Beetle Bailey, Kennan e Nitze: Os reflexos da política externa americana nos quadrinhos

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PONTIFÍCIA UNIVERDDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS Curso de Relações Internacionais

IBERÊ MORENO ROSÁRIO E BARROS

Beetle Bailey, Kennan e Nitze: Os reflexos da política externa americana nos quadrinhos.

São Paulo-SP, 2012

PONTIFÍCIA UNIVERDDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS Curso de Relações Internacionais

IBERÊ MORENO ROSÁRIO E BARROS

Beetle Bailey, Kennan e Nitze: Os reflexos da política externa americana nos quadrinhos.

Monografia

apresentada

em

cumprimento às exigências do Curso de

Relações

Internacionais,

da

Pontifícia Universidade Católica, para a obtenção do grau de bacharelado.

São Paulo-SP, 2012

2

Para Laan, Mary e Uirá

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Trate de aprender tudo o que puder. Saber demais não ocupa lugar. Ignorância sim. A sabedoria anda solta por aí, para a gente aprender o que quiser. Darcy Riberio

4

Agradecimentos Agradeço a Deus, que nos dá força e discernimento para seguir em frente e entender o mundo. Aos meus professores da Faculdade, que me proporcionaram um conhecimento único e incomparável, fazendo-me um internacionalista crítico e consciente das minhas capacidades e potencialidades Em especial, aos professores: Oliveiros S. Ferreira, pelas suas sábias palavras e pelos encontros em Campinas, que proporcionaram uma visão da área que nenhum outro docente seria capaz de oferecer. Antônio Pedro Tota, que é mais do que um professor, mas sim um mestre, no sentido mais pleno da palavra, tendo me ajudado a adentrar no mundo da história dos Estados Unidos. Geraldo Zahran, meu orientador, pelo acompanhamento solidário e criterioso na realização de minha pesquisa e redação deste trabalho. Com quem aprendi e levo como exemplo de carreira para um egresso de Relações Internacionais da PUC-SP. Aos amigos que fiz na Faculdade e fora dela, principalmente por me ajudarem a enfrentar os quatro anos como se fossem leves. São diversos os nomes e para não ser injusto deixo aqui todos representados através da minha sala. Em especial, gostaria de agradecer ao Adriano Marangoni, pelo apoio e incentivo de tocar uma pesquisa com quadrinhos. São conhecimentos e uma amizade que se consolidam em torno de um mundo tão único. Não posso deixar de agradecer aos meus pais e meu irmão, por todo o apoio, incentivo e carinho. Foram eles que acreditaram em mim desde o começo, e mesmo sabendo das dificuldades estavam do meu lado para me sustentar.

5

Resumo O presente trabalho se propõe a analisar as mudanças no pensamento político e na sociedade americana no começo da Guerra Fria, a partir do estudo dos quadrinhos do Recruta Zero (originalmente Beetle Bailey), publicados por Mort Walker, durante o mesmo período. Tem por objetivo demonstrar como a produção de quadrinhos reflete o pensamento de setores da sociedade daquele país, tomando como principal argumento as mudanças que ocorreram no decorrer do tempo, dentro do escopo da história em quadrinhos e no próprio personagem. A metodologia utilizada no estudo combina uma breve revisão bibliográfica, com a comparação de relatos históricos e políticos do período, além da análise das próprias tiras, tendo como reforço argumentativo os relatos produzidos por Mort Walker. Busca-se entender os quadrinhos não apenas como uma produção estética e artística, mas também como uma representação histórica e cultural da sociedade na qual está inserida. Pode-se tirar como conclusão a idéia de que os quadrinhos, e em especial as tiras publicadas em jornais, além de serem uma manifestação artístico-cultural, são expressões que refletem a opinião e o posicionamento de grupos sociais e neles se refletem. Palavras-Chave: Recruta Zero; EUA; Quadrinhos; Guerra da Coréia; Mort Walker; Cultura; George F. Kennan; Paul Nitze; Contenção; Guerra Fria; NSC-68; Longo Telegrama

Abstract The monograph intent to analyze the changes on political thinking and in American society during the beginning of the Cold War, based on the study of the comic of Beetle Bailey, published by Mort Walker during the same period. Aims to demonstrate how the comics production reflects the ideas of some groups from the society in the USA, taking as main argument the changes that occurred during the time, inside the scope and in the character itself. The methodology utilized in the study mash a brief review, with the comparison of historical and political accounts from the period, together with the analyses of the strips itself, having as an argument reinforcement the texts written by Mort Walker. As a conclusion is possible to get the idea that the comics, and in special the daily strips, more than an artistc or cultural, they are expressions that reflects the opnion and the position of social groups and that reflects on them. Keywords: Beetle Bailey; USA; Comics; Strips; Korean War; Mort Walker; Culture ; George F. Kennan; Paul Nitze; Containment; Cold War; NSC-68; Long Telegram

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Sumário

I.

Lista de Ilustrações

8

Introdução

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Discussão Teórica

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1. Cultura e a Nova História

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2. Definição do Material

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II. Contextualização Político-Histórica

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1. Kennan e a Contenção

25

2. O Longo Telegrama

27

3. O Relatório 68 do National Security Council

31

4. A Guerra da Coréia

37

III. Análise das Tiras

40

1. Biografia Mort Walker

40

2. Os Anos de Faculdade

41

3. O Alistamento

46

4. A expulsão da Stars and Stripes

50

5. Considerações sobre a Análise

54

IV. Conclusão

57

V. Bibliografia

60

7

Lista de Ilustrações

Figura 1 - Capa da edição número 1 do Capitão América de 1941 .......................... 24 Figura 2 - Primeira Tira do Beetle Bailey .................................................................. 42 Figura 3 - Uma representação das ambições de Beetle como universitário ............. 42 Figura 4 - As piores preocupações são em como ocupar o tempo, mas não em como estudar...................................................................................................................... 43 Figura 5 - A vida universitária extra campus............................................................. 43 Figura 6 – Vivendo as custas do pai ......................................................................... 44 Figura 7 – A única ambição era se manter como estava o máximo que pudesse .... 44 Figura 8 - O jovem calouro ....................................................................................... 44 Figura 9 - Ilustração com os dois momentos do personagem .................................. 46 Figura 10 – Todos os colegas estavam indo para o exército.................................... 47 Figura 11 – Beetle Bailey iniciando sua vida na caserna.......................................... 47 Figura 12 – Alusão a uma notícia do alistamento de Beetle ..................................... 47 Figura 13 – Beetle vislumbrando sua vida militar ..................................................... 48 Figura 14 – Alusão à idéia de que o exército servia bem para o personagem ......... 48 Figura 15 – Beetle filosofando sobre como será no exército .................................... 49 Figura 16 - Inclusive os testes de aptidão indicam a tendência de Beetle Bailey ..... 49 Figura 17 - Última tira antes do banimento ............................................................... 50 Figura 18 - Alusão a uma notícia sobre o banimento da tira .................................... 51 Figura 19 - O ato de desobediência civil................................................................... 52 Figura 20 - jogo de palavras que demonstra a consciência de Walker, porém sem formar uma crítica concisa........................................................................................ 52 Figura 21 - Uma das piadas sobre a vida da caserna .............................................. 53 Figura 22 - Alusão à importância da tira dentre da publicação oficial do Exército .... 55 Figura 23 - A imagem do quartel nos remete a um ambiente mais familiar do que militarizado. .............................................................................................................. 58

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Introdução

Este trabalho procura estabelecer conexões entre a cultura popular e a política externa, com um enfoque na política americana1. Toma como objeto de estudo as tiras do Recruta Zero, de Mort Walker, produto impresso contextualizado na Guerra da Coréia, que é marcado por humor e crítica. Ao discutir o personagem, as narrativas e situações criadas pelo autor, procuramos trazer à tona o contexto histórico e delinear as representações culturais no contexto das relações internacionais. Ao ler as tiras do Recruta Zero, mereceu nossa atenção algumas conexões de datas, momentos históricos e situações entre a produção da tira e o contexto histórico no qual ela estava inserida. Isso me levou a procurar como conectar a temática das mudanças da política externa americana (PEA) com a produção do referido quadrinho, em especial no período da Guerra Fria. Este trabalho é resultado dessa busca. O estudo das Relações Internacionais (RI), em especial seu campo basilar, a Ciência Política, não pode se restringir a análises estritamente quantitativas ou comparativas. A introdução do estudo das culturas, entendidas de maneira ampla e complexa, nos permite criar panoramas menos estratificados e mais matizados da sociedade2. Isso nos realça as complexidades do sistema internacional que vivemos, e nos permite avançar no entendimento do por quê da conjuntura atual. São diversos os caminhos que poderíamos ter trilhado. Porém a opção tomada leva em consideração alguns fatores em específico, que não podem ser repetidos em outros modelos. O uso dos quadrinhos, para esta análise parte de pressupostos como a sensibilidade dessa manifestação artística perante as 1

O termo “americano” neste trabalho será utilizado para tratar de tudo que é oriundo dos Estados Unidos da América. 2 O debate sobre a questão cultural em si, suas definições e a inserção do tema no trabalho, serão colocadas mais a frente.

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alterações no contexto no qual ela está inserida. A conjuntura histórica e social na qual ela foi produzida, e, também, as circunstâncias em que o autor realizou essa produção. Para o presente trabalho escolhemos interpretar o significado das ações e relações humanas a partir de recursos menos estáticos e menos precisos, porém ganhando em proximidade com a imagem que os próprios atores tinham da situação. Não se trabalha com panoramas, mas sim com imagens iconográficas da situação. Essa opção nos leva a compreender as relações internacionais como uma complexidade, composta não apenas por fatos e dados, mas sim por interações sociais em diversos níveis. Em uma metáfora, podemos colocar que ao usarmos a cultura como lente, ou ponte de conexão com a realidade a ser analisada, na verdade estamos fazendo uma grande pintura, que nos indica os movimentos e nos permite ver que não há definições binárias nas relações humanas. Já ao utilizarmos dados estatísticos e a história estritamente factual, estamos apenas capturando uma foto, sem nos permitir enxergar como os próprios indivíduos compreenderam os processos nos momentos em que eles ocorreram. Os quadrinhos – ou como Will Eisner nomeia, a arte seqüencial – diferentemente de outros recursos midiáticos, fazem uso de uma linguagem híbrida única. Advindas de influências da literatura e do cinema, as histórias em quadrinhos usam recursos de conteúdos originários de livros, como a linguagem textual verbal, somada às imagens e ao ritmo do cinema. Ao ler as histórias em quadrinhos, o que é reproduzido internamente é uma sequência de representações de cenas, falas e sons, da mesma maneira que ocorre ao ler um livro; ao mesmo tempo em que existe a referência gráfica do movimento e das cores nas imagens, assim como ocorre ao se assistir a um filme. Isso, portanto, sugere a idéia delas serem uma mistura de duas mídias diferentes, criando como que uma terceira linguagem, com características e formatos próprios. Essa capacidade expressiva, que mescla o verbal e o iconográfico, possibilita que uma maior complexidade de informações seja passada, num formato de fácil compreensão e assimilação, tornando os quadrinhos uma via ideal para a cultura de 10

massa e para a apresentação do ideário de um grupo. Além de proporcionar ao campo da história e das ciências sociais uma fonte de pesquisa única, temporizada e marcada pela ideologia do autor, a arte sequencial nos permite analisar como a própria sociedade se entende, a partir de um ângulo singular, que combina a racionalidade do discurso verbal e a informalidade e o humor sempre presente nas histórias em quadrinhos. A riqueza da combinação de linguagens verbais e iconográficas está na possibilidade da fruição por diferentes perspectivas. Em especial quando extrapolam o plano descritivo-analógico e se projetam no âmbito do imaginário e das emoções. As comics exploram esse universo da ficção, da sátira e do humor. Assim alcançam dimensões oníricas e lúdicas no processo de leitura e produção de sentidos. Mais do que informações transmitidas, expressões culturais como as histórias em quadrinhos permitem experiências estéticas e processos ricos e interativos de interpretação no campo da recepção. Conforme apontam Dorfman e Mattelart, em sua obra “Para ler o Pato Donald”, o pensamento de um determinado grupo, ao qual o autor por consequência faz parte, acaba sendo transportada através desse recurso. Entendemos, portanto, que as histórias em quadrinhos não devem ser analisadas apenas como arte, mas sim como um discurso histórico-político, tanto para a compreensão de uma dada situação como uma ferramenta para a doutrinação de um determinado grupo. É dentro deste campo que o presente trabalho se insere. Pretendemos com ele apresentar como ocorre a relação entre os fatos históricos e a produção dos quadrinhos, tomando como fonte deste argumento a Guerra da Coréia e a produção das tirinhas do Recruta Zero, ou como será chamado pelo seu nome original neste trabalho, Beetle Bailey. O período compreendido para a análise das tiras se situa, aproximadamente, entre 1950 e 1953. Os conceitos apontados no trabalho, em contraposição, tem como marco inicial o ano de 1946, e se estendem até 1953, em alguns casos até o fim da Guerra Fria. Tais recortes temporais e estratégia de estudo representam a interlocução da arte com a vivência do autor e da sociedade, integrando-a nos objetos de compreensão da história.

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Esse trabalho caracteriza-se como estudo de caso e toma como aplicação os princípios da Nova História Cultural, que servem neste caso as RI como ferramenta de base para compreender um contexto político, envolto de inúmeras complicações e oscilações. Justifica-se, portanto, o uso dos quadrinhos como uma via para a compreensão da sociedade e de sua construção histórica da própria imagem do indivíduo e da sociedade, além da assimilação da representação do outro. A idéia dos quadrinhos como espelho da sociedade, portanto, corrobora essa compreensão, de maneira a reafirmar a necessidade de estudos de caso como este. Assim como aponta Peter Burke3, ao citar o método de trabalho de Burckhardt, a idéia era buscar e salientar os elementos recorrentes, constantes e típicos num determinado corpo artístico de maneira a, baseado nisso, apresentar generalizações sobre a cultura, as quais definem-na ajudam a compreender a sociedade e não apenas os fatos. Para discutir essa questão como um todo vale ressaltar o que se entende como cultura. O conceito tem passado por diversas evoluções no decorrer da história, transformando-se em uma complexidade de paradigmas e não apenas em um conceito estanque. Nesse desenvolvimento, inicialmente predomina uma idéia elitista e de perfeição, como apresentado pelo inglês Matthew Arnold no século XIX. No entanto, a concepção de cultura como sinônimo de erudição, com o passar do tempo e o desenvolvimento do campo, perde espaço para uma concepção mais aberta, que entende que toda ação do ser humano in natura é cultura. Logo, o estudo de uma produção de tamanha complexidade, é também uma análise da sociedade na qual a produção está inserida. Visamos,

portanto,

aplicar

esse

conjunto

de

idéias,

apresentando

possibilidades de estudo e como o recurso dos quadrinhos pode ser usado como fonte de análises de segmentos e secções da sociedade. O objetivo central pode ser compreendido como a busca por mostrar um caminho para conhecer um grupo societário, de maneira não a estigmatizá-lo ou determiná-lo, e os processos que levaram a formatação de um determinado contexto histórico.

3

BURKE, Peter. What Is Cultural History?. Cambridge: Polity Press, 2004

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Este trabalho é divido em quatro partes, sendo cada uma responsável por desenvolver uma das questões acima apresentadas. No primeiro capítulo iremos apresentar o arcabouço teórico que utilizaremos, assim como uma definição do material utilizado e as justificativas deste trabalho. O segundo capítulo é dedicado à contextualização histórica-política, tratando de como foram criados o longo telegrama e o NSC-68, a partir das biografias e analises dos seus autores. Já o terceiro capítulo é o espaço no qual são colocadas as análises das tiras, utilizandose da metodologia apresentada e dos fatos indicados no segundo capítulo. A última seção é dedicada às conclusões de como há essa interconexão e de como houveram as mudanças tanto no âmbito político como no âmbito cultural.

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I.

Discussão Teórica

1. Cultura e a Nova História

Entender a Política Externa de um país, principalmente um com a complexidade como a dos Estados Unidos da América, é um exercício que exige um alto nível de aprofundamento na compreensão desse Estado. Pode-se usar um viés estatístico analisando os padrões e suas inflexões, assim como usar a história dos estadistas que lideraram os processos históricos para compreender as tomadas de decisões. São diversos os caminhos para atingir esse objetivo, porém a grande maioria não Prioriza em um fator expressivo: a cultura. Para trabalhar com a dimensão cultural é necessário escolher uma metodologia que seja suficientemente embasada nos processos societários, de identificação nacional e de construção social. O que faz com que adotemos a Nova História Cultural (NHC) como arcabouço tanto teórico como metodológico. Mas antes de aprofundar na teoria em si é necessário discutir a questão da cultura. O conceito de cultura é amplo e complexo. Não existe um axioma único. Raymond Williams, baliza o debate e redefine os rumos dos estudos nesse campo ao nos apresentar os três principais tipos de definição de cultura: (1) Idealizado, em que a cultura é compreendida como um estado ou processo da perfeição humana, com base em valores absolutos e universais; (2) documental, relacionado à produção de obras que envolvem a imaginação e o intelecto, e que são produzidos para a posteridade, da mesma forma que o pensamento e a experiência humana – são os “tesouros” da cultura e (3) social (antropológico e sociológico), que relaciona a cultura a um modo de vida global dentro do qual percebe-se um “sistema de significações” essencialmente envolvido em todas as formas de atividade social. 4

4

WILLIAMS, Raymond. The Long Revolution. London: Chatto & Windis, 1961. p. 41-43 In: CUNHA, Magali do Nascimento. Vinho novo em odres velhos. Tese de Doutorado.

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Cada um dos tipos se refere a uma maneira de compreender a construção social e a identidade de um grupo, seja através da elitização, da produção ou da significação das tradições. Na primeira definição a cultura é entendida como um objetivo e não um processo de um grupo societário; ou seja, a cultura seria criada e modificada apenas pelos mais “evoluídos”5. Na segunda, a cultura ainda tem uma carga de exclusividade, mas não mais na pessoa em si, mas sim no objeto, uma vez que é entendido como objeto apenas a arte, produzida, principalmente, sob um intuito estético e de perpetuação. Já a terceira definição entende a cultura como a significação de todo ato de uma sociedade ou grupo social, seja ele de um indivíduo ou de um grupo, de uma elite, de segmentos populares, ou de um grande contingente variado e disperso de pessoas, como ocorre na cultura de massa. Adotaremos, portanto, a terceira linha, a qual condiz com a proposição da NHC, que consiste em uma utilização de manifestações artístico-culturais como indicativos do pensamento, no qual essas foram produzidas, sendo assim um polo para compreensão da história e do contexto político. É nesse âmbito que surge portanto a necessidade de explicar as diferentes fases, apontando assim como se desenvolve a metodologia. Peter Burke divide a NHC em 5 fases6, sendo elas identificadas pelas regiões nas quais se desenvolveram em um determinado momento histórico. São elas: Alemã; Anglo-Hungara; Francês, Norte Americana; e Ibero-Americana. A primeira fase, aqui identificada como alemã, tem seu início nos anos 20 do séc. XX. O contexto alemão predecessor é muito rico. Desde o final do século XIX, autores como Jacob Burckhardt, já discutem a cultura como meio de compreender as sociedades passadas. Mas é com Aby Warburg e sua biblioteca que os estudos ganham força. Nessa fase o foco é maior na cultura de elite, sendo estes identificados como os representantes reais do pensamento do momento histórico analisado. Alfred Weber, em contraposição à essa idéia de História da Cultura, identificava esse extrato como “civilização” material, ignorando assim a carga subjetiva da cultura. 5

Evoluído no sentido elitista. No qual alguns são superiores e portanto agem de maneira correta. Discurso apresentado em Pamplona em 98 e publicado em: Burke, P. (1998). "From Cultural History to Histories of Cultures". Memoria y civilización: anuario de historia de la Universidad de Navarra, no. 1, pp. 7-24.

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A segunda fase, também chamada de Húngaro-Britânica, tinha como principal representante húngaro o pesquisador Georg Lukács, o qual influenciou outros nomes como Frederick Antal, Karl Mannheim e Arnold Hauser. Estes pesquisadores na década de 30 migraram para a Inglaterra, onde influenciaram outros nomes como Anthony Blunt, e foi então fora da Hungria que desenvolveram boa parte de seus estudos. Para Antal a cultura é uma expressão ou até um reflexo da sociedade, de maneira direta. Blunt, por sua vez, incluía a questão da posição social na qual se encontrava o artista que produzia a obra, dando assim uma abrangência maior e identificando com maior clareza a parcela da sociedade diretamente analisada. E são pressupostos como esses que influenciaram Raymond Williams a, na década de 50, escrever e fundar os Estudos Culturais. Outros autores também foram influenciados por essas linhas de pesquisa. Eric Hobsbawn, por exemplo, era estudante de Cambridge na época em que os Húngaros supracitados estavam na universidade inglesa, o que o levou a pensar uma história sócio-culturalmente construída, tendo como exemplo a obra “A história social do Jazz”7. Porém, diferentemente de Blunt, Hobsbawn, assim como Edward Thompson, seguiam uma linha mais marxista. A fase francesa ocorreu na década de 60 e 70, tendo grandes nomes de “maio de 68” como influenciados e influenciadores. Vale citar as palavras de Peter Burke para diferenciar esta fase da anterior: To define the French moment by contrast to the Anglo-Hungarian one, we may describe it as a time in which cultural categories such as nature and culture, madness and sanity rather than social institutions were regarded as the forces determining human action. Culture was no longer mere superstructure: it had become the real base of human behaviour.8

Este foi um grande ponto de virada para a história cultural. Mas é graças a influência de pensadores anteriores que essa mudança ocorreu na França. François Guizot, com seus estudos sobre civilização, no fim do século XIX; Marc Bloch e Lucién Febvre, entre as décadas de 20 e 40 do séc. XX, fundaram e desenvolveram 7

Publicado sob o pseudônimo Francis Newton em 1961 Burke, P. (1998). "From Cultural History to Histories of Cultures". Memoria y civilización: anuario de historia de la Universidad de Navarra, no. 1, pp. 7-24.

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a Escola dos Annales9, moldando conceitos como a chamada história das mentalidades10. Georges Dumézil, Claude Lévi-Strauss, Roland Barthes e Michel Foucault foram influenciados, criando assim uma literatura que leva em consideração a estrutura do pensamento, ou seja a cultura como base. São autores preocupados em entender a sociedade a partir da construção cultural, que seria o determinante do pensamento coletivo. Porém há uma grande dificuldade em trazer essa estrutura metodológica para a história, o que foi tentado por autores como Jacques Le Goff. Roger Chatier, autor francês erradicado nos EUA vai, portanto representar essa escola francesa, ao mesmo tempo em que a mescla com os pensadores americanos como Carl Schorske, Clifford Geertz e Hayden White. E neste ponto migramos para a terceira fase. Entre as décadas de 70 e 80 do século XX houve uma aproximação da história cultural com a antropologia e a literatura. É justamente em um ambiente de uma antropologia cultural que há espaço para um novo foco da História Cultural, assim como aponta Burke: This American style of cultural or as it was sometimes called "symbolic" anthropology placed a strong emphasis on human freedom, inventiveness, and subjectivity, in reaction against the determinism or better the different determinisms of the previous generations, Marxian or structuralist. The idea of the cultural ‘construction' of society, of social classes, of gender, and even of the body became popular in intellectual circles.11

Ou seja, há uma mudança no enfoque aproximando de uma análise menos estruturalista e mais do estudo da cultura em si. A sociedade é entendida como culturalmente construída, de tal forma que há uma interdependência direta e inexorável entre as partes. Ao se estudar um objeto cultural, seja ele material ou imaterial, estuda-se a sociedade que o produziu ou com a qual ele interage.

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A Escola dos Annales recebe esse nome por ter se desenvolvido em torno do periódico Annales d'histoire économique et sociale. A proposta dos fundadores era de trazer métodos das Ciências Sociais para a história, visando assim compreender o processo histórico e as composições e não apenas os fatos pontuais. 10 Ou representações coletivas, as quais seriam as ligações entre a cultura e a sociedade. 11 Burke, P. (1998). "From Cultural History to Histories of Cultures". Memoria y civilización: anuario de historia de la Universidad de Navarra, no. 1, pp. 7-24.

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A fase norte-americana trouxe à tona a idéia de se trabalhar não apenas com a cultura de elite, mas sim com todo e qualquer produto dessa produção, colocandoos em um contexto político-histórico-cultural, e analisando todo o conjunto simultaneamente para se chegar assim à uma conclusão sobre os processos do momento histórico analisado e não apenas nos fatos finais. Assim como escreve Burke: The new historicists attempt to place poems and plays in their cultural and political settings, rather than emphasizing their timeless qualities; to juxtapose "high" literary texts, such as Shakespeare's, to other artifacts and practices of the time (paintings, learned treatises, popular rituals and so on); and to analyse text and context alike with the aid of the cultural theories of Sigmund Freud, Mikhail Bakhtin, Clifford Geertz, Victor Turner, Michel Foucault, Pierre Bourdieu and others (the range of names suggests a movement much less united than was the case of the German or French moments).12

Já a chamada quinta fase, nomeada por Burke como Ibero-Americana, tem o intuito de mostrar que mesmo fora dos eixos convencionais, também há um desenvolvimento dos conceitos de cultura. Em especial no Brasil são autores como Gilberto Freyre que vão tratar dessa temática e as metodologias para analisá-las. Há também casos como Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini, que vão trabalhar a questão cultural de uma maneira mais integrada à sociedade, em uma valorização das mediações culturais presentes nas relações sociais. Burke justifica que a importância desses autores vem pelo fato da localidade no qual o pensamento é produzido. Diferentemente da Europa e dos EUA, os países ibero-americanos passaram por processos históricos de colonização, escravidão e miscigenação bem específicos, os quais criaram culturas hibridas13, sendo assim, apenas em países como esse seria possível o desenvolvimento do pensamento de cultura de maneira tão abrangente e plural. Utilizamos, portanto, esse arcabouço historiográfico, de forma a compreender os desdobramentos das questões metodológicas, que são intrínsecas à própria definição teórica da Nova História Cultural e suas diferentes fases. O que podemos assimilar para este trabalho, portanto, é que a partir de uma produção cultural, quando ela mesma e seu criador são inseridos em um contexto histórico, e 12

idem Conceito criado por Gilberto Freyre, o qual defende que as culturas, como a brasileira, não são um composto único e claramente identificável ou de classificação estrita.

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observados seus discursos e intencionalidades, ou a ausência delas, pode-se criar um quadro do momento. O diferencial deste caminho frente a outras possibilidades de trabalho com a história é que não se busca reproduzir o fato, mas sim mostrar como a própria história se pinta, como se pensa a época, o que pode nos ajudar a entender os processos históricos como um todo e seus desdobramentos. A NHC não busca criar um retrato fidedigno de um momento histórico, mas sim nos apresentar uma pintura da passagem e explicá-la. Duas citações de autores da história cultural nos corroboram quanto à relevância da metodologia. A primeira, de Huizinga, no mostra o porquê de usarmos a cultura e o indivíduo que a produz: Que tipo de idéia podemos formar de uma época se não vemos pessoa alguma nela? Se só pudermos fazer relatos generalizados, vamos apresentar um deserto a que chamamos de história.14

Portanto, utilizar, como ocorre neste estudo, as tiras de Mort Walker é um meio de compreender como se deu a assimilação da mudança da PEA no período. A Doutrina da contenção dava a idéia de que os EUA agiriam de uma maneira menos belicosa, e mais pontual. Porém com a Guerra da Coréia e as mudanças propostas por Paul Nitze15 levaram à uma corrida armamentista e uma intenção de persuasão. Esta relação será discutida mais à frente no trabalho. Já Burckhardt pode nos ajudar a compreender as vantagens de usar um material que foi produzido no momento o qual deseja-se analisar. Há uma complementariedade da distância histórica de quem analisa o corpus documental e a proximidade com a qual foi produzido o documento. [...] A História Cultural tem um grau primário de certeza, já que consiste, em sua grande parte, em materiais gerados de modo não intencional, desinteressado ou mesmo involuntário pelas fontes e monumentos.16

14

Apud. BURKE,Peter. O que é história cultural?. Trad: Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2005 15 Chefe, sucessor de Kennan, no Policy Planning Staff durante a escrita do NSC-68. 16 Apud BURKE,Peter. O que é história cultural?. Trad: Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2005

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Utilizando as palavras de Peter Burke para definir a História Cultural, como um todo, levando em consideração todas as variações no tempo e nos enfoques, destacamos: O terreno comum dos historiadores culturais pode ser descrito como a preocupação com o simbólico e suas interpretações. Símbolos, conscientes ou não, podem ser encontrados em todos os lugares, da arte à vida cotidiana[...]17

Definimos então que a metodologia utilizada baseia-se na proposta apresentada acima, na qual as tiras do Beetle Bailey foram colocadas em perspectiva aos fatos que ocorreram entre os anos de 1946 e 1953. Dentre um grupo de tiras já selecionadas pelo autor em sua compilação das melhores, foram pinçadas algumas que reforçam o argumento do impacto das alterações políticas frente à cultura popular. Selecionamos também dois fatos político-históricos que impactaram a sociedade americana, naquela época e que, portanto, foram refletidos nas tiras de Mort Walker. O primeiro foi a entrada dos EUA na Guerra da Coréia; já o segundo foi o início da participação americana nas ações em território Vietnamita, ainda em apoio às tropas francesas. Estes fatos serão explicados nos próximos capítulos para criar o pano de fundo das discussões sobre como o uso das tiras enriquece o estudo da história, ampliando o seu alcance a um plano mais subjetivo, no qual podemos compreender como a sociedade compreendeu os fatos. Elementos de extrema importância são as declarações do próprio autor sobre a sua não intencionalidade política ao publicar as tiras. Em entrevista realizada ao “The Comics Journal” na edição de número 297, Walker deixa clara a sua intenção de criticar aquilo que vê, ou representar as situações cômicas do cotidiano. Como aponta o entrevistador R.C.Harvey na introdução: Although the strip is ostensibly about military life, Walker’s Army is just another version of society at large, which sustains its essential order through a hierarchy of authority. From the point of view of most of us in a social order, the flaws in the system are due to the incompetence of those who have authority over us. Beetle Bailey encapsulates this aspect of the human condition and gives expression to our resentment by ridiculing traditional authority figures 17

BURKE,Peter. O que é história cultural?. Trad: Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2005

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and by demonstrating, with Beetle, how to survive through the diligent application of sheer lethargy and studied indifference. But the ridicule is gentle: It takes shape as Walker repeatedly shows us that everyone in his army — authority figure or not — is but a bundle of personality quirks. Hence, the strip is a great leveler.18

Portanto, há relevância na utilização de algo tão suscetível à realidade na qual está inserido, para criar essas pintura da cultura, algo tão inalcançável por uma análise estritamente histórica, ou estritamente política do caso. Walker em resposta à colocação de Harvey sobre sua expulsão da Revista “Stars and Stripes” diz: Even the Pentagon felt that I was not helping discipline or the efficiency of the Army by criticizing it. I wasn't really criticizing it; I just showed how guys could have fun, no matter where they were. [Laughter.] So finally, I went over to the Pentagon, because they did a book one time called How Not to Do Things and they used my strips in it19

Portanto, a metodologia usada foi: analisar os conteúdos das tiras, com especial atenção para as variações temáticas que aconteceram nos períodos acima identificados; relacionar com os processos políticos do período; e por fim criar um panorâma do momento histórico de maneira não estéril como propõe Huizinga. O método adotado se assemelha mais do proposto pela fase americana, na qual aumenta-se a importância da produção não elitizada, frente o contexto históricopolítico.

2. Definição do Material

Tendo em vista o arcabouço teórico acima colocado, partimos agora para a definição do material utilizado. A necessidade desta apresentação surge no momento que não são objetos de análise convencionais ao ambiente das RI e das Ciências Sociais. Apesar dessa baixa produção utilizando essa ferramenta, grandes

18

HARVEY, R. C.. The mort walker interview. The comics journal. Seatle, v. 279, 01 abr. 2009. Entrevista gentilmente cedida pela The Comics Journal para a realização deste trabalho. 19 idem

21

pensadores como Umberto Eco já trabalharam com quadrinhos, tanto como temática assim como fonte20. O termo comics surgiu nos Estados Unidos com as caricaturas que eram utilizadas como imagens nos jornais e impressões do Século XIX. O nome carrega essa idéia de comédia, uma vez que tinha ao mesmo tempo uma função informativa e o intuito de criar humor. Posteriormente o nome é mantido, mesmo que as temáticas não se restrinjam ao gênero. Os quadrinhos, no modelo que conhecemos hoje em dia, surgiram no começo do século XX, com publicações como o Menino Amarelo, momento no qual começou-se a utilizar os balões para as falas. Essa foi a principal mudança que tornou essa arte, antes complementar a uma noticia, uma representação a parte, que continuou carregando a idéia do contexto no qual a produção é inserida. É justamente por causa desse surgimento nos jornais e essa conexão com o cotidiano que os quadrinhos e as tirinhas sempre têm a intencionalidade de nos remeter a alguma questão do contexto histórico no qual ela está inserida. Mesmo quando a discussão em pauta não aparenta ter conexão, ela reflete os pensamentos do autor, logo, o contexto no qual são produzidos fazem com que os resultados sejam diferentes. Um caso que mostra a inserção do autor em um contexto real, que não faz parte do mundo dos quadrinhos, mas sim da literatura, é o livro 198421. Publicado em 1948, representando uma sociedade distópica na qual o mundo era dividido e vivia em constante guerra. Os EUA e a URSS já estavam começando suas tensões que perduraram por toda a guerra fria, e por mais que a obra não fale disso diretamente, o ambiente de tensão internacional levou Orwell a ser influenciado. O maior exemplo, dentro dos quadrinhos, é o primeiro número do Capitão América, que foi editado em março de 1941, e publicado em outubro do mesmo ano, portanto, dois meses antes da entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial. O grande destaque era o fato de a capa conter o personagem principal dando um soco

20 21

ECO, Umberto. O Super-Homem de Massa. São Paulo: Perspectiva, 1978. John Lewis Gaddis, na introdução do seu livro “Guerra Fria”, indica esse fato.

22

no rosto do ditador nazista. Isso mostra a opinião pública de que era um dever da sociedade americana participar da guerra e terminar com o conflito.22 Essa sensibilidade ao contexto é ainda maior no caso das tiras cômicas, uma vez que é publicada, na maioria das vezes, diariamente. É em função disso que a tira do Beetle Bailey foi escolhida como objeto de estudo para esse trabalho. As alterações que ocorreram na publicação demonstram como as mudanças na política externa do começo da Guerra Fria foram sentidas no âmbito da cultura popular. Edward Said, de uma maneira muito interessante, define a função das histórias em quadrinhos na formação do pensamento. Ao relatar sobre seus primeiros contatos com a linguagem, o historiador escreve: As histórias em quadrinhos abalavam a lógica a+b+c+d e certamente encorajavam um pensamento diferente daquele preconizado pelos professores ou exigido em disciplinas como a História.[...] Além disso os quadrinhos ofereciam uma abordagem despretensiosa e direta (pela atraente e extravagante combinação de imagens e palavras) que, se por um lado parecia inequivocamente verdadeira, por outro, me parecia maravilhosamente próxima, transmitindo total familiaridade. De uma forma que ainda acho fascinante tentar decodificar, as histórias em quadrinhos implacavelmente salientavam e diziam tudo aquilo que não poderia ser dito de outra forma, ou que talvez não fosse permitido dizer ou imaginar, [...] contestando os processos habituais de pensamento que são policiáveis, moldáveis e remoldáveis por todo tipo de pressão pedagógica, e mesmo ideológica. Na época, isso nada queria dizer para mim, mas sentia que as histórias em quadrinhos me libertavam para pensar e imaginar e ver de uma forma totalmente diversa.23

Levando em consideração as nuances da fonte e a metodologia escolhida, podemos então desenvolver um trabalho no qual o objetivo é criar um panorama do pensamento e não apenas uma análise estatística. As vantagens, conforme já foi indicado, são a de estender a compreensão de um processo histórico para as imagens e visões que os indivíduos criaram.

22 23

Ver Figura 1 SAID, Edward. Homenagem a joe sacco. In: SACCO, Joe. Palestina. São Paulo: Conrad, 2011.

23

Figura 1 - Capa da edição número 1 do Capitão América de 1941

24

II.

Contextualização Político-Histórica

1. Kennan e a Contenção

Uma vez tendo em mente o material, os conceitos teóricos e a metodologia, passamos agora à segunda etapa do presente trabalho. A necessidade de compreender o contexto é essencial, uma vez que as análises e proposições colocadas na terceira seção se referem diretamente a estas passagens históricas, mesmo que de maneira tácita. O ponto de virada no qual iniciamos este panorâma é o ano de 1946, uma vez que os ocorridos neste ano, e adiante, foram chave para a construção do que viriam a ser os pilares da Guerra Fria e da PEA do período. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os EUA estavam ainda tentando compreender como deveriam agir, oscilando entre um retorno ao isolacionismo, ou uma busca de um novo modelo de intervenção, e os fatos a seguir relatados mostram como ocorreu essa mudança. Truman foi o presidente responsável, junto com seus assessores, por arquitetar os organismos e as ferramentas que seriam utilizadas durante a Guerra Fria. Naturalmente, não se pode colocar que durante a administração Roosevelt não ocorriam movimentações, preparando o espaço para uma realidade bipolar que estava por vir, vide as conferências de Yalta e Potsdam, mas o grande pivô dessa estruturação foi a administração posterior. Desde Março de 1947, com o inicio da Doutrina Truman24, o governo americano se posicionou oficialmente como opositor ao socialismo, tendo como guia o telegrama enviado em Fevereiro de 1946 pelo embaixador em Moscou, George 24

Usamos de marca para definir o início dessa política o discurso proferido em 12 de Março de 1947, que pode ser entendido também como o ponto de partida da Guerra Fria, uma vez que Truman definia que os EUA iriam agir como fosse preciso para impedir o avanço socialista. TRUMAN, Harry S.. Recommendations for assistance to greece and turkey., 1947. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2012.

25

Frost Kennan. John Lukacs, historiador, aponta na biografia que escreveu sobre o diplomata: Historians came to regard it, rightly, as one of the principal documents and instruments of the change of American policy toward the Soviet Union, indeed, of the beginning of the Cold War, an importance comparable to Winston Churchill’s Iron Curtain speech a month later, and to the Truman Doctrine, to the Marshall Plan, to Kennan’s own containment ‘X’ article a year later.25

O telegrama continha informações sobre a cultura russa, tanto política como os costumes, além de algumas indicações históricas, e o modo como a política soviética era arquitetada. O diplomata foi atento ao colocar também recomendações específicas de como Truman deveria se posicionar frente ao contexto em formação. Kennan pretendia com esse documento criar um panorama amplo o suficiente para que as tomadas de decisão quanto a PEA tivesse um embasamento, e pudessem compor oposição real à política soviética. O governo americano estava em busca de um material que desse esse suporte para as movimentações de Política Externa. O texto de Kennan veio em ótima hora, como afirma Lukacs: On the highest levels of government the realization that the time had come for the United States to resist and respond to evidences of communist and Soviet aggressive ambitions had begun; but even there was, as yet, no definite plan of where and what must be done.26

O autor do telegrama, uma vez estando encarregado da embaixada e tendo recebido o aval de seu superior27 para se manifesta caso fosse necessário, entendeu que este era o momento de escrever as suas recomendações. Tendo então recebido um pedido padrão28 para que explicasse as relações econômicas com a Rússia. Incomodado pela desatenção dos funcionários de Washington, Kennan então usa o pedido como meio de juntar e apresentar, de uma maneira clara, tudo o que já havia pontuado em outros relatórios.

25

LUKACS, John. George kennan: A study of character. New Haven: Yale University Press, 2007. idem 27 Kennan ocupava um cargo de especialista assistente ao embaixador, porém, seu superior, Avarrel Harriman, viaja diversas vezes para acompanhar representantes do governo americano, o que o mantinha muitas vezes longe da embaixada, deixando-a sob a responsabilidade de George Kennan. 28 Fazia parte da rotina dos funcionários escrever relatórios que tratassem de assuntos específicos para poder proporcionar informações aos estadistas, sob a qual eles criariam as políticas necessárias. 26

26

Diferentemente do que se pensa, para o diplomata o discurso fazia parte de um todo, incluindo por conter uma série de informações que o próprio já havia declarado em outras situações, porém jamais de maneira tão concisa e direta. O biógrafo aponta: “[…] Kennan’s “long telegram” reiterated much that he had said other times and in other ways”29 É dentro desse contexto de cunho educativo e propositivo que Kennan escreve o Longo Telegrama. De acordo com as declarações de George Kennan, indicadas por Gaddis, o processo teve um intuito quase pastoral: I reached, figuratively, for my pen (figuratively, for the pen was in this case my long suffering and able secretary Dorothy Hessman, who was destined to endure thereafter a further fifteen years studded with just such bouts of abuse) and composed a telegram of some eight thousand words [sic]—all neatly divided, like an eighteenth-century Protestant sermon, into five separate parts. (I thought that if it went in five sections, each could pass for a separate telegram and it would not look so outrageously long.)30

Kennan, portanto, tinha total consciência da importância do seu texto. Em outra declaração compilada por Gaddis, o diplomata mostra que o sucesso do texto foi devido ao momento no qual se encontravam, e que se tivesse escrito o mesmo documento em momentos distintos, o impacto não seria o mesmo: Six months earlier this message would probably have been received in the Department of State with raised eyebrows and lips pursed in disapproval. Six months later, it would probably have sounded redundant, a sort of preaching to the convinced. This was true despite the fact that the realities which it described were ones that had existed, substantially unchanged, for about a decade, and would continue to exist for more than a half-decade longer.31

2. O Longo Telegrama

Na introdução do texto o diplomata já deixa claro ao que o texto se propõe, colocando, inclusive, a importância em se alongar e detalhar nas suas oito mil palavras.

Destacamos

a

seguir

um

trecho

do

texto

para

ilustrar

essa

29

GADDIS, John Lewis. George F. Kennan: An American Life. New York: Penguin Press, 2011. idem 31 ibidem 30

27

intencionalidade: “[...] so important to analysis of our international environment that I cannot compress answers into single brief message without yielding to what I feel would be dangerous degree of over-simplification”.32 A concepção de Kennan, portanto é de um conflito não militarizado, no qual seriam utilizados recursos econômicos e políticos para conseguir conter os soviéticos. O autor do telegrama entendia que os russos, diferentemente dos nazistas, tinha uma politica externa racionalizada, a qual buscava ocupar as lacunas de poder deixadas em consequência do fim da Segunda Guerra. Ou seja, os EUA deveriam abandonar qualquer tendência isolacionista para impedir que os soviéticos se apoderassem dos espaços. O discurso colocado no longo telegrama, que é dividido em cinco partes, dedica sua última seção às propostas de ação política. Kennan é incisivo e demonstra que não se deve criar empecilhos, principalmente de preconceitos e imagens distorcidas, entre as relações diplomáticas EUA-URSS, mas deve-se criar estudos claros sobre esse contexto, para assim evitar a histeria e os erros de interpretação. Isso fica postulado quando analisamos o primeiro ponto de ação propostos pelo autor: (1) Our first step must be to apprehend, and recognize for what it is, the nature of the movement with which we are dealing. We must study it with same courage, detachment, objectivity, and same determination not to be emotionally provoked or unseated by it, with which doctor studies unruly and unreasonable individual.33

Somado a isso, Kennan propõe que sejam feitos esforços para se conhecer melhor a cultura e o povo russo, não só entre as elites culturais, mas entre a população comum também. Isso serviria portanto para evitar fanatismos e interpretações precipitadas que levariam a ações descoordenadas, criando um ambiente de histeria, conforme o próprio aponta: We must see that our public is educated to realities of Russian situation. I cannot over-emphasize importance of this. Press cannot do this alone. It must be done mainly by Government, which is necessarily

32

KENNAN, George F. [Telegrama] 22 fev. 1936, Moscou [para] MARSHAL, George. Washington D.C. O longo telegrama. 33 idem

28

more experienced and better informed on practical problems involved 34 […] There is nothing as dangerous or as terrifying as the unknown.

Em contrapartida, os valores da sociedade ocidental, em especial da americana, deveriam ser divulgados e demonstrados através dos mais diferentes meios de propaganda, como meio de reforçar a identidade própria, além de afastar as influencias soviéticas nos demais países. Nos dois últimos pontos o autor coloca: We must formulate and put forward for other nations a much more positive and constructive picture of sort of world we would like to see than we have put forward in past. […]Finally we must have courage and self-confidence to cling to our own methods and conceptions of human society. After Al, the greatest danger that can befall us in coping with this problem of Soviet communism, is that we shall allow ourselves to become like those with whom we are coping.35

O próprio Kennan resume de maneira clara os objetivos russos indicados no telegrama, em uma de suas declarações citadas por Gaddis, que criava um panorama do modus operandi da política externa soviética: We have here a political force committed fanatically to the belief that with US there can be no permanent modus vivendi, that it is desirable and necessary that the internal harmony of our society be disrupted, our traditional way of life be destroyed, the international authority of our state be broken, if Soviet power is to be secure.36

Entendemos, portanto, que o Longo Telegrama tinha como intuito mostrar: como os russos não deveriam ser lidados da mesma maneira que os Nazistas; e que a política externa soviética era baseada numa tradição imperialista e extremamente racional, que visava buscar as lacunas de poder para se expandir. Walter A. McDougall, ao tratar sobre o desenvolvimento histórico do período, indica os principais alertas de Kennan: “Nevertheless he warned that the Soviets would do all they could to set te Western power against each other, promote Communism and Subvert Western institutions.”37 Vários dos pontos indicados aparecem claramente na Doutrina Truman e no Plano Marshall38. O que indica que Kennan conseguiu corresponder a uma lacuna 34

ibidem ibidem 36 GADDIS, John Lewis. George F. Kennan: An American Life. New York: Penguin Press, 2011. 37 MCDOUGALL, Walter A.. Containment. In:__________. Promised land, crusader state: The american encounter with the World since 1776. New York: Houghton Milfflin Company, 1998. 38 John Lukacs chega a indicar em seu livro que o autor principal do plano Marshall tenha sido o próprio Kennan, que na época trabalhava com o Secretário de Estado. 35

29

que existia quanto ao operacional da PEA, que até então tentava se formar. O historiador John Lewis Gaddis resume a situação: The “long telegram” expressed what Kennan knew, in a form suited for policy makers who needed to know, better than anything else he ever wrote. No other document, whether written by him or anyone else, had the instantaneous influence that this one did.

Em Julho de 1947, através do National Security Act of 194739, foram criadas as agências especiais, como a Central Intelligence Agency e o próprio National Security Council, que tinham como função auxiliar o presidente nas tomadas de decisão quanto à segurança Nacional. Essas novas ferramentas correspondiam a uma proposição feita pelo, então coronel, William Joseph Donovan, que durante a Segunda Guerra Mundial coordenou a Office of Strategic Service, que tinha como função organizar e realizar operações de inteligência e contra inteligência, sempre demonstrou a preocupação e a necessidade de se criar uma agência que desempenhasse essa mesma função em tempos de Paz. É natural que são apenas pontos específicos como o supracitado que levaram ao Ato, mas nos ajuda a compreender o panorama. É nesse mesmo mês que Kennan publica o artigo “The Sources of Soviet Conduct” no qual definiu alguns conceitos centrais para o desenvolvimento das políticas. Um dos principais legados deste artigo foi a idéia da contenção. Esta proposição é a de que os EUA devem agir de tal maneira a conter a expansão Soviética pelo mundo. No próprio texto Kennan indica: “The main element of any United States policy toward the Soviet Union, must be that of a long-term, patient but firm and vigilant containment of Russian expansive tendencies". De acordo com a interpretação de seu autor, as ações devem ser de cunho econômico, político e cultural, mas não militar. O sumário utilizado no artigo da Foreign Affairs é uma boa definição do conceito, o qual nos será importante ter em mãos para compreender qual foi a real mudança, saindo de um âmbito econômico-cultural e migrando para ações de cunho mais belicista:

39

UNITED STATES OF AMERICA SENATE. National Security Act of 1947. Disponível em: acesso em: 08 de jun. 2012

30

Soviet pressure against the free institutions of the Western World is something that can be contained by the adroit and vigilante application of counterforce at a sereis of contantly shifting geographical and political points, corresponding to the shifts and maneuvers of Soviet policy, but wich cannot be charme dor talked out of existence.40

3. O Relatório 68 do National Security Council

Uma vez que o tema de segurança ganha um novo escopo e passa a englobar não apenas questões de fronteiras, se tornando ponto central da política externa, são agências como essas supracitadas que irão informar os presidentes e criar as propostas de ação do governo quanto às questões externas. Como percebese, o ponto central dessa coordenação ficava no National Security Council41 composto pelos principais responsáveis de cada uma das áreas de interesse da política externa e da coordenação interna. A composição deste conselho varia de acordo com a questão a ser tratada, mas de maneira geral os integrantes são42: o presidente; o vice presidente; o secretário de Estado; o secretário de Defesa; o Diretor de Segurança Mútua; o presidente do conselho de Recursos Nacionais de Segurança; além de outros secretários e sub-secretários de departamentos executivos e militares, quando convidados. É dentro agências como essa que vão ser criados os principais planos de ação do Governo, em especial da administração Truman. O supracitado National Security Act of 1947 mostra como buscava-se criar todo uma rede para evitar informações pouco embasadas, ou que ações de grande impacto fossem tomadas de maneira pouco planejada. São diversas as ações e as decisões, porém o ponto principal que destacamos aqui é a “mudança” do longo telegrama para o NCS-68.

40

KENNAN, George F. The Sources of Soviet Conduct. Foreign Affairs. Nova Iorque. V. 25 n. 4, 1947 O órgão continua existindo e figura como central na coordenação da segurança americana. 42 Estamos utilizando os cargos indicados no National Security Act de 1947. Atualmente a composição do conselho é diferente, porém a função central permanece a mesma. 41

31

Essa transição tem tamanha importância na PEA uma vez que levou, principalmente, ao aumento dos gastos no setor militar, gerando uma corrida armamentista posterior. Somado a isso, com a ampliação de uma série de pontos, colocados como secundários por Kennan, levaram os EUA a assumirem o papel de “polícia” do mundo, ou seja, seria de responsabilidade do governo americano defender e proteger todos os países que desejassem criar a democracia ou mantêla, frente as ameaças comunistas. As mudanças podem ser categorizadas como uma complementação que levou ao aumento e maior militarização da contenção. Dougall escreve: “The ‘new gospel of national security’ had four sources. First, the collapse of the European and Asian balances of power meant that the United States could opt out of world politics only at the risk of a Communist Eurasian hegemony. Second, Stanlin’s ‘salami tactics’ resembled Hitler’s, and history proved that appeasement only whetted the aggressor’s appetite. Third, resistance had to be backed up by superior force, wich all dictators understood. Fourth, the advent of long range bombers and missiles meant that the nest pearl Harbor might be Chicago or Detroit, hence Americans would no longer enjoy the luxury to mobilize for war after hostilities began.”43

O departamento de Estado americano enxerga como essa mudança impactou, de maneira decisiva os rumos da PEA. Em um trecho do site oficial do departamento, lê-se: Nitze, who saw the Soviet threat primarily in military terms, interpreted Kennan's call for "the adroit and vigilant application of counter-force" to mean the use of military power. In contrast, Kennan, who considered the Soviet threat to be primarily political, advocated above all else economic assistance (e.g., the Marshall Plan) and "psychological warfare" (overt propaganda and covert operations) to counter the spread of Soviet influence. In 1950, Nitze's conception of containment won out over Kennan's. NSC 68, a policy document prepared by the National Security Council and signed by Truman, called for a drastic expansion of the U.S. military budget. The paper also expanded containment's scope beyond the defense of major centers of industrial 44 power to encompass the entire world.

O caso da Guerra da Coréia é emblemático neste quesito por duas razões: foi o primeiro momento histórico no qual assumiu-se a idéia de guerra limitada; com a participação no conflito o NSC-68 foi aprovado e passou a vigorar como base da 43

MCDOUGALL, Walter A.. Promised land, crusader state: The american encounter with the World since 1776. New York: Houghton Milfflin Company, 1998. 44 STATE DEPARTMENT. Kennan and containment, 1947. , 2012. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2012.

32

PEA até o final da Guerra Fria. Por isso podemos falar neste fato como nevrálgico para a construção da arquitetura política da Guerra Fria. O relatório do conselho é ligado a uma instrumentalização mais agressiva das propostas de Kennan. Nitze, encabeçando o conselho, propõe um aumento nos investimentos militares e em armamentos, o que muda da proposta original do apresentada no longo telegrama, que propunha um canal de diálogo. A mudança para essa persuasão, quase coercitiva, é corroborada com a Guerra da Coréia, e é por isso que o impacto na cultura popular aparece. O historiador John Lewis Gaddis, em 1980, junto com Paul Nitze, líder do grupo que redigiu o NSC-68, escreveu um artigo analisando a importância do documento de 1950, com enfoque nos seus impactos e suas motivações. Logo no primeiro parágrafo já é colocado o peso do fato histórico: “NSC 68 represented something new in the American political-military experience: It was nothing less than an attempt to set down in the unforgiving medium of cold type a comprehensive statement of what United States national security policy should be.”45 As diferenças entre as propostas do relatório e as propostas de Kennan se focalizam principalmente na interpretação do que é a balança de poder. Ambos compreendem que é vital para a PEA que os pontos de força sejam equilibrados e distribuídos da melhor maneira possível, porém, enquanto Kennan entende que a segurança dos EUA dependem de pontos centrais, Nitze coloca que toda e qualquer ação pode impactar esse sistema: “One of the most striking things about NSC 68 is its perception of the international order. Like Kennan, it saw American security as dependent upon the maintenance of a balance of power, but unlike him, it perceived that balance as delicately poised.”46 Em complementação, podemos ver que para o Conselho a delicadeza incluia mais a percepção do que estava ocorrendo do que as ações em si. A idéia era de que caso a opinião sobre a força militar e política dos EUA fosse abalada, ou colocada em cheque, já estaria ocorrendo uma perda, e portanto, todo esforço para impedir isso deveria ser feito. 45

GADDIS, J.L.; NITZE, P. NSC 68 and the Soviet Threat Reconsidered. International Security, Cambridge, v. 4, n. 4, primavera 1980. 46 idem

33

World order, and with it American security, had come to depend as much on the perception of the balance of power as on what that balance actually was. And the perceptions involved were not just those of statesmen customarily charged with conducting international affairs; they reflected as well mass opinion, foreign as well as domestic, informed as well as uninformed, rational as well as irrational. Before such an audience, even the appearance of a shift in power relationships could have unnerving consequences; judgments based on such traditional criteria as geography, economic capacity, or military potential now had to be balanced against considerations of image, prestige, and credibility. The effect was to vastly increase the number and variety of interests deemed relevant to the national security, and to blur distinctions between them.47

A principal alteração foi portanto a de adotar uma visão mais fatalista e belicosa, o que foi corroborado com a Guerra da Coréia. Além da possibilidade da guerra limitada, que complementa a idéia de que não há a necessidade de se levar o embate militar até as últimas consequências, mas sim até o ponto no qual seja interessante para a manutenção do equilíbrio. Um alteração também entre a proposta do Longo Telegrama e a do Conselho foi o pragmatismo do texto. Enquanto Kennan estava focado em criar um panorama da Rússia e como os EUA poderiam agir frente à outra potência, o NSC-68 foi uma proposição efetiva de ação, chegando a incluir os valores e quantidades necessárias para a manutenção do plano. Claro que os contextos são distintos e os objetivos que impulsionaram também são bem difusos, o que leva a essa disparidade. O fator da bomba nuclear soviética também influenciou diretamente o segundo texto. E essa pode ser uma das motivações de tantas alterações de visão de mundo, antes pensando em um âmbito de interrelação e criação de laços, agora um ambiente quase paranoico: On the one hand, the people of the world yearn for relief from the anxiety arising from the risk of atomic war. On the other hand, any substantial further extension of the area under the domination of the Kremlin would raise the possibility that no coalition adequate to confront the Kremlin with greater strength could be assembled. It is in this context that this Republic and its citizens in the ascendancy of their strength stand in their deepest peril.48 47

ibidem NATIONAL SECURITY COUNCIL. Nsc 68: united states objectives and programs for national

48

security, 1950. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2012.

34

É curioso como o conselho buscou justificar seus planos a partir de bases tão profundas do Estado Americano, recorrendo a citações da Constituição, para mostrar como faz parte da essência dessa nação defender os interesses da sociedade capitalista ocidental. Isso mostra como havia uma preocupação em acoplar as propostas ao modus operandi da Política e do pensamento: The fundamental purpose of the United States is laid down in the Preamble to the Constitution: “...to form a more perfect Union, establish Justice, insure domestic Tranquility, provide for the common defence, promote the general Welfare, and secure the Blessings of Liberty to ourselves and our Posterity." In essence, the fundamental purpose is to assure the integrity and vitality of our free society, which is founded upon the dignity and worth of the individual.49

Isso até complementa os argumentos de que a PEA está diretamente ligada à construção do pensamento da massa. Mesmo que esta não seja a principal formuladora, há uma constante preocupação de que a sociedade não seja afetada por outros pensamentos. Faz parte das propostas tanto de Kennan como de Nitze que a sociedade seja incluída, seja com influências diretas seja com informações. É nesse contexto que o comentário de Gaddis fica latente: “[…] that while in principle a democracy should choose its means selectively, when confronted by an absolute threat to its survival, anything was fair game.”50 Ou seja, a crença de que, os russos não teriam limites em suas ações, como Kennan havia apontado com menos enfoque fatalista, faz com que os formuladores das políticas atuem de uma maneira menos clara e mais subjetiva. Na análise do posicionamento do Kremlin, apresentada no relatório, é patente como há uma visão macro do movimento comunista, que induz a um erro, uma vez que mesmo internamente as movimentações comunistas não eram tão coordenadas como os americanos pensavam. A própria China ao participar da Guerra da Coréia, o fez em discordância com o governo Soviético. A visão americana da política externa russa tinha como base pensamentos como: The fundamental design of those who control the Soviet Union and the international communist movement is to retain and solidify their absolute power, first in the Soviet Union and second in areas now under their control. In the minds of the Soviet leaders, however, 49

idem GADDIS, J.L.; NITZE, P. NSC 68 and the Soviet Threat Reconsidered. International Security, Cambridge, v. 4, n. 4, primavera 1980.

50

35

achievement of this design requires the dynamic extension of their authority and the ultimate elimination of any effective opposition to their authority.51

É nesse tipo de visão que reside a mudança de Kennan para Nitze. Quando vemos o modo como há a definição dos interesses e das ameaças, isso fica ainda mais claro. Mesmo com semelhanças, o fato de a realidade ter fatores como a bomba nuclear alterou completamente o modo de lidar com essa ameaça soviética, Gaddis aponta: This definition of interests in terms of threats was, again, a departure from Kennan, whose concept of five power centers was independently derived, and could have applied as well to the crises of 1917 and 1941 as to that of 1950. No comparable statement of irreducible interests appears in NSC 68: the simple presence of a Soviet threat alone is deemed sufficient to make all interests endangered vital. The consequences of this shift in thinking were more than procedural: they were nothing less than to transfer to the Russians control over what United States interests were at any given point. To define interests in terms of threats is, after all, to make interests a function of threatsinterests will then expand or contract as threats do.52

Houve, portanto, a mudança no fiel da balança de poder, e as consequências são claras. Não se pensa mais na possibilidade de uma coexistência pacífica, ao mesmo tempo que se torna impossível uma Guerra. Raymond Aron pode nos explicar essa situação com o axioma “Guerra improvável, paz impossível”, uma vez que as tensões eram crescentes e havia uma disputa constante, mas ambos os lados não tinha um interesse real em um conflito direto. Gaddis ainda apresenta um ponto de conexão entre as duas propostas que nos ajuda a concluir o pensamento sobre as alterações. Ambas proposições tinham embasamento em uma flexibilidade, a diferença era o sentido desta flexibilidade. Enquanto Kennan acreditava em uma relativização na conexão, na qual as disputas poderiam em ser em âmbitos dispares, o NSC não aceitava a idéia de respostas não equivalentes.

51

NATIONAL SECURITY COUNCIL. Nsc 68: united states objectives and programs for national

security. , 1950. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2012. 52

GADDIS, J.L.; NITZE, P. NSC 68 and the Soviet Threat Reconsidered. International Security, Cambridge, v. 4, n. 4, primavera 1980.

36

Kennan, convinced that war with the Soviet Union was unlikely, wanted instead a kind of "horizontal" flexibility-the capacity to employ limited military force where appropriate, but to be able to make at least equal if not greater use of the economic, diplomatic, and psychological instruments of containment. For NSC 68, "flexible response" implied the ability to generate resources as needed to match commitment.53

O documento foi escrito para um propósito claro e seus resultados em geral foram alcançados com êxito. A Guerra Fria foi arquitetada e sustentada, com diversas oscilações, mas sempre tendo em mente esta dualidade entre uma proposta de maior conexão e aproximação, em contraposição a uma contenção persuasiva. A grande diferença seria o nível de ameaça e de atuação belicosa. Enquanto Kennan acreditava em uma menor militarização e uma confiança maior na balança Nuclear, Nitze indicava e reforçava a necessidade de criar uma força baseada nas ferramentas “convencionais”. No artigo de 1980, Nitze deixa claro, que o tempo mostrou como era necessário uma ação mais agressiva e menos diplomática frente a atores mais passionais: NSC 68 sought to move us away from primary reliance upon nuclear weapons, and toward building up conventional forces. The question was, how long would it take? History shows that we were right that it would take much more than two Marine divisions and much longer than a few years to achieve the necessary conventional buildup.54

Os resultados dessas mudanças perduraram por toda a Guerra Fria e até hoje tem impactado os posicionamentos de segurança do Governo Americano. Na Guerra ao Terror o mesmo ideário se repete. A alteração agora está em jogo por outros motivos, e não cabe a este trabalho analisar o contexto atual.

4. A Guerra da Coréia Uma vez que o foco central do presente trabalho é demonstrar a conexão da mudança na Política Externa e a publicação das tiras, optou-se por apresentar um panorama do que foi a Guerra da Coréia de maneira a nos localizar no tempo e no espaço. O intuito, portanto, é de nos embasar para as discussões sobre a tira em si.

53 54

idem ibidem

37

Conforme indicam diversos autores, como por exemplo Eric Hobsbawn55, esse foi o primeiro ponto de atrito entre as duas potências dominantes do pósSegunda Guerra, porém sem que ambas estivessem no campo de batalha stricto sensu. Foi um momento de transição do período diretamente pós-guerra, no qual se buscava uma paz relativa, para uma disputa tácita de território, usando como escudo as ideologias, mas sempre sendo os atores países secundários ou a imagem das forças de paz da ONU. Ao final da Segunda Guerra Mundial, as tropas americanas e soviéticas se instalaram estrategicamente em diversos territórios ocupados durante as batalhas, conforme acordado na conferência de Potsdam, em 1945. No caso da Coréia, o tratado determinava que a linha de divisão seria o “Paralelo 38”, conforme a rede geográfica, de tal maneira que os EUA ocupariam todo o espaço ao sul desta marca, enquanto os soviéticos seriam responsáveis pelo norte. O processo foi pacífico, chegando ao ponto de que as tropas, tanto americanas como soviéticas, terem sido desmobilizadas em 1949. Porém, em função de alterações políticas na Coréia do Norte, principiando-se com derrota de Chinag Kai-shek para a Revolução Popular de Mao Tsé-tung na China, em 24 de junho de 1950 o exército norte-coreano cruzou em massa o paralelo 38, iniciandose, assim, a primeira etapa da “Guerra da Coréia”. O conflito pode ser dividido em três fases distintas, ou conforme denominado na biografia de Dean Acheson, secretário de estado entre 1949 e 1953, escrita por Robert Beisner, as três guerras da Coréia: The first Korean War, which began with North Korean tanks rolling over the parallel, caused basic changes in U.S. cold war policies. In the second Korean War, U.S. forces threw back the invaders and headed north, above the 38th parallel. The third, which started with Chinese forces smashing the U.S. army and marines above the parallel, plunged the administration into crisis, stirred noxious new effusions of McCarthyism[…]56

A Guerra da Coréia portanto foi um marco que indicava que a Guerra Fria havia realmente começado, além de definir como os conflitos ocorreriam durante o 55

HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia Das Letras, 2008. 56 BEISNER, Robert. Dean Acheson: A life in Cold War. Nova Yorque: Oxford Press, 2006.

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período. Foi a primeira guerra na qual os americanos usaram a idéia de guerra limitada, na qual se avança apenas até o ponto que lhe é interessante, sem necessariamente levar o conflito até as últimas consequências, ou seja, uma contraposição à guerra ilimitada, na qual visava-se a eliminação do inimigo.

39

III.

Análise das Tiras

Na terceira seção do presente trabalho é onde se encontram as análises das tiras, mostrando como há o reflexo do contexto histórico-político apresentado. Como já foi indicado na primeira seção, serão salientados os elementos recorrentes, constantes e típicos do corpo artístico, de maneira a apresentar generalizações sobre a cultura.

1. Biografia Mort Walker57

Para podermos compreender de maneira mais completa o contexto, surge a necessidade de apresentarmos um breve histórico do autor. Uma vez que faz parte das análises entender sobre o autor, esta parte está inserida na presente seção. É natural que existem fatos históricos gerais que constam no relato abaixo, mas o foco principal são o como o autor está inserido neles. Addison Morton Walker, mais conhecido pelo apelido Mort Walker, o autor de Beetle Bailey, é natural de El Dorado, no Kansas. Nascido 3 de Setembro de 1923, desde muito cedo demonstrou seu interesse pelos quadrinhos, publicando pela primeira vez aos 11 anos. Aos 15 já era o autor das tiras de um jornal semanal da cidade. Com 18 anos se tornou chefe de design editorial na Hall Bros., que posteriormente

se

tornou

a

Hallmark,

uma

grande

empresa

de

cartões

comemorativos. Com a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, Walker foi convocado, e no ano de 1943 passou a servir o exército, sendo que já cursava faculdade na Universidade do Missouri. Atuando no departamento de inteligência e investigação

57

As informações aqui apresentadas foram retiradas da biografia apresentada no site oficial do autor.

40

na Itália, o autor conheceu a “vida da caserna”58 e da onde surgiram bases para as histórias que posteriormente escreveria. Sendo dispensado em 1947, como primeiro tenente, Mort volta para a universidade, e se forma em 1948. Vale ressaltar que nos anos que estudou na Universidade do Missouri ele foi o editor da revista da estudantil. E foi a partir daí que o ex-militar e desenhista decide buscar pelo seu sonho, de virar um quadrinista profissional. Partindo para a cidade de Nova Iorque, Walker trabalhou como editor em três revistas da Dell Publishing Company. Porém seu sucesso com os quadrinhos não foi tão rápido como esperava. Seus primeiros 200 cartoons foram recusados, mas graças a sua persistência, alguns editores começaram a reconhecer seu talento, e dois anos ele se tornara um cartunista que atingia grandes vendas. Foi apenas em 1950 que a agência59 King Features contratou Mort Walker como um de seus colaboradores. Ao contrário do que se pensa, a tira de um jovem universitário folgado e atrapalhado não faziam tanto sucesso, chegando ao ponto da agência cogitar em encerrar o contrato, mas com a entrada de Bailey no exército, houve um aumento nas vendas, o que fez com que o contrato fosse renovado. Até os dias de hoje Mort Walker trabalha desenhando o soldado e o Quartel Swampy. Somado a isso, o quadrinista também é um dos maiores colecionadores de Cartoons e quadrinhos do mundo, tendo aberto durante 34 anos o The National Cartoon Museum. Porém em função dos altos custos, sua coleção foi incorporada ao Billy Ireland Cartoon Library & Museum, da Universidade do Estado de Ohio.

2. Os Anos de Faculdade

Conforme consta na biografia de Walker: “Beetle, who was originally called "Spider," began as a college cutup. When he stumbled into an Army recruiting post in

58

Expressão militar para indicar todo o universo que envolve a vida de um militar durante seu treinamento e atuação. 59 Nos EUA é uma prática comum que os autores vendam parcial ou integralmente os direitos de publicação para as chamadas Syndicates, as quais se tornam responsáveis por vender a publicação das tiras e histórias, pagando ao autor um valor de royalties.

41

1951 during the Korean War, circulation began to climb.60” Portanto, para falarmos do soldado, antes precisamos falar do estudante universitário.

61

Figura 2 - Primeira Tira do Beetle Bailey

Beetle Bailey era um aluno desinteressado nas questões acadêmicas, mas focado nas demais vivências do ambiente no qual estava inserido. O personagem entende que o fato de estar em uma universidade irá, por si só, abrir portas e permitir que ele alcance cargos e posições de destaque, como representado na tira abaixo. O personagem pode ser entendido como uma representação do comodismo, um americano no conforto gerado pelo status quo do início dos anos dourados, conseqüência da resolução das grandes guerras.

62

Figura 3 - Uma representação das ambições de Beetle como universitário

60

MORT'S biography. , 2012. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2012. 61 O melhor do recruta zero 1. Tradução: Marco Aurélio Poli. Porto Alegre: L&PM, 2006 62 idem

42

63

Figura 4 - As piores preocupações são em como ocupar o tempo, mas não em como estudar

É interessante notar que muitos dos personagens apresentados são estereótipos de estilos da época. E como declara o próprio autor, refletem colegas de faculdade que ele teve durante seus anos de Universidade. Isso nos mostra como a sensibilidade do autor ao ambiente em que convive é alta, e sua capacidade de absorver os padrões, reproduzindo-os sobre uma versão cômica, são de uma habilidade ímpar.

64

Figura 5 - A vida universitária extra campus

Uma vez que Beetle representava um jovem acomodado com a situação. A economia estava estável e não haviam perspectivas de grandes mudanças nesse status quo. Portanto o personagem principal vivia sempre as custas de seus pais e não tinha grandes planos de mudar a situação, uma vez que era muito confortável a situação.

63 64

ibidem ibidem

43

Figura 6 – Vivendo as custas do pai

65

Figura 7 – A única ambição era se manter como estava o máximo que pudesse

Assim como Beetle Bailey, existem estereótipos que migram da universidade para o quartel. Um exemplo é o caso do calouro, personagem reincidente nas histórias pré-caserna66, que tem trejeitos e se coloca em situações um tanto quanto atrapalhadas, mas na maioria das vezes por ingenuidade e desinformação, além de ser vítima das malandragens que o personagem principal faz com ele. Mais a frente, já como soldado, um dos personagens que se assemelham muito a este estilo é o Dentinho.

67

Figura 8 - O jovem calouro

65

ibidem O termo “pré-caserna” aqui é utilizado para identificar as histórias escritas antes do alistamento de Beetle no exército. 67 O melhor do recruta zero 1. Tradução: Marco Aurélio Poli. Porto Alegre: L&PM, 2006 66

44

Porém, como aponta o próprio Mort Walker no seu livro “O melhor do Recruta Zero”, com o aumento do alistamento, essa figura que representava o universitário vai se tornando cada vez mais escassa, dando lugar a uma juventude militarizada. Sendo a tira uma alegoria da situação vivida pelo autor e pela sociedade americana como um todo, os impactos da Guerra da Coréia e dos alistamentos não poderiam passar despercebidos pela tira. Na entrevista ao The Comics Journal, o autor coloca como ocorreu essa mudança de um jovem universitário para um recruta: The other big change was after I’d started the strip, as a college strip, and it wasn’t selling well. I was very disappointed. They were thinking about dropping it; we only had about 25 subscribing papers there after six months. The editor of the Philadelphia paper — this was the big turnaround — thought that I should put Beetle in the Army. I was against it because after the war, all the Army strips, like Private Breger and Sad Sack and all of them just went down the hill. Some of them just completely disappeared. I didn’t want that to happen to me, so I resisted putting Beetle in the Army. This Philadelphia editor says, “You’ve got to put them in. They’re drafting guys like Beetle.” So I said OK.68

68

HARVEY, R. C.. The mort walker interview. The comics journal. Seatle, v. 279, 01 abr. 2009.

45

3. O Alistamento

69

Figura 9 - Ilustração com os dois momentos do personagem

Dados da época, fornecidos pelo departamento de alistamento do governo americano, levando em consideração os números de recrutamentos totais por ano, compreendidos entre 1917 à 1973, demonstram esse boom no alistamento. É interessante notar que o número total de alistamentos de 1951, 551.806 homens, só foi menor do que os dos períodos da Primeira e Segunda Guerra Mundial, sendo a maior marca a de 1943, totalizando 3.323.970 alistados em um único ano70. Vale ressaltar que o crescimento ocorrido durante a Guerra da Coréia, não se repetiu nenhuma outra vez, quando analisados os resultados comparativamente. Em 3 anos foram 1,529,539 homens recrutados, a guerra do Vietnã, que durou 9 anos, teve apenas 327.765 alistamentos a mais.

69

O melhor do recruta zero 1. Tradução: Marco Aurélio Poli. Porto Alegre: L&PM, 2006 SELECTIVE SERVICE SYSTEM. Induction statistics. , 2012. Disponível . Acesso em: 17 jun. 2012.

70

em:

46

71

Figura 10 – Todos os colegas estavam indo para o exército.

Como o personagem não tinha grandes ambições na universidade, a transição para o universo da caserna foi simples e sem grandes questionamentos. Porém, essa alteração no universo da história contada, representou, também, a naturalidade com a qual os jovens deixaram seu conforto para integrarem as forças armadas, demonstrando assim como os quadrinhos são um reflexo da sociedade na qual a sua produção está inserida.

72

Figura 11 – Beetle Bailey iniciando sua vida na caserna

73

Figura 12 – Alusão a uma notícia do alistamento de Beetle

71

O melhor do recruta zero 1. Tradução: Marco Aurélio Poli. Porto Alegre: L&PM, 2006 idem 73 ibidem 72

47

74

Figura 13 – Beetle vislumbrando sua vida militar

Foi tamanha a facilidade com que houve a transição que uma das tiras faz uma alusão a essa adaptação. As roupas do exército, uma vez que não ficavam bem em nenhuma pessoa, por serem feitas com medidas padrão, representam uma alusão ao fato de Beetle se encaixar no perfil da caserna.

75

Figura 14 – Alusão à idéia de que o exército servia bem para o personagem

Portanto a interconexão entre o cenário politico-histórico com a produção é diretamente ligada. Como constata Harvey na entrevista: There was a much larger audience of people who had been in the military at that point, in 1951, than there were people who had been to college. So there were a lot of people who would read Beetle Bailey, and it would ring bells for them.76

74

ibidem ibidem 76 HARVEY, R. C.. The mort walker interview. The comics journal. Seatle, v. 279, 01 abr. 2009. 75

48

77

Figura 15 – Beetle filosofando sobre como será no exército

Mesmo mudando de ambiente, diversas características e manias são mantidas, principalmente as ligadas à falta de vontade de trabalhar e fazer algo além de procrastinar. Mort Walker, em sua entrevista ao The Comics Journal, comenta que ele próprio, durante o período de serviço militar, estava sempre buscando meios de evitar o trabalho árduo, assim como seu personagem.

78

Figura 16 - Inclusive os testes de aptidão indicam a tendência de Beetle Bailey

77 78

O melhor do recruta zero 1. Tradução: Marco Aurélio Poli. Porto Alegre: L&PM, 2006 idem

49

4. A expulsão da Stars and Stripes

O segundo ponto a ser apresentado neste trabalho é o momento do pós Guerra da Coréia, no qual a tira foi banida da edição Japonesa do jornal militar americano “Stars and stripes”. Como afirma o próprio Mort Walker, essa exclusão teve um resultado positivo nas vendas, além de ter sido embasado no fato de a tira não ser construtiva para o treinamento dos soldados. Harvey: When Beetle went in the Army, there was a surge of interest in the strip and it increased its circulation, but it wasn’t until the Pacific Edition of Stars and Stripes banned the strip in January 1954 that it really got a boost, if I recall. Walker: Well, it gave me a lot of publicity. That was stupid for them to do that. […] Even the Pentagon felt that I was not helping discipline or the efficiency of the Army by criticizing it. I wasn’t really criticizing it; I just showed how guys could have fun, no matter where they were. [Laughter.] So finally, I went over to the Pentagon, because they did a book one time called How Not To Do Things and they used my strips in it.

79

Figura 17 - Última tira antes do banimento

Como se pode perceber na declaração, Walker em nenhum momento havia um intuito de divulgar qualquer valor, seja de esquerda ou de direita; ele visava apenas retratar uma situação de maneira o mais jocosa possível, o que acabou levando a uma má interpretação. O intuito do autor era criar uma imagem de descontração, mostrando que mesmo um espaço como o quartel, havia alguma liberdade para que essas situações ocorressem.

79

O melhor do recruta zero 1. Tradução: Marco Aurélio Poli. Porto Alegre: L&PM, 2006

50

80

Figura 18 - Alusão a uma notícia sobre o banimento da tira

Posteriormente a tira voltou a circular, porém o fato marcou por dois motivos: o primeiro é a demonstração de que há uma integração entre a cultura, o pensamento político e a população, mesmo que não seja claro, mas sempre em vias de mão dupla, ou seja, ao mesmo tempo que a publicação é influenciada, ela pode sofrer reações por supostas influências que cause; o segundo é o fato de o autor posteriormente ter incentivado que as famílias enviassem as tiras para os soldados, em uma atitude, comedida, de “desobediência civil”, apresentando novamente a conexão entre a realidade e a tirinha.

80

idem

51

81

Figura 19 - O ato de desobediência civil

São diversos os exemplos das tiras que mostram esse tom jocoso das tiras, as quais podem ter levado ao descontentamento da publicação em um veículo oficial. Muitas das piadas envolviam pequenas críticas ao sistema, porém sem abalar ou questionar a função real ou o como funciona o exército. A intencionalidade de Walker era sempre o de trazer uma boa piada.

82

Figura 20 - jogo de palavras que demonstra a consciência de Walker, porém sem formar uma crítica concisa.

81 82

ibidem ibidem

52

83

Figura 21 - Uma das piadas sobre a vida da caserna

83

ibidem

53

5. Considerações sobre a Análise

Nota-se na publicação, e em especial nos trechos ressaltados, que a história, a política e a cultura, estão intimamente ligadas. Essa ponte é expressa em situações

como

os

quadrinhos

que,

desde

seu

surgimento,

ganham

progressivamente peso e representatividade. O caso estudado, apesar de sua importância, ainda está longe de ser o mais expressivo de todos, mas é um momento muito claro dessa simbiose. Uma vez que este gênero de literatura já passou dos seus 80 anos, considerando o seu formato tradicional, a estruturação como objeto de pesquisa, apesar de ainda não suficientemente explorada, é uma realidade, sendo necessária a sua expansão para os campos das Ciências Sociais, dentre elas a História e as Ciências Políticas. Além de sua pertinente e reconhecida abordagem no campo da Comunicação. Como representação direta da interconexão entre a realidade e a tira, demonstrando como esta é um espelho das idéias do autor e muitas vezes a do senso comum, segue abaixo uma tira originalmente publicada em 7 de fevereiro de 1954, que ironiza sobre a própria existência da tira, sendo ela a única parte do jornal que os soldados lêem.

54

84

Figura 22 - Alusão à importância da tira dentre da publicação oficial do Exército

84

ibidem

55

56

IV.

Conclusão

Criar uma pintura sobre um fato histórico nos traz a uma realidade muito diferente de apenas analisarmos os fatos puros. A história e a política devem sempre caminhar em conjunto, para podermos entender o texto e o contexto dos processos de desenvolvimento da sociedade. Desmembrar essas análises sem levar em consideração questões tão centrais como a cultura cria, assim como fala Huizinga, um deserto, e não um ambiente povoado pelos personagens, tanto históricos como ficcionais. A necessidade de desenvolver panoramas como esse é impulsionada pela demanda de compreender as Relações Internacionais não como uma política na qual as sociedade está excluída, mas sim um sistema interligado de complementação. Não há um Estado sem que exista uma população que está dentro de seus domínios, portanto, a estrutura política sempre conta com as nuances da cultura. O soldado apresentado por Mort Walker não é uma relação apenas como o mundo militar, mas sim com a sociedade como um todo. Mesmo que as estruturas se alterem, algumas peças chave desse modelo se repetem, seja na forma como o Estado atende as necessidades dos cidadãos, seja na convivência familiar, representada pelo grande grupo de irmãos formado pelo Camp Swampy. Ler as tiras do Beetle Bailey é ver não só a piada com o exército e sua estrutura, mas sim como um autor entende a sua realidade, mesmo dentro da sociedade civil. Isso é mostrado por ações e imagens como a representação do próprio quartel, que conta com personagens caricatos que aparecem não só na hierarquia militar. As referências, por mais que estejam focadas em um escopo determinado, não se restringem a essa realidade.

57

85

Figura 23 - A imagem do quartel nos remete a um ambiente mais familiar do que militarizado.

As alterações sofridas no produto cultural como o caso do Beetle Bailey, nos mostra como a alteração na política externa americana foi sentida pela grande massa. Deixamos de olhar apenas sob os ombros do estadistas, e passamos a ver como a sociedade compreende o ocorrido. Os resultados das mudanças e dos rumos fizeram com que muitos jovens saíssem de suas universidades e fossem para os campos de treinamento, e isso é refletido na produção cultural. Mesmo a política que aparenta menos impactar a sociedade nacional, reverbera nos costumes e na vida das pessoas. Seja através de alistamentos e da entrada em uma guerra, ou com a aproximação ou afastamento de um determinado país, todas essas nuances impactam o que será produzido. Em alguns casos o impacto é mais político, como ocorreu com o capitão américa em 1941, em outros as críticas e os posicionamentos tem maior relação com as vivências, do que com uma questão política em si.

85

ibidem

58

O trabalho acima desenvolvido, portanto, nos é rico por levar um material pouco explorado para o foco das discussões sobre a política. Não pretendemos com isso encerrar ou indicar esta monografia como um corpo completo, mas sim como um ponto inicial de discussões, tendo como pano de fundo a questão cultural e as relações internacionais. Espera-se que outros trabalhos sejam realizados tendo em mente estes mesmos questionamentos sobre como há a interconexão da produção cultural com seu contexto político, inserindo o campo em um debate contemporâneo que já ocorre em outras áreas do conhecimento, como a sociologia e a antropologia.

59

V.

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