Batalha - Viagem a um Mosteiro Desaparecido com James Murphy e William Beckford

July 25, 2017 | Autor: Pedro Redol | Categoria: Architectural History, Travel Literature
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PEDRO REDOL

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BATALHA Viagem a um Mosteiro desaparecido com James Murphy e William Beckford

Título Viagem a um Mosteiro desaparecido com James Murphy e William Beckford Autor Pedro Redol Edição CEPAE – Centro do Património da Estremadura Colecção Estremadura – espaços e memórias II SÉRIE Direcção Científica Saul António Gomes Coordenação Editorial CEPAE – Centro do Património da Estremadura: Joaquim Ruivo Mário Rui Rodrigues Luís Jordão Gonçalo Cardoso Eduardo Oliveira

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Folheto Edições & Design: Adélio Amaro Concepção Gráfica Folheto Edições & Design Impressão Gráfica Almondina Tiragem 700 exemplares Depósito Legal xxxxxxxx ISBN 978-989-8158-xx-x

Praça Mouzinho de Albuquerque Ed. Mouzinho de Albuquerque, 2.º Andar, sala 1, Ap. 18 2440-901 Batalha - Tel./Fax: 244 766 199 [email protected] – www.cepae.pt

Praça Madre Teresa de Calcutá Lote 115, Loja 1, 2410-363 Leiria Tel./Fax: 244 815 198 – [email protected] http://folhetoedicoesdesign.blogspot.com

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Abordagem crítica ao levantamento arquitectónico do Mosteiro da Batalha realizado por James Murphy (1789)

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SIGLAS O MANUSCRITO 260 SAL ABORDAGEM CRÍTICA AO LEVANTAMENTO ARQUITECTÓNICO Métodos de medição, cálculo e representação Os edifícios conventuais no final do século XVIII Comparação com o edificado Aspectos construtivos Medidas Aspectos funcionais Os dados da prospecção geofísica Significado do levantamento de Murphy para o conhecimento de um convento desaparecido QUE CONVENTO? A REFORMA JOANINA DA BATALHA NOTAS BIBLIOGRAFIA

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Índice

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SIGLAS

AHMB – Arquivo Histórico Municipal da Batalha IGESPAR – Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico IGP – Instituto Geográfico Português IHRU – Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana SAL – Society of Antiquaries of London TT – Torre do Tombo

Do levantamento arquitectónico do Mosteiro da Batalha levado a cabo por James Murphy, ao longo de treze semanas de estadia neste convento, em 1789, chegou-nos o precioso manuscrito 260 da Society of Antiquaries of London, que, além de 72 peças desenhadas, inclui três cartas do arquitecto ao seu patrono, Lord William Conyngham, uma descrição em francês intitulada “Etat particulier et mecanique du cuvent [sic] de la Ville de Batalha”, que pertencera ao diário da viagem realizada a Portugal e à Batalha por William Conyngham, em 1783, e, por fim, duas cartas dirigidas à Society of Antiquaries por aquele que lhe ofereceu este conjunto de manuscritos, em 1830, Thomas Crofton Crocker. O documento é precioso pela quantidade de informações que fornece relativamente tanto à configuração que o conjunto monástico então apresentava como à sua lógica funcional. No entanto, é ele próprio que se encarrega de nos informar da respectiva incompletude. De facto, na sua primeira carta, datada de Março de 1789, diz Murphy: Por mais correctos que sejam os esboços de um edifício complicado como este, não podem os mesmos coligir-se a uma grande distância sem recorrer em muito à memória, cujos contornos tendem a apagar-se com o passar do tempo. Por isso, achei melhor fazer os desenhos acabados no local.1

Society of Antiquaries of London, Sketches of Batalha, ms. 260, fs. vi-vii v.; publicado por Maria João Batista Neto, James Murphy – Arquitectura Gótica, Desenhos do Mosteiro da Batalha. Reedição do Álbum de 1795, Lisboa, Alêtheia Editores, 2008, p. 91-93. Itálico nosso. 1

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O MANUSCRITO 260 SAL

Segue-se a enumeração das peças acabadas, não se conhecendo actualmente o paradeiro de nenhuma delas: a) Uma planta geral da igreja e do mosteiro; b) Planta do segundo piso; c) Planta do segundo piso das Capelas Imperfeitas; d) Planta dos telhados da igreja; e) Alçado da fachada sul; f) Alçado da fachada norte; g) Alçado da fachada poente incluindo o refeitório e a cozinha e que corresponde à extensão do edifício primitivo; h) Um corte geral de nascente para poente, passando pela igreja, capela-mor e Capelas Imperfeitas; i) Corte das Capelas Imperfeitas.

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De facto, os desenhos que nos chegaram não teriam sido suficientes para a produção das gravuras publicadas em Plans, Elevations Sections and Views of the Church of Batalha, entre 1792 e 1795. Falta a planta da Capela do Fundador, o corte longitudinal da igreja (e das Capelas Imperfeitas, este último tão-pouco publicado), bem como a parte do corte através do Claustro Real, que diz respeito à Casa da Prata e à sacristia (não referido na lista acima, mas publicado). O desenho designado, na referida carta, como “Alçado da fachada ocidental, incluindo o refeitório e a cozinha e que corresponde à extensão do edifício primitivo”2 revela o interesse, desde início, no estudo do edifício gótico e, mais especificamente, do que sabemos hoje corresponder às construções dirigidas por Afonso Domingues, Huguet e Martim Vasques, isto é, o programa conventual de base, a que se juntam a Capela do Fundador e as Capelas Imperfeitas. O segundo claustro gótico, claustro de serviço desde a sua fundação, e as dependências da segunda metade do século XVI, não inspiraram, pela infor-

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Itálico nosso.

ABORDAGEM CRÍTICA AO LEVANTAMENTO ARQUITECTÓNICO O levantamento in situ é, em todo o caso, de uma economia e exaustividade verdadeiramente impressionantes – em especial, os complexos traçados cotados, em planta, de molduras de pés-direitos de portais, janelas e pilares (ver, por exemplo, fólio 48, fig. 1), e, em alçados, de arcos policêntricos –, se se tiver em conta o reduzido tempo em que Murphy diz tê-lo realizado: 22 dias, segundo relata na carta que temos vindo a citar.

Fig. 1 - James Murphy, ms. 260, SAL, fól. 48

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mação que nos chegou, o levantamento de quaisquer elementos destinados ao desenho de alçados ou cortes. Constituiria excepção o alçado norte (se não fosse o da própria Adega dos Frades), que acabou por não ser publicado.

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Nessa altura, concluíra já todos os desenhos à mão levantada, uma planta geral e vários alçados, tendo transcrito ainda 45 páginas da História de S. Domingos, de Frei Luís de Sousa. Acrescenta que o afã de desenhar, dia e noite, resultou da estranheza causada aos frades pelo facto de se ter dirigido à Batalha com aquele fim exclusivo e de dever, por conseguinte, aproveitar as facilidades por eles concedidas, antes que lhes ocorresse retirarem-lhas. Semelhante aplicação ao trabalho valeu-lhe a doença, de que apenas sairia após 21 dias de febres persistentes, altura em que dirigiu a primeira carta, aqui referida, a William Conyngham, cuja cópia está datada de Março, sem indicação de dia. Tendo em conta que Murphy chegou à Batalha a 29 de Janeiro e que os sucessos relatados se estendem por 43 dias, a carta há-de ter sido escrita em meados de Março. Depreende-se que os restantes 48 dias das treze semanas que, nas Travels in Portugal3, diz ter passado entre os frades da Batalha, foram gozados na paz e hospitalidade daquele lugar, referidas no mesmo sítio, consolidando porventura o trabalho já realizado.

Métodos de medição, cálculo e representação Podemos questionar-nos sobre o rigor das cotas inscritas nos desenhos. Das medições realizadas ficamos a saber, pela mesma carta até aqui explorada, que as alturas foram tiradas com um fio (de prumo?), a partir das coberturas do edifício. A altura do inacessível coruchéu da Torre da Cegonha (não incluído naturalmente o remate) foi calculada a partir do raio da base e do ângulo formado pelo lado da pirâmide em relação a esta. O fólio 29 do manuscrito 260 inclui, num “Memorando relativo às alturas da igreja”, a seguinte nota: “Altura da coluna da igreja 70 pés NB medida com um ”, isto é, a medida foi calculada, uma vez mais, por triangulação. Não dispomos de outros elementos relativamente ao modo como se realizou o levantamento, mas é improvável que as medições tenham sido feitas 3

James Murphy, Travels in Portugal, Londres, 1795, p. 46.

No entanto, o manuscrito 260 da Society of Antiquaries of London compreende alguns desenhos realizados a partir do levantamento in situ, que não se encontram mencionados na lista que Murphy inclui na sua primeira carta, mas que serviram, sem dúvida, para a produção das gravuras publicadas: a) Alçado exterior sul da Capela do Fundador (fól. 21); b) Corte nascente do Claustro Real, mostrando a fachada norte da igreja e a Torre da Cegonha (fól. 26); c) Perspectiva do cruzeiro e da capela-mor (fól. 37); d) Alçado norte da cabeceira e do portal do transepto (fól.38). O primeiro desenho está acompanhado de uma escala, não reproduzida na gravura. O último (fig. 2) contém, na base, a nota: “A altura até à base do avental da janela em / é 42-1- e deu 20 na secção da moldura / Gravado por Lowry (…)”4. Dela se depreende, que, no acto da gravação, foi necessário calcular medidas que não tinham sido levantadas. A informação relativa ao gravador coincide com aquela que se vê na gravura publicada, sendo a nota de sua provável autoria. Não voltamos a deparar com uma ocorrência comparável no que diz respeito à colaboração entre desenhador e gravador, mas facilmente se pode imaginar a necessidade de estreita cooperação entre ambos. Neste caso, optou-se por apresentar uma escala em vez de numerosas cotas. 4

O restante texto é ilegível.

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sem o auxílio de, pelo menos, um ajudante. O método seguido foi o da realização de desenhos à mão levantada de unidades modulares a partir de um sistema de duas coordenadas para os cortes horizontais. Os desenhos foram depois passados a tinta, com o auxílio pontual de régua e compasso. Nos alçados, as medidas das partes inacessíveis foram calculadas através de alinhamentos mais ou menos rigorosos com elementos vizinhos. Trataremos do sistema de medidas utilizado mais adiante.

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Fig. 2 - James Murphy, ms. 260, SAL, fól. 38

Os edifícios conventuais no final do século XVIII Por fim, o manuscrito que vimos referindo contém diversos desenhos que não foram publicados mas que se revestem de um interesse excepcional para o conhecimento do complexo conventual, tal como James Murphy teve oportunidade de o conhecer. São eles:

Fig. 3 - James Murphy, ms. 260, SAL, fól. 73

Acompanha-o uma nota de que transcrevemos aquilo que constitui novidade em relação ao que vem na planta publicada5: “As Para cotejo com as restantes ilustrações, consulte-se a cópia da planta publicada por Murphy que anexamos ao final deste artigo, acompanhada da tradução da respectiva legenda. 5

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a) Uma planta e um corte transversal do refeitório (fól. 73); b) Uma planta do refeitório, da cozinha, da despensa e do refeitório pequeno (fol. 75); c) Perspectiva de uma prensa de azeite (fól. 77); d) Uma planta dos muros exteriores do conjunto monástico, excluindo os panteões e a fachada sul (fól. 68); e) Duas plantas parciais do piso térreo das dependências conventuais desaparecidas, mostrando a articulação com a igreja e com o Claustro de D. Afonso V (fóls. 71 e 72); f) Uma planta do piso superior do mosteiro que cobre o Claustro de D. Afonso V e os dois claustros vizinhos desaparecidos (fól. 76). O corte transversal do refeitório (fig. 3) mostra as aberturas na parede norte, destinadas a passar os alimentos preparados na cozinha, os bancos, a que se subia por um degrau, em que se pousavam os pés, e as mesas.

paredes são construídas em cantaria, assente em fiadas regulares, o pavimento é de grandes lajes rectangulares e há uma mesa corrida ao longo da parede, de cada lado, com pés de pedra e tampo de madeira. A altura até ao topo do arco é de 40 pés. Enquanto os frades jantam é habitual haver pássaros a voar pela sala”. Na planta do mesmo fólio, vê-se um rectângulo, no canto nordeste, com a seguinte legenda: “a fonte para lavar as mãos, onde assiste um irmão converso com uma toalha e um jarro”.

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O desenho do fólio 75 contém uma nota referente à cozinha que diz: “Há um parapeito corrido em três lados da cozinha, sustentado por peças de pedra, que tem diante um degrau com 6 polegadas de altura”. Na planta desta dependência, estão identificados, ao centro, “Mesa de mármore” e, à volta, em sentido retrógrado, “mesa, fogareiros, pias”. O desenho compreende ainda um alçado e uma planta do fogão, sob a chaminé. A prensa de azeite com a vara, o fuso e o peso (fig. 4) pertencia certamente ao lagar mais moderno que o mosteiro possuía.

Fig. 4 - James Murphy, ms. 260, SAL, fól. 71

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Fig. 5a e 5b - Inscrições da fachada principal do lagar de azeite da cerca do Mosteiro da Batalha

Analisaremos os fólios 68, 71 e 72 em conjunto, confrontando-os depois com a planta publicada. O fólio 76, referente ao piso superior, será comentado na sequência desta análise. O levantamento do Claustro de D. Afonso V, coberto pelos fólios 72 e 76, será objecto de aprofundamento, no que se refere tanto aos elementos construtivos quanto às medidas. No fólio 68 (fig. 6) vêem-se as paredes exteriores do mosteiro, exceptuando as dos panteões, o que corresponde a um erro, no caso das Capelas Imperfeitas, uma vez que as mesmas estão alinhadas com o portal axial da igreja, ali representado. Este desenho, tal como o do fólio 72 (fig. 7), mostra, no canto nordeste do conjunto monástico, o celeiro, na sua íntegra, bem como o pórtico que sustentava a varanda do dormitório dos professos. Dessas construções aparece, no desenho publicado, apenas parte do celeiro, cortado, no limite da gravura, pela respectiva moldura.

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Os seus restos podem apreciar-se ainda hoje no extremo norte da antiga cerca conventual, onde o muro era interrompido pelo rio Lena. Apresenta, a cada lado da respectiva fachada principal, as inscrições “ANO” e “1738” (fig. 5 a e b); ao centro, uma outra reza “RECONSTRUIDO / EM / 1939”. A esta reconstrução não sobreviveram nem o moinho, nem a prensa de azeite tradicionais.

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Fig. 6 - James Murphy, ms. 260, SAL, fól. 68

Fig. 7 - James Murphy, ms. 260, SAL, fól. 72

Os arranques da cerca e ainda o de um outro muro merecem um comentário mais alargado, em que nos permitiremos fazer incursões em domínios que não dizem respeito exclusivamente à crítica do levantamento de Murphy, mas que para ela contribuem significativamente. A estrutura adossada à fachada poente do mosteiro é, sem dúvida, o arranque de um muro, pois não existe linha alguma que o feche. Porém, na planta publicada, essa estrutura está contornada, podendo, sem outra informação, interpretar-se como um contraforte. Dois documentos provam que o desenho inicial representa um arranque do muro da cerca. O Mapa Topográfico de 1793 (fig. 8), guardado no Instituto Geográfico Português, mostra, na base, uma vista da fachada nascente do mosteiro e da sua cerca desse mesmo lado. Fig. 8 - Mapa Topográfico, 1793, pormenor, IGP

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No entanto, o fólio 68 é de grande importância por várias outras razões: a) Mostra os arranques da cerca, a poente e a nascente; b) No lado poente, exibe, com maior clareza do que a planta gravada, o entaipamento da porta do Claustro Real que dá para o exterior; c) Na parte correspondente ao exterior do edifício representado, a nascente, lê-se a seguinte nota: “Erguem-se aqui os restos de uma velha capela que existiu antes deste edifício e onde D. João I fez o voto de construir o Mosteiro, caso saísse vitorioso da Batalha de Aljubarrota”. A referência diz respeito claramente à primeira igreja conventual, que ficou conhecida pelo nome de Santa Maria-a-Velha.

A Planta da estrada municipal de 2ª classe de Batalha pela Golpilheira, datada de 1879 (fig. 9), que se conserva no Arquivo Histórico Municipal da Batalha, representa a cerca igualmente do lado nascente.

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Fig. 9 - Planta da estrada municipal de 2ª classe de Batalha pela Golpilheira, 1879, AHMB

Do lado poente, tanto o fól. 68 como a planta publicada mostram dois muros adossados à fachada do mosteiro: um deles alinhado com a parede sul do celeiro; o outro, contíguo ao contraforte norte da portaria. Verifica-se todavia uma diferença

De todos os documentos acima referidos, a Planta da estrada municipal é, sem dúvida, a mais rigorosa e nela (fig. 10) podemos observar que, a nascente, existe um caminho ladeado por muros, vindo aquele que se encontra mais próximo do mosteiro encostar-se a uma capela. A capela é Santa Maria-a-Velha e a rua compreendida entre os dois muros, a Rua Velha para o Convento, conhecida na documentação do mosteiro desde o século XVI.

Fig. 10 - Planta da estrada municipal de 2ª classe de Batalha pela Golpilheira, 1879, pormenor AHMB

Aquilo que a planta também ilustra é que, em 1879, a maior parte das dependências conventuais quinhentistas tinha sido já demolida e que uma qualquer ligação da igreja de Santa

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neste último caso, pois aquilo que, na planta impressa, é apenas um arranque, no fól. 68, é um pequeno muro, interrompido para dar lugar a uma porta e logo retomado, só aqui se efectuando o corte no desenho.

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Maria-a-Velha ao conjunto se tinha perdido. Podemos colocar a hipótese de o muro interrompido por uma porta que Murphy desenhou corresponder a essa ligação pelo flanco SW da igreja, fechando a propriedade do mosteiro por aquele lado e garantindo certamente ainda a serventia da igreja por parte da clausura. Nesta preciosa planta de 1879, é possível ver ainda o muro da cerca até ao rio Lena e para além dele; ausente está, porém, a capela de Nossa Senhora do Caminho. Extremamente interessante é, por fim, o facto de, no canto NE do mosteiro, se continuar a ver o possante pórtico que sustentava o mirante, bem como um troço do claustro já demolido, o que se pode explicar pela dificuldade de desmontar ou reconfigurar aquela estrutura sem pôr em risco o edifício. Uma gravura da obra de William Morgan Kinsey, Portugal Illustrated, dada ao prelo em 1828 (fig. 11), a única representação que, aliás, conhecemos da fachada norte do mosteiro antes das demolições, dá-nos uma ideia da posição relativa das dependências, incluindo o celeiro, à esquerda, e o mirante, à direita.

Fig. 11 - Vista do Mosteiro da Batalha desde norte, in W. M. Kinsey, Portugal Illustrated, 1828

Fig 12 - Vista da igreja matriz da Batalha, gravura de J. Pedrozo, s.d.

O já referido Mapa Topográfico de 1793 confirma, ainda que de uma forma simplificada (o mosteiro possui um único claustro), a existência de ligação entre o mosteiro e Santa Maria-aVelha, bem como a relação da Rua Velha para o Convento com este edifício e com a cerca conventual (fig. 13a). Mostra adicionalmente o perímetro desta (fig. 13b).

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Atribuindo maiores créditos à Planta da estrada municipal, verificamos que, na gravura, o celeiro foi confundido com Santa Maria-a-Velha, ligando-se-lhe directamente, além disso, a Rua Velha para o Convento. Na verdade, a vetusta igreja volta a aparecer, destelhada e com duas empenas à vista, um pouco mais à esquerda. No extremo esquerdo da composição, vê-se a igreja matriz da Batalha, cuja estranha empena aglutina o recorte barroco e o campanário que então possuía (fig. 12).

a Fig. 13a e 13b - Mapa Topográfico, 1793, pormenores, IGP

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A gravura de Kinsey, importante pelo facto de ser a única que sabemos representar o lado norte do mosteiro, presta-se a mais alguns comentários, além daquele que já foi feito a respeito de Santa Maria-a-Velha e da Rua Velha para o Convento. Comparando-a com os fólios 72 e 76 (figs. 7 e 14) do levantamento de Murphy, verificamos que os edifícios do celeiro/dormitório e do mirante estão alinhados, quando o primeiro deveria destacar-se claramente. Por outro lado, não estão ligados pelas dependências do lado norte do claustro respectivo.

Fig. 14 - James Murphy, ms. 260, SAL, fól. 76

Um último aspecto relativo à gravura publicada por Kinsey, em que nos interessa reparar, é o facto de se sobrepor parcialmente ao pórtico do mirante, do lado poente, uma torre que não se encontra representada na planta do fólio 76. A observação atenta da gravura revela linhas auxiliares que prolongam a construção da torre até ao solo, o que significa que, no processo de gravação, se admitiu a necessidade de representar aquele que tinha de ser um poderoso pórtico, depois de se ter começado a gravar uma torre inexistente, inspirada talvez por alguma configuração específica dos telhados numa zona de articulação entre as águas do Claustro de D. Afonso V e aquelas que pertenciam ao que lhe ficava contíguo a nascente. Todos estes aspectos revelam que a interpretação do desenho feito in loco para efeitos de gravação não deve ter tido significativo acompanhamento por parte do desenhador ou que este não recolheu informação suficiente para o trabalho a realizar. Do ano da publicação da gravura, 1828, é um interessante documento6, em que a comunidade conventual descreve as

Torre do Tombo, Ministério da Justiça, maço 248, nº 1; publicado por M. J. B. Neto, “O restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória de 1840 a 1900”, in Cadernos de História da Arte, Lisboa, Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, 1991, p. 239-240; Idem, James Murphy e o Restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória no Século XIX, Lisboa, Editorial Estampa, 1997, p. 193-194.

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Os fólios 68 (fig. 6) e 72 (fig. 7) do levantamento de Murphy revelam a existência do pórtico adossado ao celeiro que se vê na gravura, ladeado, porém, por duas aberturas que, na mesma, não aparecem. De acordo com as informações dadas pelas plantas dos fólios 72 e 76, apercebemo-nos de que as janelas rasgadas a toda a altura, na parede poente do celeiro/dormitório, não poderiam ter existido. Relativamente a este edifício, reparamos ainda que, na gravura, se encontra destelhado. Nos três planos posteriores, vêem-se três ordens de coberturas, que podemos interpretar como os telhados de: a) A ala norte do claustro da portaria; b) A Casa das Horas e as dependências do prior; c) A sala do capítulo.

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medidas que tomou com vista à reparação dos danos infligidos pelo tempo, mas sobretudo pelos militares, aquando da terceira Invasão Francesa, em 1811, que se encarregaram de incendiar uma boa parte das dependências conventuais antes de partir7. São aí referidos também os “tectos da grande Caza do Capitolo, pois soffrerão huma grande ruina quando cahio o grande Corocheo abalado pelo terremoto, e ultimamente ferido por hum raio na sua extremidade, em que tambem padeceo o tecto da Sachristia”. De facto, a ilustração de Kinsey mostra a ruína do coruchéu e o perfil dos telhados da sala capitular, presumivelmente já reparados. O documento fala, porém, em primeiro lugar, daquilo que “escapou ao incendio, mas não a destruição e barbaridade no seo interior, Como foi a Caza de Noviços e Dormitorio da baranda, e Offecinas e aonde se achão prontas ainda que em ponto pequeno Vinte e duas Cellas sofriveis para Accomodar vinte e dous Religiozos”. Contabilizando as celas representadas na planta do piso superior do fól. 76 (fig. 14), só se atinge o número de vinte e duas, se somarmos àquelas que Murphy diz destinarem-se aos conversos, na ala norte do Claustro de D. Afonso V, as da ala do mirante, a nascente do mesmo claustro, pois a “Caza de Noviços” apenas apresenta cinco dependências. A denominação “Dormitorio da baranda”, tanto pode referir-se à varanda do Claustro de D. Afonso V como à do mirante. São mencionados, por fim, “Os grandes dormitórios, que forão encendiados pela ditta Invazão [e] se achão cobertos huma grande parte, como he a caza das horas, Cella dos Priores, Dormitório Real se acha em mayor Ruina, porque Cahirão as paredes pela força do incêndio, e depende de mayor despeza”. A pontuação não é clara, mas a concordância em número permite entender que o antigo dormitório dos professos aguardava a desejada reconstrução, certamente nunca lograda. Regressando à gravura de Kinsey, ve-

7 Relativamente a este aspecto, ver William Morgan Kinsey, Portugal Illustrated, Londres, 1828, p. 425.

Retomando o essencial da crítica do legado de Murphy, compete ainda anotar que, contrariamente ao que mostra a planta publicada, os desenhos dos fólios 68 e 72 não apresentam o pórtico que sustenta o mirante da hospedaria como uma estrutura abobadada. É provável, no entanto, que o fosse, pelo menos com uma abóbada de berço simples, se imaginarmos o eirado mais provável, de lajes calcárias ou ladrilho. O fólio 71 apresenta uma planta parcial que mostra os edifícios situados nas traseiras da Adega dos Frades, da sala do capítulo e da sacristia. A sua principal virtude é esclarecer-nos sobre a ligação entre o dormitório dos professos e a igreja, bem como sobre o acesso às Capelas Imperfeitas, dedutíveis ambos

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rificamos que os edifícios correspondentes à “Cella do Prior” (que identificamos pelas escadas que lhe davam acesso, pelo Claustro Real, letra p da legenda da planta impressa de Murphy, “escadas que levam aos aposentos do prior &c”) e à “Caza das Horas”, de que falaremos mais adiante, se encontram telhados. O edifício que identificamos com o celeiro/dormitório representado por Murphy encontra-se destituído de telhado, conservando, porém, as respectivas paredes exteriores. Se as mesmas tivessem perecido, tal circunstância não seria certamente iludida, pois tratava-se, sem dúvida, do edifício mais notável desta parte do mosteiro, aquele que, no piso superior, albergava a livraria conventual. Terão ruído com o incêndio as paredes interiores, provavelmente de enxaimel, idênticas a outras com a mesma função construtiva e da mesma época ou pouco anteriores, por exemplo, as do dormitório grande do Convento de Cristo. A presença da madeira na construção de semelhantes paredes torna-as susceptíveis ao fogo. Por outro lado, o edifício representado, cuja monumentalidade é posta em evidência, apresenta proporções que nos colocam em dúvida quanto ao tratamento monumental do dormitório na sua totalidade. Nem a planta do piso térreo (fól. 72), nem a do piso superior (fól. 76) deixam adivinhar qualquer costura construtiva.

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do corredor que se vê na planta publicada, na qual, porém, não ficaram visíveis as respectivas comunicações por se ter optado pela representação uniformizada das janelas em todo o edifício, incluindo aquelas que estavam situadas na prumada das que acabamos de referir. Ambas as portas eram de recurso, como ainda o é hoje, no mesmo sítio, a das Capelas Imperfeitas, rompida numa parede de menor espessura que originalmente se destinou a receber um altar. O acesso à igreja fazia-se por uma porta aberta sob a primeira fresta da Capela do Santíssimo Sacramento a contar de norte. No desenho do fól. 71, temos ainda a oportunidade, não oferecida noutra parte, de ver designada uma janela em arco que dava do terceiro lanço das escadas que subiam da “sala dos serviçais” para o pátio nas traseiras do Capítulo, bem como uma porta ao cimo da escada, do lado sul, para a Casa das Horas. As cotas registadas são suficientes para a rigorosa representação em planta do edifício, se exceptuarmos a ausência de um valor para a distância entre as janelas do corredor de acesso à igreja/Capelas Imperfeitas, sendo completadas no fól. 68 com as medidas dos pilares da portaria. Na planta publicada, não foi representado o comprimento do corredor; a dimensão do troço da fachada nascente que ia das Capelas Imperfeitas até à portaria – 162’ 4"1/2 – foi recalculada, não sabemos com que critério, certamente a partir das 159’ 3" que vêm inscritas no desenho do fól. 68; foram omitidas as cotas do claustro da portaria. As designações funcionais do fól. 71 correspondem, no essencial, à da planta impressa, embora o manuscrito não represente as dependências acomodadas sob o vão da escada que ligava o dormitório dos professos ao Claustro Real: na legenda da planta impressa, “campanário” (o) e “arrumos do sacristão” (H). Relativamente a aspectos construtivos, verificamos que a implantação dos pilares da portaria é praticamente centrada no degrau mais baixo, sendo a escada reentrante, o que se repete no fól. 72, ao passo que, na planta publicada, a escada é saliente e os pilares são implantados a meio da mesma. Trata-se de um acerto na versão definitiva, que implicou a introdução de mais

Uma interessante gravura, publicada no Archivo Pittoresco, em 18658, mas certamente anterior a essa data, mostra, ainda que com grande erro de perspectiva, um trecho da fachada exterior nascente, entre as Capelas Imperfeitas e a portaria (fig. 15).

Fig. 15 - À direita, parte da antiga fachada nascente do Mosteiro da Batalha, 1865, in Archivo Pittoresco

De todos os desenhos de dependências demolidas no século XIX, o fól. 72 (fig. 7), é aquele que, face à planta publicada, apresenta maior número de discrepâncias. Verificamos, desde logo, que as dependências do lado nascente do desaparecido Claustro da Botica, são em número inferior às da planta impressa: dois pares de 7 contra dois pares de 9 salas, respectivamente. O motivo desta diferença não é evidente, mas parece estar relacionado com um acerto de métrica através da introdução de um módulo absolutamente regular de dois pares de salas entre o terceiro e o quarto pares do fólio 72, mantendo-se inalterado, no essencial, o desenho das dependências já repre-

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Archivo Pittoresco, vol. VIII, 1865, p. 297.

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um degrau na base. Por outro lado, aparece, nesta versão, uma janela entre a caixa da escada que sobe do Claustro Real para a Casa das Horas e o claustro da portaria que não figura nos fólios 71 e 72.

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sentadas, designadamente as aberturas, dispostas assistematicamente. As funções das várias salas não coincidem exactamente em nomenclatura, nem em localização. Na verdade, mais do que contradição, parece existir uma maior especificidade do desenho feito in loco, completando-se as duas plantas mutuamente. O desenho publicado menciona a cocheira e a cavalariça do prior [“cocheira e estábulo do prior” (Z)], a par das quais o fólio 72 mostra três salas destinadas ao porteiro [quarto (de dormir) do porteiro], parcialmente referidas na obra impressa como “aposentos dos trabalhadores” (Y). No manuscrito aparece uma cavalariça contígua a uma sala de arreios, ambas interiores, e, ao lado, o estábulo das vacas que vem designado na planta impressa, junto com salas anexas, como “currais” (a a). Aquilo que no fól. 72 é afectado a “carros” e “alfaia”, aparece na planta publicada como “arrecadação de alfaias agrícolas” (b b), isto é, uma e a mesma coisa. Relativamente às dependências da ala norte do mesmo claustro constata-se uma preocupação de acerto de métrica idêntica à já referida, com a passagem de duas para três salas e respectivas janelas, apenas identificadas na publicação como “armazéns de provisões” (W). O mesmo acontece com as dependências da ala norte e nascente do Claustro de D. Afonso V, que passam, no primeiro caso, de três a seis, com a função de arrumos dos trabalhadores [“arrumos dos trabalhadores” (t t)], e, no segundo caso, de duas a quatro (a norte das latrinas), sem indicação de função. Tanto num lado como no outro, aumenta de um o número de aberturas interiores. O desenho publicado não contém quaisquer cotas das dependências representadas no fól. 72, além das da portaria e do Claustro de D. Afonso V, que são coincidentes. No entanto, as medidas interiores das salas das alas norte e poente foram alvo de simples estimativa, pois não constam do desenho original. Por outro lado, verifica-se que, se existe um paralelismo bastante rigoroso no número e tipologia (excepto num caso da ala norte do Claustro da Botica) dos pilares, o mesmo não se pode

O mais extraordinário de todos os desenhos pertencentes ao manuscrito 260 da Sociedade de Antiquários de Londres, na perspectiva do conhecimento das dependências conventuais desaparecidas, é, sem dúvida, o do fólio 76 (fig. 14), que representa o piso superior dessas dependências, bem como o do muito transformado Claustro de D. Afonso V. Trata-se, no entanto, de um esquema simplificado daquela parte do convento, com algumas medições, conforme se encarrega de esclarecer o próprio Murphy, na seguinte nota: “para obter um desenho correcto do segundo piso, devemos regular-nos, nas paredes mestras, pela planta do piso inferior; o restante tem, em grande medida, que ser aduzido de memória, uma vez que a planta não é inteiramente rigorosa, excepto onde está cotada”. Algumas paredes, como as do interior do noviciado ou as paredes sul e nascente da Casa das Horas, foram representadas a traço vazio por alguma razão que não conseguimos deduzir. Apesar disso, o fól. 76 é valioso na quantidade de informações que fornece quanto à configuração de todos os espaços residenciais do convento e à sua relação mútua, em finais do século XVIII. É apenas através deste testemunho que ficamos a saber onde se localizavam exactamente a casa de noviços com a respectiva capela, as celas dos conversos, a livraria e a hospedaria, além de uma cozinha reservada ao prior e uma casa

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dizer do abobadamento. De facto, na planta impressa existe um número muito superior de salas com abóbadas de aresta ou cruzaria de nervuras, a saber: todas as salas interiores e uma sala exterior da ala nascente do Claustro da Botica, o corredor do celeiro, a sala de passagem e quatro dependências contíguas entre aquele claustro e o de D. Afonso V. Todavia, a cruzaria da galeria norte do Claustro da Botica, que se vê no fólio 72, foi substituída, na publicação, por simples arcos torais. Parece mais provável a versão original, dado que, contrariamente ao que se verifica no caso dos restantes torais representados em ambos os desenhos, a referida galeria dispõe de pilares interiores, destinados, em princípio, a receber abóbadas.

para lenha, junto desta. O cruzamento com outras fontes, permite identificar as 24 celas situadas na ala nascente do Claustro da Botica como o dormitório dos professos, as oito celas por cima da portaria como as dependências do prior e a sala contígua, com um altar desenhado e nomeado (“um altar”) na parede poente, como a Casa das Horas.

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Ao comparar esta planta com a do fól. 72 ou com aquela que foi publicada, gera-se, à primeira vista, alguma perplexidade relativamente à comunicação entre os dois pisos: em três divisões da ala partilhada pelo Claustro de D. Afonso V e pelo da Botica, vêem-se escadas que não têm correspondência nos desenhos do piso térreo; por outro lado, aquelas que, nesses desenhos, estão representadas na ala nascente do Claustro da Botica e a sul da Sala dos serviçais (K) não foram desenhadas na planta do fól. 76. Exceptuando o último caso, que será contemplado a seguir, é legítima a suposição de que, em ambas as alas do claustro, existisse um entrepiso que não foi desenhado. A confirmação vem da designação, na planta impressa, por um lado, da escada da ala nascente – “escada para as celas dos conversos” – e, por outro lado, na portaria, da “escada que leva à roda do corredor dos conversos” (q): existia, na ala nascente, um piso intermédio em que os conversos podiam comunicar com o exterior através de uma roda, onde seriam, por exemplo, dispensados medicamentos preparados na presumivelmente vizinha botica, que deu o nome ao claustro no fól. 72. A importância dos conversos nestes espaços é reforçada pelo facto de o mesmo passar a designar-se “Claustro dos conversos”, na versão impressa. As “enfermarias” de que fala Fr. Luís de Sousa localizarse-iam igualmente aí.9 Os aposentos do prior são identificáveis por serem aqueles que ficam mais próximos das escadas dadas, na planta publiFr. Luís de Sousa, História de S. Domingos, 1623; nova edição de M. Lopes de Almeida, vol. I, Porto, Lello e Irmão Editores, 1977, p. 650.

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10 Arquivo do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, Resumos semanais e mensais, 1842; cf. M. J. B. Neto, James Murphy e o Restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória no Século XIX, Lisboa, Editorial Estampa, 1997, p. 214. 11 ANÓNIMO, O Couseiro ou Memorias do Bispado de Leiria, Braga, 1868; reimpressão de O Mensageiro, Leiria, 1980, p. 99.

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cada, como “Escadas que levam aos Aposentos do Prior, &c.” (p), também assinaladas no fól. 76, e que desembocavam directamente na Casa das Horas, o mesmo devendo acontecer com aquelas que subiam da Sala dos Serviçais e que são identificadas, na publicação, como “Escada para as Celas principais” (r), isto é, as dos professos. A suposição é confirmada pela documentação relativa ao restauro do monumento em 1842, onde se diz que os operários “consertaram a escada de pedra que da portaria dá serventia para a Casa das Horas”10. Esta capela vem referida no anónimo seiscentista, Couseiro ou Memórias do Bispado de Leiria: “Á entrada do dormitório está uma casa, muito grande e formosa, e uma imagem de N. Senhora, de vulto, mettida na parede, em um vão arqueado, e da parte debaixo sae um friso, de pedra, á feição d’altar; e da outra parte a imagem de S. Domingos, em um nicho, que sae fora da parede; e chama-se esta casa das horas de N. Senhora, porque n’ella, á meia noute se rezam as horas da Senhora”11. Considerando os acessos do corredor que vinha da igreja, por trás da sacristia e da sala do capítulo, e das escadas que subiam do claustro real, a Casa das Horas situava-se, de facto, à entrada do dormitório, precedida por oito celas de configuração idêntica às dos professos mas delas separadas por um corredor transversal que ligava o dormitório às restantes dependências do piso superior. A organização das celas dos professos ao longo de um monumental corredor foi registada por Fr. Luís de Sousa: “O dormitório do Convento he hum estendido corredor forrado de madeira, e com seu telhado ordinário, por respeito da saúde dos Religiosos: mas como tudo o mais, em grande altura” e prossegue, confirmando a identificação que aqui fazemos desta dependência com a referência à varanda, já anteriormente

mencionada, que rematava cenograficamente o corredor – “Faz no topo hum eirado descoberto sobre uma grande cerca de vinha, e pomares.”12

Comparação com o edificado

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A crítica do levantamento de Murphy beneficia naturalmente da comparação com o edificado, nos casos em que tal é possível. Para este ensaio escolhemos o Claustro de D. Afonso V, representado em planta no fólio 72, já anteriormente comentado. Conforme vimos, as medidas interiores das salas das alas norte e poente que se podem ver na planta publicada foram alvo de simples estimativa, pois não constam do desenho original. As medidas disponibilizadas por outros desenhos do levantamento permitem estimar aproximadamente a largura das dependências anexas a norte e poente, mas não o respectivo comprimento. Tal como observámos relativamente ao demolido claustro adjacente, na planta publicada, verifica-se a subdivisão de salas representadas como espaços amplos no desenho de campo, bem como o redimensionamento em comprimento das próprias salas, sem que se dispusesse das medidas correspondentes. As restantes medidas registadas no fólio 72 foram transpostas com exactidão, não sendo, porém, suficientes para representar de modo fidedigno a localização de portas e janelas.

Aspectos construtivos Na versão final da fachada exterior poente, mantêm-se as três janelas e a porta ou passagem desnivelada que se podem ver no fólio 72. A posição centrada em relação a cada sala conserva-se, não correspondendo todavia, no caso da despensa e do refeitório pequeno (fig. 16), à sua posição real. 12

Fr. Luís de Sousa, op.cit., p. 650.

A picagem parcial dos rebocos da antiga despensa, no mês de Junho de 2009, veio confirmar a passagem para alimentos que existiu entre a despensa e o refeitório pequeno (fig. 17).

Fig. 17 - Passagem entaipada entre a despensa e o refeitório pequeno

Tanto da planta publicada como da do manuscrito 260 estão estranhamente ausentes os contrafortes. Em 1988, durante obras de substituição dos rebocos da fachada poente, tivemos oportunidade de verificar a existência de várias portas e janelas entaipadas, em discordância com o sistema de contrafortagem (fig. 18).

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Fig. 16 - Janela entaipada na parede poente do refeitório pequeno

Fig. 18 - Janela entaipada na fachada exterior poente

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Esta constatação permite colocar a hipótese de os contrafortes datarem, pelo menos, do restauro oitocentista do mosteiro. O reforço da fachada poente pode ter estado associado à demolição da parede que separava o armazém do azeite do lagar de vinho e que motivou a multiplicação dos suportes no interior da nova sala assim obtida (fig. 19).

Fig. 19 - Planta da sala resultante da união do armazém do azeite e do lagar de vinho. Arquitecto Viana de Lima, 1982

Fig. 20 - Janela entaipada na parede nascente da despensa

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A tipologia e distribuição dos suportes indicia reaproveitamento de materiais dos séculos XV e XVI, estes últimos provenientes, com toda a probabilidade das dependências demolidas. Durante aquelas obras de restauro, foi igualmente reconfigurado o sistema de aberturas – portas e janelas – da fachada interior poente, com a finalidade de uniformizar o seu ritmo, bem como de estabelecer comunicações directas tanto do claustro para as salas como entre estas. Na prática, foram entaipadas umas aberturas e praticadas outras. O sistema de aberturas desta fachada que se pode ver no fólio 72 é coincidente grosso modo com aquele que foi publicado, sendo detectáveis os entaipamentos realizados posteriormente, à excepção do da porta do sexto tramo a contar de norte, provavelmente por existir uma sobreposição parcial da nova porta com a que antes existia. O tipo de janela primitivamente utilizado é visível pelo interior da antiga despesa (fig. 20).

No desenho impresso da fachada exterior norte, é acrescentada uma janela às quatro previamente registadas, provavelmente para corresponder ao acrescento de uma sala. Deixado visível foi um dos grandes arcos de acesso ao lagar de vinho (fig. 21).

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Fig. 21 - Arco parcialmente entaipado de acesso ao lagar

Por razão idêntica à da fachada exterior, há-de ter sido acrescentada uma porta às três do levantamento, na fachada interior norte. Não foi possível localizar possíveis entaipamentos destas portas, devido à extensa renovação da fachada a que pertenciam. Em nenhum dos desenhos foram representadas três janelas da mesma fachada, identificáveis através dos respectivos entaipamentos, no terceiro, quinto e nono tramos da nave correspondente, a contar de poente (figs. 22 a 24). O último é visível no tardoz da parede e mostra claramente o tipo de abertura escolhido. A cota a que se encontram estes entaipamentos prova que, anteriormente aos mesmos, não existia o entrepiso actualmente visível na ala norte.

24 Figs. 22 a 24 - Janelas entaipadas na parede da galeria norte do Claustro de D. Afonso V

A fachada interior nascente recebeu também uma abertura adicional na planta publicada, não reconhecível através do respectivo entaipamento. As restantes janelas, representadas de forma bastante semelhante em ambos os desenhos, foram encerradas de modo idêntico ao das duas primeiras que referimos da fachada interior norte. No oitavo tramo a contar de norte, detecta-se, no entanto, uma outra abertura, aparentemente mais estreita, que pode ter sido praticada após o levantamento. As três fachadas interiores e exteriores do claustro foram, de facto, integralmente reconfiguradas, durante o restauro oitocentista, não apenas para corresponder a novas necessidades de utilização, mas também para que parecessem “mais góticas”. A já referida gravura de W. M. Kinsey (fig. 11) revela uma fachada norte, provavelmente muito próxima daquela que existiu em tempos antigos, seguindo, para as celas do piso superior,

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um modelo rectangular, talvez chanfrado como os três exemplos quatrocentistas observados no piso inferior. O número de aberturas corresponde ao representado no fólio 76 – 13. No fól. 76 (fig. 14), persiste a falta de medidas necessárias ao posicionamento relativo não apenas das aberturas, mas ainda das colunas. Por outro lado, a curta profundidade da capela dos noviços corresponde naturalmente a um erro, uma vez que a abertura representada na sua parede fundeira apenas pode ser praticada – como de facto foi (fig. 25) – vencendo toda a extensão da passagem que separa a adega da cozinha.

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Fig. 25 - Óculo da antiga capela dos noviços

A parede da casa de noviços foi profundamente transformada, sendo substituídas as cantarias de todas as aberturas. Por ser rebocada, não é possível fazer uma ideia da sua anterior composição através de um exame visual simples. No entanto, na fachada interior norte, consegue-se perceber que as portas actualmente existentes correspondem a vãos originais, tendo sido entaipadas outras que, a uma cadência regular, ficavam de permeio. Os vãos das janelas mantêm a cadência origi-

Fig. 26 - Lintel numa das portas das antigas celas dos conversos

A parede nascente foi igualmente muito transformada, desaparecendo as cinco janelas e uma das portas que tinha, para dar lugar a numerosas portas de cantaria neogótica idêntica à já vista na fachada interior norte e que se repete em duas das restantes portas originais: a que dá para a escadaria de acesso ao piso térreo e uma outra, actualmente entaipada, no canto sudeste (fig. 27).

Fig. 27 - Porta da fachada interior nascente do Claustro de D. Afonso V que dava para o dormitório dos professos

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nal simétrica à das portas. Também a cantaria dos arcos destas, provavelmente menos ogivais do que seria desejável no século XIX, foi substituída, conforme se pode deduzir não apenas do acabamento da pedra como do facto de, por cima de cada uma delas, ter sido introduzido um lintel para sustentar a parede durante tão radical mudança (fig. 26).

No piso superior, a fachada interior sul é intersectada, junto ao pavimento, pelas janelas da adega que, no essencial, seguem o primitivo modelo rectangular, mostrando, além disso, que aquela fachada era exterior e estava completa quando se construiu o claustro. Essas aberturas não aparecem representadas no fólio 76. Apenas se vê, no canto, sudoeste, uma porta, hoje transformada em janela (fig. 28) que dava acesso à capela dos noviços, instalada num piso cujas entregas ainda hoje são visíveis nas paredes nascente e poente da passagem entre os dois claustros conservados. 42 | Pedro Redol

Fig. 28 – Porta parcialmente entaipada da capela do noviciado

Certa perplexidade causam as paredes que aparentemente separam o noviciado, sua capela e varanda, do restante claustro, a poente, no topo das galerias norte e sul. O traçado oblíquo da primeira, acompanhando o arco rampante de suporte do telhado, distinto do traçado rectilíneo da segunda, mais contribuem para a convicção de que o desenho foi realizado com menor cuidado naquela parte do edifício, aliás incompletamente representada e aparentemente com algumas dúvidas por resolver, a montante da mísula do referido arco rampante. Porém , a observação do edifício permite verificar que ambas as paredes existiam nas posições representadas: a norte, vê-se o encaixe nas mísulas externa e interna, na direcção do arco (fig. 29a e 29b); a sul, observa-se o mesmo tipo de encaixe, na direcção da parede da adega (fig. 30) e a marca do muro desaparecido nesta (fig. 31).

29b

Fig. 29a e 29b - Encaixes para parede divisória do noviciado no canto NW do claustro correspondente

Fig. 30 - Encaixe para parede divisória do noviciado no canto SW do claustro correspondente

Fig. 31 - Marca de parede divisória do noviciado no canto SW do claustro correspondente

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29a

Medidas

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Além da verificação dos aspectos construtivos representados no levantamento do Claustro de D. Afonso V, realizado por James Murphy, procedemos a algumas medições com o objectivo de comparar as dimensões reais com as cotas dadas pelo arquitecto. Antes mesmo de o fazer, constatamos que, tanto no manuscrito como na planta impressa, o tramo central de cada galeria do piso térreo, apresenta um comprimento superior aos restantes, o que não é aparente no interior do edifício. Ao medir os vários tramos apercebemo-nos de que têm comprimento idêntico (i. e., ao da largura – 4,32 m). Todavia, os tramos dos cantos apresentam um comprimento superior – 4,46 m – morrendo o vértice do lado do pátio dentro do pilar de canto. A diferença resultante do comprimento de cada nave dividida pelo lado dos tramos quadrados foi, assim, introduzida pelo arquitecto nos tramos centrais que dão acesso ao pátio, alterando a sua geometria. A primeira dificuldade que se coloca à verificação do rigor das medições feitas por Murphy encontra-se nas unidades de medida utilizadas: o pé e a polegada. Como é sabido, na época em questão, as medidas variavam regionalmente dentro de cada país. Numa nota às medidas e palmos dadas por Fr. Luís de Sousa, J. Murphy (1792/1795: 30), afirma “um palmo craveiro de Portugal equivale a 8 x 64/100 polegadas da medida inglesa; ou 43 está para 60 como um palmo português está para um pé inglês, aproximadamente.” A primeira constatação interessante para o nosso caso é que o arquitecto se refere a medidas “inglesas”. As medidas londrinas, em particular, foram estudadas por Alexander Justice, na sua obra A General Discussion of the Weights and Measures (1707). A conversão para o sistema métrico indica que um pé de Londres, nesta época, equivalia a 30,48 cm. Correspondendo um pé a 12 polegadas, uma polegada equivalia a 2,54 cm13. Regressando a Murphy e 13

Cf. http://www.pierre-marteau.com/wiki/index.php?title=LondonMeasures.

utilizando estes factores de conversão, verificamos que, não se equivalendo exactamente, as duas correspondências dadas se aproximam bastante:

António Lobo de Barbosa Ferreira Teixeira Girão, na sua Memória sobre os Pesos e Medidas de Portugal, escrita em plena reforma do sistema de medidas com vista à adopção do sistema métrico, fornece não apenas a equivalência do palmo craveiro a 21,93 cm como a equivalência desta medida a 8,64 polegadas inglesas14. Ambas coincidem aproximadamente com as correspondências dadas por Murphy, embora Girão tenha considerado o palmo craveiro superior à dimensão em que foi fixado pela Comissão para o Exame dos Forais e Melhoramentos da Agricultura, criada em 1812, devido à conveniência, na sua opinião, em obter correspondência em múltiplos inteiros no sistema métrico15. De facto, com as devidas reservas, por se tratar de um cálculo indirecto sujeito a erros, Rui Maneira Cunha recorda que: “O Tenente General de Artilharia e Cosmógrafo Mor do Reino, Luís Serrão Pimentel, escreveu na sua obra intitulada Methodo Lusitano de Desenhar Fortificações, impressa em Lisboa no ano de 1680, que o palmo craveiro corresponde a 97,98 linhas do pé de rei. Partindo-se do princípio que o nosso distinto engenheiro militar teve a possibilidade de utilizar, para esta transposição métrica, o valor igual ao que hoje é avaliado, e que corresponde a cada uma destas linhas equivalência a 0,2258 centímetros, o palmo craveiro utilizado no século XVII é de 22,1023184 cm.” 16 14 António Lobo de Barbosa Ferreira Teixeira Girão, Memória sobre os Pesos e Medidas de Portugal, Lisboa, 1833, p. 91-93. 15 Este assunto é discutido em pormenor por Rui Manuel Maneira Cunha, As Medidas na Arquitectura, séculos XIII-XVIII. O Estudo de Monsaraz, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2003, p. 77. 16 Ibidem, p. 77-78.

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8,64 x 2,54 = 21,946 30,48 x 43 : 60 = 21,844

Este aspecto é importante para o estudo das medidas utilizadas no projecto do edifício. Porém, para o presente estudo interessa-nos a comparação das medidas dadas por James Murphy com as medições que efectuámos, pelo que assumimos, nos cálculos que se seguem, que um pé mede 30,48 cm e uma polegada 2,54 cm. A tabela que se segue compara as medidas de Murphy com os valores que registámos, bem como a respectiva diferença:

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Tabela 1 - Comparação das cotas de James Murphy relativas ao Claustro de D. Afonso V com medições actuais

A comparação fornece diversas conclusões: a) As medidas foram replicadas em espaços e elementos idênticos; b) O desvio não é constante, nem proporcional, donde não estarmos em presença de um factor de conversão desajustado; c) Tendo em conta que o comprimento e a largura das três naves que medimos parecem ter sido replicados a partir da nave poente (por maior aproximação às dimensões reais), o desvio de 1 cm e 3 cm, respectivamente, é desprezível; d) O único erro de medição assinalável corresponde à largura do pilar de janela, com uma diferença de 62 cm em 1,11 m.

Aspectos funcionais

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Pareceu-nos útil apresentar ainda uma outra tabela que relaciona as designações das diferentes dependências monásticas encontradas no manuscrito e na publicação com a sua denominação actual.

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Tabela 2 – Comparação da denominação das dependências conventuais no manuscrito 260 da Society of Antiquaries of London e na publicação do levantamento de James Murphy

O cruzamento do relatório de prospecção geofísica da zona envolvente do Mosteiro da Batalha, entregue ao IGESPAR pela empresa Geosurveys – Consultores em Geofísica Lda., em 10 de Dezembro de 2009, que tivemos oportunidade de consultar, permite reforçar alguma da informação disponibilizada pelos documentos anteriormente analisados e, por outro lado, detectar estruturas não representadas nas plantas históricas conhecidas. Assim, vê-se apoiada a hipótese de existência dos seguintes vestígios estruturais enterrados, devidamente alicerçada nas fontes históricas referidas: – Alicerces da fachada quinhentista a nascente, desde as Capelas Imperfeitas até à portaria que se inscrevia nesta fachada; – Alicerces da parede sul e de parte da parede poente da portaria quinhentista; – Parte do lastro do pavimento da portaria; – Alicerces de dois pilares da sala de recepção da portaria; – Alicerces das paredes norte e poente da escola; – Alicerces das paredes que delimitavam a escada do Claustro Real para os aposentos do prior; – Lastro do enchimento da caixa desta escada, no seu segundo lanço; – Alicerce de troço de parede da galeria nascente do claustro dos conversos; – Alicerces do mirante da hospedaria. Outras estruturas detectadas mas não representadas ou apenas indicadas nos seus arranques foram: – Uma estrutura larga, alinhada com o que considerámos corresponder à parede poente da escola/enchimento de caixa

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Os dados da prospecção geofísica

de escada, que atravessa o pátio da portaria e inflecte a 90º para alinhar com a parede norte da Adega dos Frades; – Estruturas divergentes da fachada nascente do claustro dos conversos, configurando um pátio a poente de Santa Maria-a-Velha de menor superfície do que aquele que se supõe ter existido entre essa fachada e a igreja; – Uma estrutura que liga o canto SE do celeiro à igreja de Santa Maria-a-Velha; – Estruturas da primeira igreja conventual, vulgo Santa Maria-a-Velha, destacando-se, além do seu perímetro, também estruturas internas e 14 sepulturas; – Estruturas de um quarteirão situado a nascente daquela igreja.

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As estruturas detectadas delimitam, por um lado, um pátio, entre o claustro dos conversos e a igreja velha, e, por outro lado, uma rua, entre a igreja e o quarteirão referido. Este arruamento consta da planta de 1879 e é visível, tal como a igreja de Santa Maria-a-Velha e o quarteirão, em diversas plantas e numa fotografia do séc. XX17. A propecção geofísica permitiu constatar que, no quadrante nascente do Mosteiro da Batalha, se configurou historicamente um núcleo urbano constituído pelo próprio Mosteiro (ligado a Santa Maria-a-Velha por um pátio) e adicionalmente por duas ruas – a Rua Velha para o Convento e a Rua de Nossa Senhora do Caminho – e uma praça que era dominada pela portaria conventual. Verifica-se a coincidência parcial dos vestígios prospectados com as plantas históricas. A detecção de vestígios não coincidentes pode significar que os mesmos pertencem a construções que já existiam quando aquelas plantas foram levantadas. Neste Cf. Sandra Renata Carreira Vieira, Santa Maria-a-Velha da Batalha. A Memória da Igreja (Séculos XIV a XX), Batalha, Câmara Municipal da Batalha, 2008, p. 173, 214-216.

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Por outro lado, a não detecção de praticamente quaisquer vestígios do claustro dos conversos pode significar que os mesmos se encontram a uma profundidade superior àquela a que a técnica de prospecção empregada – georradar (GPR) –, com a frequência utilizada, permite obter resultados com o contraste necessário à respectiva interpretação, isto é, 1,30m. Esta suposição é apoiada pelo conhecido facto do aproveitamento intensivo da pedra de demolições do Mosteiro para a construção da ponte da Boutaca e de outros edifícios, na segunda metade do século XIX. Assim, do ponto de vista da prospecção geofísica, a investigação ainda deve ser completada com a realização, experimental numa primeira fase, de perfis Dipolo-Dipolo (profundida máxima de investigação de 3 m) pelo método de resistividade eléctrica para identificação da profundidade a que se encontram as estruturas procuradas, seguidos de mapeamento a essa profundidade, por utilização do método Wenner tripotencial18. Porém, o conhecimento e a reconstituição das dependências conventuais maneiristas demolidas, com base em critérios aritmológicos, não dispensam a realização, pelo menos, de sondagens arqueológicas pontuais. De facto, a escavação arqueológica permite um conhecimento das preexistências que não é substituído pela prospecção por georradar, na medida em que as estruturas detectadas são apenas parte de numerosas anomalias (por exemplo, infra-estruturas, certamente recentes) que dificultam a respectiva leitura. Cf. Fernando Pedro Figueiredo e Lídia Catarino – “Em busca das estruturas”, in Aljubarrota Revisitada (coord. João Gouveia Monteiro), Coimbra, Imprensa da Universidade, 2001, p. 29-96.

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ponto, torna-se necessário recordar que, a par da igreja, certamente ampliada no curso da sua longa existência, houve outras dependências do primeiro convento, como a “crasta velha” (claustro velho) referida em documentos quatrocentistas.

Significado do levantamento de Murphy para o conhecimento de um convento desaparecido

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A crítica interna e externa a que submetemos o manuscrito 260 da Society of Antiquaries of London permite-nos afirmar que o levantamento arquitectónico do Mosteiro da Batalha realizado por James Murphy, em 1789, se caracteriza pelo elevado rigor de representação do edifício, nos seus aspectos formais e dimensionais, construtivos e funcionais, de acordo com as convenções ainda hoje maioritariamente em vigor. Nessa medida, é um instrumento fiável para a reconstituição das dependências conventuais desaparecidas, limitada, porém, pela inexistência de cortes e alçados. Tal circunstância obriga a um melhor conhecimento do estaleiro batalhino dos dois últimos terços do século XVI, tanto através da documentação de arquivo disponível como da observação dos vestígios enterrados e da identificação de edifícios conservados que se possam vir a considerar congéneres. Com este estudo clarifica-se a importância arquitectónica que as dependências conventuais demolidas na segunda metade do século XIX assumiram, registada, aliás, num passo de Fr. Luís de Sousa que tem passado excessivamente despercebido: “Os recebimentos da portaria, da banda de fora e de dentro, a largueza das entradas e passagens para casas de diferentes serviços e misteres, e as muitas que há, representam em tudo grandeza de máquina Real.”19 A aquisição do estatuto de monumento e a perda do de convento, a partir da extinção das ordens religiosas, levou ao paulatino e deliberado apagamento da memória desta casa de religião através de inumeráveis destruições, a pretexto da ruína causada pela Terceira Invasão Francesa, do desvirtuamento da

19

Fr. Luís de Sousa, op. cit., p. 650.

Além do estudo reconstitutivo, está ainda por fazer a história do uso pós-extinção das dependências conventuais da Batalha, bem como a da sua ulterior demolição. Sem ela, não ficará completo o conhecimento da fortuna desse convento que desapareceu com a sua paisagem.

QUE CONVENTO? A REFORMA JOANINA DA BATALHA Posteriormente ao impasse das Capelas Imperfeitas, a primeira referência à necessidade de obras no complexo conventual da Batalha que encontramos data de 1539, estando contida no breve Ex parte prioris et fratruum, de Paulo III20, que autoriza a venda de parte do tesouro do Mosteiro, previamente solicitada pelo rei D. João III. A finalidade explicitada era “aplicar o valor que se viesse a obter com as peças do tesouro a boas propriedades e à fábrica da dita casa da Batalha”. A execução do breve foi confiada aos bispos de Lamego e de S. Tomé, a que procederam em Setembro do ano seguinte. O documento correspondente refere que “para mais crareza da verdade mandamos [os bispos acima referidos] que os ditos ppadres prior e convento do dito Mosteiro de Nossa Senhora da Victoria da Batalha fizessem petiçam conforme a dita bulla, ao que ou-

TT, Mosteiro da Batalha, 2º comp., E. 18, P. 7, M. 5 (1539, Outubro, 15; Roma); doc. avulso com numeração antiga: “Nº 141”, Nº-62". Publicado por Saul António Gomes, Fontes Históricas e Artísticas do Mosteiro e Vila da Batalha (Séculos XIV a XVII), vol. IV (1520-1650), Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico, 2004, p. 199-200. 20

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obra gótica ou simplesmente da pretensa ignobilidade dos frades. Para o seu lugar, fabricou-se uma imagem de obra menor e até o mito de um claustro de madeira que chegou incólume aos nossos dias, apesar da publicação, há mais de dois séculos, da planta de Murphy que mostra vários edifícios monumentais abobadados.

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trosy foy satisfeito a nosso mandado dizendo em sua petiçam que o dito Mosteiro tinha evidentes necessidades que chovia na igreja e capellas e crastas, e não tinha retabollos, e o choro quebrado e daneficado por muitas partes, e asy tambem órgãos, que os que havia nam heram para a tal caza, e a sanchristia carecia de ornamentos communz e quotidiannos, e asy tinha necessidade de dormitório, e de livraria, e de infermaria, e de refeitório e de noviciaria, e de hospedaria, e roupa para as oficinas, nem menos o dito Mosteiro tinha cerca, que pello contheudo na dita petição, mandássemos perguntar algumas testemunhas e achando ser asy conforme a bulla do santo padre de que heramos juízes a mandássemos cumprir, e que se comprace renda para a fabrica para se fazerem as sobreditas couzas, no que receberão justiça”21. Ficamos a saber que, além de obras de conservação e beneficiação do coro, altares e sacristia, se desejava ampliar e remodelar o Mosteiro, bem como construir uma cerca. O programa de necessidades para um eventual projecto arquitectónico que, assim, se pode entrever, é extremamente interessante porque parece alinhar-se, desde logo, com a reforma do edificado que, a par do espiritual e a mando do rei, se iniciara, dez anos antes, noutros grandes institutos religiosos não muito distantes (o Convento de Cristo, em Tomar, a partir de 1529-1530 e o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, a partir de 1531). Em ambos os casos, a reforma fora ditada pelo ideal erasmiano de regresso a um cristianismo despojado que se traduzia, entre outros aspectos, pelo rigor ascético da vida monástica em clausura e pela opção definitiva por modelos arquitectónicos clássicos, que, no caso da orgânica geral do edifício de Tomar, encontram, aliás, os seus antecedentes no Hospital Real de Todos-os-Santos, em Lisboa, erigido no final da centúria anterior sob o patrocínio visionário de D. João II.

21

Ver nota 20.

A motivação para a ampliação e remodelação do Mosteiro da Batalha, a partir de 1539, não procede, porém, apenas de transformações ao nível do ideal de vida monástica; ela passa ainda pelo facto de a Batalha se ter entretanto transformado numa importante escola teológica da Ordem dos Pregadores, cujo máximo expoente seria Frei Bartolomeu dos Mártires, aí exercendo o seu magistério, justamente entre 1538 e 1552. Em que medida terá influído nos destinos da casa, não é possível saber através dos documentos conhecidos, mas, como diz Saul António Gomes, “no desfazer de tesouros para acorrer à casa depauperada que se desmoronava, há um gesto que no-lo evoca e torna presente como paladino dum espírito de pobreza material, em favor das grandes obras de foro moral e social”22. Em todo o caso, logo a partir de Março de 1539, integrou o grupo de conselheiros escolhidos para apoiar o recentemente eleito prior, Frei Rodrigo Peixe, não deixando de estar presente nos actos capitulares até 155223.

Saul António Gomes, “O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no professorado de Frei Bartolomeu dos Mártires (1538-1552)”, in Frei Bartolomeu dos Mártires, Mestre Teólogo em Santa Maria da Vitória – 1538 a 1552. Exposição Documental e Iconográfica – Mosteiro da Batalha, 19 de Setembro a 5 de Outubro de 1992, Câmara Municipal da Batalha / Museu do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, 1992, p. 46. 23 Ibidem, p. 38-39. 22

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Ao emparcelamento de terrenos contíguos aos edifícios – que, pelo menos no Convento de Cristo, tal como sucedeu na Batalha, remonta ao reinado de D. Manuel –, seguiu-se, no período joanino, o respectivo encerramento através de cercas muradas que, mais do que confinarem a unidade de produção, a tornavam parte integrante da clausura, com espaços reservados à meditação contemplativa e ao desafogo da reclusão. O programa para o edifício, tal como ainda demonstra o Convento de Tomar, era pensado em consonância com o da cerca, sobre a qual se tomavam vistas a partir de várias varandas, que, por sua vez, eram um elemento marcante da fachada.

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Coincide com a chegada de Frei Bartolomeu a transferência para a Batalha do Colégio de S. Tomás, que anteriormente D. Manuel fundara no Convento de São Domingos de Lisboa para usufruto de estudiosos dominicanos e jerónimos. Sobre esta sua decisão diz D. João III: “hora, vendo eu como hos dyctos colegeays e lentes poderão estar a aprender no Mosteiro da Batalha com mais selemcyo e menos opresam dos que cada dya ao dycto Mosteiro de Sam Domy[n]gos da dycta cydade vem, avendo ay respeyto, desejando que os dyctos colegeays e lemtes por cousa alguã não leyxem d’apremder a doutryna pêra que ho dycto colegyo foy ordenado me aprouve de mandar pasar ho dycto colegio pera o dycto Mosteyro da Batalha”24. Certamente devido à reforma nos estudos universitários de Coimbra, operada por D. João III em estreita articulação com o já referido humanista jerónimo, D. Frei Brás de Barros, reformador dos Agostinhos de Santa Cruz, em Novembro de 1539, era recebida autorização papal para o Colégio de S. Tomás se mudar para aquela cidade, acolhendo-o o Convento de S. Domingos25. Que aplicação teve efectivamente o produto da venda do tesouro batalhino? Uma memória histórica anónima, da mão de um frade da Batalha, que data de c. 1621, diz-nos que, naquele “tempo estava el Rey dom Joam 3º em muita necessidade de dinheiro para socorro dos lugares de África e os religiozos por lhe comprazerem e servirem como o dito Rey (comfesa na sua carta) lhe venderão parte desta prata em que se ficou perdendo muito do muito feithio e ouro della” e acrescenta “pella qual prata deu cem mil Reis de juro no almoxarifado de Leiria como consta do mesmo padrão ainda que hoje se não pagão senão oitenta mil Reis porque Felipe 2º o quis tirar e a outra TT, Corpo Cronológico, Parte II, Mº 217, Doc. 66 (1538, Abril, 15, Lisboa); publicado por J. S. da Silva Dias, “Os Dominicanos e a Filosofia em Portugal no Século XVI”, in Actas do II Encontro sobre História Dominicana, vol. III/2, Porto, Arquivo Histórico Dominicano Português, 1986, p. 217, e por Saul António Gomes, Fontes Históricas e Artísticas…, vol. IV, p. 151-153. 25 TT, Bulas, Mº 25, doc. 9 (traslado de 6 de Abril de 1540, Lisboa); publicado por Luiz Rebello da Silva, Corpo Diplomatico Portuguez, T. IV, Lisboa, 1870, p. 212-215. 24

Em 1623, Frei Luís de Sousa regista, por seu lado: “O conselho [de vender a prata] não foi dos Frades; mas de gente de fora, que julgou seria conveniente fazer renda pera sustentação, e fabrica do Convento, d’aquillo que ou estava ocioso, ou era sobejo: e impetrou-se um Breve da Penitenciaria em Roma dirigido aos Bispos de Lamego, S. Thomé e Targa, e passado no anno quarto do Papa Paulo tercio: em virtude do qual mandarão effeituar a venda; e do procedido della se fez emprego em algumas coisas muito necessarias pêra o Convento, mas pouca renda.”27 Dos testemunhos acima transcritos depreende-se que a remodelação e ampliação conventual ficaram adiadas. No entanto, o padrão de juro e o pagamento do mesmo no almoxarifado de Leiria, sob a forma de tença anual, foi estabelecido em 154128. Esta circunstância permitiu provavelmente que, no ano seguinte, já estivesse em curso a execução da cerca, pois data desse ano um alvará régio sobre o alteamento do peitoril de uma ponte da vila (aquela que fica a nordeste do Mosteiro) “para que os religiosos não possão ser vistos de quem por ella passar”29, uma medida que obviamente tinha que estar associada à elevação de muros. Em 1551, D. João III determina ainda que “se çarre o caminho que vay antre a cerca do Moesteiro da ditta villa e o seu pinhal porque os que passão pello dito Moesteiro muitas vezes tem necessidade de sair, e asi se senhorea do alto do pinhal muita parte d ambas as crastas do dito Moesteiro”, ordenando que o convento dê “ao concelho outro 26 TT, Mosteiro da Batalha, 2º comp., E. 18, P. 7, m. 5, doc. avulso com número antigo “95”; publicado por Saul António Gomes, Fontes Históricas e Artísticas…, vol. IV, p. 342. 27 Fr. Luís de Sousa, op. cit., p. 647-648. 28 TT, Chancelaria de D. João III, lv. 31, fól. 102-103vº (1541, Agosto, 6, Lisboa). 29 Saul António Gomes, “O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no professorado de Frei Bartolomeu…”, p. 46.

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parte comprou este convento algumas couzas precizas pêra o mesmo convento e varias pessas de fazendas para rendimento por serem poucos os que tínhamos e hoje temos.”26

caminho da largura do que mando cerrar por cima do pinhal ao longo da cerca que fizerem”30. A forma verbal mostra que, naquela parte mais alta, certamente a par da Faniqueira ou da Jardoeira, a cerca ainda não estava concluída.

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Deste princípio de reforma do espaço conventual teve que ter inevitavelmente conhecimento directo o célebre humanista reformador de Santa Cruz de Coimbra, Frei Brás de Barros, uma vez que em 1547, já como bispo da recém-criada diocese de Leiria, visitou o Mosteiro31. O ambiente em que a visita decorreu foi certamente mais ameno do que aquele que se conhece das reformas por si impostas a Santa Cruz ou, pelo seu homólogo jerónimo, Frei António de Lisboa, ao Convento de Cristo e, transitoriamente, ao Mosteiro de Alcobaça. É preciso recordar que, além dos mais recentes Jerónimos, também os Dominicanos exerciam – e desde longa data – a sua influência na corte portuguesa como confessores e conselheiros dotados de uma exigente preparação intelectual. Por ombrearem a este nível, usufruíram, aliás, desse equipamento comum, já referido – o Colégio de S. Tomás. De resto, a intercessão de D. Manuel, no sentido de transformar o convento da Batalha em observante, fora lograda e o controlo do governo do seu prior pelo arcebispo de Lisboa e pelos bispos da Guarda e de Coimbra foi imposto, a pedido do rei, por Leão X, através da bula Fidei constantis integritas, de 151632. No final da década de 40 e início da de 50 do séc. XVI, alguns acontecimentos atestam o prestígio e centralidade do TT, Mosteiro da Batalha, 2º comp., E. 18, P. 7, m. 5; doc. avulso com números antigos: “76” e “nº 87”. Publicado por Saul António Gomes, Fontes Históricas e Artísticas…, vol. IV, p. 283. 31 Archivo Gen. Ordinum Praedicatorum, XIV, 102, fól. 204vº (1547, Maio, 3, Batalha); publicado por Fr. Raul de Almeida Rolo, Bartolomeu dos Mártires, Theologia Scripta, Vol. 2, Braga, Movimento Bartolomeano, 1973, p. 523. Ver ainda Saul António Gomes, “Constituições do Bispado de Leiria”, in Frei Bartolomeu dos Mártires, Mestre Teólogo em Santa Maria da Vitória – 1538 a 1552, p. 64-65. 32 Saul António Gomes, “O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no professorado de Frei Bartolomeu…”, p. 46. 30

Fr. Francisco de S. Luís, que pôde consultar a documentação guardada no cartório conventual da Batalha, afirma que só em 1551 se iniciaram as obras no edifício conventual, “vendidos com as necessárias licenças, e com certas condições, os foros da capela do Infante D. João (filho do senhor D. João I) e de sua mulher a Infanta senhora D. Isabel e ajudando El Rei D. João III com cem mil réis cada ando de sua fazenda”36. Esta “ajuda” do rei mais não era do que o pagamento do padrão de juro estabelecido dez antes e que certamente já vinha permitindo custear a construção da cerca. É mais do que provável que a perspectiva deste importante passo na reforma do edificado conventual tenha contribuído – além, naturalmente, do prestígio já instalado dos estudos – para que a Batalha se visse equiparada, em 1551, a estudo universitário no seio da Ordem. Em 1556, as obras deviam ter atingido um ritmo considerável ou até estar a aproximar-se da sua conclusão, pois o rei emite um alvará em que concede o adiantamento da tença de Archivo Gen. Ordinum Praedicatorum, XIV, 103, fól. 100vº (1549, Maio, 12, Batalha); publicado por Fr. Raul de Almeida Rolo, Bartolomeu dos Mártires, Theologia Scripta, Vol. 3, Braga, Movimento Bartolomeano, 1974, p. 314. 34 Saul António Gomes, “O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no professorado de Frei Bartolomeu…”, p. 46. Itálico nosso. 35 Monumenta Ordinis Praedicatorum Historica, Vol. IX, Acta Capitula Generalia, 4, p. 324. 36 Fr. Francisco de S. Luís, “Memoria historica sobre as obras do Real Mosteiro de Santa Maria da Victoria chamado vulgarmente da Batalha”, in Memorias da Academia Real das Sciencias, t. X, 1827, p. 34-35. 33

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Mosteiro da Batalha na Província Portuguesa da Ordem dos Pregadores: em Maio de 1549, é ali celebrado um Capítulo Provincial33; em 1551, é o próprio Frei Jerónimo da Azambuja, professo na Batalha, que é chamado a exercer o cargo de Provincial 34; nesse mesmo ano, o Capítulo Geral de Salamanca promove o Studium da Batalha a generale, para efeito de reconhecimento do seu ensino formal e dos actos académicos em ordem ao grau de mestre em Teologia35.

juro dos anos de 1563 e 156437, havendo notícia do adiantamento, nesse mesmo ano, da tença referente a 1566 e 156738.

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As plantas do Mosteiro da Batalha levantadas por James Murphy permitem-nos fazer uma ideia bastante clara da lógica funcional e da composição a que obedecia o edifício ampliado e remodelado, ainda que nos falte o termo de comparação ante quem. O conjunto articulava-se, antes de mais, com a vila, através de uma longa fachada contínua voltada a nascente que se abria numa portaria monumental, dominando o mais antigo centro cívico da Batalha, no qual se encontravam a igreja velha do convento e o cemitério. A portaria era um lugar importantíssimo na relação entre o convento e a vila, pois aí se podiam ir procurar os medicamentos produzidos na botica, tratar de negócios, aceder à escola destinada à população ou pedir esmola. Era também por aí que os visitantes entravam para a hospedaria e os serviçais de fora (nomeadamente mulheres, por exemplo, as lavadeiras) conjugavam a sua actividade com a comunidade conventual. No troço norte da fachada nascente existia um domínio de transição para o espaço exclusivo da cerca, que consistia num pátio situado entre esta e o largo. Era exteriormente delimitado por um muro adjacente à portaria que ligava os novos edifícios à igreja velha, nele se rasgando inevitavelmente a porta do carro (para este pátio davam a cocheira e cavalariça do prior, bem como arrecadações de alfaia agrícola e o estábulo das vacas ou bois, utilizados para puxar carga pesada e para arar a quinta). As janelas e varandas do noviciado, da hospedaria e do dormitório dos professos davam para a cerca. A livraria e algumas celas deste dormitório estavam voltadas para o pátio referido. Apenas as dependências priorais sobrepujavam a portaria, à maneira de palácio.

TT, Cartórios Recolhidos da Biblioteca Nacional, Batalha, Lv. 5, Doc. 10 (1556, Novembro, 24, Lisboa). 38 TT, Cartórios Recolhidos da Biblioteca Nacional, Batalha, Lv. 5, Doc. 10 (1556, Dezembro, 18, Lisboa). 37

A casa de noviços com a sua capela e varandas viradas, respectivamente, para o jardim do claustro afonsino e para a cerca, era canonicamente separada do restante convento por paredes situadas nos cantos NW e SW do claustro. Clara era também a separação de espaços em que operavam e circulavam os conversos: as suas celas situavam-se na ala norte do mesmo claustro, entre o noviciado e a hospedaria; o piso térreo daquela quadra e do contíguo desaparecido Claustro da Botica (sintomaticamente designado na planta publicada por “Claustro dos Conversos”), onde se encontravam os espaços para armazenamento de provisões, as oficinas, o lagar de vinho e a abegoaria (voltada para o pátio exterior já descrito), era reservado à utilização dos conversos e criados. A partir do piso térreo, acediam os conversos a outra importante área de 39 A informação que possuimos do noviciado é muito recente, constando do levantamento realizado no início da década de oitenta do século XX para o projecto do arquitecto Viana de Lima para um auditório, instalações técnicas e administrativas do Museu do Mosteiro de Santa Maria da Vitória. A marca, ainda hoje visível, de uma abóbada de madeira na parede sul (isto é, no exterior da cozinha medieval) atesta a existência de um corredor central sobrelevado, tal como aparece representado no levantamento referido.

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Englobando a quadra afonsina, o edifício remodelado encontrava a sua lógica compositiva não claustro a claustro mas por pisos, do superior para o térreo. Assim, o conjunto era definido, no piso superior, por três corpos paralelos, cujas dependências (maioritariamente celas) se organizavam ao longo de corredores, a saber, de nascente para poente: o grande dormitório dos professos (que incluía a livraria), a hospedaria e o noviciado39. Embora condicionado por uma preexistência irregular, o novo projecto deriva de modelos já conhecidos, designadamente o do Convento de Tomar, desenvolvendo-se em torno de uma grande cruz cujos braços eram a nave sul do Claustro de D. Afonso V e a ala que a ligava ao dormitório dos professos, e cujo pé era a hospedaria. Em cada quadrante, encaixava um pátio, excepção feita ao Claustro Real que ultrapassava os limites de qualquer outro.

serviço – a botica (que dá o nome ao claustro) e a enfermaria –, também da sua responsabilidade, situadas por baixo do dormitório dos professos e comunicando com a portaria por uma roda à qual se acedia através de uma escada. Naturalmente, também os professos dispunham de espaços exclusivos, a saber: o dormitório com a sua livraria, a Capela das Horas, ao fundo do dormitório (a sul, encaixada, entre os aposentos do prior e a casa capitular), e finalmente o Claustro Real.

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A circulação dos criados processava-se exclusivamente no âmbito do piso térreo dos claustros de serviço. A dos conversos alargava-se a todo o convento, uma vez que participavam nas horas litúrgicas menores, nas refeições e no capítulo das culpas mas incidia sobretudo nas suas áreas de desempenho, no piso térreo, e naturalmente na área residencial correspondente, na portaria e com certeza na hospedaria. Por seu lado, os professos dispunham de comunicação directa entre o seu dormitório e o Claustro Real, passando pelos aposentos do prior (estrategicamente situados sobre a portaria, com a qual comunicavam através de escadaria própria, e com acesso directo àquele dormitório e à hospedaria), a que se seguia a Capela das Horas e descendo uma escada que desembocava no claustro através de um magnífico portal. O claustro centralizava todos os espaços que faziam parte do seu quotidiano, além dos já referidos no piso superior: igreja e panteão real, casa capitular, sala de aula e refeitório. A sala designada, na planta publicada por Murphy, por “sala onde os professores dão as aulas”, no segmento nascente do corpo hoje designado por Adega dos Frades, recebe o nome de “Capitulo Velho” no manuscrito SAL 260. Foi também aí que Beckford tomou as refeições a que se refere aquando da sua visita em 1794. Aparentemente tratavase de um espaço de certa versatilidade idealmente situado entre o claustro reservado aos professos e o restante convento, permitindo o encontro de todas as categorias de pessoas, incluindo aqueles que, de fora, vinham lavrar ou testemunhar em actos notariais que tinham lugar em reuniões capitulares.

Em suma, o projecto de remodelação do Mosteiro da Batalha, executado, ao que se julga, a partir dos anos 50 do séc. XVI, corresponde a um edifício de segunda geração do Renascimento português, pautando-se, com acontecera já na década de 30, por ideais de racionalidade, regularidade e simetria com consequências indeléveis na clarificação da percepção espacial, no controlo da percepção visual e, em geral, no condicionamento do comportamento das pessoas. O projecto possui também uma marcada intenção de reordenamento do espaço urbano, separando-o claramente da quinta conventual e monumentalizando o largo da portaria, zona privilegiada de assistência à população da vila. Do ponto de vista formal, é notória a monumentalidade traduzida por uma outra construção abobadada que vence dois pisos, além da portaria “de dentro e de fora” – o celeiro, peçachave no fechamento da extremidade nordeste do complexo conventual, que estende a fachada nascente e escalona a de norte, criando o abrigo ideal para um Jardim de Jericó, nas costas do Claustro da Botica, já em plena cerca. O trabalho em grandes volumes, de extrema sobriedade, prossegue nos pórticos – também abobadados – que sustentam as varandas do dormitório dos professos, da hospedaria e do noviciado. Internamente, a planta publicada por James Murphy e, com mais fidedignidade, o fól. 72 do manuscrito SAL 260 confirmam o despojamento e a grandeza desta arquitectura, sempre associados aos ideais acima referidos: uma extensa colunata unia os dois novos claustros, proporcionando certamente uma Aquilo a que Fr. Luís de Sousa, op. cit., p. 650, chamou de “recebimento de dentro”; o “recebimento de fora” era toda a área porticada que se abria ao exterior através da já referida arcada monumental. 40

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Também a escola destinada à população da vila se encontrava estrategicamente situada em ligação directa com a recepção da portaria40.

vista soberba a quem passasse do “recebimento de dentro” para o pátio do primeiro. No restante, porém, o Claustro da Botica, era composto por simples paredes contrafortadas e uma outra galeria com dois pilares cruciformes.

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A austeridade do convento reformado da Batalha era mitigada por alguns portais de maior ou menor complexidade. Chegaram-nos fotografias de dois desses portais, situados no Claustro Real: um deles, mais simples, de frontão triangular assente em pilastras jónicas, que servia os arrumos do sacristão (fig. 32); o outro, muito mais elaborado, composto por uma complexa intersecção de elementos, pousados sobre colunas toscanas, que dava acesso à Capela das Horas e ao dormitório dos professos (fig. 33)41. As figs. 34 e 35 são propostas de reconstituição à escala destes portais 42, utilizando a seguinte metodologia: tratamento das imagens, traçado de linhas de fuga, cálculo de medidas a partir destas linhas, tomando por referência as dimensões de elementos arquitectónico conservados. O primeiro portal, mais simples, tem o seu antecessor, entre nós, na Ermida de Nossa Senhora da Conceição, de João de Castilho, em Tomar (1547). O segundo lembra alguns dos modelos do Extraordinario Libro di Architectura, de Sebastiano Serlio, publicado em 1551, de cuja obra anterior havia conhecimento em Portugal desde meados da década precedente, conforme testemunham a Capela de Nossa Senhora do Monte, na Quinta da Penha Verde em Sintra (1543), provavelmente de Miguel de Arruda, e a igreja do Convento do Bom Jesus de Valverde (1544)43.

Fotografias publicadas por Thurston Thompson, The Sculptural Ornament of Batalha in Portugal. Twenty Photographs by Thurston Thompson with a Descriptive Account of the Building, Londres, 1868. 42 Este trabalho foi realizado por Nídia Vieira, no âmbito de trabalho voluntário levado a efeito no Mosteiro da Batalha, em Setembro de 2010. 43 Rafael Moreira, “Arquitectura: Renascimento e classicismo”, in História da Arte Portuguesa (dir. Paulo Pereira), vol. 2, Lisboa, Temas & Debates & Autores, 1995, p. 351. 41

Fig. 33 – Ao fundo, portal das escadas que levavam aos aposentos do prior. T. Thompson, 1868

Fig. 34 – Reconstituição do portal da fig. 32

Fig. 35 – Reconstituição do portal da fig. 33

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Fig. 32 – À direita, a seguir à última janela da casa do capítulo, portal que dava para o campanário e os arrumos do sacristão. T. Thompson, 1868

Um outro portal está assinalado na planta do fól. 72 do manuscrito SAL 260, na passagem da portaria “de fora” para a da “de dentro”. A ele pertenceram certamente duas consolas que se guardam na reserva de escultura do Mosteiro da Batalha (fig. 36).

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Fig. 36 – Consola de frontão. Inv. MB154

Quem foram o(s) ideólogo(s) e o autor deste projecto? O programa arquitectónico acima analisado assemelha-se, como vimos, ao de outros conventos, reformados nas duas décadas anteriores. Por outro lado, ainda que em já avançada idade, passa pela Batalha um dos dois grandes reformadores dessas fundações – D. Fr. Brás de Barros, bispo de Leria desde 1545 – em cuja diocese se inscreve o Mosteiro. Sintomaticamente, é nesse mesmo ano de 1547 que o outro reformador jerónimo – Fr. António de Lisboa – é incitado por D. João III a entrar no menos disciplinado Mosteiro de Alcobaça, missão para a qual

Miguel de Arruda é justamente o único mestre das obras do Mosteiro da Batalha que encontramos documentado entre 1533 e 156345. Acedeu ao cargo por renúncia de João de Castilho, nele sendo sucedido por seu sobrinho Dionísio. Em 1533, como notou Sousa Viterbo46, ainda não tinha sido feito cavaleiro da casa real, sendo designado por “pedreiro”, designação ainda correntemente atribuída aos arquitectos, nessa época, a par da de “mestre de pedraria”. A extraordinária ascensão de Miguel de Arruda, durante a década de quarenta do séc. XVI, ficou a deverse, por um lado, às suas competências como arquitecto militar nas nossas praças marroquinas e em Moçambique e, por outro lado, à sua capacidade de influenciar D. João III. O rei, por seu turno, ganhara um gosto pela arquitectura que o levava a intervir activamente nos projectos para as maiores obras do reino. Em 1548, Miguel de Arruda encontra-se com Fr. António de Lisboa no Mosteiro de Alcobaça e leva a D. João III um esboço do projecto de reforma47. Por doença de Fr. António e indisponibilidade de Arruda, a preparação da obra acaba por ser levada a efeito por outro arquitecto da confiança do rei, Pero Gomes. Este era certamente colaborador ou discípulo de Arruda, passando a mestre e empreiteiro da igreja de Santa Maria do Castelo em Estremoz, a partir de 1559, de que a Sala dos Reis de Alcobaça (provável “igreja de fora” no seu início) parece ser uma réplica em escala reduzida48. Rafael Moreira, “A encomenda artística em Alcobaça no século XVI”, in Arte Sacra nos Antigos Coutos de Alcobaça, Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, 1995, p. 49. 45 Conhecemos a sua actividade e carreira através de vários documentos publicados por Sousa Viterbo, Diccionário Historico e Documental dos Architectos, Engenheiros e Construtores Portuguezes ou ao Serviço de Portugal, vol. I, Lisboa, 1899, p. 66-74. 46 Sousa Viterbo, op. cit., p. 66. 47 Rafael Moreira, “A encomenda artística em Alcobaça no século XVI”, p. 50. 48 Ibidem, p. 50-51, 57-58. 44

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solicita ao rei, no ano seguinte, a presença do arquitecto Miguel de Arruda44.

Afirma Rafael Moreira que “o projecto de 1548 parece ter recolhido o essencial da lição castilhiana de Tomar, neutralizando porém as suas bases erasmianas e reduzindo-as a uma estética do despojamento, esse ‘grau zero’ da arquitectura de purismo absoluto que constituía a arte senza tempo característica da Contra-Reforma”49. Estas palavras são igualmente válidas para a reforma quinhentista do Mosteiro da Batalha. Fr. Francisco de S. Luís refere-se a um documento de 1551, que hoje não conseguimos localizar mas que efectivamente pôde ler no cartório conventual, em que é nomeado para as obras da Batalha o mestre pedreiro António Gomes50, em circunstâncias possivelmente muito semelhantes às de Pero Gomes, em Alcobaça. 68 | Pedro Redol 49 50

Ibidem, p. 54. Fr. Francisco de S. Luís, op. cit., p. 16.

ANÓNIMO, O Couseiro ou Memorias do Bispado de Leiria, Braga, 1868; reimpressão de O Mensageiro, Leiria, 1980 CUNHA, Rui Manuel Maneira, As Medidas na Arquitectura, séculos XIII-XVIII. O Estudo de Monsaraz, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2003 FIGUEIREDO, Fernando Pedro e CATARINO, Lídia, “Em busca das estruturas”, in Aljubarrota Revisitada (coord. João Gouveia Monteiro), Coimbra, Imprensa da Universidade, 2001, p. 29-96 GIRÃO, António Lobo de Barbosa Ferreira Teixeira, Memória sobre os Pesos e Medidas de Portugal, Lisboa, 1833 GOMES, Saul António, “O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no professorado de Frei Bartolomeu dos Mártires (1538-1552)”, in Frei Bartolomeu dos Mártires, Mestre Teólogo em Santa Maria da Vitória – 1538 a 1552. Exposição Documental e Iconográfica – Mosteiro da Batalha, 19 de Setembro a 5 de Outubro de 1992, Câmara Municipal da Batalha / Museu do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, 1992, p. 33-47 IDEM, “Constituições do Bispado de Leiria”, ibidem, p. 64-65 IDEM, Fontes Históricas e Artísticas do Mosteiro e Vila da Batalha (Séculos XIV a XVII), vol. IV (1520-1650), Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico, 2004 JUSTICE, Alexander, A General Discussion of the Weights and Measures, Londres, 1707 KINSEY, William Morgan, Portugal Illustrated, Londres, 1828 MOREIRA, Rafael, “A encomenda artística em Alcobaça no século XVI”, in Arte Sacra nos Antigos Coutos de Alcobaça, Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, 1995, p. 40-63 IDEM, “Renascimento e classicismo”, in História da Arte Portuguesa (dir. Paulo Pereira), vol. 2, Lisboa, Temas & Debates & Autores, 1995, p. 302-364

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BIBLIOGRAFIA

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C Mausoléu de D. João I. D Igreja. E Transepto. a Escada para o Telhado da Igreja. b Escadas para o Compartimento do Órgão, Telhado da Nave Norte, &c. c Localização do Órgão. d Púlpito. F Altar de Jesus. G Coro. e Altar-mor. H Capela de Nossa Senhora da Assunção. I Capela de Nossa Senhora do Rosário. J Capela de Nossa Senhora da Piedade. K Capela de S. Miguel. L Sacristia. M Torre sobre a qual está construído o Coruchéu. N Casa da Prata, isto é, a Divisão em que se guardam as Pratas, as Relíquias, &c. O Casa do Capítulo. P Loggia do Mausoléu de D. Manuel. Q Nichos para Altares. f. f Pequenos Nichos para os Frascos contendo as Substâncias que se usam na Celebração do Santíssimo Sacramento. R Mausoléu de D. Manuel. S Capelas. T Capela destinada a D. Manuel. g Presumível Arrumo para Paramentos. V Cavidades claramente destinadas a servir como Sepulcros. h Entrada para as Cavidades que está preenchida com Pedra Seca. i Escada que leva ao Terraço sobre as Capelas. W Claustro Real W W Alas do Claustro por onde os Frades e os Noviços passam em Procissão do Coro para o Refeitório e vice-versa em acção de graças antes e depois do jantar*. X Jardim. k Cisterna. A Fonte Grande. B Refeitório. l Mesa do Prior. m Púlpito onde um dos Noviços lê as Sagradas Escrituras enquanto os Frades *

tomam as suas refeições. n Aberturas por onde dois dos Noviços recebem do Cozinheiro os pratos que levam aos Frades. C Cozinha. D Despensa E Refeitório pequeno onde ocasionalmente almoçam o Prior e alguns dos Padres principais. F Adega e Armazém de Fruta. G Sala onde os Professores dão as Aulas. H Arrumos do Sacristão. o Campanário p Escadas que levam aos Aposentos do Prior, &c. I Um Pórtico em que é permitida a entrada às Lavadeiras, &c. pertencentes ao Convento. J Escola. q Escada que leva à Roda do Corredor dos Conversos. K Sala dos Serviçais. r Escada para as Celas principais. s Corredor para a Igreja. f Divisão do Abastecedor de Cera. L Claustro dos Serviçais. M Pátio com Laranjeiras. N Claustro dos Conversos. O Jardim. P Claustro dos Noviços. Q Jardim dos Noviços. R Casa da Lenha. S Armazém do Azeite. T Lagar de Vinho. t t Arrumos dos Trabalhadores. v v Arrumos dos Artífices. V Cloaca. w Escada dos Dormitórios para o Refeitório. x Cela dos Serviçais. W Armazéns de provisões. X Celeiro. y Corredor. z Escada para as Celas dos Conversos. Y Aposentos dos Trabalhadores. Z Cocheira e Estábulo do Prior. a a Currais. b b Arrecadação de Alfaias Agrícolas.

Os Noviços vão à frente e o Prior segue em último na procissão que sai do Refeitório. Em sentido contrário, observa-se a ordem inversa.

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LEGENDA

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Ao participarmos numa actividade comemorativa (…), ou quando procuramos levar as investigações mais longe fazendo assim reviver a popularidade de Beckford em Portugal, estamos afinal a pagar uma dívida que o nosso país, entre outros na Europa, tem para com ele. Maria Laura Bettencourt Pires1

Maria Laura Bettencourt Pires, “Imagens de Alcobaça e Batalha na obra de William Beckford”, in Ensaios: Notas e Reflexões, Lisboa, Universidade Aberta, 2000, p. 159-171. 1

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William Beckford e o Mosteiro da Batalha Paixão de uma vida

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NOTA PRÉVIA INTRODUÇÃO I | DE FONTHILL SPLENDENS A FONTHILL ABBEY Génese, ascensão e queda (1760-1787) No paraíso (1787-1795) Até ao Mosteiro da Batalha Regresso à pátria II | FONTHILL ABBEY (1796-1822) Fonthill Abbey e a Batalha III | BATH (1822-1844) A Batalha revisitada NOTAS REGISTO DAS IMAGENS BIBLIOGRAFIA

xx

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Índice

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Este estudo é o ponto de chegada provisório de um processo de conhecimento partilhado que leva em si o gosto, o sentimento e o saber de outras pessoas, além do seu autor explícito. O Paulo acompanhou-me em todos os momentos, desde a ideia de realizar esta investigação até Lansdown, a derradeira morada de Beckford. A Nídia Vieira elaborou o desdobrável que ilustra a deambulação beckfordiana no Mosteiro da Batalha. Quando iniciava a pesquisa, o Adriano Monteiro colocou-me nas mãos todo o seu vasto e precioso espólio bibliográfico relacionado com William Beckford. Pedro Redol | Batalha, 6 de Setembro de 2010

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NOTA PRÉVIA

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A ligação de William Beckford à Batalha e ao seu mosteiro, que visitou em 1794, ficou plasmada, por um lado, no livro Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha e, por outro lado, no empreendimento arquitectónico de Fonthill Abbey, de que nos chegaram apenas vestígios – uma parte diminuta do edifício, aguarelas, gravuras e descrições. Essa ligação faz parte de uma relação mais vasta e profunda com Portugal, que se iniciou com o seu desembarque em Lisboa, no mês de Maio de 1787. Falar de qualquer empreendimento de Beckford significa falar do próprio Beckford, de tal maneira é omnipresente a sua personalidade, a um tempo vívida, caprichosa, indomável, sensível, generosa e fiel a si própria. A arte foi para ele a própria vida, que viveu mergulhado numa prodigiosa imaginação. Daqui emergem várias dificuldades, como facilmente se pode adivinhar. A maior de todas reside na quase inevitável tendência em resvalar para juízos de ordem moral na crítica da obra, tanto mais que esta parece resultar directamente, a todo o momento, de constrangimentos da vida pessoal. Outra grande dificuldade encontra-se na valoração do testemunho de Beckford como fonte histórica, considerando-o, com frequência, pouco verdadeiro ou até mesmo armadilhado, e esquecendo que a verdade existia genuinamente para ele – como para qualquer artista – na imaginação. Neste sentido, o seu testemunho tem que ser interpretado não apenas em função das condições históricas em que foi produzido, mas também da intrínseca natureza poética. Pode-se dizer, então, que

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INTRODUÇÃO

o valor da obra de Beckford como fonte histórica existe na medida em que a mesma encerra valores estéticos, pois, entre outros aspectos, contribuiu para a história do gosto e para a mediação artística. Com Fonthill Abbey, a arquitectura neogótica adquire, em Inglaterra, um impulso de tal modo inusitado que, só considerando esse sonho de Beckford, conseguimos compreender a escolha do projecto de Charles Barry para o novo palácio do Parlamento, erigido em Westminster entre 1840 e 1860. Com Recollections, aparece no universo da literatura de viagens, uma qualidade de escrita até então desconhecida e ulteriormente a custo igualada. Estes dois factos são, a nosso ver, suficientes para colocarmos a lupa, por alguns momentos, sobre a Batalha de Beckford. 80 | Pedro Redol

I | DE FONTHILL SPLENDENS A FONTHILL ABBEY Génese, ascensão e queda (1760-1787) Da imensa fortuna que William Beckford herdou por morte do pai, em 1770, fazia parte o domínio de Fonthill, no condado de Wiltshire, perto da cidade inglesa de Salisbury2. Nascido a 2 A figura lendária de William Beckford mereceu a atenção de vários biógrafos: Cyrus Redding – que com ele chegou a privar –, Lewis Melville, J. W. Oliver, Guy Chapman, H. A. N. Brockman, Boyd Alexander, James Lees-Milne, Brian Fontergill e Timothy Mowl. Todos depararam com as dificuldades anteriormente referidas, enfrentando-as com méritos variáveis. Por não evitarem quaisquer circunstâncias da vida de Beckford, seguimos, na obrigatória peregrinação biográfica que aqui nos cabe fazer, por um lado, a obra de Timothy Mowl, William Beckford: Composing for Mozart, Londres, John Murray, 1998, e, por outro lado, o esboço biográfico proposto por Maria Laura Bettencourt Pires, William Beckford e Portugal, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 17-66. Esta monografia é resultado de uma dissertação de doutoramento apresentada à Universidade Nova de Lisboa, em 1985. Uma parte da correspondência de Beckford foi publicada por Boyd Alexander, Life at Fonthill (1807-1822), Londres, Rupert Hart-Davis, 1957. Do seu arquivo pessoal, guardado na Bodleian Library, Universidade de Oxford, pode fazer-se uma ideia através do catálogo disponível em linha em http://www.bodley.ox.ac.uk/dept/scwmss/online/1500-1900/beckfordbeckford.html. 2

Fig. 1 - John Buckler, Vista da mansão de Fonthill, c. 1806

Em Fonthill desenvolveu o gosto pela natureza, o paisagismo, a arquitectura, a música, a literatura e a pintura, sob o olhar vigilante da mãe, Maria Hamilton Beckford, e a orientação de tutores: primeiro, Robert Drysdale e depois o Reverendo John Lettice, que se tornaria num amigo para o resto da vida. Aprendeu precocemente a falar e escrever em várias línguas, a tocar piano, cantar e compor, a desenhar e pintar, com professores escolhidos para o efeito entre os melhores da sua arte. Supõe-se que o ambiente católico da vizinha paróquia de Fonthill, raro numa Inglaterra ainda militantemente protestante, tivesse propiciado a simpatia do jovem Beckford pelo catolicismo e o seu rito. Esta circunstância terá pesado na decisão da mãe de o enviar, juntamente com o tutor, para a cidade suíça de Genève, no intuito de completar os estudos, agora ao nível universitário. Além de se tratar de uma cidade inequivocamente calvinista e de ser então um dos centros intelectuais da Europa, existia ainda a vantagem de aí residir o primo

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de Setembro de 1760, na mansão neoclássica mandada construir pelo progenitor, ali cresceu e viveu até aos 17 anos (fig. 1).

Edward Hamilton. A Senhora Beckford não tardaria, porém, em ir buscá-los, decorrido menos de um ano, após saber da sua expedição à Grande Chartreuse de Grenoble, a casa-mãe dos monges Cartuxos (fig. 2).

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Fig. 2 - Vista aérea da Grande Chartreuse

Regressado a Genève por mais um Inverno, Beckford tomou contacto com o romance Werther de Goethe, cujo expressionismo romântico o tocou profundamente, neste seu período de convulsão emotiva e literária. Aquilo que, nas felizes palavras de Maria Laura Bettencourt Pires, correspondia a “um florescimento de algo que fazia já parte da maneira de ser do jovem, um amor pela natureza selvagem, pela solidão e uma tendência para se revoltar contra as convenções sociais e a aquisição de erudição convencional”3 começou a alarmar a mãe, mandando-o regressar a Fonthill (que Beckford gostava de chamar de Splendens, isto é, “resplandecente”), em fins de 1778. Tendo em vista centrá-lo nas aspirações que dele deveriam vir a fazer um político, legítimo sucessor de Alderman William Beckford, seu pai, em 1779, a Senhora Beckford enviou o filho, sempre

3

Maria Laura Bettencourt Pires, William Beckford e Portugal, p. 26.

Depois da apresentação do filho na corte de George III, Maria Hamilton Beckford mandou-o, uma vez mais, e ao seu tutor, de viagem; desta vez, aquela que se tornara habitual entre os recémformados jovens aristocratas britânicos: uma viagem de estudo cujo destino último era Itália e que recebia o nome de Grand Tour. Em 1781, de regresso a Inglaterra, antes de brilhar nos salões de Paris, escreve profeticamente sobre si mesmo à grande amiga que deixara em Nápoles, sua tia Catherine, esposa de William Hamilton, embaixador naquele reino: Temo nunca vir a ter sapiência necessária, nem ser de outra valia neste mundo, senão para compor árias, construir torres, idealizar jardins, coleccionar velhos objectos japoneses e escrever sobre uma viagem à China ou à Lua.4

Aproximava-se o aniversário da maioridade que o libertaria da mãe e, ao mesmo tempo, entregaria às obrigações – eminentemente políticas – de um homem adulto do seu estatuto, para as quais, de resto, não se considerava preparado. Durante três dias, de 28 a 30 de Setembro de 1781, realizaram-se as festividades com extraordinária pompa e encenação, que juntaram centenas de pessoas nos relvados diante da casa de Fon-

4 Apud Tymothy Mowl, William Beckford. 1760-1844: An Eye for the Magnificent (ed. Derek E. Ostergard), New Haven/Londres, Yale University Press, 2002, p. 25.

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acompanhado de Lettice, numa viagem destinada a conhecer as principais casas aristocráticas inglesas. O resultado foi, porém, outro e bem indesejado: na visita a Powderham Castle, Beckford apaixona-se pelo pequeno William Courtenay, único descendente masculino da família deste nome, então com 11 anos. A presença obsessiva de Kitty – como era familiarmente conhecido o rapaz – , no seu pensamento, não o abandonará até 1784, altura em que explode o chamado escândalo de Powderham.

thill, nomeadamente os seus rendeiros e os habitantes de Hindon, uma vila vizinha que constituía o círculo eleitoral que Beckford deveria vir a representar no Parlamento.

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No Natal do mesmo ano organizava uma outra festa em Fonthill, aproveitando a ausência da família em Bath, mas, desta vez, convidou apenas alguns amigos mais chegados, com quem se fechou durante três dias e três noites na mansão familiar, onde encenou atmosferas de sonho e fantasia dignas de As Mil e Uma Noites. Estiveram presentes, além de William Courtenay, Louisa Pitt-Rivers e sua irmã Harriet, Sophia Musters, duas filhas de Lady Dunmore, bem como os pares destas jovens: dois primos de Beckford – William Hamilton (que viria a casar com sua filha Susan) e seu irmão Archibald – e George PittRivers, irmão de Louisa e Harriet. Contou ainda a festa com a presença do preceptor dos jovens Hamilton, Samuel Henley, e Alexander Cozens, professor de pintura de Beckford desde criança. Foi cenógrafo o Conde Philippe Jacques de Loutherbourg, um alemão que vivera em Paris e viera revolucionar a arte cenográfica em Londres. A música ficou a cargo de três músicos italianos: Pacchierotti, Tenducci e Rauzzini. Das conversas que, nessa ocasião, Beckford pôde ter com o Reverendo Samuel Henley, estudioso de literatura oriental, e da própria experiência então vivida saíu o enredo para Vathek, a primeira obra literária que o notabilizaria. Escreveu-a directamente em francês, entre Janeiro e Abril de 1782. Nos meses que se seguiram, William Beckford dedicou-se a uma febril actividade social, que reflecte a sua perfeita integração no meio londrino da época, e começou a preparar a publicação de um primeiro diário de viagens, Dreams, Waking Thoughts and Incidents. Porém, nenhuma das iniciativas que empreendia parecia conformar-se aos desejos da família, que lhe propõe uma nova viagem à Europa. O próprio Beckford deu a entender que este afastamento temporário se destinava a silenciar rumores levantados a pretexto da inconvencional festa natalícia.

A família continuava empenhada em preparar a carreira parlamentar que lhe estava destinada, esforçando-se por domesticar a sua inconformidade social. Começou, assim, por impedir a circulação de Dreams, Waking Thoughts and Incidents, entretanto impressa, prosseguindo com a exigência de casamento com uma noiva escolhida pela mãe, Lady Margaret Gordon. Ao casamento seguiu-se uma longa e harmoniosa luade-mel na Suíça, que viria a ser tristemente marcada pela perda de um filho, em 1783. Uma nova gravidez faz o casal regressar a Fonthill para o nascimento do esperado sucessor. Depois de umas férias na Escócia, em 1784, são convidados a passar alguns dias em Powderham Castle, pertencente à família de William Courtenay, então com 16 anos. Estavam reservadas a Beckford a nobilitação como Barão de Fonthill e a carreira política no Parlamento, que entretanto decidira empreender. Ambos lhe foram negados, após os rumores acerca da sua ligação a Courtenay, na sequência da visita a Powderham. Tendo sido esta efectiva, estima-se hoje, porém, que a denúncia de Lord Loughborough, tio de Courtenay, que aliás nunca levou o caso a tribunal, tenha sido movida por algo mais do que pudor, ou seja, ciúmes por causa de uma antiga paixão de sua mulher por Be-

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A segunda viagem a Itália, passando pela Bélgica, a Alemanha e o Tirol, realizou-se no grande estilo que daí em diante iria caracterizar o modo de vida de Beckford. Da comitiva faziam parte o aguarelista John Robert Cozens, filho de Alexander, a quem competia pintar as paisagens preferidas do seu patrono, o cravista e amigo John Burton, além do médico, o Dr. Erhart. Lettice seguiu-o igualmente, como secretário e capelão. Em Roma, o seu séquito foi tomado pelo do imperador austríaco e, em Nápoles, dá-se o tão desejado reencontro com Lady Catherine Hamilton, que entretanto adoecera, vindo a falecer. A morte voltará a ensombrar esta viagem, levando consigo John Burton, que, juntamente com Cozens e Beckford, contraiu a febre tifóide ou malária. Doente e abatido, Beckford regressa a Inglaterra.

ckford e despeito pela posição oferecida ao filho de um político que, em tempos, ousara enfrentar o próprio rei. Aconselhado pela família, William Beckford, dirigiu-se a Falmouth, no intuito de sair de Inglaterra, acabando, porém, por regressar a Fonthill, onde deixara a mulher, impossibilitada de viajar devido à gravidez avançada, de que lamentavelmente nasceria um filho morto.

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Entretanto, William Beckford e a esposa, que se manteria corajosamente a seu lado, são definitivamente ostracizados da sociedade inglesa. Em 1785, nasce a primeira filha, Maria, tomando então o casal a decisão de ir viver para a Suíça, onde fora feliz. Aí nasce, em 1786, uma segunda filha, que sobreviverá à longa existência do pai e honrará o seu nome – Susan Euphemia. Porém, Lady Margaret viria a falecer de febre miliar, na sequência deste último parto, deixando o marido entregue à sua sorte de criatura errante nos dez anos que se seguiram. Este período da vida de Beckford foi particularmente penoso. Tendo saído de casa, transido de sofrimento pela agonia da mulher, na exclusiva companhia do velho Lettice, descobriria mais tarde que as filhas haviam sido levadas para junto da avó, que se encarregaria de as criar à sua revelia. Ser-lhe-ia negada também a possibilidade de assistir ao funeral de Lady Margaret, em Fonthill. Entretanto, não satisfeitos com tamanha desgraça, empenhar-se-iam os difamadores em divulgar nos jornais ingleses que Beckford fora o causador da morte da mulher. Por fim, Henley, que ficara incumbido de traduzir Vathek para inglês, publica o livro sem menção do nome do autor, dizendo tratar-se da tradução de um manuscrito árabe. A ventura que bafejara Beckford até 1784 afigurava-se, cada vez mais, irrevogavelmente distante. Sofrimento e desespero darão lugar ao isolamento definitivo num mundo à parte, fora da sociedade, especialmente a inglesa, que detesta, mas perante a qual fará, como veremos, esforços hercúleos para se ver reconhecido, durante a restante vida, que foi longa. Inicia, então, como tão bem disse Maria Laura Bettencourt Pires, “a sua carreira

de excêntrico”5. As estadias em Portugal constituirão um interregno naquele isolamento e um bálsamo que Beckford recordará com gratidão até aos seus últimos dias.

Regressado temporariamente a Inglaterra, Beckford é levado, uma vez mais pela própria mãe, a fazer-se ao mar, rumo às plantações de açúcar da Jamaica, onde teoricamente o esperava a administração deste rendoso património familiar. Porém, ao cabo de nove dias de viagem e de enjoo, no mês de Maio de 1787, chega a Lisboa, onde os seus barcos, carruagens, cavalos e um séquito permanente de, pelos menos, vinte a trinta criados, deslumbram tanto os portugueses quanto os estrangeiros aqui residentes. Relata o embaixador francês ao tempo: A chegada de um dos mais ricos homens de Inglaterra, que acaba de atracar a este porto com as três embarcações que lhe pertencem, prende a atenção dos habitantes de Lisboa. Este homem é o Sr. Beckford, um jovem de vinte e cinco anos, filho do famoso Alderman, Lord Mayor, no seu tempo, que desempenhou um grande papel nos debates parlamentares da Grã-Bretanha. Embora esta personagem tenha diminuído consideravelmente a sua fortuna estabelecendo as dos seus numerosos bastardos, o seu filho legítimo ainda herdou dez mil libras esterlinas de renda em Inglaterra e cinquenta mil libras esterlinas igualmente de renda e imensas e soberbas propriedades na ilha da Jamaica.6

Como se tornara habitual nas suas viagens, Beckford chegou a Lisboa acompanhado de uma extensa comitiva composta pelo médico, cozinheiro, músico, alfaiate, criado de quarto e pelos Maria Laura Bettencourt Pires, William Beckford e Portugal, p. 44. Marc de Bombelles, Journal d’un Ambassadeur de France au Portugal, 1786-1788, edição de Roger Kann, Paris, Presses Universitaires de France, 1979, p. 117. 5 6

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No paraíso (1787- 1795)

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moços de estrebaria, entre vários outros. Rapidamente se deixou fascinar pela cultura do País, a sua profunda religiosidade e a liturgia católica, tendo-nos deixado relatos tocantes como o da procissão do Corpo de Deus a que assistiu em Lisboa pouco após a sua chegada. Contrariado pela previsível hostilidade do embaixador britânico, Robert Walpole, que impediu a sua apresentação na corte portuguesa, fez, no entanto, amizade duradoura com o 6º Marquês de Marialva, D. Pedro de Menezes, cujo pai, D. Diogo, era fidalgo da casa real. Aqui permaneceu durante um ano, ocupando uma casa de madeira pós-terramoto, que viria a adquirir, na Rua da Cova da Moura, às Necessidades, e residindo intermitentemente em Sintra, no Palácio do Ramalhão. É em 1787 que Gregorio Franchi entra, como músico, ao serviço de Beckford, que o ouvira cantar no Seminário da Patriarcal. Filho de italianos imigrados em Portugal, nasceu em Lisboa, em 1770. Até à sua morte, em 1820, foi não apenas secretário e agente de Beckford na aquisição de obras de arte, mas ainda aquele que o acompanhou mais de perto, em todos os momentos. Devido às suas características de personalidade tão especiais e à sua peculiar história de vida, Beckford foi também um viajante que, na sua atitude em relação a Portugal, se distinguiu de vários outros ingleses que visitaram o País, a partir de 1755. Contrariamente ao que sucedeu com todos os restantes de que nos chegou notícia, aprendeu a língua e integrou-se na sociedade que, por sua vez, o recebeu. Esta seria certamente a melhor dádiva que lhe podia estar reservada e este o motivo por que regressou por duas vezes mais. Como é natural, o conhecimento do País e das suas gentes foi-se aprofundando com o contacto que as várias estadias em Portugal lhe foram proporcionando. De regresso a Inglaterra, Beckford visita ainda Madrid, onde permanece seis meses. Vive depois os primeiros tempos da Revolução Francesa e, após uma curta estadia no país natal, regressa a Paris, aí residindo desde o final de 1791 até 1793. Esta época é vivida num fausto sem precedentes. Ao mesmo tempo,

Numa carta a Cozens, em 1779, escrevera “Espero erguer uma Torre dedicada à meditação”7. Anos mais tarde, em 1791, inicia-se a correspondência com o arquitecto James Wyatt e, com ela, um longo processo de gestação da sua segunda obra maior, depois de Vathek – Fonthill Abbey. Nele tiveram, sem dúvida, um papel determinante as recordações da Grande Chartreuse e a visita ao Mosteiro da Batalha, em Junho de 1794. Beckford regressara a Portugal em Novembro de 1793, aqui permanecendo até Outubro de 1795. Instalou-se na quinta de recreio de S. José de Ribamar, em Algés, enquanto a casa da Rua da Cova da Moura, que comprou a 17 de Dezembro de 1793, era submetida a uma remodelação8. Uma planta do punho do próprio Beckford9 (fig. 3) mostra claramente o que ele pretendia: uma longa série de dependências, abrindo umas sobre as outras, que permitisse avistar toda a casa, a partir de uma das suas extremidades. A meio, a seguir à Grande Sala de Visitas, existia uma dependência octogonal, a que se seguia o salão turco (à imitação talvez do de Fonthill Splendens), culminando num oratório que seria dedicado a Santo António. Fig. 3 - Planta da casa de Beckford em Lisboa, 1793 Apud Tymothy Mowl, op. cit., p. 28. A escritura de compra e venda correspondente, cujo paradeiro se desconhece, foi publicada no catálogo da exposição realizada no Palácio Nacional de Queluz, William Beckford e Portugal. A Viagem de uma Paixão, Lisboa, Instituto do Património Cultural, 1987, p. 107. 9 Publicada por Boyd Alexander, England’s Wealthiest Son, Londres, Centaur Press,1962, ilustração inserida entre as páginas 118 e 119. 7 8

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o clima de desordem promovido pela Revolução permitia-lhe adquirir obras de arte a preços irrisórios.

Conforme notou Boyd Alexander, que deu a conhecer a planta referida10, encontra-se aqui o protótipo das alas norte/sul de Fonthill Abbey, igualmente separadas por um corpo octogonal, tendo ficado reservada a extremidade norte ao oratório do santo, sob cuja protecção Beckford se colocou desde a sua primeira visita a Portugal.

Até ao Mosteiro da Batalha

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Da visita à Batalha ficamos a saber pelo próprio Beckford: não no pequeno diário que fez da expedição aos mosteiros da Estremadura11, em que não figura, mas em Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha, escrito quarenta anos depois12. Uma vez que esta obra é uma revisitação e que não nos interessa aqui apenas o seu valor estritamente histórico, afigura-se pertinente, para já, averiguar apenas a motivação dessa viagem. Não é possível que, conforme se lê em Recollections, a visita tenha sido da iniciativa do Príncipe Regente, futuro D. João VI, pois Beckford só viria a ser por ele recebido em Maio de 1795. Mais provável é que a organização deste evento tivesse partido do seu amigo D. Diogo de Menezes e que, por essa razão, tivesse sido acompanhado pelo GrãoPrior de Aviz, D. Manuel de Noronha e Menezes, seu tio e igualmente amigo de Beckford desde a primeira estadia em Portugal. A antecipação da proximidade da casa real prende-se naturalmente com a necessidade que, aos setenta e quatro anos, Beckford ainda sentia de mostrar aos seus compatriotas que privara com os mais altos representantes da sociedade, algures noutra parte da Europa. No entanto, a ideia de ir à Batalha deve ter partido do próprio Beckford, informado sobre o seu Ibid., p. 160. Publicado por Boyd Alexander como apêndice à reedição de Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha, Londres, Centaur Press, 1972, p. xxiii-xxxii. 12 William Beckford, Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha, Londres, Richard Bentley, 1835. 10 11

Para se compreender o interesse de William Beckford pela Batalha é necessário recuar até 1760, ano em que Thomas Pitt (1737-1793) visita o seu mosteiro13. Tendo concluído os estudos universitários em Cambridge, integrou uma embaixada extraordinária enviada pelo monarca britânico à Coroa portuguesa, com o que dava início ao seu Grand Tour. A passagem por Portugal, a que se seguiria Espanha, foi determinada não só pelo facto de Inglaterra se encontrar em guerra com a França, o que inviabilizava a travessia terrestre rumo a Itália, como ainda pelo objectivo de investigar as origens da arquitectura gótica, a instâncias de um círculo de intelectuais e antiquários de Cambridge. Em particular, urgia argumentar contra a incómoda teoria, recuperada por Christopher Wren, de que o Gótico tinha a sua génese no chamado arco sarraceno. A partir de Thomas Pitt, a visita aos grandes mosteiros da Estremadura – Alcobaça, Batalha e, por vezes, Mafra – passa a fazer parte do itinerário de diversos viajantes ilustres da segunda metade do séc. XVIII, planeado, em vários casos, pela própria corte portuguesa. O diário de viagem de Thomas Pitt14 chegou ao conhecimento de numerosos intelectuais, estetas e antiquários britânicos. Um deles terá sido William Conyngham (1733-1796), aristocrata irlandês que cedo se notabilizou pelo patrocínio do registo gráfico de monumentos na sua ilha natal. O gosto pela arquitectura gótica, bem em voga na época, levou-o a procu-

Sobre esta viagem ver John Frew e Carey Wallace, “Thomas Pitt, Portugal and the Gothic cult of Batalha”, in The Burlington Magazine, 128 (1986), p. 582-585, e, mais recentemente, Matilde Mateo, “En busca del orígen del gótico: el viaje de Thomas Pitt por España en 1760”, in Goya. Revista de Arte, 292 (2003), p. 9-22. 14 Foi publicada uma cópia manuscrita, traduzida para português, com introdução de Maria João Neto: Thomas Pitt, Observações de uma Viagem a Portugal e Espanha (1760) / Observations in a Tour to Portugal and Spain (1760), Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico, 2006. 13

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mosteiro por outras fontes e talvez aconselhado pelo seu arquitecto, James Wyatt.

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rar os serviços do arquitecto James Wyatt, em 1775, para a renovação da sua residência ancestral, Slane Castle. Porém, apenas dez anos mais tarde se efectivaria essa renovação, informada já por uma nova visita do próprio William Conyngham ao Mosteiro da Batalha15. Entretanto, em 1783, vem a Portugal, invocando razões de saúde, mas naturalmente com interesses dissimulados de prospecção económica e com o fito de desenhar o já famoso mosteiro gótico. Além do registo que dele fez directamente, na companhia do coronel Tarrant e do capitão Broughton, procurou ainda obter eventuais desenhos existentes à data e encomendou trabalho ao pintor do Porto, João Glama Ströberle16. Em 1788, encontrava-se ao serviço de William Conyngham o arquitecto irlandês James Murphy (17601814), com a incumbência de realizar desenhos gerais do Mosteiro da Batalha, a partir dos elementos reunidos pelo seu patrono. Verificando-se a insuficiência destes, Murphy é enviado à Batalha, onde chega a 29 de Janeiro de 1789, apresentado por carta de um comerciante da colónia inglesa do Porto ao Prior da Batalha. Residiu no Mosteiro durante treze semanas, que ocupou a medir e desenhar exaustivamente o edifício. Seguiu-se um périplo pelo País, durante o restante ano de 1789, que terminou em Évora17. Em 1790, Murphy regressa à sua pátria, onde começa a preparar a publicação dos desenhos, acompanhados de uma introdução teórica em que discute os fundamentos da arquitectura gótica, bem como da tradução de uma parte da História de S. Domingos de Frei Luís de Sousa. A sua obra, intitulada Plans, Elevations, Sections and Views of the Church of Batalha, foi publicada em fascículos, entre 1792 e 1795, obtendo pronta aceitação por parte de um exigente púCf. Boyd Alexander, “Fonthill, Wiltshire, II, the abbey and its creator”, in Country Life (Dez. 1966), p. 1430-1434. 16 Sobre a viagem de Conyngham ver James Murphy, Plans, Elevations, Sections and Views of the Church of Batalha, Londres, 1792/1795, p. ii; idem, Travels in Portugal, Londres, 1795, p. 9; Maria João Neto, “Do registo à difusão das formas”, in James Murphy. Arquitectura Gótica – Desenhos do Mosteiro da Batalha, Lisboa, Alêtheia Editores, p. 15-20. 17 Estas informações são fornecidas pelo próprio Murphy, nas suas duas obras referidas na nota anterior. 15

Ainda em 1795, James Murphy dá à estampa Travels in Portugal, um diário ilustrado da sua viagem a Portugal, que, juntamente com o grande álbum que vinha a editar desde 1792, lhe deve ter trazido algum desafogo nos anos que se seguiram. Sabe-se que em 1799 voltou a estar em Portugal, procurando alimentar um projecto de levantamento de outros edifícios antigos, para o qual ainda em 1801 buscava – sem sucesso – um mecenas. Nesta última data, encontrava-se em dificuldades económicas que acabaram por o levar até Espanha, onde, entre Sevilha e Córdova, recolheria material para dois outros projectos editoriais, concretizados ainda em vida, desta feita sobre antiguidades e história da Espanha árabe19. Geralmente acusado de escritor deficitário, a que não terá sido alheia a circunstância irónica de ter sido o próprio a afirmá-lo em primeiro lugar, temos que reconhecer diversos méritos a este homem invulgar. O primeiro de todos foi projectar o 18 Cf. David Watkin, The Rise of Architectural History, Londres, The Architectural Press, 1983, p. 55-56. 19 Cf. Castelo Branco Chaves, no prefácio à edição traduzida, de James Murphy, Viagens em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1998, p. 12-16.

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blico que é conhecido, em grande parte, pelas listas de assinantes publicadas no final dos fascículos. Entre eles contavam-se o príncipe regente português e os monarcas britânicos, Horace Walpole, James Wyatt, William Beckford, e, naturalmente, William Conyngham e o Mosteiro da Batalha. O livro de Murphy seria o primeiro de uma série de levantamentos rigorosos publicados sobre edifícios góticos, desta vez ingleses, que correspondeu ao interesse nascente pelo conhecimento profundo da sua arquitectura, com o objectivo de projectar usando os seus princípios formais, ou mesmo de empreender o respectivo restauro18. Com a publicação de Plans, Elevations, Sections and Views of the Church of Batalha consolidava-se também o prestígio do seu mecenas, W. Conyngham, junto da Royal Antiquary Society of London, a que entretanto fora admitido em 1790.

conhecimento do Mosteiro da Batalha na Europa do seu tempo; o segundo, registar edifícios conventuais que o tornam fonte única para o conhecimento de um mosteiro totalmente reconfigurado no séc. XIX, com a demolição de numerosos edifícios maneiristas; o terceiro foi proporcionar-nos informação escrita sobre a comunidade da Batalha e a sua vida no espaço conventual. Beckford apelidou-o injustamente de “enfadonho desenhador”20, servindo-se, todavia, mais do que ninguém – sem nunca o dizer –, do seu inestimável contributo.

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Como se viu, os contactos entre William Beckford e o arquitecto James Wyatt, que estão na origem de Fonthill Abbey, iniciaram-se em 1791. É possível que Wyatt, assinante da obra de Murphy, tal como Beckford, lhe tenha sugerido que visitasse a Batalha. Natural é também que tenha visto alguns desenhos do mosteiro realizados por esse seu outro cliente e patrono de Murphy, William Conyngham, pois, antes da saída do primeiro fascículo de Murphy, já se tinha inspirado, na opinião de Megan Aldrich21, no antigo coruchéu da Capela do Fundador para a construção da torre central, em forma de octógono, de Lee Priory, sem nunca ter visitado a Batalha.

Regresso à pátria Em Outubro de 1795, depois de ter sido, enfim, recebido pelo Príncipe Regente, Beckford rumou em direcção a Nápoles, que não chegou a visitar devido a um ataque corsário no estreito de Gibraltar. Seguiu, então, por terra e visitou de novo a Espanha. Antes de regressar a Inglaterra, ainda permaneceu em Portugal até à Primavera de 1796, recebendo do futuro D. João

William Beckford, Recollections…, p. 136. Megan Aldrich, “William Beckford’s Abbey at Fonthill: from the picturesque to the sublime”, in William Beckford. 1760-1844: An Eye for the Magnificent (ed. Derek E. Ostergard), New Haven/Londres, Yale University Press, 2002, p. 118-119. 20

21

As diligências feitas por Beckford junto do governo inglês viriam, porém, a ser completamente ignoradas, o mesmo acontecendo com a sua oferta para negociar a paz entre Inglaterra e França, a que esta se mostrava disposta. Era levado, assim, a assumir definitivamente a segregação da sociedade britânica, adoptando, no imediato, uma atitude de cinismo em relação aos seus representantes, e, em seguida, isolando-se dela. No anonimato, escreve, então, duas obras satíricas – Modern Novel Writing e Azemia –, que visavam o primeiro-ministro Thomas Pitt, e incarna a figura de abade nos seus próprios domínios, com a entrega total à obra de Fonthill Abbey, que se prolongará pelos vinte e dois anos seguintes.

II | FONTHILL ABBEY (1796-1822) A concepção de um novo edifício para Fonthill arranca inexoravelmente no Verão de 179623. James Wyatt, que, nesse ano, ascendia ao cargo de Inspector-geral das Obras da Coroa, à morte de Sir William Chambers, foi o arquitecto incumbido por Beckford de interpretar os seus desígnios. Esta encomenda ia desafiadoramente de par com a escolha de George III, infor22 Bodleian Library, Ms Beckford C26; carta de William Beckford a Jacinto Fernandes Bandeira, datada de 17 de Outubro de 1808, publicada no catálogo da exposição realizada no Palácio Nacional de Queluz, William Beckford e Portugal, p. 99. 23 Para a história de Fonthill Abbey, seguimos, no essencial: Boyd Alexander, The Wealthiest Son of England, Londres, Centaur Press, 1962, p. 152-180; John Wilton-Ely, “The genesis and evolution of Fonthill Abbey”, in Architectural History, vol. 23, Londres, SAHGB Publications, 1980, p. 40-180; Megan Aldrich, op. cit., p. 116-135.

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VI o encargo de uma missão junto do rei George III, em que se empenhou profundamente, na expectativa de ser reintegrado na sociedade britânica. Assim se consolidava a ligação, já estreita, com Portugal, que Beckford haveria de recordar mais tarde com nostalgia: “A minha afeição por Portugal e o desejo de lá voltar cessarão apenas com a minha existência”22.

mada, é certo, por um conhecimento já longo do arquitecto e da sua obra, a que correspondia uma antevisão das virtualidades do artista, apanágio, aliás, do patrono ao longo de toda a sua existência. Fonthill Abbey reflecte tanto a reclusão a que Beckford se remeteu como a sua necessidade de afirmação social através de uma obra neogótica sem precedentes em Inglaterra. Antes mesmo da construção da sua “abadia”, em 1793, Beckford mandara erguer um muro altíssimo em torno da propriedade, à maneira de cerca conventual, com o intuito de se isolar e de impedir a passagem de caçadores que perseguiam toda a espécie de animais. Ao mesmo tempo que ia alimentando o mito em torno da sua figura, dava naturalmente pasto à maledicência sobre o que se passava dentro de muros. 96 | Pedro Redol

Fonthill Abbey é fruto do trabalho combinado de Beckford e Wyatt. Ao primeiro se devem os elementos básicos: a torre solitária, a residência cavaleiresca e a capela ou ruína monástica. Todos eles ocuparam o imaginário de Beckford, desde muito jovem, alimentado pelo pai, pela literatura medieval, e pelas ruínas do mais antigo mosteiro cartuxo inglês, Witham Abbey, situado numa vizinha propriedade da família24. Segundo recorda Boyd Alexander, Beckford tinha uma obsessão por torres, referindo-se ao sonho da sua construção logo aos 18 anos25. Deste leitmotiv da sua vida, que precede qualquer simpatia pelo Catolicismo, fazem prova a torre ficcionada de Vathek, e as reais de Fonthill e Lansdown, em Bath. Quanto à ideia de abadia, tanto a descoberta da Grande Chartreuse como, mais tarde, as visitas aos mosteiros da Estremadura portuguesa desempenhariam naturalmente o seu papel.

É necessário recordar, neste ponto, que, durante a Reforma Protestante, entre 1535 e 1540, as comunidades monásticas e conventuais inglesas tinham sido abolidas, ficando muitos dos seus edifícios à mercê do abandono. 25 Boyd Alexander, op. cit., p. 152. 24

O sublime e o belo foram entendidos pelo filósofo Edmund Burke27, em meados do séc. XVIII, como mutuamente exclusivos, podendo ambos proporcionar prazer. Porém, o sentimento de sublime corresponde a um temor respeitoso, ou mesmo horror, suscitado na imaginação, por algo dotado de uma grandiosidade sem par. Era reconhecido, assim, pela primeira vez na história do gosto, o valor de belo ao que é horrendo, abrindo-se caminho para estéticas ulteriores que vêm até ao nosso tempo. Simultaneamente, Burke acentuava os efeitos sensoriais do sublime, privilegiando, também inovadoramente, o sensível face ao que é transcendente, isto é, a uma secular tradição metafísica. Após o regresso de Beckford de Portugal, em Junho de 1796, Wyatt projectou a torre referida, que ficava numa parte da propriedade chamada Stop’s Beacon, mas a ideia acabaria por ser abandonada. Beckford viria a retomar o projecto de uma torre solitária apenas trinta e nove anos mais tarde, em Lansdown, Bath. Em Outubro daquele ano, estava a ser construída uma “abadia” noutra parte, Hinkley Hill. Entretanto, a torre seria incorporada no projecto da própria abadia, que, no Verão do ano seguinte, já tivera uma ampliação considerável, a ponto de, passados alguns meses, Beckford admitir a demolição de Fonthill Splendens e de passar a imaginar a “abadia” como sua mansão. Em Novembro de 1798, o edifício recebe enfim o nome de Fonthill Abbey e o seu patrono assume-se Ibidem, p. 156. Edmund Burke, A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful, 1756. 26 27

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Inicialmente entendida como nota pitoresca entre bosque e relvados (na verdade, a continuação de uma torre cujas fundações haviam sido lançadas pelo pai de Beckford), passando por várias experiências e mudanças de planos26, a “abadia” irá assumir proporções e suscitar sentimentos que dela farão um testemunho por excelência da estética romântica do sublime.

como fundador de um mosteiro real, onde poderia vir a ser tumulado enquanto protector das artes. A “abadia” de Beckford começa a ser conhecida e admirada a partir de 1797, através da exposição dos projectos de Wyatt, na Royal Academy. No mesmo lugar, mostraria o jovem Turner, em 1799, algumas vistas da “abadia”, encomendadas por Beckford. Entre elas se contava talvez uma perspectiva pintada a partir do quadrante sudoeste (fig. 4) que tem sido notada por mostrar uma torre curiosamente parecida com a representação da Capela do Fundador do Mosteiro da Batalha que James Murphy entretanto publicara (fig. 5)28.

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Uma última viagem de Beckford a Portugal, da qual muito pouco se sabe, ocorreu quando a “abadia” já tinha sido começada, entre Outubro de 1798 e Julho de 1799. A recente morte da mãe, que Beckford admirava, apesar do seu carácter possessivo e dominador, motivou essa saída do país natal. Por outro lado, Beckford queria agradecer ao Príncipe Regente português a atribuição da Ordem de Cristo a Gregório Franchi. Durante esta estadia, adquiriu Monserrate, em Sintra, onde já antes vivera. Aí, deu largas ao seu génio de arquitecto paisagista, ensaiando outros voos, que em breve empreenderia em Fonthill.

Fig. 4 - J. M. W. Turner, Fonthill Abbey vista de sudoeste, 1799 28

John Wilton-Ely, op. cit., p. 43; Megan Aldrich, op. cit., p.123.

Na sua versão final, ainda que inacabada, Fonthill Abbey era um enorme edifício de planta cruciforme, dominado, no sentido norte-sul, por um eixo constituído por duas extensas galerias perfeitamente alinhadas, cuja continuidade era interrompida apenas por um grande corpo octogonal, situado de permeio (fig. 6). A ideia de criar uma sequência vertiginosa de espaços, culminando no oratório dedicado a Santo António, foi, uma vez mais, como anteriormente se viu, do próprio Beckford, que, no final de 1793 ou no início do ano seguinte, esboçara a remodelação da sua casa na Rua da Cova da Moura, preconizando o mesmo tipo de solução cénica29. Porém – como em toda a obra de Fonthill Abbey –, as soluções-chave são inte-

29

Cf. nota 9.

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Fig. 5 - James Murphy, alçado da Capela do Fundador, 1792

gradas no projecto em execução, resultado de uma verdadeira mania de construir que se apodera de Beckford, prendendo-o ao estaleiro anos a fio, sem se deixar demover pela paulatina e irreversível erosão da sua fortuna. Um dia escreveu: “Há pessoas que bebem para esquecer a sua infelicidade; eu não bebo, construo”30.

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Fig. 6 - John Rutter, planta de Fonthill Abbey, 1823

O edifício passou, então, por várias configurações sucessivas. A primeira é aquela que se pode ver na primeira pintura de Turner (fig. 4) e corresponde, grosso modo, às dependências

30

Apud Boyd Alexander, Life at Fonthill (1807-1822), Londres, Rupert Hart-Davis, 1957, p.116.

Só a torre fora entretanto reconstruída, por ter ruído parcialmente com uma ventania, em Maio daquele ano. Tem-se responsabilizado unilateralmente, tanto Beckford como Wyatt, pela fragilidade de Fonthill, que levou a derrocadas tão fantásticas quanto toda a restante história da “abadia”. A razão dessa fragilidade foi o emprego de uma argamassa armada em madeira, em vez de alvenaria, para mais célere construção de tão arrojado edifício. Uma vez que este material era então de uso corrente em construções cenográficas, situadas em jardins, e que Beckford instigou o arquitecto, repetidas vezes, a proceder com celeridade, compreende-se melhor a escolha, que, logo em 1806, houve que remediar, desmontando a torre e voltando a construí-la em pedra (fig. 7). A história da primeira reconstrução da torre não deixa, contudo, de ser impressionante: movido pela perspectiva do banquete, Beckford contratou cerca de 500 operários que satisfariam o seu desiderato em tempo útil, trabalhando dia e noite. Com a recepção ao herói de Trafalgar, trazido – com West, Presidente da Royal Academy – por Emma e Sir William Ha-

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que conheceram o único grande acontecimento social de Fonthill Abbey, que teve lugar no dia 23 de Dezembro de 1800: o banquete oferecido em honra de Lord Nelson. Percebe-se o princípio da estrutura cruciforme, de que se distingue o braço sul – a Galeria de S. Miguel – e a entrada para o grande átrio ocidental. No canto formado pela intersecção destas estruturas, que a torre coroa, abriga-se o claustro, dissimulado, no plano mais próximo, pela Sala de Visitas de Carvalho (Oak Parlour), a que se sobrepunha, no piso superior, uma outra sala de visitas e a biblioteca, onde Wyatt e o seu patrono passaram muitas horas em busca de soluções para o edifício e para a sua decoração. No topo norte da Galeria de S. Miguel, ficava o santuário dedicado a Santo António, onde já então se encontrava a imagem de Rossi.

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Fig. 7 - John Rutter, Fonthill Abbey vista do lado sul, 1823

milton, assentavam-se também mais algumas pedras na construção da lenda do Abade de Fonthill, pois numerosas pessoas da alta sociedade britânica tiveram então possibilidade de viver, por uma noite, um dos contos de fadas que Beckford era exímio a encenar. A este propósito, escreveu Boyd Alexander: Beckford não era apenas um astuto produtor teatral, decidido a impressionar os seus convidados. Estava sempre a criar um mundo de sonho e, sobretudo, a reviver joviais memórias de um passado mais feliz. De certa forma, era como um mágico, com poderes sobre o Tempo: conseguia convocar, por breves instantes, o Passado como se este não se tivesse jamais escoado pelos corredores do Tempo31.

31

Boyd Alexander, The Wealthiest Son of England, p. 163-164.

Fig. 8 - John Rutter, Fonthill Abbey vista de noroeste, 1823

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O banquete em honra de Lord Nelson fez com que Beckford tomasse, por fim, a decisão de tornar habitável a “abadia” e de construir a Galeria de Eduardo III, para norte, alinhada com a de S. Miguel, em honra do rei a cuja estirpe cada vez mais estava convencido de pertencer. Entretanto mandava demolir Fonthill Splendens. As obras sucediam-se com lentidão devido à baixa nos rendimentos provenientes das plantações da Jamaica. Da Galeria de Eduardo III nasce a Torre de Lancaster (fig. 8), em cujo piso superior será instalado o Quarto de Dormir de Cerimónia da família de Lancaster. Para a sua decoração, Beckford contrata Beltz, especialista em heráldica daquela família. No Verão de 1807, Beckford muda-se para a ala sul, mas a obra da torre continuaria até ao Outono de 1809. A partir de 1812, acrescenta o Transepto Nascente (fig. 7), que avançará com soluções de continuidade até 1818, sem nunca ser verdadeiramente acabado.

Em 1823, o pintor John Constable, escrevendo à mulher, dizia de Fonthill Abbey: “A entrada e o que se vê por dentro é verdadeiramente belo. Imagina o interior da catedral de Salisbury, ou mesmo qualquer belo edifício gótico, em carmesim e ouro, com pinturas antigas, estátuas em quase todos os nichos, grandes caixas de ouro maciço para relíquias, etc., etc., belas e ricas carpetes, reposteiros e vidros… tudo isto faz dela um lugar estranho, ideal, romântico, um absoluto país de fadas”32 (fig. 9). Dois pontos de vista principais assombravam quem visitasse a “abadia”: a extremidade da Galeria de S. Miguel, de onde se avistava o oratório, a uma distância de 95 metros; o octógono, que permitia apreender todas as partes do edifício num relance.

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James Wyatt viria a falecer inesperadamente em 1813, interrompendo-se assim o trabalho da dupla que, com Beckford, formava. Outros arquitectos e artistas passaram, porém, por Fonthill Abbey: os filhos de Wyatt, Charles Wild, George Cattermole, J. F. Pordon, J. C. Buckler e John Le Keux. Todos beneficiaram da importante biblioteca de arte e história da arte de Beckford, que foi, toda a vida, um estudioso do Gótico. Boyd Alexander pensa que “Fonthill deve ter sido uma Meca para os goticistas, pelo que teve mais influência do que se pode provar directamente”33.

Fig. 9 - John Rutter, Galeria de S. Miguel, Fonthill Abbey, 1823 32 33

Apud ibidem, p. 169-170. Ibidem, p. 169.

A última década de vida despendida por Beckford em Fonthill foi penosa. No Verão de 1817, escrevia ao genro: “meu caro Douglas, vou morrer (…) se continuar a vegetar aqui durante muito mais meses, neste estado de entrega à solidão”34. Por outro lado, falhavam as tentativas de reintegração social, rejeitadas pelo próprio Beckford. Os negócios na Jamaica pioravam substancialmente, obrigando à venda de propriedades e, finalmente, de Fonthill. Em Fevereiro de 1821, numa tentativa de manter o património dentro da família, Beckford propõe a venda ao genro, que, entretanto, se abstém de lhe responder. Convencido, enfim, no Verão do ano seguinte, do desinteresse do Duque de Hamilton, decide-se a vender Fonthill e a leiloar o seu recheio, fixando residência em Bath. O facto surpreendente do sonho de Fonthill ser posto à venda mereceu atenção de todo o mundo e uma extensa cobertura da imprensa. Na “abadia”, ficara o fiel Franchi para receber milhares de visitantes, curiosos e possíveis compradores, que, mediante a aquisição de um bilhete de ingresso, tiveram uma oportunidade única de se deslumbrar com a mítica obra de Beckford. Este, por seu lado, sorvia, em Bath, onde uma nova vida começava, mais um raro momento de admiração pela sua obra, registado tanto por jornalistas como por autores, que lhe dedicaram monografias ricamente ilustradas: John Britton35 e John Rutter36. O leilão, que deveria ter lugar no final de 1822, não chegou a realizar-se devido à inesperada compra de todos 34 35 36

Apud Megan Aldrich, op. cit. p. 131. John Britton, Graphical and Literary Illustrations of Fonthill Abbey, Londres, 1823. John Rutter, Delineations of Fonthill and its Abbey, Londres, 1823.

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Ao longo dos vinte e três anos de colaboração com Wyatt, Beckford beneficiou do seu conselho quanto à aquisição de objectos e à decoração dos interiores de Fonthill Abbey. Após a morte do arquitecto, o papel de consultor e agente passou a ser desempenhado, sem desvantagem, por Franchi.

os bens, nas suas vésperas, por um obscuro milionário, John Farquhar. Durante a tarde de 21 de Dezembro 1825, caía, pela última vez, a torre de Fonthill Abbey, destruindo o átrio de entrada e a parte poente do claustro (fig. 10). Nas palavras de um contemporâneo, “a grande Abadia (…) ergueu-se como um sopro e extinguiu-se como uma nuvem de Verão”37.

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Fig. 10 - John Buckler, As Ruínas the Fonthill Abbey, 1825

Fonthill Abbey e a Batalha Embora Beckford fosse um conhecedor de arquitectura gótica, o Mosteiro da Batalha e, em particular, a grande nave da sua igreja e a Capela do Fundador parecem tê-lo impressionado profundamente, a ponto de procurar reviver emoções ali

37

Boyd Alexander, The Wealthiest Son of England, p. 167.

Ao procurar avaliar a importância que a Batalha possa ter tido para Beckford, é necessário, no entanto, não perder de vista o artista que ele foi e, portanto, procurar conhecer o seu próprio processo de construção do projecto. Dois aspectos devem ser considerados: por um lado, Beckford não faria, à partida, transposições literais, procurando antes enriquecer a experiência estética, a partir do que via e sentia; por outro lado, quando visita o mosteiro, tem trinta e quatro anos e um razoável conhecimento de edifícios góticos. Outros aspectos influenciaram certamente a maneira como viu a Batalha: a relação com Inglaterra e, pretensamente, com a sua família, nela guardada por via de D. Filipa de Lencastre, neta de Eduardo III; a vaga suposição, propalada por compatriotas seus (especialmente William Conyngham), de que o arquitecto da Batalha fora inglês; a atmosfera humana que aí foi encontrar, num período tão atribulado da sua vida; e a relação do mosteiro com a paisagem, um tema que lhe era caro39. Não há dúvida de que aquilo que mais fez reparar na influência da Batalha em Fonthill Abbey foi a pintura de Turner (fig. 4) que mostra uma torre muito parecida com a representação do corpo central da Capela do Fundador, publicada Publicado em William Beckford, Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha, Londres, Centaur Press, 1972, xxiii-xxxii. 39 John Wilton-Ely, op. cit., p. 40, esclarece que “Beckford desenvolveu também uma abordagem ao projecto em que a arquitectura assumia as propriedades românticas de paisagem. Os efeitos da fusão potente entre natureza e artifício, continuados na sua ulterior criação da Torre de Lansdown e dos seus jardins, haviam de reverberar na arquitectura inglesa até ao último quartel do séc. XIX.” 38

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experimentadas, primeiramente, através da construção de Fonthill Abbey e, muitos anos mais tarde, na escrita de Recollections. O facto de nada ter registado sobre a Batalha, no seu diário de viagem38, pode reflectir simplesmente a incapacidade momentânea de descrever o que sentia, em face de uma experiência avassaladora.

por Murphy (fig. 5). John Wilton-Ely entende que esta pintura se baseou num estudo de Wyatt, entretanto posto de lado (fig. 11)40.

Fig. 11 - James Wyatt, esboço do alçado sul de Fonthill Abbey, c. 1797 108 | Pedro Redol

Em sua opinião, já em 1798 se encontrava em construção uma torre com características distintas, recordando a que Wyatt desenhara para a catedral de Durham, no início desse ano. Esta interpretação resulta do título de um dos desenhos – hoje desaparecido – mostrados pelo arquitecto na Royal Academy, no Verão de 1798: “Vista, de noroeste, de um edifício actualmente em construção em Fonthill… no estilo de uma Abadia Gótica”. Segundo aquele investigador, o desenho mostraria sensivelmente o mesmo que uma segunda pintura de Turner (fig. 12), com ele devendo estar relacionado um outro esboço de Wyatt (fig. 13). Argumenta ainda com a referência, no Salisbury and Winchester Journal, de 24 de Dezembro de 1798, a um coro que deveria situar-se a nascente41 e que, na verdade, se pode ver noutro desenho de James Wyatt, datado de c. 1799 (fig. 14). A nova forma e proporções adquiridas pela torre são já completamente estranhas ao modelo da Batalha, Contrariamente ao que afirma John Wilton-Ely, isto é, que a torre, na sua 40 41

Ibidem, p. 42. Ibidem, p. 43-44.

Fig. 12 - J. M. W. Turner, Perspectiva de Fonthill Abbey de noroeste, c. 1798

Fig. 14 - James Wyatt, esboço de perspectiva de Fonthill Abbey de noroeste, c. 1799 42 43

Ibidem, p. 44. Megan Aldrich, op. cit., p. 123.

Fig. 13 - James Wyatt, esboço do alçado ocidental de Fonthill Abbey, c. 1798

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última versão, se inspira na da vizinha catedral de Salisbury, em cujo discutido restauro Wyatt participara desde 178942, não encontramos nada de comparável no gótico inglês. Estranhamente, Megan Aldrich, ao publicar um estudo que Turner fez para as vistas que Beckford lhe encomendara e que data também de c. 1799 (fig. 15), não faz notar esta diferença43.

Fig. 15 - J. M. W. Turner, Fonthill Abbey em construção, c. 1799 110 | Pedro Redol

Em todo o caso, em gérmen ou plasmadas na obra, as relações com a Batalha que, na “abadia”, é possível destrinçar, não se ficam pela torre. Quanto ao corpo oriental que se vê na fig. 14, regista Farington, no seu precioso diário, a 16 de Novembro de 1798, que viria a abrigar “uma Galeria por cima da Igreja, a decorar com pinturas de Artistas Ingleses. O túmulo do próprio Beckford será colocado ao fundo desta Galeria como promotor da Arte”44. Em 22 de Dezembro do mesmo ano, relata ainda, com pormenor: Wyatt disse-me que a Galeria do Sr. Beckford que deverá dar para a Câmara do Apocalipse, na abadia em construção, deve ter 38 metros de comprimento por 6 de largura. Será apainelada com ébano e nos espaços abertos haverá pinturas históricas de artistas ingleses… Tresham irá pintar quatro quadros para um desses espaços. O maior de todos há-de ter 12 metros por sete e meio. A Câmara do Apocalipse terá paredes de 1 metro e meio de espessura para receberem os sarcófagos. O de Beck-

44

Apud John Wilton-Ely, op. cit., p. 44, nota 26.

Conforme observou John Wilton-Ely, o corpo oriental da fig. 14 mostra interessantes semelhanças com as Capelas Imperfeitas do Mosteiro da Batalha, de que James Murphy apresentara uma proposta de conclusão (fig. 16)46. No seu livro sobre a “abadia”, publicado em 1812, James Storer refere que “é intenção do Sr. Beckford uma capela soberba, diametralmente oposta ao Grande Átrio”47. A ideia do templo e certamente de mausoléu continuava presente. É possível que a morte de Wyatt, em 1812, tenha mudado o rumo ao pensamento de Beckford, quiçá o principal responsável pelo corpo oriental, que, certamente devido à falta de assistência especializada, desenhou com proporções fora de escala em relação à restante “abadia”.

Fig. 16 - James Murphy, projecto para completar as Capelas Imperfeitas 45 46 47

Apud John Wilton-Ely, op. cit., p. 44, nota 27. Ibidem, p. 44. Apud John Wilton-Ely, op. cit., p. 46, nota 36.

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ford ficará em frente à porta. Esta dependência não será aberta à visita de estranhos, podendo apenas avistar-se por um gradeamento. O chão há-de ser de jaspe. Esta Galeria e a câmara ficarão por cima da capela.45

A Batalha parece ter dinamizado em Beckford a criação do sonho de Fonthill Abbey, enraizado em três ideias cuja génese não é possível datar, mas que o acompanham ao longo de toda a vida, de uma maneira, por vezes, obsessiva: a torre, a morte e a estirpe. Estas ideias estão associadas.

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Uma vez mais através de Farington, sabe-se que, já em 1795, Beckford tencionava ser tumulado na torre de Stop’s Beacon48. A assimilação do túmulo à torre perdurará até ao final da vida. Apesar de a indicação para ficar sepultado junto à Torre de Lansdown não ter podido ser cumprida por sua filha, uma vez que o terreno não era consagrado, em 1848, a Duquesa de Hamilton oferecia a propriedade de Lansdown – que finalmente lograra adquirir – para cemitério da paróquia de Walcot, com a condição de que o túmulo do pai para ali fosse transferido49. Cumpria-se, assim, tão significativo desígnio de William Beckford. Porém, o seu projecto memorial complexifica-se, durante uma época que vai de 1795 até, pelo menos, 1810. A visita ao Mosteiro da Batalha desempenhou, sem dúvida, um papel muito importante nesta reconfiguração de fundo escatológico. A torre não deixa de estar presente mas vai passar a ser o fulcro de todo o edifício, à maneira de torre lanterna. Como se viu, a ideia de uma estrutura centralizadora octogonal encontrava-se na mente de Beckford já antes da visita à Batalha50. Neste ponto, convém notar que os edifícios de planta octogonal, coroados, aliás, por coberturas piramidais, foram mais comuns em Inglaterra, durante a época gótica, do que em Portugal. Disso são exemplo as numerosas salas capitulares de catedrais, de que referimos apenas Westminster, Wells, York, e Salisbury, ocorrendo, porém, em outros casos, como, por exemplo, a torre da catedral de Ely. Estas obras – algumas delas geograficamente bem próximas de 48 49 50

Apud John Wilton-Ely, op. cit., p. 42, nota 9. Maria Laura Bettencourt Pires, op. cit., p. 55-56. Cf. nota 9 supra.

Foi com relutância que me afastei da contemplação destes túmulos. Todos os objectos que se encontram na capela são de um gosto tão puro e de um colorido tão harmonioso; os emblemas heráldicos, as divisas, tão elegante e lapidarmente esculpidos, e também tão intimamente associados a recordações históricas inglesas – à jarreteira, aos leopardos, à flor de lis “arrancada à Gália altiva”; o cunho Plantageneta de toda a câmara despertava-me no fundo do coração um sentimento de afinidade tão especial, que dificilmente me convenci a sair dali, apesar dos inequívocos sinais de impaciência dos meus reverendos companheiros51.

É possível defender, como fez John Wilton-Ely, que ao imaginar um panteão para além da igreja, em Fonthill Abbey, Beckford pensasse nesse outro mausoléu – as Capelas Imperfeitas –, situado a nascente da igreja da Batalha, que, pela localização, certamente assimilou à magnífica Capela de Henrique VII, o último rei católico inglês, na abadia de Westminster52. 51 William Beckford, Recollections…, p. 87. Apresentamos aqui, como em praticamente todas as restantes ocasiões em que citamos esta obra, a bela tradução de Iva Delgado e Frederico Rosa em William Beckford, Alcobaça e Batalha – Recordações de Viagem, Lisboa, Vega, 1997, p. 59. 52 John Wilton Ely, op. cit., p. 44; o principal argumento é o desenho apresentado na fig. 14, em que se vê um corpo oriental da “abadia” evocativo do panteão de D. Duarte, que, aliás, Wilton-Ely, na esteira de James Murphy (que é seguido por Beckford), insiste em afectar a D. Manuel.

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Fonthill – não podem ter sido indiferentes a Beckford. Porém, a visão da Batalha – aliás, certamente dos seus dois mausoléus – assimilava de um modo perfeito a forma à função, reforçando a importância da estirpe a que considerava pertencer – a de D. Filipa de Lencastre, o mesmo é dizer de Eduardo III, ou a dinastia Plantageneta. De certo modo podemos dizer que Beckford reunia um conjunto ideal de condições para vibrar em simpatia com o Mosteiro da Batalha, dando origem a uma série única de acontecimentos na história da recepção da sua estética. Em Recollections, após duas páginas dedicadas à Capela do Fundador, diz:

Todavia, a Batalha impressiona ainda, por outras qualidades, o gosto cultivado de Beckford. Do estilo do portal principal diz que “honraria William de Wykeham”, acrescentando que “foi provavelmente traçado por discípulos seus, vindos no séquito de D. Filipa de Lencastre, esposa do Fundador”53. Sobre a igreja, afirma:

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A nave fez-me recordar a de Winchester pelos seus arcos e capitéis, e a de Amiens pelo verticalismo (…). Mas era inexcedível a riqueza de colorido, pelo menos àquela hora do dia. Não há tapeçaria, por mais rica, nem pintura, por mais vívida, que possam igualar o deslumbramento deste matiz, o esplendor do dourado e vermelho rubi derramado pela longa série de vitrais. Esta luz bruxuleava em todas as direcções, no lajedo e no tecto, projectando em cada objecto miríades de sombras suaves e resplandecentes; os hábitos brancos dos frades que me conduziam pareciam bordados com as mais brilhantes cores do paraíso e todo o nosso cortejo avançava revestido de cores celestiais54.

Fig. 17 - John Rutter, corte do Octógono de Fonthill Abbey, 1823 William Beckford, op. cit., p. 82-83. Beckford foi um dos responsáveis pela consolidação da ideia, que germinara com William Conyngham, de que o arquitecto da Batalha fora inglês. Esta ideia da primeira historiografia arquitectónica do mosteiro arraigou-se de tal maneira que não foi sem custo que as provas documentais encontradas, no cartório da Batalha, por Frei Francisco de S. Luís – o Cardeal Saraiva –, sobre Afonso Domingues como primeiro arquitecto do mosteiro foram sendo incorporadas no discurso historiográfico ulterior (cf. Frei Francisco de S. Luís, “Memoria historica sobre as obras do Real Mosteiro de Santa Maria da Victoria chamado vulgarmente da Batalha”, in Memorias da Academia Real das Sciencias, t. X, 1827, p. 11-12. N’ A Abóbada, de Alexandre Herculano, a necessidade de afirmar a autoria portuguesa da obra continua de tal modo presente que se coloca nas mãos de Afonso Domingues a reconstrução da famosa abóbada da casa capitular da Batalha, indiscutivelmente obra posterior ao seu falecimento. 54 Ibidem, p. 83-84. 53

Estes efeitos parecem ter-se enraizado precocemente entre os objectos que prendiam a atenção do Sr. Beckford. Conhecia bem a teoria da cor, sendo poucos os que tão bem estudaram os seus efeitos. Em Fonthill, em Lansdown e nas suas casas de cidade, podiam sempre encontrar-se vestígios desse saber55.

Apesar das destruições ocasionadas pelo terramoto de 175556 e, senão da destruição, pelo menos, da ocultação de vitrais da cabeceira da igreja por retábulos setecentistas, Beckford pôde ainda beneficiar da experiência oferecida pelos vitrais dos séculos XV e XVI. Em contrapartida, deixou-nos a mais bela imagem desse património da Batalha, entretanto perdido na sua quase totalidade. Não é de admirar, por consequência, que o Mosteiro da Batalha, sobretudo a sua igreja e a Capela do Fundador, tenha inspirado a Beckford o desejo de ver no Octógono de Fonthill Abbey – que, em si mesmo, convoca os dois panteões reais do mosteiro (fig. 17) – vitrais que lhe lembrassem as obras que ali tanto o haviam tocado. Os respectivos cartões foram feitos a partir de pinturas do famoso Benjamin West intituladas S. Tomás Becket e S. Miguel e o dragão. Também o pintor William Hamilton realizou cartões para os três conjuntos de vitrais do Octógono57, a que Beckford passou a chamar “as janelas da Cyrus Redding, Memoirs of William Beckford of Fonthill, Londres, 1859, p. 53-54. Através do inquérito à população, no ano seguinte ao terramoto, fica-se a saber que, pelo menos, no lado sul da Capela do Fundador, a destruição foi aparatosa: “cahirão as vidraças que cada huma fazia estrondo como hum grande trovão”; cf. Torre do Tombo, Ministério do Reino, nº 638, m. 7, nº 16 (1756, Março, 10), publicado por Saul António Gomes, Notícias e Memórias Paroquiais Setecentistas. 3- Batalha, Viseu, Palimage Editores, 2005, p. 60. É possível que, além do edifício, os próprios vitrais tenham sido objecto de reparação, no reinado de D. José I, mas não conhecemos qualquer documento que o ateste. 57 As pinturas de West encontram-se no Toledo Museum of Art, Ohio, e os cartões de Hamilton, no Victoria and Albert Museum, Londres (cf. Maria Laura Bettencourt Pires, op. cit., p. 171, nota 412; Martha Hamilton-Philips, “Benjamin West and William Beckford: some projects for Fonthill”, in Metropolitan Museum Journal, vol. 15 (1980), p. 157-174). A realização dos vitrais coube a Francis Eginton. 55 56

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Cyrus Redding, o primeiro biógrafo de Beckford, que o conheceu pessoalmente, diz, a respeito da experiência proporcionada pelos vitrais da Batalha:

Batalha”58. John Rutter, em 1823, fala delas como “os célebres vitrais, que são o orgulho da Abadia”59. Desta forma, Beckford estimulava o reflorescimento de uma arte cujo esplendor há muito conhecera os seus dias. Outros, como Walter Scott, seguiriam o seu exemplo.

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A passagem pela Capela do Fundador fascinou ainda William Beckford pela heráldica que, nas divisas e no banco de pinchar, além dos leopardos, lhe acendeu “recordações inglesas”60, relacionadas, na verdade, com as inovações introduzidas no armorial régio pelo arauto de armas de D. Filipa, Sir John Wiltshire61. Como se viu, a afirmação da linhagem teve lugar em Fonthill Abbey, através da exploração obsessiva da genealogia e da heráldica da Casa de Lancaster, de que o seu proprietário acreditava descender. Existia, também aqui, um passado sugestivo para Beckford, uma vez que seu pai tinha adquirido o castelo de Eton Bray, que pertencera ao Duque de Lancaster62. Ainda que não expressos em Recollections, outros ecos terão ressoado na sua lembrança, pois o túmulo do casal régio, primeiro no seu género em Portugal, procura também o modelo na tumulária inglesa63. Por fim, pode-se dizer que a Batalha ficou na retina de Beckford sob a forma de uma fusão onírica entre arquitectura e paisagem, que procurou incessantemente recriar, tanto em Fonthill, como em Monserrate e Lansdown64: Boyd Alexander, Life at Fonthill (1807-1822), Londres, Rupert Hart-Davis, 1957, p. 81. John Rutter, op. cit., p. 20. 60 William Beckford, Recollections…, p. 86. 61 Maria Laura Bettencourt Pires, op. cit., p. 171-172, lembrara já estes aspectos. 62 Ibidem, p. 172. 63 Esta influência foi reconhecida por Pedro Dias, História da Arte em Portugal. 4 - O Gótico, Lisboa, Publicações Alfa, 1986, p. 131, mas nunca foi verdadeiramente discutida. Como primeiro elemento para essa discussão, que ultrapassa o objectivo do presente trabalho, sugerimos a existência de um modelo comum ao túmulo dos fundadores da dinastia de Avis e ao de Henrique IV de Inglaterra (1467-1413) e sua mulher, que lhe é contemporâneo, encontrando-se na catedral de Cantuária. Henrique IV era, tal como D. Filipa, filho de John of Gaunt, Duque de Lancaster. A relação é meramente compositiva, pois, de um ponto de vista plástico e estético, não existe qualquer vínculo entre as duas obras. 64 Cf. nota 37. 58 59

III | BATH (1822-1844) William Beckford mudou-se para Bath, no Verão de 1822, adquirindo uma casa em Lansdown Crescent, que, mais tarde, viria a unir a outra. Quando caiu a torre de Fonthill Abbey, numa tarde de Dezembro de 1825, encontrava-se Beckford a meditar sobre o projecto para uma nova torre, desta vez neoclássica, a desenhar pelo arquitecto Henry Edward Goodridge. No planalto de Lansdown, a norte da cidade, comprou uma tira de terreno, que ficou a ligar a casa à torre, levantada a quase 250 metros acima do nível do mar, entre 1826 e 1827 (fig. 18)66. Entre ambas, distribuiu as suas colecções e passou a parte mais tranquila da vida, cultivando, com o seu fiel jardineiro de Monserrate, Vincent, um surpreendente jardim pitoresco. Iniciava o dia com um passeio a cavalo, a que se seguia invariavelmente a subida ao mirante da torre para avistar os William Beckford, Recollections…, p. 125-126. A Torre de Lansdown é, de todos os edifícios em que Beckford viveu, o único que se encontra bem conservado e permite fazer uma ideia da intenção com que foi criado, graças à acção do Bath Preservation Trust, que aí tem instalado um museu dedicado ao seu patrono. 65 66

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Mesmo diante de mim, ao fundo de uma série de outeiros, alguns sem vegetação e outros cobertos de urze em flor, mas desprovidos de habitantes, homens ou animais, erguia-se o altivo e majestoso Mosteiro da Batalha, rodeado pela magnífica mole de edifícios, que do ponto onde me encontrava, apresentava uma perspectiva bem interessante. Mal podia acreditar que um conjunto tão considerável e impressionante de telhados e torres, paredes com ricas balaustradas, capelas independentes e flechas isoladas constituíssem as partes de um só e mesmo edifício: aparentemente o que eu contemplava não era apenas uma igreja ou palácio, mas uma cidade de conto de fadas, tal como a imaginação poderia conceber, inspirada pelas fantasias de Ariosto65.

largos horizontes que daí se ganhavam – seis condados e o Canal de Bristol. Reservava depois algum tempo ao convívio com os seus objectos de arte e à permanente reformulação do modo de os expor.

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A ruína de Fonthill Abbey consagrou definitivamente o mito de Beckford. Porém, outras consagrações esperavam o protagonista desse mito. Em 1832, um livro vinha interromper a fase introspectiva da vida que atravessava: enviava-lho um jovem romancista, de nome Benjamin Disraeli, e intitulava-se Contarini Fleming, A Psychological Biography 67. Tratava-se de uma história de vida praticamente igual à sua, que finalizava com a construção de uma torre – a ultrapassar a de Lansdown em apenas 1,5 metros e com a diferença de que se situava em Nápoles, em vez de Bath – e com as afirmações: “Esta torre será dedicada ao futuro e tenciono que venha a ser o meu túmulo. (…) Aqui hei-de passar a minha vida, no estudo e na criação do belo”68. Chegava, enfim, o reconhecimento por parte de alguém que, em breve, se tornaria um político de sucesso – nas palavras de Timothy Mowl, “o mais famoso e improvável primeiro-ministro do século XIX britânico”69.

Fig. 18 – A Torre de Lansdown, em Bath Benjamin Disraeli, Contarini Fleming. A Psychological Autobiography, 2 vols., Nova Iorque, 1832. Ibidem, p. 172. 69 Tymothy Mowl, William Beckford. 1760-1844: An Eye for the Magnificent (ed. Derek E. Ostergard), p. 29. 67

68

Nos três anos que se seguiram à oferta de Disraeli e a um histórico encontro entre ambos, em que o escritor lhe entregou um pedaço de mármore do Pártenon, Beckford sentiu-se animado a reunir antigas notas de viagem e escrever dois novos livros que publicou sob os títulos Italy with Sketches of Spain and Portugal (1834) e Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha (1835). Recollections é, depois de Vathek, a sua melhor obra literária e aquela com que, no período vitoriano, adquiriu a reputação de escritor de estatura70.

A Batalha revisitada Segundo Maria Laura Bettencourt Pires, “a descrição do convento da Batalha é, sem dúvida, das melhores de Recollections, por corresponder a páginas plenas de informação e simultaneamente perfeitas de um ponto de vista literário”71. Ocupar-nos-emos, em seguida, de verificar o teor desta “informação”. Como se fez notar no princípio deste estudo, a mensagem de Beckford é a mensagem de um artista72, devendo ser entendida a ideia de informação, em sentido lato, como a interpretação da sua poética. De facto, Beckford tinha clara consciência de que, na narrativa, a prosa poética era o registo mais adequado para traduzir as suas emoções face à paisagem e à arquitectura, contrapondo a um objecto estético outro objecto Ibidem, p. 29. Maria Laura Bettencourt Pires, op. cit., p. 169. 72 Cf. Rose Macaulay apud Boyd Alexander, na introdução a William Beckford, Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha, Londres, Centaur Press, 1972, p. vii: Recollections “são de alguém que viu nitidamente, maravilhosamente, com olho de artista”. 70 71

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Com a sua torre neoclássica, coroada por uma lanterna octogonal que tomou como modelo o templo de Lisícrates, em Atenas, e o mobiliário cujo desenho ia encomendando a Goodridge, Beckford adiantava-se, como sempre fizera, ao gosto do seu tempo, abrindo a porta do período vitoriano.

estético73. Em nossa opinião encontra-se, em tão nobre desígnio, o motivo principal por que lhe devemos reconhecimento. Como veremos, este tributo único refere-se a um todo arquitectónico e paisagístico que a segunda metade do séc. XIX e o séc. XX se encarregariam de transformar, a ponto de darem origem a um novo topos. Pondo de parte saudosismos pouco úteis, queremos, com Beckford, revisitar uma Batalha desaparecida, que não pode deixar de fazer parte da consciência de um lugar que também ocupa o nosso coração. Tal como não existe juízo crítico da obra de arte sem intermediação emocional, também não é possível julgar um objecto estético desaparecido, amputado ou reconfigurado, em toda a sua totalidade, sem recorrer ao registo passado de emoções – quando se tem a felicidade de ele existir.

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Em 1834, enquanto Beckford escrevia Recollections, era extinto o convento da Batalha. Julgamos que tenha tido plena consciência de revisitar um mundo perdido, acreditando que, mesmo após a morte de Franchi, em 1828, se tivesse mantido tão bem informado das vicissitudes experimentadas em Portugal quanto o estivera no tempo das invasões napoleónicas. De facto, em 1808, escrevia: “Pobre Portugal! Pobres províncias, consumidas, mais de metade, pelas chamas que as têm varrido! Se lá formos, nada encontraremos a não ser cinzas embebidas em sangue”74. A mais do que provável leitura da obra de William Morgan Kinsey, Portugal Illustrated, publicada em Londres, em 1828, terá completado a imagem que Beckford faria da passagem das tropas francesas pelo Mosteiro da Batalha: espaços sagrados profanados, túmulos violados e vandalizados, paramentos e alfaia de culto roubados e destruídos, dependências incendiadas. O relato de Kinsey acusa o depauperamento da reduzida comunidade conventual, que, apesar da sua humilde condição, continuava a fazer por manter de pé e em bom funcionamento a secular casa que Lockart apud ibidem, p. vii-viii: Beckford escreveu a sua prosa de viagens como “um poeta, e dos grandes”; Recollections é então “distinto de qualquer livro de viagens em prosa alguma vez numa língua europeia”. 74 Apud Boyd Alexander, Life at Fonthill (1807-1822), p. 77. 73

O que foi efectivamente vivenciado por Beckford nos dois grandes mosteiros estremenhos é uma questão que ocupou já vários autores, desde Cyrus Redding até Boyd Alexander, passando por Rose Macaulay. De um modo geral, são unânimes em admitir que Recollections é um vasto repositório de informações correspondentes à experiência real de Beckford, alimentada por uma permanente ruminação dos tempos felizes vividos em Portugal. Prova-o uma afirmação da filha, Susan Euphemia, em carta a seu marido, de 28 de Julho de 1835: “não tenho realmente energia para escutá-lo [a Beckford] a discorrer sobre Alcobaça durante horas a fio”77. Justamente, porém, interrogaram-se os 75 76 77

William Morgan Kinsey, Portugal Illustrated, Londres, 1828, p. 420. Cf. nota 38. Apud Boyd Alexander, na introdução a William Beckford, Recollections…, p. xx.

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herdara. Sugestiva para Beckford terá sido também a gravura que ali se dava a conhecer de uma vista do Mosteiro, desde uma colina a noroeste da cerca conventual (fig. 11 do artigo anterior neste volume). É uma imagem preciosa por ser a única de quantas se conhecem que mostra as dependências conventuais, em parte demolidas, em parte profundamente alteradas, durante o restauro da segunda metade do séc. XIX. Nela se vê, entre muitas outras coisas (a que voltaremos), o dormitório dos professos, que fora incendiado pelos invasores, sem telhado, e a ruína do coruchéu da cegonha, fulminada por um raio à volta de 181875. Para um homem cosmopolita como Beckford que, além disso, tinha sido testemunha directa de vários acontecimentos no período revolucionário francês, a perspectiva de um mundo no ocaso da sua multissecular existência deve ter sido clara, logo no momento em que visitou a Batalha, a 8 e 9 de Junho de 1794. Eis um ingrediente fundamental, quase exótico e, sem dúvida, puramente romântico, da sua narrativa. Vamos agora considerá-la em face das fontes de que se terá servido para recordar os edifícios e a paisagem percorridos, não sendo, como vimos anteriormente, o diário de viagem uma delas, pois dele nada consta sobre a Batalha76.

mesmos autores acerca da fidedignidade da informação, quarenta anos volvidos sobre a passagem por Alcobaça e Batalha, a respeito de cujos mosteiros praticamente nada se contém no pequeno diário que deu origem ao livro. O próprio autor não foge a esta circunstância, quando anuncia, na abertura da obra: Ao examinar há tempos uns papéis, encontrei umas brevíssimas notas sobre esta visita. Convencendo-me de que talvez não fossem de todo indignas de serem desenvolvidas, invoquei os poderes da memória e surgiu então a série de recordações que agora submeto aos indulgentes leitores, que têm acolhido os meus anteriores escritos com mais apreço do que merecem78.

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Porém, é de suspeitar que as “brevíssimas notas”, publicadas por Boyd Alexander79, e “os poderes da memória” tivessem sido suficientes para originar um tipo de discurso que Rose Macaulay disse possuir “toda a frescura, poder, poesia e prazer da juventude”80. Relativamente à Batalha, é possível apurar claramente o contributo de outras fontes. Se James Murphy, em Plans, Elevations, Sections and Views of the Church of Batalha, publicou a memória gráfica do complexo conventual desaparecido sob a forma de uma planta do piso térreo81, William Beckford deixou-nos o mais vívido testemunho do uso do espaço correspondente, pela sua organicidade e riqueza de registo emotivo. Para tal, serviu-se obviamente da obra de Murphy, de que foi assinante. A planta não seria, no 78 William Beckford, Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha, Londres, 1835. 79 William Beckford, Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha, Londres, Centaur Press, 1972, p. xxiii-xxxii. 80 Apud Boyd Alexander, na introdução a William Beckford, Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha, p. x. 81 James Murphy, Plans, Elevations, Sections and Views of the Church of Batalha, Londres, 1792/1795. Por publicar ficou a planta, que fez parte do seu levantamento de 1789, do piso superior dos claustros, contida no manuscrito 260, fól. 76, da Society of Antiquaries of London.

* Beckford chegou à Batalha ao final da tarde do dia 8 de Junho de 1794, na companhia do Grão-Prior de Aviz, D. Manuel de Noronha e Menezes, tio do seu amigo D. Diogo de Menezes e igualmente amigo de Beckford, desde a primeira estadia em Portugal. Conforme reparou Boyd Alexander, o Prior de S. Vicente, D. Duarte da Encarnação, também íntimo de Beckford, está presente em Recollections mas não consta do diário senão em alguns dias do início e do final da viagem83.

Fig. 19 - Charles Landseer, vista da Batalha de sudoeste 82 Não sabemos da existência de nenhum exemplar desta obra na biblioteca de Beckford, que a poderia ter lido no original, uma vez que dominava a língua portuguesa. 83 Boyd Alexander, na introdução a William Beckford, Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha, p. xii.

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entanto, a única informação que havia de usar, nem tão-pouco seria esta a única obra de Murphy que excitaria a sua memória. Ainda em Plans, foi-lhe de utilidade crucial, como veremos oportunamente, a tradução de um excerto da História de S. Domingos de Frei Luís de Sousa ali contida82. Além de Plans, glosou também informação desse outro livro de Murphy, Travels in Portugal, publicado em 1795.

Faziam parte da comitiva alguns dignitários de Alcobaça, seguidos por Franchi, o Dr. Ehrhart, médico de Beckford, e Simon, o seu cozinheiro francês. A caravana era composta por várias carruagens e seus criados, catorze a quinze mulas de carga, bem como carroças e os cavalos de montar de Beckford. Ainda que por uma noite, nenhum dos circunstantes parecia disposto a dispensar qualquer luxo ou comodidade.

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“Um vale tranquilo e solitário, rodeado de colinas e arbustos” e “meia dúzia de cabanas, e não mais de meia dúzia, [que] espreitavam entre a densa folhagem”84 são as indicações, certamente muito exageradas, que Beckford dá da vila a par do mosteiro. Algo de muito diferente é-nos revelado por uma vista, desenhada três décadas mais tarde, por Charles Landseer (fig. 19), sensivelmente do ponto que corresponde à primeira abordagem visual de Beckford à Batalha. De facto, com a ideia de sublime quadra melhor a solidão dos campos, à maneira, diríamos, de Fonthill Abbey, pois continua o autor: “E bem acima desta superfície verde erguia-se a enorme igreja, em toda a sua imponência, com o soberbo conjunto de edifícios conventuais e os arcobotantes, pináculos e coruchéus lavrados, traçando no solo sombras negras que pareciam infindas, de tal modo se alongavam e espraiavam”85. Mais realista, prestando-se embora a interpretações apressadas, é a descrição da chegada ao destino: “Aqui e ali tremeluziam luzes em várias partes do edifício; mas um forte William Beckford, Recollections…, 1835, p. 66. Ibidem, p. 66. Compare-se o texto de James Murphy, Travels in Portugal, p. 32; apresentamos a tradução, a que voltaremos daqui em diante, de Castelo Branco Chaves em James Murphy, Viagens em Portugal, 1795, Livros Horizonte, 1998, p. 47: “O prazer da perspectiva aumentou com a inesperada visão que àquela hora me ofereceu o sol declinante, apresentando-nos as torres doiradas pela luz amortecida dos raios solares que sobre elas incidiam: era um aglomerado de espirais, ameias, botaréus e janelas onde havia sombras profundas. Juntava-se a isto a solidão siberiana do lugar e o venerável aspecto dos frades, de maneira que, no conjunto, se me ofereceu o espectáculo mais maravilhoso que até hoje me foi dado presenciar”. 84 85

O primeiro espaço conventual a que Beckford se refere é “uma sala grande e simples”88 onde se fizeram apresentações e conversas entre os religiosos mais proeminentes, orações e uma ceia. Infere-se que não estava presente toda a comunidade conventual que, aliás, teria já tido a sua ceia. É possível que a sala referida fosse a divisão da extremidade nascente do que actualmente designamos por Adega dos Frades, situada conve86 87 88

Ibidem, p. 66. Ibidem, p. 67. Ibidem, p. 68.

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clarão indicava a entrada principal, onde toda a comunidade se encontrava à nossa espera para nos receber”86. Ao cair da noite, não era possível avistar luzes no interior, através das altas janelas da igreja ou mesmo da Capela do Fundador. Essas luzes vinham, portanto, de aposentos situados no lado nascente do convento, de que hoje apenas podemos fazer uma ideia muito aproximativa. Depreende-se que a caravana tenha entrado na Batalha pela Rua Direita e flanqueado o mosteiro pelo lado sul, atravessando a praça do pelourinho para, de seguida, contornar as Capelas Imperfeitas e desembocar na praça reconfigurada, em meados do séc. XVI, com a ampliação do convento e a concomitante construção de uma fachada monumental que passou a dominar o espaço público. Ao fundo da praça, à direita, avistava-se a igreja velha, ligada por um muro com portão à fachada nascente do convento; aquém do muro, onde a fachada se abria num pórtico de três grandes arcos, perfazendo um total de 16 metros e meio de largura por mais de 9 metros de profundidade, situava-se a portaria. A entrada no convento era praticada apenas através de uma porta rasgada na parede sul, o que permite compreender as palavras de Beckford que se seguem: “Como o espaço diante da entrada era estreito, foi com alguma dificuldade que nos esgueirámos pelo labirinto de cestas, etc.” 87.

nientemente entre a clausura e o claustro da portaria89. A partir deste, acedia-se à hospedaria, no piso superior do desaparecido Claustro da Botica, que ficava a nascente do do noviciado (actual Claustro de D. Afonso V). Deste modo, era possível receber os visitantes mais ilustres com as comodidades devidas – incluindo o serviço de uma não demasiado distante cozinha –, sem perturbar os espaços reservados à clausura: a igreja, o capítulo, as galerias e o jardim do Claustro Real, o refeitório e o dormitório com a sua livraria. Entre esta “sala grande e simples” e a hospedaria, existia circulação directa, através da escadaria que ainda hoje dá acesso ao piso superior do Claustro de D. Afonso V. Por outro lado, a localização de charneira da sala, que cremos ser a mesma em que é servido o jantar do dia seguinte, abria a possibilidade de admitir os visitantes a partes notáveis do edifício, como a igreja, se assim se entendesse desejável. 126 | Pedro Redol

Após a ceia, os hóspedes retiraram-se para os seus quartos. É aqui que surge, porventura, uma primeira sugestão – bem dissimulada, aliás – de Murphy. Diz-nos Beckford: Não tinha sono e no entanto o meu quarto, agradável e recatado, bem me convidava ao repouso: paredes brancas e limpas reflectiam o axadrezado ondulante da ramagem e ouvia-se o murmúrio de um regato, atenuado pela distância. Sentado no recanto fundo de uma ampla janela, aberta de par em par, deixei que o ar balsâmico e o luar sereno me aquietassem o espírito atribulado. Um rouxinol solitário tomara posse de um loureiro, mesmo ao pé de mim, e de quando em quando emitia notas extasiantes90.

89 A parede que criava essa divisão foi demolida apenas no séc. XX como ilustram alguns registos fotográficos da extinta Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (cf. http://www.monumentos.pt/Monumentos/forms/002_C2.aspx?CoHa_2_C1). Uma fotografia da Casa Alvão, possivelmente da década de trinta de novecentos, mostra a porta que, em tempos, garantira a ligação ao claustro da portaria, ainda por entaipar [cf. Rui Borges Cunha (coord.), A Batalha Vista pela “Casa Alvão”, Batalha, Câmara Municipal da Batalha, 2005, p. 49]. 90 William Beckford, Recollections…, 1835, p. 71.

Foi aqui que pela primeira vez ouvi cantar um rouxinol. O pequeno cantor entoava os seus gorjeios plangentes todas as noites, sob um ramo que sombreava a janela da minha cela e toda a Natureza parecia escutar o seu cântico, à excepção da garça cujo piar incessante e estridente prejudicava as deleitosas meditações em que divagava o espírito91.

O rouxinol e o cenário em que aparece deixam lugar a dúvidas quanto à genuinidade da experiência de Beckford, não desmentida, porém, no que diz respeito ao vão cavado na parede espessa, onde porventura o acolhia um banco de pedra, nem no “murmúrio de um regato” – nada menos do que o rio Lena que corria dentro da cerca conventual. Tanto um autor como o outro estiveram, sem dúvida, instalados na hospedaria do mosteiro, num dos quartos designados com a letras D, E, F, ou G, que figuram na planta esboçada para o piso superior por Murphy (fig. 14 do artigo anterior, neste volume). Tanto quanto é possível saber, Beckford nunca viu esta planta. De resto, a segurança com que fala dos espaços conventuais que percorreu não pode ter resultado do simples estudo de desenhos publicados por Murphy, sendo antes um sinal claro de memória do espaço vivido. A Murphy tão-pouco se poderá negar o mérito de um precursor romântico, quando refere “as deleitosas meditações em que divagava o espírito”, a que Beckford oporá a confissão aberta de um “espírito atribulado”. Chegado um novo dia, Beckford é procurado no seu quarto pelo prior da Batalha que o conduz a “uma sala grande e sombria, onde se ouvia distintamente o cair de águas de uma fonte próxima”, da qual se diz, logo a seguir, que é “curiosamente abobadada”92. Trata-se certamente, como se viu, da mesma sala 91 92

James Murphy, Travels in Portugal, p. 49. William Beckford, Recollections…, 1835, p. 80.

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Recordemos agora a descrição de Murphy:

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em que fora recebido na véspera e que agora serve para tomar uma nova refeição, a coincidir talvez com o jantar conventual, uma das duas refeições diárias servidas à comunidade, que tinha lugar pelas 11 horas da manhã. Compreende-se, assim, que pudesse escutar a água que caía – então como hoje –, no lavatório do Claustro Real, bem como receber o “aroma das flores de laranjeira e de limoeiro”93, vindo do claustro da portaria, cujo espaço aberto vem descrito, na planta publicada por Murphy, como “pátio com laranjeiras”, ou do próprio jardim do Claustro Real, a cujas laranjeiras Beckford se refere mais adiante. O momento foi interrompido pelo sacristão que veio chamar o grupo para a missa, possivelmente de hora sexta (ao meio-dia), passando pelo refeitório, para se juntar – presumese – aos frades que então daí saíam, em procissão rumo à igreja: “avançámos em procissão pelas galerias, claustros e arcadas, todos construídos com notável mestria”94. Esta conjugação de circunstâncias lembra uma nota que Murphy registou na legenda da sua planta geral do Mosteiro: “W W – Alas [norte e nascente] do Claustro [real] por onde os Frades e os Noviços passam em Procissão do Coro para o Refeitório e vice-versa em acção de graças antes e depois do jantar”. O cruzamento de fontes levanta, no entanto, várias dificuldades de interpretação. Diz Beckford: Passámos pelo refeitório (…). Atravessando um pátio ajardinado (…), cruzámos uma porta esculpida que dava para um espaço aberto e irregular defronte da soberba fachada ocidental da enorme igreja95.

Desde logo, afigura-se-nos estranho o facto de a comunidade conventual sair da clausura, quando as procissões de acção de graças referidas decorriam entre o refeitório e o coro, pas93 94 95

Ibidem, p. 81. Ibidem, p. 81. Ibidem, p. 82.

A experiência da igreja, além da da Capela do Fundador, é aquela que Beckford regista com mais forte e, com certeza, sincera emoção, recordando, no tom poético que lhe é próprio, as cores dos vitrais nas superfícies do edifício e nos hábitos brancos dos frades, que “pareciam bordados com as mais brilhantes flores do paraíso”, o cântico austero e grandioso, a expressão e os gestos dos celebrantes que se caracterizavam por “um sentimento de profunda fé”. Em Beckford, a vivência da arquitectura faz-se declaradamente por todos os canais sensíveis. 96 97 98

Society of Antiquarians of London, Sketches of Batalha, ms. 260, fól. 67 e 68. James Murphy, Travels in Portugal, plate III, inserido entre p. 37 e 38. Instituto Geográfico Português, Cartoteca, CA 436.

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sando naturalmente pela porta que do claustro dá para a igreja. Tratar-se-ia de uma excepção devida à presença de tão ilustre visitante? Por outro lado, como era possível atravessar o pátio do claustro depois de ter ido ao refeitório, tendo em conta que a “porta esculpida”, única comunicação do claustro com o exterior, fica na mesma galeria que a porta do refeitório? Acresce uma outra dificuldade: tanto a planta que Murphy publicou como os desenhos feitos no local que lhe deram origem96 mostram que a porta a que nos referimos (e que efectivamente existe) estava entaipada, sendo mesmo ignorada no fól. 67 do caderno de campo. A procissão que o próprio Murphy representou a dirigir-se ao adro da igreja – e que não é do convento (fig. 20)97 – ignora igualmente a porta, representando um contraforte no sítio onde encostava o muro da cerca. Uma vista da fachada poente do Mosteiro, contida no Mappa Topographico de 1793 (fig. 8 do artigo anterior, neste volume)98, mostra o muro da cerca e, para nossa grande surpresa, a porta que Beckford refere, aparentemente em funcionamento. Em conclusão, não dispomos de um conjunto de dados que nos permita saber se a procissão em que participou entrou na igreja pelo grande portal ocidental ou não.

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Fig. 20 - James Murphy, procissão em frente ao Mosteiro da Batalha, 1795

Após a visita à Capela do Fundador, de que tratámos oportunamente, William Beckford é instado a regressar a Alcobaça pelos que o acompanham, passando ao Claustro Real, de que diz ser “um privilégio respirar o delicioso ar ameno que sopra sobre as ervas aromáticas e flores que enchem os canteiros no centro”99. Ao passar pelo capítulo regista ainda que “esta imponente sala, embora apropriada para local de reunião de vivos, é também morada consagrada aos mortos”100, referindose aos túmulos de D. Afonso V e de seu neto, o príncipe D. 99 100

William Beckford, Recollections…, 1835, p. 88-89; tradução nossa. Ibidem, p. 89.

Por volta da uma hora da tarde, do dia 9 de Junho de 1794, regressa Beckford a Alcobaça com a sua caravana: “o nosso exército de serviçais, as mulas, os cavalos e as carruagens, tudo estava a postos, aguardando-nos no mesmo portal por onde na noite anterior tínhamos entrado” 101.

Fig. 21 - Os túmulos de D. Afonso V e do príncipe D. Afonso, na sala capitular da Batalha

* Beckford faz eco do que, segundo Murphy, era voz corrente em relação aos monges de Alcobaça, isto é, que os seus privilégios eram excessivos e a sua vida pouco exemplar, “partindo do princípio de que a riqueza incita mais a recreios do que à oração”102. Porém, durante a sua bem mais longa estadia no Mosteiro de Alcobaça (três semanas em vez de dois dias), Mur101 102

Ibidem, p. 90. James Murphy, Travels in Portugal, p. 100.

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Afonso. Uma pálida imagem deste dispositivo funerário é dada pelo arranjo posterior à invasão de Massena, levado a cabo ainda pelos religiosos da Batalha, que nos chegou através de um antigo postal ilustrado (fig. 21).

phy diz ter observado “a maior temperança e decoro”103 entre os monges. A imagem colorida, muitas vezes caricatural, que Beckford nos oferece do comportamento dos religiosos pode conter, no entanto, um fundo de verdade, captado pelo seu olhar atento às relações sociais e, neste caso, a contrastes acentuados na maneira de viver das duas fundações régias vizinhas. Ainda que resvalando pontualmente para o anedótico, não deixa de observar, nem de, à sua própria maneira – displicente e bem-humorada –, registar reacções que são, afinal, simplesmente humanas, como aquando da chegada à Batalha:

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Enquanto as nossas mulas eram descarregadas, e das cestas a deitar por fora rolavam presuntos, pastéis e chouriços, achei que estes pobres frades nos olhavam com uma certa inveja. Os meus companheiros, mais afortunados – verdadeiros primogénitos da opulenta Madre Igreja, e não os filhos segundos da Ordem da Mortificação –, mal conseguiam disfarçar sorrisos escarninhos de consciente superioridade. Um contraste tão acentuado muito me divertiu.104

A estrutura da narrativa beckfordiana possui um carácter – apraz-nos dizer – polifónico. O autor escreve a várias vozes, deixando a ressoar temas de fundo, enquanto vai tratando outros, que, aqui e além, eventualmente retoma, numa variedade de registos e timbres que vão do íntimo ao burlesco, passando pelo sublime. Maria Laura Bettencourt Pires chamou a atenção para o uso que Beckford faz da técnica narrativa da história intercalada ou fabula in fabula, com o objectivo de desviar e refrescar a atenção do leitor através da inserção de um episódio curto que não é indispensável ao relato principal105. Nesta categoria, entra a história do frade embriagado que “animou”

Ibidem, p. 100. William Beckford, Recollections…, 1835, p. 66-67. 105 Maria Laura Bettencourt Pires, “Imagens de Alcobaça e Batalha na obra de William Beckford”, in Ensaios: Notas e Reflexões, p. 168. 103 104

Numa das suas longas pausas, quando o próprio silêncio, realçado pelo contraste, parecia tornar-se ainda mais denso, chegou-me ao ouvido um som bem diferente – o som de uma voz forte mas melancólica ecoando pelas alamedas cobertas de um vasto jardim [que fazia parte da cerca conventual], pronunciando distintamente estas palavras estarrecedoras: “Castigo de Deus! Castigo de Deus! Temei a ira de um Deus ofendido! Ai de Portugal! Ai de nós! Ai de nós!”106

Era, como o prior explicaria a Beckford, quando o foi buscar à hospedaria na manhã seguinte, o parente enlouquecido da família dos Távoras, proscrita e infamemente exterminada pelo Marquês de Pombal. Convicto da injustiça da expulsão jesuíta, via nos horrores a que assistira a causa daqueles que, recentemente, a Revolução Francesa prodigalizara.

106

William Beckford, Recollections…, 1835, p. 71-72.

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a ceia oferecida na Batalha com recordações dos tempos gloriosos de D. João V. Tendo em mente a contenção que Beckford reconhece aos conventuais desta casa, o episódio apresenta-se, à partida, como uma nota dissonante. Ele introduz, no entanto, o tema – que é de fundo – desta vinda à Batalha: o fim irremediável de um mundo, presságio de outras perdas, oposto, em jeito de contraponto musical, à amenidade e à harmonia perfeita que se respira em cada recanto do Mosteiro. De facto, foi com D. José, melhor dizendo, com Pombal, que se antecipou o fim de tantas comunidades conventuais, sobrevinda inapelavelmente em 1834, e que se restringiram severamente os seus privilégios. A invocação da história recente de Portugal foi motivada certamente pelo convívio com os Marialvas e facilitada pelo conhecimento da língua portuguesa. Após a convulsão do frade, retiram-se os convivas para os seus aposentos, instalando-se o silêncio, mas não a tranquilidade, que o canto do rouxinol tão-pouco convoca:

O espectro do horror e da loucura estará presente, a partir de então, sendo recordado, uma e outra vez, quando mais não fosse pela sua imponderabilidade: Um glorioso sol matinal brilhava em todo o seu esplendor quando, ao acordar, corri para a varanda [da hospedaria] com o intuito de ver os jardins e os bosques e de perguntar a mim próprio, vezes sem conta, se a figura que vira e a voz que escutara eram reais ou imaginárias.107

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[À refeição da manhã, os priores e os monges de Alcobaça] acolheram-me com olhares que revelavam a maior simpatia; mas nem uma palavra foi proferida sobre a ocorrência da noite anterior – embora não tenha a menor dúvida de que estavam perfeitamente cientes do caso. Não posso dizer que a refeição tenha sido animada ou alegre. Uma melancolia misteriosa parecia pairar sobre nós e impregnar a própria atmosfera – que todavia estava esplêndida.108

De saída para Alcobaça, Beckford ainda regista: “Depois de uma grande troca de saudações, partimos. E se é verdade o que penso, a voz fatal ressoava aos ouvidos de todos nós – pelo menos aos meus”109. A premonição de um futuro trágico para o convento da Batalha, numa situação de despedida, própria de diário íntimo, sugere uma separação irremediável. Eis o primeiro sinal de que o regresso de Beckford, a cavalo, no dia 10 de Junho, foi com certeza fruto da sua imaginação. No entanto, as histórias que sobre essa incursão conta e, em particular, uma delas, entretecem-se com a narrativa do dia anterior. *

107 108 109

Ibidem, 1835, p. 74-75. Ibidem, 1835, p. 80-81. Ibidem, 1835, p. 90-91.

Foi-me dado verificar neste lugar a ternura paternal que os poetas e os naturalistas atribuem às cegonhas. Um destes animais, com a sua afectuosa companheira, residiu durante muito tempo num grande ninho curiosamente construído no cimo da torre da igreja.110

De facto, enquanto, no claustro, teve lugar a procissão em que Beckford tomara parte, Rapazinhos de tez morena, cabelo rapado e longas túnicas brancas dedicavam-se afanosamente a sacudir toda e qualquer partícula de pó. Uma cegonha e um flamingo pareciam fazerlhes companhia bem amigável, seguindo-os por todo o lado, o que muito me fez lembrar o Egipto e os ritos de Ísis.111

É deixado, pois, o mote para uma história que se há-de relatar no dia de pretenso regresso, esse dia 10 de Junho em que provavelmente, já então, como quarenta anos volvidos sobre a data, Beckford sonha ser levado de volta à Batalha, através da charneca, pelo seu cavalo árabe que o introduz, em seguida, – diz – numa “mata de carvalhos e pinheiros, por onde desci até à beira do rio, que tanto me apetecia explorar”112. O verbo no passado revela, sem dúvida, como tantas outras pistas, o desejo de convívio íntimo com uma realidade que fora forçado a partilhar apressadamente, no dia anterior, com os seus companheiros de 110 111 112

James Murphy, Travels in Portugal, p. 148. William Beckford, Recollections…, 1835, p. 81-82. Ibidem, p. 123.

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Depreende-se que o relato da única e curta visita que efectivamente terá feito ao Mosteiro da Batalha não tenha permitido a Beckford exprimir completamente as emoções e sentimentos que ali vivera. Para o fazer, nada melhor do que a fantasia, ajudada por algumas lembranças colhidas em livros. Uma vez mais, parece ter sido Murphy a dar a sugestão para outra história que se desenvolve em torno de uma cegonha:

viagem. O único curso de água a que poderia estar a referir-se seria a ribeira da Calvaria. Começam aqui as incongruências denunciadoras de uma composição em que se fundem a memória pessoal, elementos de outras fontes e a própria fantasia. A vila da Batalha eclipsa-se para dar lugar a uma visão onírica do mosteiro: Mesmo diante de mim, ao fundo de uma série de outeiros, alguns sem vegetação e outros cobertos de urze em flor, mas desprovidos de habitantes, homens ou animais, erguia-se o altivo e majestoso Mosteiro da Batalha, rodeado pela magnífica mole de edifícios. 113

Reaparecem as margens de um hipotético rio,

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(…) tão calmo e transparente que lamentei mil vezes não ver reflectido na sua superfície algo de mais agradável do que uma longa fila de frades fantasmagóricos, munidos de canas de pesca espetadas nos seus hábitos malhados, aguardando com uma carantonha pálida e resignada que os peixes mordessem o isco.114

O tom caricatural desta cena é, já por si, suspeito em face da dignidade reconhecida pelo próprio autor à comunidade batalhina. Sabemos, pela mesma via que Beckford, isto é, por Frei Luís de Sousa (no seu caso, com certeza na tradução de Murphy115), que, entre as actividades escolhidas para alívio da clausura, os frades da Batalha pescavam no rio Lena que passava dentro da cerca conventual. A falta de veracidade do relato é confirmada, pois, pelo facto de se referir uma actividade que tinha lugar no interior da cerca que, por definição, faz parte da clausura, inacessível a um ocasional visitante. Interpelado, na ficção, pelo prior da Batalha, a que se devia a sua visita, respondeu Beckford: “Ao desejo sincero (…) 113 114 115

Ibidem, p. 125-126. Ibidem, p. 126-127. James Murphy, Plans, Elevations, Sections and Views…, p. 47.

No interior do Mosteiro, Beckford volta a situar uma refeição na sala onde antes fora servido. É a partir daqui que a história de uma cegonha e uma criança, preparada no capítulo anterior, se desenvolve, transformando-se no momento mais pungente desta vinda à Batalha, não sem antes fazer referência ao “gracioso coruchéu” avistado das proximidades daquela sala, que mais não é do que a “torre da igreja” onde, segundo Murphy, vivia um casal de cegonhas. Este cenário é dominado pela luz crepuscular, a presença silenciosa dos noviços que se aplicam a limpar o claustro e as “vozes profundas e solenes [dos frades], vindas do grande portal do transepto mais próximo do coro”118. Lá estava o flamingo, mas não dei pela cegonha – não tardaria porém a saber o porquê da sua falta; ao subir a escadaria que dá para a sala do capítulo, descobri o seu corpo, esticado no chão, hirto e sem vida. Um dos rapazes estava inclinado sobre William Beckford, Recollections…, 1835, p. 129-130. Ibidem, p. 135-136. 118 James Murphy, Plans, Elevations, Sections and Views…, p. 133. Esta porta, não sendo do transepto, é-lhe adjacente. Se dúvidas subsistissem em relação à sala onde Beckford foi realmente recebido na Batalha, elas dissipar-se-iam com estas indicações, que revelam uma memória do espaço conventual. 116

117

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não só de lhe testemunhar mais uma vez o meu profundo respeito, como de visitar o mausoléu de D. Manuel, que na pressa de ontem negligenciei completamente”116. Insistindo na nomenclatura de Frei Luís de Sousa, repetida por Murphy, referia-se efectivamente ao panteão de D. Duarte, mais conhecido pelo nome de Capelas Imperfeitas. Transparece na sua descrição, já no final da jornada, a memória que delas Beckford possuía por as ter visitado, sem dúvida, no dia anterior: “atravessámos uma zona cheia de ervas daninhas – esta parte do conjunto conventual estava muito negligenciada – e entrámos numa área sombria rodeada de um conjunto de capelas sem tecto e inacabadas”117.

ela numa atitude que exprimia o mais profundo desgosto. O jovem, ao ver que eu me compadecia dele, murmurou numa voz surda e desalentada: – “esta pobre ave seguiu-me todo o caminho desde a minha casa no Alentejo – muito longe da Batalha. Era a alegria da minha vida. A minha falecida mãe estimava-a muito. Nunca mais verei aqui na Terra esta nossa querida ave de estimação, nem ouvirei os seus alegres gritos chamando-me todas as manhãs. Nunca mais comerá migalhas da minha mão, nunca mais seguirá fielmente a meu lado. Agora não tenho ninguém que goste de mim neste grande convento!” – E rompeu num pranto amargo, e foi um alívio para o meu coração – um grande alívio – partilhar a sua dor119.

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Fig. 22 - Andrea Casali, William Beckford aos seis anos

Desde a sua torre de Lansdown, aos 74 anos, Beckford revisita a Batalha e, com ela, a própria vida, regressando à infância, à comunhão vital com a natureza e, em particular, com os 119

William Beckford, Recollections…, 1835, p. 133-135.

Lançando-me sobre terra firme, deixei que o meu olhar se embebesse no curso das águas, perdido e absorto no filão de recordações interessantes e todavia melancólicas que tanto se prestavam a ser reavivadas por tudo o que me sucedera desde que pela primeira vez entrei neste belo reino de Portugal. Pensei (tarde demais, para mal dos meus pecados!) nas ofertas que desprezara com tanta leviandade, nas oportunidades que poderiam ter conduzido a resultados felizes e estancado a corrente de males se agarradas com mão firme. Desde essa época, o germe da destruição que podia então ter sido calcado transformou-se numa árvore carregada de frutos envenenados, escurecendo a luz sadia e nutrindo-se, através das suas inúmeras e variadas raízes, das profundezas mais abissais do inferno.120

Fig. 23 - John Doyle, William Beckford a cavalo aos oitenta e dois anos

120

Ibidem, p. 128-129.

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animais, que uma imagem dos primeiros anos tanto evoca: confiando a guarda das crias ao pequeno William, sobe um pássaro para a sua mão inocente (fig. 22). Tão etérea e passageira felicidade é lembrada ainda no sonho de regresso à Batalha, no momento em que o cavalo pára onde o rio “galgava uma saliência rochosa e se transformava num caudal de espuma”:

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Fig. 1 - John Buckler, Vista da Mansão de Fonthill do lado norte, c. 1806. The Wiltshire Archaeological and Natural History Society, Devizes. Fig. 2 - Vista aérea da Grande Chartreuse. Fig. 3 - William Beckford, planta da casa da Rua da Cova da Moura, em Lisboa, 29 de Dezembro de 1793. Bodleian Library, Oxford. Fig. 4 - J. M. W. Turner, Vista de Fonthill Abbey em perspectiva de sudoeste, 1799. Bolton Museum and Art Gallery. Fig. 5 - James Murphy, “O Alçado Sul do Mausoléu de D. João I na Batalha, Mosteiro da Batalha”, publicado em Plans, Elevations, Sections and Views of the Church of Batalha, Londres, 1792/1795. Fig. 6 - John Rutter, “Planta do Piso Principal” de Fonthill Abbey, publicada em Delineations of Fonthill and its Abbey, Londres, 1823, grav. 2. Fig. 7 - John Rutter, “Vista da Fachada Sul” de Fonthill Abbey, publicada em Delineations of Fonthill and its Abbey, Londres, 1823, grav. 12. Fig. 8 - John Rutter, “Vista das Fachadas Ocidental e Norte” de Fonthill Abbey, publicada em Delineations of Fonthill and its Abbey, Londres, 1823, grav. 11. Fig. 9 - John Rutter, “Interior da Galeria de S. Miguel”, Fonthill Abbey, publicada em Delineations of Fonthill and its Abbey, Londres, 1823, grav. 1. Fig. 10 - John Buckler, “As Ruínas de Fonthill Abbey”. Litografia, colecção de Sydney Blackmore. Fig. 11 - James Wyatt, esboço do alçado sul de Fonthill Abbey, c. 1797. Royal Institute of British Architects, Londres. Fig. 12 - J. M. W. Turner, Perspectiva de Fonthill Abbey de noroeste, c. 1798. Yale Center for British Art, Paul Mellon Collection. Fig. 13 - James Wyatt, esboço do alçado ocidental de Fonthill Abbey, c. 1798. Royal Institute of British Architects, Londres. Fig. 14 - James Wyatt, esboço de perspectiva de Fonthill Abbey de noroeste, c. 1799. Royal Institute of British Architects, Londres.

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REGISTO DAS IMAGENS

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Fig. 15 - J. M. W. Turner, Fonthill Abbey em construção, c. 1799. Tate Britain. Londres. Fig. 16 - James Murphy, “Projecto para completar o Mausoléu de D. Manuel”, publicado em Plans, Elevations, Sections and Views of the Church of Batalha, Londres, 1792/1795. Fig. 17 - John Rutter, “Corte do Grande Salão, Vestíbulos, etc.”, Fonthill Abbey, publicada em Delineations of Fonthill and its Abbey, Londres, 1823, grav. 9. Fig. 18 - Edward Goodridge, Torre de Lansdown, Bath. Fotografia de Paulo Sérgio Rodrigues dos Santos. Fig. 19 - Charles Landseer, vista da Batalha de sudoeste, 1825. O álbum que contém este desenho pertence ao Instituto Moreira Salles e foi publicado por Leslie Bethell (org.), Charles Landseer, Desenhos e Aguarelas de Portugal e do Brasil, 1825-1826, São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2010. Fig. 20 - James Murphy, “Uma Vista da Igreja da Batalha”, publicada em Travels in Portugal, Londres, 1795, grav. III. Fig. 21 - Túmulos de D. Afonso V e da mulher, à direita, e do príncipe D. Afonso, à esquerda, na sala capitular da Batalha, tal como aí foram reinstalados após 1810 e anteriormente à trasladação dos respectivos restos mortais para a Capela do Fundador, em 1901. Fig. 22 - Andrea Casali, William Beckford, c. 1786. The Hamilton Collection, Lennoxlove, East Lothian. Fig. 23 - John Doyle, William Beckford a Cavalo, 1822. Litografia, colecção particular.

ALDRICH, Megan, “William Beckford’s Abbey at Fonthill: from the picturesque to the sublime”, in William Beckford. 1760-1844: An Eye for the Magnificent (ed. Derek E. Ostergard), New Haven/Londres, Yale University Press, 2002, p. 116-135 ALEXANDER, Boyd, Life at Fonthill (1807-1822), Londres, Rupert HartDavis, 1957 IDEM, England’s Wealthiest Son, Londres, Centaur Press, 1962 IDEM, “Fonthill, Wiltshire, II, the abbey and its creator”, in Country Life (Dez. 1966), p. 1430-1434 AAVV, William Beckford e Portugal. A Viagem de uma Paixão, Lisboa, Instituto do Património Cultural, 1987 BECKFORD, William, Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha, Londres, Richard Bentley, 1835 IDEM, Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha (edição prefaciada por Boyd Alexander, contendo o diário de viagem), Londres, Centaur Press, 1972 IDEM, Alcobaça e Batalha – Recordações de Viagem (tradução, prefácio e notas de Iva Delgado e Frederico Rosa), Lisboa, Veja, 1997 BOMBELLES, Marc de, Journal d’un Ambassadeur de France au Portugal, 17861788 (edição de Roger Kann), Paris, Presses Universitaires de France, 1979 BRITTON, John, Graphical and Literary Illustrations of Fonthill Abbey, Londres, 1823 BURKE, Edmund, A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful, Londres, 1756 CUNHA, Rui Borges (coord.), A Batalha Vista pela “Casa Alvão”, Batalha, Câmara Municipal da Batalha, 2005 DIAS, Pedro, História da Arte em Portugal. 4 - O Gótico, Lisboa, Publicações Alfa, 1986

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Nasceu em Tomar, em 1965. É licenciado em História - Variante de História da Arte e mestre em Arte, Património e Restauro. Especializou-se no estudo e conservação de vitrais antigos, tendo realizado, nesse âmbito, estágios em Espanha, Inglaterra e Alemanha. Técnico superior do Mosteiro da Batalha desde 1987, interrompeu estas funções para exercer as de director do Convento de Cristo, em Tomar, durante 3 anos, e de director do Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra, durante outros 3 anos. É também professor auxiliar convidado da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e presidente do Comité Português do Corpus Vitrearum. Proferiu numerosas conferências em Portugal, Inglaterra, Bélgica, França e Itália. Publicou 26 artigos sobre história, conservação, restauro e gestão do património arquitectónico e museológico, com particular relevo para o vitral. É autor do livro O Mosteiro da Batalha e o Vitral em Portugal nos Séculos XV e XVI, Batalha, Câmara Municipal da Batalha, 2003, sendo editor e co-autor do livro Pinturas da Charola de Tomar. Lisboa: Instituto Português de Conservação e Restauro, 2005, e co-autor de Mosteiro da Batalha / Monastery of Batalha, Londres, Scala Publishers, 2007.

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Colecção II Série 1 – As destruições provocadas pelas Invasões Francesas em Leiria, Ricardo Charters d'Azevedo 2 – Monges e Camponeses – O Domínio Cisterciense de Alcobaça nos séculos XVIII e XIX, António Valério Maduro 3 – A morte do Barão de Porto de Mós, Ricardo Charters d'Azevedo 4 – Pombal Medieval e Quinhentista – Documentos da sua História, Saul António Gomes 5 – Batalha. Viagem a um Mosteiro desaparecido com James Murphy e William Beckford, Pedro Redol

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