de camisa, descalço, com o cabello Coimbra Editora ®

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e as unhas bem aparadas tanto da mão como do pé esquerdo” (8) (Augusto, 1902a: 16). Estas medições antropométricas eram registadas nos boletins, bem como a sinalética descritiva, fotográfica e ainda a datiloscópica. Deste modo, eram registadas as medições antropométricas, as fotografias (frente e perfil) (9) com o número de ordem do preso, as indicações pessoais do registo de entrada (como por exemplo, o nome, a alcunha, idade, naturalidade, filiação e profissão), os sinais particulares (desenhos, cicatrizes, tatuagens), os carateres morfológicos do rosto (nariz, orelha direita, cor da pele, barba e cabelo), as observações cromáticas (a cor dos olhos pela classificação da íris) e até mesmo a pronúncia, a linguagem, a gesticulação, o modo de andar, os sinais de beleza, o vestuário, a assinatura, o registo criminal e ainda as impressões dos dedos (10). Em suma, todos os elementos úteis na individualização do preso (Augusto, 1902a, 1902b, 1902c; Pina, 1938; Santos, 1999; Serén, 1997, 2006; Sousa, 1903). Os boletins depois de preenchidos eram arquivados num armário, classificados segundo divisões que se baseavam no comprimento da cabeça, entre outras divisões e subdivisões (Pina, 1938; Sousa, 1903). Entrando um individuo na cadeia e tirados os signaes anthropometricos e outros saber-se-ha em breves minutos se elle procurou

(8) Para evidenciar isto é pertinente mencionar a consulta do inventário de haveres do Posto Antropométrico do Porto no Arquivo Histórico dos Serviços Prisionais. Entre diversos instrumentos e mobília constava precisamente a referência a tesouras para cortar o cabelo e as unhas dos presos. (9) O uso da fotografia não era sistemático e apenas nos casos dos indivíduos julgados mais perigosos se anexava uma fotografia ao cadastro (Vaz, 1998). (10) No modelo do primeiro boletim de identificação do posto antropométrico da Cadeia da Relação do Porto constava, precisamente, uma secção para as duas fotografias, para as observações antropométricas, para as observações cromáticas, indicações pessoais, observações descritivas, sinais particulares e ainda o registo criminal. O verso do boletim destinava-se a indicações diversas, sendo por vezes aí transcritas as tatuagens do indivíduo ou as impressões digitais (Sousa, 1903).

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dissimular a sua identidade, se entrou pela primeira vez na cadeia, se já soffreu alguma condemnação, se é um reincidente, se um frequentador habitual das prisões (Sousa, 1903: 348). O posto antropométrico instalado numa dependência do edifício da Cadeia da Relação do Porto é o primeiro a determinar a identidade dos presos. É inaugurado e inicia atividades a 1 de março de 1902 (11) (Marques, 2005; Pessoa, 1940; Pina, 1938, 1939a, 1940; Santos, 1999; Sousa, 1903) e só no decorrer do seu primeiro meio ano foram efetuadas 1.402 observações de presos (Augusto, 1902c; Pina, 1938). Em Lisboa também já funcionavam em 1903, junto da cadeia do Limoeiro e da Penitenciária Central, postos antropométricos instalados por Lima Duque e Manuel Valadares (Pina, 1936; Sousa, 1903). Ao longo dos anos foram surgindo outros postos antropométricos, nomeadamente o do Instituto de Antropologia de Coimbra (12), oficializado em 1911. É interessante constatar que estes procedimentos de identificação apenas eram aplicados junto dos indivíduos que dessem entrada na cadeia e tal representou já na altura uma injustiça e desigualdade para muitos, tendo sido diversas as reclamações por não se efetuarem medidas e fotografias aos indivíduos que pagavam fiança (Augusto, 1902b). Segundo António Ferreira Augusto, “só os pobres, os desvalidos se terão de sujeitar a estas exigencias!” (1902b: 9).

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Em 1903 já estavam instalados outros postos antropométricos no distrito judicial da Relação do Porto (nomeadamente em Vila do Conde, Santo Tirso, Barcelos, Guimarães, Paços de Ferreira, Viana do Castelo, Pinhel, Trancoso, Fafe e Vila Pouca d’Aguiar) e aguardava-se a instalação de outros (Coimbra, Penafiel, Arcos-de-Valdevez, Gouveia, Aveiro, Bragança, Vimioso e Viseu) (Sousa, 1903; Pina, 1936, 1939b, 1940). (12) O modelo do boletim de identificação deste Posto Antropométrico recorria ao sistema de Bertillon, completado com o sistema de Vucetich (Rocha, 1985; Tamagnini e Serra, 1940). Trata-se de duas fichas, sendo que numa constam as indicações pessoais, os sinais particulares, observações antropométricas e cromáticas e na outra consta a identificação geral e as impressões digitais. Coimbra Editora ®

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2.3. As impressões digitais A datiloscopia remete-nos para o processo de identificação pelas impressões digitais. A impressão digital permite estabelecer a identidade individual tendo por base a inalterabilidade, imutabilidade e variabilidade dos desenhos papilares (Magalhães, 1910; Santos e Mendes, 1961), sendo encarada como a “assinatura natural” de cada indivíduo (Pina, 1938) (13). Inicialmente, a impressão digital era uma mera curiosidade e “apenas mais um sinal a acrescentar às «observações antropométricas, cromáticas e descritivas» que figuravam nos boletins ao lado das fotografias de frente e perfil” (Pessoa, 1940: 717). Contudo, pelo facto de o processo ser menos dispendioso e mais célere e por não exigir pessoal tão especializado, rapidamente a impressão digital se incorporou nas práticas policiais e ultrapassou a antropometria como o sistema de identificação dominante (Cole, 2001; Cole e Lynch, 2010; Domingues, 1963; Finn, 2005; Garcia, 2008; Machado e Prainsack, 2012; Serén, 1997). Nas palavras de Simon Cole: Anthropometry looked like science, fingerprinting looked like technology. Anthropometry was observational; fingerprinting was mechanical. Anthropometry evoked the rigors of scientific observation; fingerprinting evoked the efficiencies of mass production… (Cole, 2001: 166). No início do século XX a antropometria foi implementada em Portugal e foi tida como o método oficial na identificação criminal até ser substituída pela datiloscopia. De facto, a impressão digital surgiu no início do século e rapidamente se popularizou, tendo em Portugal um (13)

A este respeito é interessante constatar que tal até pode ser entendido de forma literal, tomando por exemplo o surgimento do cartão de identificação nacional no século XX como prova de identidade. Cerca de 40% da população era analfabeta e a impressão digital substituía a assinatura dos que não sabiam ler ou escrever, comprovando a identidade do titular (Frois, 2008; Machado e Prainsack, 2012). Tecnologias no presente, passado e futuro

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desenvolvimento mais rápido do que a antropometria. Tal como referiram Hernâni dos Santos e Alfredo Mendes: À medida que a dactiloscopia alargava os seus horizontes no campo da identificação, a sinalética antropométrica ia perdendo pouco a pouco toda a sua importância, passando mesmo a ser ignorada, salvo raras excepções, nos departamentos que têm funções de identificação criminal e policial (1961: 70). A comunidade científica rapidamente se dividiu entre a datiloscopia e a antropometria e os diversos países repartiram-se pelos dois sistemas de identificação. Contudo, em Portugal mantiveram-se ambos e recorreu-se a uma combinação de informações antropométricas e impressões digitais com diversas variantes de classificação (Cole, 2001; Madureira, 2003). O desenvolvimento dos sistemas de identificação por impressão digital deve-se, essencialmente, a Henry Faulds e a Juan Vucetich (14). Ambos criaram o seu sistema de classificação e esses sistemas expandiram-se pelo mundo (Cole, 2001). Em Portugal, no início do século XX, tal como noutros países, foram adotados diversos sistemas datiloscópicos e estes foram sujeitos a modificações, sendo de realçar a emergência e uso de diversos sistemas de classificação (15). O posto antropométrico da Cadeia da Relação do Porto foi o primeiro a incluir registos datiloscópicos nos boletins (Madureira, 2003).

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Ambos foram influenciados pelos estudos de Francis Galton que serviram de base para os sistemas de identificação por impressão digital que foram surgindo e que ainda hoje se mantém (Galton, 1965). (15) Exemplo disso são os métodos de Valadares e de Alberto Pessoa que derivaram de outros sistemas, nomeadamente o Galton-Henry, Vucetich e Locard. Foram usados outros métodos, como por exemplo o método de Gasti no extinto Posto Antropométrico da Polícia Cívica de Lisboa em 1912 e no Arquivo Central de Registo Criminal; o método de Galton-Henry no Arquivo Geral do Registo Criminal e Policial; e o método de Vucetich nos Institutos de Criminologia e nos Institutos de Medicina Legal (Correia, 1914; Madureira, 2005; Malhado, 2001; Santos e Mendes, 1961; Pessoa, 1940; Pina, 1939b). Coimbra Editora ®

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Já desde 1902 que é possível encontrar registos datiloscópicos (impressões dos dedos polegar, indicador, médio e anelar direitos) e impressões da palma da mão nos boletins antropométricos da Cadeia da Relação do Porto (Sousa, 1903; Pina, 1936, 1939b). Também em Lisboa, nos boletins de identificação do Posto Antropométrico da Cadeia Central (16), tal também já se verificava no ano de 1903 (Pina, 1936). Ilustração 1

Exemplar do boletim de identificação do Posto Antropométrico da Cadeia Central (Lisboa) datado de 1903 (Fonte: Arquivo Histórico dos Serviços Prisionais)

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De modo semelhante ao boletim da Cadeia da Relação do Porto, também neste consta na parte da frente as fotografias, as indicações pessoais, as observações antropométricas, cromáticas e descritivas. No verso há referências aos sinais particulares e indicações diversas, sendo de realçar o espaço reservado para as impressões digitais. Tecnologias no presente, passado e futuro

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Contudo, foi apenas em 1904 que o uso da datiloscopia foi decretado oficialmente. É neste ano que surge, a 5 de julho, uma portaria que determina a identificação de presos do sexo feminino e menores de 25 anos apenas pela impressão digital (17) (Correia, 2008; Malhado, 2001; Pessoa, 1940; Pina, 1939b). No caso dos homens adultos as medidas antropométricas continuariam a ser efetuadas. Para se obterem as impressões digitais era necessário apoiar os dedos numa placa de zinco polido, na qual era distribuída tinta vermelha ou preta (Augusto, 1902a). O operador conduzia os dedos à placa, tingindo a pele do indivíduo e o papel (Pina, 1939b), “ficando n’elle estampado o filigranné das pontas dos quatros dedos” (Augusto, 1902c: 44). Like anthropometry and photography, the recording of fingerprints required a certain degree of cooperation from the subject: the subject would have to relinquish control of his body, or at least his hand, to the identification clerk, who, as with anthropometry, was called an “operator” (Cole, 2001: 75). Em 1906, com o decreto de 18 de janeiro, é publicado o Regulamento dos Postos Antropométricos (Malhado, 2001; Pina, 1931, 1940) que veio regular o sistema de identificação, estipulando o recurso conjunto ao sistema antropométrico de Bertillon e ao sistema datiloscópico (Galton-Henry). Quando se tratava de mulheres e homens menores de 25 e maiores de 45 anos apenas era aplicado o sistema datiloscópico; enquanto para os restantes homens, entre os 25 e 45 anos, o sistema era misto (antropométrico e datiloscópico). O regulamento refere a respeito dos postos locais que apenas o processo datiloscópico era obrigatório (Pina, 1938, 1939b). Até 1906, o modelo do boletim de identificação usado no posto antropométrico da Cadeia da Relação do Porto continha a fotografia judiciária de frente e perfil, indicações pessoais, observações descritivas, antropométricas, cromáticas e de sensibilidade, sinais particulares, entre outros.

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O recurso à antropometria no caso das mulheres era alvo de muitas críticas pois havia uma variedade nos resultados mediante a observação (Pina, 1938). Coimbra Editora ®

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No seu verso, além das indicações diversas e do registo criminal, havia um local onde era registada a impressão palmo-digital da mão direita do preso. No ano de 1906 este boletim foi substituído por dois boletins distintos, um boletim antropossinalético e um outro datiloscópico (Pina, 1931). Com o decreto 5.023 de 3 de dezembro de 1918, o posto antropométrico da Cadeia da Relação do Porto passa a designar-se Repartição de Antropologia Criminal, Psicologia Experimental e Identificação (Maldonado, 1968; Pina, 1939b). A partir de 1920 os serviços da Repartição do Porto são regulamentados pelo decreto 6.916, de 10 de setembro onde é estipulado que a identificação dos delinquentes tem de ser efetuada pelo sistema datiloscópico e, apenas se conveniente, pela sinalética antropométrica (art. 11.º). Poucos anos depois, em 1931, é referido num manuscrito que na Repartição do Porto só se fazia a recolha das impressões digitais e que praticamente já não era usado o boletim antropossinalético (Pina, 1931). Inicialmente as impressões digitais eram apenas usadas de forma a associar determinado corpo ao seu registo criminal e impossibilitando, assim, que fossem assumidas identidades falsas em tribunal e se evitassem os disfarces quanto ao passado criminal. Tal como referiu Manoel Magalhães: Nós pelos progressos da sciencia moderna temos meios inilludiveis que nos levam immediatamente á perfeita reconstituição do verdadeiro criminoso. Não ha disfarces, não ha mutilações que apaguem o brilho da verdade em presença d’esses pequenos desenhos contidos numa pequena folha de papel… (1910: 72 e 73). Só mais tarde a identificação por impressão digital passou a ser tida como técnica forense (Cole, 2001). Em 1911, aquando do roubo da ourivesaria da Guia em Lisboa, deu-se o primeiro caso de descoberta do autor do crime pelas impressões latentes deixadas no local (Pina, 1939b). Xavier da Silva foi o responsável por esta descoberta pioneira na identificação de um criminoso por impressões digitais (Oliveira, 2012). Nas palavras do Inspetor-Adjunto da Polícia Judiciária Bento Garcia Domingues, “a impressão digital deixada no local [tornara-se] (…) um cartão de visita do criminoso” (1963: 68). Tecnologias no presente, passado e futuro

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2.4. As práticas policiais Com as práticas de mensuração, o saber científico deveria ser reduzido a técnicas instrumentais das autoridades e “a antropometria [seria] despojada de implicações teóricas e das conotações com qualquer escola de pensamento” (Madureira, 2003: 294). De facto, a Escola Positivista Italiana entra em descrédito e ainda assim o exame antropométrico perdura e apenas vai desaparecendo na prática quando surge uma outra técnica capaz de o ultrapassar, a impressão digital (Pessoa, 1940). Contudo, convém referir que a ambição partilhada por diversos ilustres magistrados, representada pelas palavras de António d’Azevedo Castello Branco, distanciava-se efetivamente das práticas policiais do início do século XX. O funccionario policial, guiando-se pelas observações anthropologicas poderá adquirir por um processo experimental e scientifico aquella penetracão e certeza de olhar, que alguns teem alcancado empiricamente. Será mais um indicio valioso para a descoberta dos criminosos (Branco, 1888: 210). De facto, a cientificidade da investigação criminal era mais discursiva do que prática (Gonçalves, 2007; Madureira, 2005) e a este propósito Luís de Pina referiu, inclusive, que o posto antropométrico da Cadeia da Relação do Porto “não deu resultados práticos na sua colaboração com a Justiça” (1939a: 8). No primeiro quarto do século XX era grande a rivalidade e desarticulação entre a polícia e as instituições que estudavam o crime e até entre os diversos serviços do corpo policial (18). Consequentemente, era

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O corpo da polícia distribuía-se por 3 serviços, sendo eles a Polícia de Segurança Pública, a Polícia Administrativa e a Polícia de Investigação Criminal (Madureira, 2005; Vaz, 1998). Nesta última é criado o lugar de Chefe da Repartição e o Diário do Governo n.º 124 de 29 de maio de 1911 refere que “a este ‘Chefe’ competia ‘dirigir os serviços de investigação policial, da prevenção do crime e da identificação de delinquentes e criminosos…’” (Pereira e Silva, 2012: 25). Ainda assim, o comisCoimbra Editora ®

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difícil a incorporação dos conhecimentos e saberes provenientes de instituições como o Instituto Médico-Legal ou os postos antropométricos nas práticas e métodos de investigação policial. A polícia não pretendia colaborar e resistiu a partilhar as suas competências com os atores que surgiam associados à ciência e à luta contra o crime (Madureira, 2005). A polícia desejava preservar a sua autonomia e tal fez surgir a duplicação de registos e a sobrevivência de antigas e tradicionais técnicas policiais que nos remetem para a improvisação do agente no terreno (19). Procuraram ainda, sem êxito, internalizar (20) os serviços científicos e até imitá-los (21) (Madureira, 2005). Esta multiplicação de informação recolhida deve ainda ser aliada à incapacidade do governo na estandardização dos sistemas de identificação em vigor na época (Madureira, 2005) para que se perceba que na prática estes métodos não teriam assim o impacto desejado. 3. SÉCULO XX — SÉCULO XXI 3.1. A era da datiloscopia O desenvolvimento moderno da sinalética iniciou-se com o sistema de medições antropométricas de Alphonse Bertillon. A fotografia cri-

sário da Polícia Cívica procurava interferir na atividade da investigação criminal, mesmo não sendo da sua competência (Pereira e Silva, 2012). (19) Como por exemplo, desde a fabricação de provas para desorientar o suspeito e assim confessar o crime, aos truques de intimidação psicológica (Afonso, 1973 apud Madureira, 2005: 56). (20) Em 1906 são instalados Postos Antropométricos sob tutela da Polícia de Segurança Pública (Madureira, 2005) mas com recursos muito limitados. (21) Em 1913 ocorreu uma situação que ilustra bem esta desarticulação. Um comandante da Polícia Cívica ordena aos seus agentes a entrega de provas num posto antropométrico de identificação criminal da polícia e não nos serviços do Instituto de Medicina Legal, que possuíam na altura mais recursos e competência para realizar os exames de polícia científica. Nesse posto policial apenas deveria ser efetuada a identificação de criminosos e não se previa segundo a legislação a realização de exames (Madureira, 2005; Pereira e Silva, 2012). Tecnologias no presente, passado e futuro

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minalística e sobretudo a dactiloscopia caracterizam a fase atual da sua evolução” (Zbinden, 1957: 57). 3.1.1. Entrada na prisão e identificação Com o Decreto-Lei n.º 26.643, de 28 de maio de 1936 é promulgada a reorganização dos serviços prisionais e são tecidas algumas determinações sobre o estabelecimento da identidade dos delinquentes que entram nas cadeias (Pina, 1939b). O artigo 217.º menciona a existência de um livro de registo em todos os estabelecimentos prisionais e o artigo 218.º refere-se ao boletim biográfico individual onde constam os dados necessários à identificação do recluso, nomeadamente as fotografias, indicações antropométricas e datiloscópicas. No Arquivo Histórico dos Serviços Prisionais foram consultados processos individuais de presos da Cadeia do Porto a datar desde 1937. Nestes processos constam boletins biográficos cujo modelo apresenta uma secção de identificação (art. 218.º do Decreto-Lei n.º 26.643, de 28 de maio de 1936). Esta secção divide-se em identificação civil (nome e alcunha, naturalidade, última residência e filiação), judiciária (crime cometido, datas, condenação definitiva), antropológica e datiloscópica. Em relação a estas duas últimas formas de identificação verificou-se que em meados do século XX as medições antropométricas ainda eram por vezes preenchidas, bem como a cor dos olhos, cabelo e barba, tipo de nariz e boca, tatuagens, sinais particulares, a impressão do dedo indicador direito e a fotografia autenticada com o selo branco do estabelecimento (22).

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Mais recentemente, surge em 2011 o Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais (Decreto-Lei n.º 51, de 11 de abril) que estipula a necessidade de verificar a identidade do recluso. Para tal é feito o registo de identificação, onde deve constar a identificação pessoal, informações quanto ao que determinou o ingresso, data e hora de ingresso, imagem facial, características ou sinais físicos particulares (art. 4.º). Estes sinais mantiveram-se assim, ao longo do tempo, como um dos elementos que sempre constaram nos registos de identificação. Coimbra Editora ®

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3.2. Registos criminal e policial Em 1906, pelo decreto de 17 de março, reorganizou-se em Portugal o Registo Criminal e Policial, nomeadamente os serviços da identificação (Pina, 1939b). A impressão digital era tida como fundamental e em todos os boletins de registo criminal deveriam constar as impressões digitais. Com o decreto n.º 4.166, de 27 de abril de 1918 ocorre uma reforma dos serviços policiais que autonomiza a Polícia de Investigação como “repartição” (Pereira e Silva, 2012) e estabelece no artigo 38.º que: Junto das repartições de polícia cívica de Lisboa e na dependência da polícia de investigação criminal haverá os necessários gabinetes para a execução, expediente e registo dos serviços de cadastro e identificação foto-antropométrica e dactiloscópica, pelos quais se prestarão às diferentes secções de polícia e aos tribunais todas as informações, boletins fichas e mais elementos necessários para a descoberta dos criminosos e para a vigilância dos indivíduos suspeitos e recidivistas. Os serviços de polícia são reorganizados pelo Decreto n.º 8.435, de 21 de outubro de 1922. Atendendo aos artigos 24.º e 26.º constata-se que apesar de a Polícia de Investigação Criminal (23) poder recorrer aos postos antropométricos, havia ainda a possibilidade de solicitar ao Instituto de Medicina Legal “exames directos e fotográficos ou quaisquer outras diligências do mesmo instituto necessárias à investigação” (Pereira e Silva, 2012: 35). O serviço de registo policial, destinado a arquivar o cadastro dos indivíduos detidos à ordem das diversas polícias é organizado pelo

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Com o Decreto n.º 14.657, de 5 de dezembro de 1927 a Polícia de Investigação Criminal (PIC) é finalmente separada da Polícia Cívica. É nesta progressiva autonomia institucional que a PIC dá lugar à Polícia Judiciária em 1945 pelo Decreto-Lei n.º 35.042, de 20 de outubro (Pereira e Silva, 2012). Tecnologias no presente, passado e futuro

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Decreto n.º 14.731, de 15 de dezembro de 1927 (Oliveira, 2012). Nele são assinaladas as vantagens de centralizar um cadastro dos detidos. Em 1928, pelo Decreto n.º 15.963, de 18 de setembro, é determinada a interdependência dos serviços do registo policial e criminal (Pina, 1936, 1939b). Os serviços de identificação e registo policial ficam a cargo das autoridades policiais, estando centralizados no posto antropométrico da Polícia de Lisboa. No Porto competia ao posto antropométrico da Polícia de Segurança Pública assegurar estes serviços. A identificação seria feita por um boletim individual de registo policial com referência ao cadastro da ocorrência e caracterização do indivíduo (segundo o artigo 7.º, o nome da pessoa, alcunha, filiação, data do nascimento, naturalidade, residência, estado, profissão, impressões digitais, a altura, cor dos olhos, aleijões ou deformidades, tatuagens e, sendo possível, a fotografia). Em 1936, com o Decreto-Lei n.º 27.304, de 8 de dezembro, os serviços de identificação e registo criminal e policial são reorganizados novamente (24). Durante muito tempo o registo policial foi uma duplicação do registo criminal e este decreto concentra ambos num só, criando o Arquivo Geral do Registo Criminal e Policial (Costa, 1984). O decreto refere a importância do registo para “fixar o reincidente” e o seu papel fundamental na investigação criminal. Para um registo perfeito seria necessária uma identificação rigorosa que iria desde a identificação antropométrica à datiloscópica. Segundo o artigo 13.º, todos os boletins do registo criminal e policial deveriam conter, entre outros elementos, a identidade da pessoa a quem dizem respeito, nomeadamente os seus sinais característicos e impressões digitais. Neste mesmo ano surge o Decreto-Lei n.º 27.305, de 8 de dezembro, que refere a necessidade de recorrer a vários processos que vão desde a sinalética, ao retrato, antropometria e datiloscopia para demonstrar a identidade do indivíduo. Este decreto refere, contudo, que “só com a (24)

O registo criminal encontrava-se associado com a intervenção dos tribunais, contendo informação quanto às condenações e detenções. O registo policial relacionava-se com as detenções das autoridades (Decreto-Lei n.º 27:304, 8 de dezembro de 1936), devendo ter informação quanto ao carácter, historial, hábitos, características físicas e atividades suspeitas (Machado e Prainsack, 2012). Coimbra Editora ®

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descoberta da datiloscopia foi possível obter um título que pudesse ser meio seguro de identificação”. Estamos perante a era da datiloscopia, assumindo-se esta como o sistema de identificação dominante (Cole, 2001). Prosseguindo no tempo e averiguando a legislação produzida em torno de questões de identificação, é possível constatar que a impressão digital se assume definitivamente como o sistema dominante não apenas na identificação criminal como também na identificação civil. Já desde 1936 que se almejava a unificação e centralização dos serviços de registo criminal. Em 1976 tal já tinha sido alcançado e passa a ser responsabilidade do Centro de Identificação Civil e Criminal (CICC) organizar e manter os ficheiros centrais de identificação civil e criminal (Decreto-Lei n.º 63/76, de 24 de janeiro). O CICC é regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 64/76 de 24 de janeiro. Este regulamento faz referência ao Bilhete de Identidade e os elementos que nele devem constar, como por exemplo, a fotografia, impressão digital e altura. É ainda referido o registo criminal e o modo como este é organizado em cadastros individuais. De acordo com o n.º 3 do artigo 33.º, “sempre que possível, por cada cadastro será catalogado um boletim com impressões digitais, pela ordem da respetiva fórmula, no arquivo dactiloscópico” (25) (Decreto-Lei n.º 64/76, de 24 de janeiro). Em 1991 surge a Lei da Identificação Civil e Criminal (Lei n.º 12, de 21 de maio). Esta lei refere que a identificação criminal abrange não só a recolha e manuseamento dos extratos das decisões criminais pelos tribunais de modo a conhecer os antecedentes criminais, como também “são ainda objecto de recolha as impressões digitais dos arguidos condenados nos tribunais portugueses para organização do ficheiro datiloscópico” (art. 13.º da Lei n.º 12/91, de 21 de maio). O CICC é extinto pelo Decreto-Lei n.º 148/93, de 3 de maio, e a identificação criminal passa a ser competência da Direção-Geral dos

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O arquivo datiloscópico contava já com 700 000 fichas em 1958 classificadas no sistema de Galton (Malhado, 2001). Tecnologias no presente, passado e futuro

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Serviços Judiciários. Nesta é criada a Direção de Serviços de Identificação Criminal, de Contumazes e Objetores de Consciência, que passa, a partir de 1993, a ser responsável pela recolha, classificação e arquivo das impressões digitais dos arguidos condenados em Portugal (art. 3.º do Decreto-Lei n.º 148/93, de 3 de maio). 3.3. Sistema automatizado de identificação por impressão digital Baseado no sistema de Vucetich (26), Federico Olóriz Aguillera, um professor de anatomia da Universidade de Madrid, desenvolveu o principal sistema de classificação de impressões digitais usado em Portugal e Espanha até ao recurso a sistemas automatizados de identificação lofoscópica (27) como o AFIS (28) (Oliveira, 2012; Triplett, 2012). A lofoscopia (29) é implementada na Polícia Judiciária com a adoção deste sistema de Olóriz em 1957 (30) (Correia, 2008; Malhado, 2001; Oliveira, 2012). No final do século XX começam a ser desenvolvidos sistemas automáticos de identificação por impressão digital (AFIS) nos Estados Unidos da América, Reino Unido, França e Japão. A pesquisa efetuada pelo FBI (Federal Bureau of Investigation), em particular, resultou na criação de software por diferentes empresas que permite armazenar impressões digi-

(26) Juan Vucetich, argentino, desenvolveu o seu próprio sistema de classificação de impressões digitais. (27) A lofoscopia pode ser definida como “a ciência que estuda os desenhos formados pelas cristas dermopapilares das extremidades digitais, palmas das mãos e plantas dos pés” (Correia, 2008: 143). Assim, a lofoscopia compreende a datiloscopia (impressões digitais), quiroscopia (impressões palmares) e pelmatoscopia (desenhos formados pelas plantas dos pés) (Correia, 2008; Malhado, 2001; Oliveira, 2012). (28) Automated Fingerprint Identification System. (29) A lofoscopia encontra-se na dependência do Laboratório de Polícia Científica (LPC), integrada no Setor de Identificação Judiciária da Área de Criminalística (Oliveira, 2012). (30) É neste ano que é fundado o Laboratório de Polícia Científica, o que leva a que a Polícia Judiciária adquira uma certa autonomia em relação ao Instituto de Medicina Legal (Decreto-Lei n.º 41.306, de 2 de outubro de 1957).

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tais eletronicamente (Brotman e Pavel, 1991; Finn, 2005; Moses et al., 2010). Esta revolução digital tem impactos na identificação criminal e os digital digits passam a dominar (Cole, 2001). O recurso à representação digital permite a conversão de uma estrutura em dígitos e o seu processamento eletrónico (Mordini e Massari, 2008), triunfando assim o armazenamento digital (Cole, 2001; Machado e Prainsack, 2012). Ilustração 2

Em Portugal, o AFIS é gerido pela Polícia Judiciária já desde 1990 e se inicialmente o seu uso apenas ocorria em Lisboa, na atualidade ocorre um pouco por todo o território (Oliveira, 2012). No caso porTecnologias no presente, passado e futuro

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tuguês há recurso ao sistema informático Omnitrak que permite o armazenamento das impressões digitais como imagens digitais. Convém referir que a recolha lofoscópica (Correia, 2008) inclui não só a recolha de impressões digitais (datiloscopia) mas também a recolha de impressões palmares (quiroscopia). Atualmente, a Polícia Judiciária também recorre à fotografia do arguido e o registo da cor dos olhos, altura e sinais particulares (cicatrizes e tatuagens). A lofoscopia permite assim a “identificação judiciária, com a feitura de resenhas e clichés a arguidos, a fim de se proceder a posterior inserção no AFIS” (Oliveira, 2012: 117). Foram surgindo novas tecnologias como o livescan (o scan direto para o computador) que eliminam algumas das limitações de cariz técnico da impressão digital (Cole, 2001; Machado e Prainsack, 2012). Contudo, na maioria dos gabinetes de perícia criminalística da Polícia Judiciária a recolha ainda se efetua com recurso a tinta. Apenas em Lisboa e Porto a recolha se processa através dessa tecnologia que permite registar as impressões digitais por leitura ótica (Malhado, 2001). Para haver uma identificação válida é necessário um determinado número de pontos característicos. Estes pontos dizem respeito a um conjunto de detalhes únicos. O número de pontos difere consoante os países, sendo que em Portugal são 12 (31) os pontos característicos coincidentes necessários para uma identificação (Correia, 2008; Malhado, 2001; Oliveira, 2012). De acordo com Pedro Correia: As impressões digitais são individualizadas na base de dados pela sua classificação e pela disposição espacial dos pontos característicos que ela apresenta. Estes dois parâmetros são atribuídos pela aplicação do sistema informático (OMNITRAK), mas sujeitos a controlo por parte de um técnico de lofoscopia (2008: 146).

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Tal como refere José Oliveira, “não existe (…) lei ou regulamentação adequada à determinabilidade do valor dos datilogramas/quirogramas que acompanham os relatórios periciais, ou seja, o número de pontos padrão baseia-se, mutatis mutandis, numa espécie de costume como fonte do Direito…” (2012: 118). Coimbra Editora ®

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Isto é, depois de revelados os vestígios latentes da cena de crime, estes não são apenas arquivados em papel. Há uma introdução destes vestígios no sistema informático Omnitrak através de câmara ou scanner e são marcados os seus pontos característicos para se efetuar pesquisa nos ficheiros datiloscópicos e quiroscópicos. Da pesquisa surgem vários resultados prováveis e o perito tem de observar cada possibilidade apresentada pelo sistema automatizado. Este sistema “estabelece uma comparação entre uma nova resenha, as resenhas já existentes e os vestígios em memória, com vista à deteção de falsas/duplas identidades e de identificações” (Correia, 2008: 156). 3.4. Bases de dados de identificação criminal Nesta tendência para a informatização destacam-se ainda as bases de dados de gestão processual. Estas contêm o registo de elementos de identificação pessoal, de informação criminal e decisões processuais de natureza penal (Malhado, 2001). As bases de dados de identificação criminal da Direção-Geral da Administração da Justiça assumem-se assim como fundamentais, podendo os ficheiros do registo criminal conter informações de todas as condenações (Machado e Prainsack, 2012). O registo criminal pode então ser informatizado e organizado num ficheiro central (art. 4.º da Lei n.º 57/98, de 18 de agosto). A Lei n.º 57/98, de 18 de agosto, vem regular estas bases de dados e o seu funcionamento, indicando como “meio complementar de identificação, as impressões digitais dos arguidos condenados nos tribunais portugueses, que são arquivadas pela ordem da respetiva fórmula, para organização do ficheiro datiloscópico” (art. 1.º, n.º 2). Segundo o Decreto-Lei n.º 381/98, de 27 de novembro, é atribuído um número sequencial a cada registo criminal. Este decreto refere-se ao ficheiro datiloscópico, constando no artigo 17.º que “as impressões digitais dos arguidos condenados remetidas pelos tribunais, depois de devidamente classificadas, são objeto de arquivo pela ordem da respetiva fórmula, com referência ao respetivo número de registo criminal”. O boletim do registo criminal deve conter o extrato da decisão, no qual seja identificado o arguido. Esta identificação implica que “as Tecnologias no presente, passado e futuro

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impressões digitais e a assinatura do arguido devem ser objeto de recolha no boletim do registo criminal respetivo imediatamente após o encerramento da audiência de julgamento” (art. 5.º do Decreto-Lei n.º 381/98, de 27 de novembro). Convém referir, contudo, que por vezes os boletins não contêm as impressões digitais ou por vezes estas têm fraca qualidade (Malhado, 2001) (32). O Decreto-Lei n.º 62/99, de 2 de março, regulamenta as bases de dados do registo criminal, constituída pelos ficheiros informáticos relativos à identificação criminal e de contumazes da Direção-Geral dos Serviços Judiciários. O ficheiro onomástico de identificação criminal e de contumazes e o ficheiro central do registo de contumácia são alguns desses ficheiros (art. 1.º), os quais permitem gerir e atualizar a informação sobre a identificação dos indivíduos com antecedentes criminais (art. 2.º). 3.5. Sistema Integrado de Informação Criminal O regime jurídico dos ficheiros informáticos da Polícia Judiciária é estabelecido pelo decreto-lei n.º 352/99 (Oliveira, 2012). Destaque-se ainda o Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro, onde consta que “a Polícia Judiciária pode aceder, nos termos das normas e procedimentos aplicáveis, a informação de interesse criminal contida nos ficheiros de outros organismos nacionais e internacionais” (n.º 2 do art. 9.º). De facto, na Lei n.º 33/99, de 18 de maio, que regula a identificação civil e a emissão do bilhete de identidade de cidadão nacional, é referida a possibilidade das entidades policiais e judiciárias terem acesso à informação que consta na base de dados no âmbito da investigação ou instrução criminal (art. 24.º da Lei n.º 33/99, de 18 de maio). É assim possível que as impressões digitais recolhidas para o cartão de identificação nacional sejam utilizadas na investigação criminal, sendo comparadas com as que são encontradas nas cenas de crime.

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Atualmente, no registo criminal é utilizado o sistema modificado de Galton-Henry (Malhado, 2001). Coimbra Editora ®

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O Decreto-Lei n.º 395/99, de 13 de outubro, refere-se também ao Instituto de Medicina Legal e aos seus ficheiros de dados informatizados. Estes dados destinam-se, entre outros, à elaboração de perícias e relatórios médico-legais e à criação de um ficheiro datiloscópico. Os dados que constam nestes ficheiros também podem ser acedidos por autoridades judiciárias e policiais, tal como indica o artigo 10.º do Decreto. A Polícia Judiciária gere um sistema integrado de informação que pretende centralizar a informação criminal (art. 8.º do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro). A centralização e gestão nacional da informação criminal e a recolha, tratamento e registo de vestígios identificadores é responsabilidade do Departamento Central de Informação Criminal e Polícia Técnica (art. 36.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro). Este sistema integrado de informação criminal inclui bases de dados de investigação judiciária (33) e o acesso a bases externas, como é o caso da identificação civil, registo criminal e outras informações relevantes, como, por exemplo, as que são comunicadas pela Direção-Geral dos Serviços Prisionais (Malhado, 2001). 3.6. A identificação criminal e a identificação civil No início do século XX, António Ferreira Augusto reconhecia que para maior eficácia do método de Bertillon deveriam ser registadas as medidas antropométricas “em todos os documentos em que seja necessário ficar bem constatada a identidade do individuo” (Augusto, 1902b: 10). Tal tornaria possível a associação de cada corpo a um registo e, sempre que necessário, a identidade seria confirmada através das medições ou impressão digital (Augusto, 1902b). Cerca de dez anos depois é instituída pelo decreto D.R. n.º 228, de 27 de setembro de 1912 a carteira de identidade, o primeiro documento

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No registo de dados pessoais destacam-se os dados nominativos (nome, alcunha), a sinalética antropométrica (altura, sinais e características físicas como cicatrizes e tatuagens), fotográfica e lofoscópica, e os dados biológicos (Malhado, 2001). Tecnologias no presente, passado e futuro

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português oficial de caráter identificador. Este é inicialmente aplicado junto de funcionários públicos, contendo as impressões digitais, fotografia (frente e perfil), elementos antropométricos e a descrição de marcas particulares e cicatrizes (Pina, 1939b). No entanto, esta primeira tentativa de criação de cartões de identidade acabou por ser um fracasso (Machado e Prainsack, 2012; Madureira, 2003). Em 1918, o Decreto n.º 4.837, de 25 de setembro, cria o Arquivo de Identificação de Lisboa em substituição do Arquivo Central de Identificação e Estatística Criminal. Com este arquivo pretende-se “sujeitar todos os condenados, pronunciados e os presos ou afiançados ao processo dactiloscópico, acompanhado ou não da sinalética antropométrica” (Decreto-Lei n.º 27.305, 8 de dezembro de 1936). Este decreto faz referência ao bilhete de identidade e associa à criação deste documento a necessária identificação do delinquente para descobrir o seu passado judiciário e combater a criminalidade. Há uma aproximação de critérios de identificação civil e criminal e são ampliados em Portugal os serviços de identificação civil (Madureira, 2003; Oliveira, 2012; Pina, 1936, 1939a). O Bilhete de Identidade civil é criado em 1919 pelo decreto n.º 5.266 de 19 de março (Pina, 1936, 1939b) e passa a ser meio de prova civil para todos os cidadãos, entrando em funcionamento uma repartição especializada para esse efeito, o Arquivo de Identificação de Lisboa (Madureira, 2003; Pina, 1968). A identificação seria efetuada pelo método datiloscópico (Galton-Henry) complementada ou não com sinalética antropométrica (Pina, 1939b). Novamente, tal como na identificação criminal, também na civil houve recurso a quatro tipos de sinalética: a descritiva, fotográfica, antropométrica e datiloscópica. Na sinalética descritiva, se mencionam a côr dos olhos e sinais particulares (cicatrizes, anomalias, etc.); quanto à fotográfica, adiciona-se ao Bilhete o retrato do identificado; no que respeita à antropométrica, nêle se registram a estatura e a côr dos olhos; no que se refere à dactiloscópica, imprime-se no Bilhete a pele da polpa do dedo indicador direito, isto é, a correspondente estampa (…) colhida em boletim destacado, que se remete para um Arquivo central (Pina, 1938: 31). Coimbra Editora ®

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Em 1927, com o Decreto 13.254, de 9 de março, há uma reorganização da Repartição do Porto, sendo-lhe anexado o serviço dos Bilhetes de Identidade e passando a denominar-se de Repartição de Antropologia Criminal, Psicologia Experimental e Identificação Civil (Pina, 1931, 1939b). Além da Repartição do Porto, também o Instituto de Criminologia de Coimbra (34) passa a ter competências na área civil, funcionando ambos como arquivos de identificação regionais para fins criminais e civis a partir de 1927 (Machado e Prainsack, 2012; Pina, 1931, 1938, 1939a, 1968). O sistema de identificação era ainda misto e abrangia as observações antropométricas (altura, cor dos olhos, cicatrizes), impressões digitais (indicador direito) e fotografia (Madureira, 2003). Além destes arquivos regionais, convém referir o Instituto de Criminologia de Lisboa, criado pelo decreto n.º 5.609, de 10 de maio de 1919. O Decreto n.º 12.202, de 26 de agosto de 1926 transfere para este Instituto os serviços de identificação criminal e é nele que fica a funcionar o Arquivo Central de Identificação Criminal, segundo o Decreto n.º 13.254, de 9 de março de 1927 (Pina, 1938, 1939a). É, portanto, junto desses Institutos e Repartição do Porto que são colocados os serviços de identificação e registo criminais (Maldonado, 1968). A Repartição do Porto é transformada em Instituto de Criminologia apenas em 1936 com o Decreto de 8 de dezembro. Em 1936, o Decreto n.º 27.304, de 8 de dezembro, torna obrigatória a remessa de boletins datiloscópicos criminais para a sede ou Arquivo Geral de Registo Criminal e Policial. Nessa mesma data, o decreto 27.305 reorganiza os serviços de Identificação Civil, centralizando-os, com o objetivo de estabelecer um ficheiro datiloscópico único (Pina, 1939b) (35). Adriano Moreira já referia as vantagens de uma base

(34)

O Instituto de Criminologia de Coimbra é criado pelo Decreto n.º 13:254, de 9 de Março de 1927. (35) Na Portaria n.º 7.312, de 29 de março de 1932 previa-se a remessa de boletins datiloscópicos (Registos Criminal e Policial). Também já no artigo 24.º do Decreto n.º 13.254, de 9 de março de 1927 se pretendia o envio de boletins datiloscópicos para o Arquivo Criminal da respectiva área judicial (Pina, 1939b). Tecnologias no presente, passado e futuro

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datiloscópica para toda a população com fins de identificação civil e criminal, sendo que tal seria, no seu entender, expectável no futuro (Moreira, 1960 apud Machado e Prainsack, 2012). No Decreto n.º 33.535, de 21 de fevereiro de 1944 é referido que ainda não existia um arquivo completo de impressões digitais. O Arquivo de Identificação não possuía à data nenhum serviço e o do Arquivo Geral do Registo Criminal e Policial não bastava. Este decreto enaltece que uma identificação para ser rigorosa requer o uso de métodos datiloscópicos e que é necessário um arquivo central. Para tal, é constituída a Direção dos Serviços de Identificação, que terá a seu cargo a identificação civil e criminal. Estes serviços distribuem-se por duas secções que se inserem na Direção dos Serviços de Identificação. A identificação civil pelo Arquivo de Identificação e a criminal pelo Arquivo Geral do Registo Criminal e Policial (art. 2.º). O Decreto-Lei n.º 555/73, de 26 de outubro, regulamenta a Lei n.º 2/73, de 10 de fevereiro, que instituiu o registo nacional de identificação, baseado na atribuição de um número nacional de identificação. Esse registo de cada cidadão contém não apenas o seu número de identificação mas também os elementos de identificação civil que lhe correspondem e outros elementos, nomeadamente a altura, fórmula datiloscópica, sinais particulares, alcunhas ou nomes usados em alternativa. Tal como diz Nuno Madureira, “depois da antropometria, da datiloscopia e da fotografia bertilloniana terem dado provas no controlo de subpopulações de risco, é chegada a vez de aplicar estas técnicas de identificação a toda a sociedade” (2003: 298). Os procedimentos de identificação criminal expandem-se à esfera da identificação civil e o desejo de identificar e controlar os corpos “suspeitos” alarga-se cada vez mais e passa a abranger também aqueles que são considerados cidadãos “respeitáveis” (Cole, 2001). Noutros países, como os Estados Unidos da América, Canadá ou Reino Unido, as práticas de identificação remetem para a identificação de criminosos, sendo a recolha e registo de impressões digitais um exemplo de como tal é encarado de modo pejorativo ou estigmatizante. Convém realçar, contudo, que no caso português foi possível desenvolver-se uma base de impressões digitais e efetuar o seu registo no Bilhete Coimbra Editora ®

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de Identidade e ainda no Cartão de Cidadão (36) sem praticamente qualquer oposição por parte dos cidadãos (Cole 2001; Cole e Lynch 2010; Finn 2005; Frois, 2008; Machado e Prainsack, 2012). Constata-se assim que quando são implementadas novas tecnologias e técnicas de identificação criminal, a tendência é que estas depois sejam ampliadas a todos os cidadãos. Ou seja, “o registo da diferença dos criminosos é transformado na igualdade da identificação civil dos cidadãos” (Madureira, 2003: 302). Este duplo uso (Machado e Prainsack, 2012) que se tem registado em Portugal voltou a averiguar-se recentemente aquando da criação de uma base de dados de perfis de DNA para fins de identificação civil e criminal. 4. CONCLUSÃO A evolução das práticas de identificação criminal remete-nos para um trajeto que vai desde a criação de registos com informações relativas ao criminoso, descrições físicas, medições antropométricas e impressões digitais, até às mais recentes tecnologias biométricas, como é o caso do recurso ao DNA. Ao longo deste trajeto composto por diversos instrumentos de identificação criminal e formas de individualização, tem sido essencial o uso do corpo aliado à tecnologia e conhecimento científico. De facto, é a autoridade epistémica da ciência que legitima o desenvolvimento destes mecanismos de identificação, vigilância e controlo estatal. Inicialmente apenas eram registadas as informações e sinaléticas particulares dos presos, constando nesses registos elementos de identificação muito rudimentares que tinham por base a sinalética descritiva. Entretanto foi adotado o método de Bertillon e os presos passam a ser medidos nos postos antropométricos criados para o efeito. Estas práticas são complementadas com a fotografia e, entretanto, desenvolve-se a

(36)

A Lei n.º 7/2007 de 5 de fevereiro, cria o Cartão de Cidadão em substituição do BI. Além dos elementos que já constavam no BI, este novo cartão passa a incluir a morada, a assinatura digital e a impressão digital do indicador esquerdo (no BI apenas constava a do direito). Tecnologias no presente, passado e futuro

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datiloscopia. Em suma, no início do século XX a identificação criminal socorria-se de diversas sinaléticas, desde a descritiva, antropométrica, fotográfica e datiloscópica. Ao longo do século vai sendo organizado o sistema de registo policial e criminal, e a datiloscopia assume-se como o método dominante de identificação. O recurso às aplicações informáticas afigura-se como fundamental para a modernização do aparelho judicial e surgem, com o aproximar do século XXI, os sistemas automatizados, nomeadamente as bases de dados de identificação criminal e o AFIS. Esta informação que se tem vindo a recolher, armazenar e analisar para efeitos de identificação criminal não é apenas de caráter físico e visual, mas também de caráter biológico, sendo de realçar o impacto da biologia molecular nas práticas de identificação. Os métodos de identificação criminal baseados na genética desenvolveram-se no final do século XX, tendo como momento marcante em Portugal a criação de uma base de dados de perfis de DNA em 2008 pela Lei n.º 5, de 12 de fevereiro. Prevê-se assim o surgimento de uma nova era, a era da genética, em que as bases de dados de perfis de DNA surgem como um poderoso instrumento associado à promessa de uma identificação eficaz de criminosos. Em Portugal, no início do século XXI, iniciou-se um debate em torno da proposta de criação de uma base de dados de perfis de DNA (Botelho e Gomes, 2000; Oliveira, 2001) e em 2005 foi anunciada a ambição política de criar uma base de dados universal (Boavida, 2005; Machado e Prainsack, 2012). Mais uma vez tal não pareceu alarmar os cidadãos nem gerou grande controvérsia. De facto, se o perfil de DNA fosse inserido no cartão de identificação tudo indica que tal seria facilmente aceite pelo cidadão português, como aconteceu no caso do Bilhete de Identidade e impressão digital (Ribeiro, 2011). Em Portugal constata-se precisamente esta tendência das técnicas de identificação individual começarem por se aplicar no âmbito criminal para depois terem aplicação na identificação civil. Ao longo da história, os processos de identificação criminal têm-se transformado em termos tecnológicos e científicos mas há aspetos que são similares na sua essência. A impressão digital pretendia, através de uma imagem visual, traduzir a identidade do criminoso em linguagem. Também Coimbra Editora ®

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o método de Bertillon tinha a pretensão de reduzir a identidade e o corpo a uma linguagem passível de ser codificada para transformar o corpo criminal em informação. O mesmo se passa, um século mais tarde, com o recurso ao DNA. Todos estes instrumentos procuram assim identificar, registar e controlar os “corpos suspeitos”, tornando-os visíveis. Os discursos que legitimam a necessidade do método de Bertillon e da datiloscopia em Portugal assemelham-se ao discurso da proposta de lei para a criação de uma base de dados de perfis de DNA. Da mesma forma que no início do século XX se encarava a antropometria e as impressões digitais como a solução para a descoberta e identificação do verdadeiro criminoso, é possível voltar a verificar este mesmo entusiasmo e otimismo em alcançar a verdade com o recurso ao DNA. É ainda interessante constatar como os argumentos aquando da implementação destes instrumentos se prendem com o facto de no estrangeiro tal já ter ocorrido e da necessidade de acompanhar ao nível tecnológico os países mais evoluídos. Em Portugal, portanto, “o grande slogan” parece prender-se com a modernização (Fróis, 2008). Têm surgido ao longo do tempo novas técnicas e métodos de identificação e classificação, o que leva a que por vezes os sistemas se tornem incompatíveis entre si. Isto já se verificava no início do século XX devido à falta de cooperação e duplicação de registos e informação. É então muito importante atender aos erros do passado de modo a ter presente a necessidade de integração e cooperação das diversas instituições. A este propósito, convém enaltecer que o sistema de identificação criminal é todo um conjunto diversificado de registos de diversas entidades e serviços que pretende identificar o autor do crime. Tal remete-nos não só para a identificação judiciária, mas também para a identificação judicial e registo criminal (Malhado, 2001). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Afonso, António (1973), Memórias de um polícia português. Lisboa: Cronos Publicações. Augusto, António (1902a), Postos anthropometricos: Breve explicação do systema de mr. Bertillon e sua applicação pratica. [S.l.: s.n.]. Augusto, António (1902b), “Portugal e a anthropometria”, in António Ferreira Augusto; Luiz Viegas (orgs.), Revista d’Anthropologia Criminal — Boletim do Posto AnthroTecnologias no presente, passado e futuro

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OUTRAS FONTES Arquivo Histórico dos Serviços Prisionais (norte): — Livros de registo de entrada de presos da Cadeia Civil do Porto — 1754-1972. — Livros de registo de entrada de presos da Cadeia de Estarreja — 1876-1978. — Livros de registo de entrada de presos de Santa Cruz — 1895. — Processos individuais de presos — 1935 — 1972.

Tecnologias no presente, passado e futuro

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