Beber é cultura?

Share Embed


Descrição do Produto

Leituras / Readings

Saúde Mental Mental Health

Beber é Cultura? Drinking Is Culture?

Resumo / Abstract Aqui ou ali alguém cita outrem para assegurar “beber é cultura” A declaração “beber é cultura” surge como afirmação que

como se beber fosse um acto idêntico a ler um livro, ver uma

procura elevar o consumo das bebidas alcoólicas a um nível

peça de teatro, assistir a um espectáculo musical ou participar

superior, erigido a signo de status cultural. Reflectir sobre a

numa tourada.

finalidade, as circunstâncias e os mecanismos que levam

Por afinidade com a declaração “beber é cultura” também

à generalização da associação do consumo de bebidas

se pode afirmar “comer é cultura”, o que faz ascender a um

alcoólicas à cultura é o propósito do presente trabalho.

patamar superior a procura de um cozido à portuguesa no norte do pais, uma carne à alentejana no sul, uma paella em

Palavras-chave: álcool, cultura, sociedade industrial, so-

Espanha ou um blanquette de veau em França.

ciedade de consumo.

Mas esta subversão do sentido – e do objecto – do comer só é possível porque o seu objectivo fundamental se encontra sa-

The statement “is drinking culture” emerges as an affirma-

tisfeito. Revendo-se a hierarquia de necessidades de Maslow,

tion seeking to raise consumption of alcoholic beverages at

expressas numa estrutura piramidal, vemos que na sua base

a higher level, erected the sign of cultural status. Reflecting

estão as necessidades fisiológicas mais básicas – alimentação,

on the purpose, conditions and mechanisms that lead to

sono, repouso, abrigo, etc. – imprescindíveis à sobrevivência

the generalization of the association of alcohol consumption

do individuo e à preservação da espécie, e apenas quando

to culture is the purpose of this work.

estas necessidades estão satisfeitas se abrem as vias que possibilitam ascender às preocupações seguintes. De facto, um

Key-words: alcohol, culture, industrial society, consumer

esfomeado dificilmente estará preocupado em experimentar a

society.

cozinha gourmet ou viajar até à patagónia para degustar num mítico três estrelas Michelin. Numa concepção operacional, a noção de cultura há muito se desligou da sua raiz orgânica para se situar na superestrutura das produções da mente. Crenças, costumes, ideias e valores, são algumas das expressões culturais que caracterizam e dis-

Aníbal Fonte Médico Psiquiatra

tinguem os grupos sociais. Nesse âmbito, a forma encontrada por cada grupo social para escolher, seleccionar e cozinhar os alimentos, alterar-lhes sabores, aromas, consistências, dar-lhes

Director do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da Unidade Local de Saúde do Alto Minho. Hospital de Santa Luzia, Viana do Castelo. Docente Universitário email: [email protected]

34

forma, adicionar-lhes ingredientes ou retirar-lhes componentes, não é meramente casual ou redutível a circunstâncias fortuitas. De facto, entre a comida kishke judaica, o tabu da carne de

Leituras / Readings

Volume XII Nº1 Janeiro/Fevereiro 2010

porco para os muçulmanos ou as sardinhas assadas numa

levasse à exclusão de algum tipo importante de alimento. No

noite de S. João em Matosinhos há, mais do que diferenças,

mesmo sentido, seria risível que alguém se lembrasse de dizer

um elo comum que lhe é impresso pelo significado humano

“comer (queijo) é cultura” (ainda que se refira a uma das 500

da cultura. Nesse sentido, comer é participar (do lat. parti-

variedades de queijo francês) ou “comer (weisswurst) é cultura”

cipare ‘tomar parte em’) numa função social, é partilhar (do

(por muito amada que fosse a salsicha bávara).

lat. particula ‘parcela’ + suf. -ar) com os demais um acto de

Mas, na frase “beber é cultura” há ainda uma outra mensagem

coesão do sistema de relações sociais. Mas é apenas pelo

implícita, subliminar: ao associar beber à cultura os que não

seu significado simbólico que comer participa na cultura; em

partilham desse consumo são tidos por excluídos da cultura,

si mesmo, comer é apenas comer, sem adjectivos; uma res-

uma espécie de novos bárbaros, tal como Heródoto fazia com

posta simples a uma necessidade básica do organismo, o que

os que não participavam da cultura grega.

não exclui duas premissas, a conservação do organismo pela

Mas o que dizer dos que conhecem e apreciam um vinho medi-

exclusão dos alimentos nocivos e a adequação dos alimen-

terrânico ou dos que são capazes de distinguir as mais de cinco

tos ao gosto dos indivíduos. No primeiro caso, tentativas de

mil marcas de cerveja alemã? Que são os verdadeiros príncipes

ensaio e erro prosseguidas ao longo de milénios conduziram

da cultura? Ou cultura deixou de ser um constructo definível

os organismos vivos a seleccionarem as substâncias com

para se confundir com saber? Ou, ainda, com fruição?

qualidade de alimento e a transmitirem esses conhecimentos

Beber, tal como comer, é um acto que se esgota em si mesmo,

aos descendentes. No segundo caso, harmonizar os alimentos

consumido o seu objecto, atingido o seu objectivo; já a cultura

com o paladar tornando-o reconhecido pelo cérebro como

é gerada e vivida na partilha e é apenas nesse contexto que o

estímulo agradável conduziu a que o ser humano procurasse

beber (tal como o comer) pode ser investido de acto cultural,

reproduzir e intensificar esses momentos de prazer.

fora do qual é apenas ficção cultural.

À dimensão do comer como fonte de prazer (para além e

Longe da Europa, nos Andes a população autóctone masca

independente da função de nutrição) correspondeu a determi-

ritualmente folhas de coca, a “folha sagrada dos (indígenas)

nação do hedonismo em erigir o prazer como bem supremo,

aymará”, como anunciou pela TV, no discurso de encerramento

finalidade e fundamento da vida humana. Mas esta posição

da VI Cimeira Presidencial da Alternativa Bolivariana (2008), o

filosófica-moral recriada na contemporaneidade do “mundo

presidente da Venezuela, Hugo Chaves, enquanto mascava

líquido moderno” (como Z. Bauman designa a nossa sociedade

algumas folhas de coca recebidas directamente das mãos de

actual ) deixa a cada sujeito a tarefa de ser a sua própria me-

um outro presidente, Evo Morales, para exclamar: “Isto sim

dida ou não fosse o prazer um fenómeno subjectivo realizado

é coca, é tradicional”. Para estes povos as folhas de coca

na própria intimidade do sujeito, sem outra experiência que

comungam das mesmas relações primordiais congregadas

não seja a sua.

pelas bebidas fermentadas nos povos europeus. Ambas fazem

Retomando a frase “beber é cultura” na sua aparente simpli-

parte dos ritos tradicionais, incluindo a participação nos actos

cidade (ou ingenuidade?) os sujeitos que a empregam elidem

religiosos. Então, porquê glorificar-se o consumo de vinho e

um terceiro termo – “vinho” – no pressuposto de que é natural

diabolizar-se o das folhas de coca? Pelo perigo? Se um permite

referirem-se a ele num país em que predomina a cultura (no

a extracção da cocaína o outro permite a obtenção de bebidas

sentido do verbo lat. colere ‘acto ou efeito de cultivar o campo’)

destiladas. Onde estão as razões para se elevar um ao mito de

vitivinícola, embora se possa imaginar que noutras regiões

cultura e excluir-se o outro? Ambos só existem como cultura

a palavra subentendida possa ser cerveja, whisky ou outra

dentro dos espaços mágicos, simbólicos, das sociedades que

qualquer bebida alcoólica.

os inscreveram. Fora desses espaços são apenas substâncias

Com esta correcção a elocução “beber é cultura” assume a

com acção psicotrópica, substancias que inebriam, que se

sua verdadeira extensão, que se clarifica ao circunscrever-se,

consomem no fruir.

excluindo do seu campo as restantes bebidas, designada-

Como foi notado por Adorno & Horkheimer, durante o último

mente a água. Desta forma, a designação beber deixa de ter

século afirmou-se uma nova ordem na vida social assente na

equivalência com a palavra comer e nem as duas frases são

imposição programada das necessidades humanas. Nesta

equiparáveis, pois não é crível que a exaltação da comida

ordem, cunhada pelos autores de “indústria cultural”, cada

35

Leituras / Readings

sujeito encontra-se encerrado numa espécie de ecrã onde são

(e madrugadas…) de consumo nas discotecas e festas fre-

recepcionadas mensagens que o impelem a comportamentos

quentadas por jovens e adolescentes, muitas vezes imberbes,

condicionados repetidos pela massa de sujeitos, numa aparen-

surgem como reflexo afectado de uma cultura jovem urbana ,

te ilusão de conservação das liberdades individuais de decisão

mas os objectivos são comuns: inscrevem-se no cumprimento

e acção. Trata-se de uma estratégia consertada segundo os

da estratégia de manipulação e obscurecimento da percepção

princípios da indústria, na qual todos os meios se harmonizam

da realidade, fabricadora de ideais de necessidades incessan-

para interagirem reciprocamente com o fim de formarem con-

temente renovados e incessantemente consumidos.

sumidores acríticos da mercadoria cultural. A cultura deixa de

A outro nível e em aparente contraponto com o que parece ser

ser um espaço que se completa com a integração-partilha do

a utilização do álcool como signo de rebelião, mas partilhando

sujeito e que, reciprocamente, só existe para este quando se

das mesmas fantasias de afirmação identitária (os consumi-

inclui nesse espaço (veja-se o significado simbólico da exco-

dores são hierarquizados, estruturados em targets), surge o

munhão), para ser um objecto-produto de consumo.

álcool como signo de distinção (fashion). Neste contexto, a

Na estratégia da indústria cultural a produção dos bens cultu-

asserção “beber é cultura” vale para qualquer bebida (alcoó-

rais implica a acção de dispositivos tecnológicos (mass media)

lica)? Ou, só é valido para um whisky James Martin’s malt 30

que possam assegurar a uniformidade estética da mercadoria

years old em contraponto a um Johnnie Walker Red Label? E

cultural – a padronização não só é quantitativa como qualita-

se em vez de um vinho alentejano de bom preço for um verde

tiva, servindo-se de estereótipos para impor a mercadoria ao

carrascão vendido nas tascas tradicionais de ramo ao pé da

espírito do publico. Em simultâneo, o discurso tecnicista sobre

porta (que, de facto, faziam parte da organização material e

o controlo da produção, reflecte a função da subordinação

social de espaços culturais definidos)?

do produto ao primado imediato e confesso de valorização

Esvaziado do mito, expurgado do valor de cultura, o significante

do capital. Por sua vez, nesta ordem o indivíduo não é sujeito

é reificado na coisa-em-si, uma mercadoria que se distingue

mas objecto, compelido a satisfações compensatórias, à

por proporcionar ao consumidor o prazer da fruição de uma

dependência, ao status quo, submerso numa malha de mer-

substância psicoactiva.

cadorias rigidamente classificadas que se dirigem ao universo

Por último, o emprego da forma verbal “é” surge como um

de consumidores estratificados em categorias hierarquizadas

alçapão. O tom forte e breve, sólido como uma pancada, emer-

segundo um ideal de posição e ascensão social .

ge pleno e impositivo a estabelecer uma relação directa entre

É no discurso da indústria cultural que se inscreve a frase

beber e cultura. Sem espaço para a contra-argumentação,

“beber é cultura”. Fazer crer que beber um Porto é partilhar da

mergulhar neste juízo é tomar como verdade desejos e expec-

cultura das feitoria inglesas de Vila Nova de Gaia ou da socieda-

tativas. No final, os produtores agro-industriais das bebidas

de snobe de Inglaterra é tão mítico como fazer crer que beber

alcoólicas tiram os seus proventos mas os consumidores não

um whisky velho é partilhar da cultura dos clãs escoceses ou

estarão mais cultos.

uma cerveja alemã equivale a mergulhar na cultura da Europa central . “Beber é cultura”, com a sua capacidade de evocar simultaneamente o simbolismo dos momentos de prazer e da elevação social e espiritual, segue a lógica do cliché, já está pensada para se substituir à reflexão do sujeito. Exemplo desta estratégia de alienação é o fenómeno do botellón; às quintas-feiras, sextas-feiras e sábados, nas cidades e povoações espanholas, milhares de jovens entre os 14 e 24 anos encontram-se em espaços abertos de acesso livre para passarem a noite a ingerir bebidas alcoólicas previamente adquiridas no comércio, ouvir musica e conversar, e quando terminam abandonam o território pejado de lixo e garrafas. Perante esta caricatura de função social, as tardes e noites

36

Saúde Mental Mental Health

Volume XII Nº1 Janeiro/Fevereiro 2010

Leituras / Readings

Notas e referências bibliográficas: [1] O conceito de “sociedade líquida” é transversal à obra de Zygmunt Bauman, “tudo está a ser permanentemente desmontado, (…) sem perspectiva de nenhuma permanência. Tudo é temporário.” (entrevista a M. Pallares-Burke, Folha de S. Paulo, 19/10/2003). [2] Forjada nos anos 40, no seio da Escola de Frankfurt, a teoria da “indústria cultura” não só se mantém actual como permanece como um relevante instrumento para a crítica das condições sociais. [3] Adorno, Theodor W. & Horkheimer, Max. Dialéctica do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos (trad. Guido de Almeida), Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1985. [4] O vinho consumido no Douro é o vinho produzido localmente. O vinho do Porto resulta do “benefício” desse vinho com aguardente vínica, processo que ocorre maioritariamente nas caves de Vila Nova de Gaia e se destina essencialmente para exportação. [5] Da mesma forma que se vendem galos de Barcelos em lojas chinesas de Nova Iorque, localidades como Espinho, Tomar, Lisboa, Gondomar, entre outras, dão guarida a festas de cerveja, que se multiplicam como cogumelos, inicialmente integradas nas festas de estudantes e festivais de verão para se automatizarem como festividades lusas (JN, 10/08/07: Loira e fresquinha, servida em canecas, como em Munique, a cerveja alemã é rainha no Sabugal por estes dias (…) uma réplica da célebre “Oktoberfest”, a Festa da Cerveja da capital da Baviera (Alemanha). A organização está a cargo da empresa alemã Bierfest, em parceria com a autarquia local). [6] Bebidas não tradicionais como as alcoolpops (bebidas aromatizadas e adicionadas a concentrados ou estratos de frutas por forma a mascarar o gosto e o cheiro do álcool, lançadas no mercado após aturados estudos de avaliação da recepção por parte de consumidores jovens) e o shots (bebidas com elevada concentração de álcool, servidas em pequenos copos, e bebidas num único trago) fazem parte deste pretenso universo cultural.

37

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.