BELAS, Carla Arouca. Aspectos legais do INRC: relação com legislações nacionais e acordos internacionais. Belém: IPHAN, 2004

June 14, 2017 | Autor: Carla Belas | Categoria: Patrimonio Cultural, Direitos Coletivos
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INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL - IPHAN INVENTARIO NACIONAL DE REFERÊNCIAS CULTURAIS

ASPECTOS LEGAIS DO INRC RELAÇÃO COM LEGISLAÇÕES NACIONAIS E ACORDOS INTERNACIONAIS

Carla Arouca Belas

Belém, 31 de janeiro de 2004.

ÍNDICE

Página Introdução .............................................................................................................................

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1 - O INRC e a sua interface com legislações na Área Ambiental ....................................

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2 - O INRC e a sua interface com legislações na Área Cultural..........................................

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3 - O INRC e as questões referentes a direitos morais e patrimoniais sobre criações

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individuais e coletivas e o uso da imagem das comunidades ............................................ Considerações Finais ................................................................................................................

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Bibliografia .................................................................................................................................

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Anexos .........................................................................................................................................

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Introdução O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) constitui hoje um dos principais instrumentos para a identificação e documentação de bens culturais sob a perspectiva da atual política de valorização do patrimônio imaterial originada pelo decreto 3551 de 4 de agosto de 2000. Com a proposta de documentação de celebrações, formas de expressão, ofícios, lugares e edificações, o INRC demanda o acesso a criações de indivíduos e, sobretudo, comunidades. Em muitos casos, essas criações resultam de conhecimentos constituídos ao longo de gerações, a partir de observações e experimentações das possibilidades de uso do meio ambiente local para o tratamento de doenças, a construção de abrigos e a fabricação de artefatos e/ou utensílios. São criações tanto de utilidade prática quanto de beleza estética, que pressupõem técnicas bastante elaboradas como as referentes ao ofício de construção de barcos e casas. Sabemos hoje que esse tipo de conhecimento, sobretudo o conhecimento associado à biodiversidade, que serve de subsídio à descoberta de novos fármacos e composições cosméticas, é muito cobiçado pelo mercado e tem sido apropriado sem que as comunidades recebam qualquer benefício pelo seu uso comercial (Belas: 2004). Na mesma linha, vimos assistindo no meio fonográfico, cinematográfico, indústria e comércio, apropriações de expressões culturais como canções, danças, ritmos, artesanatos e símbolos sem qualquer menção ou retribuição as comunidades ou indivíduos que os criaram. Esse movimento denominado por Gonçalves (2002) de “apologia ao sincretismo cultural”, diz respeito tanto a cópias em série de bens culturais de comunidades e populações tradicionais, sem que lhes reconheça e gratifique os devidos direitos autorais, como o desrespeito ao direito moral das mesmas em decidir em que contexto, condições e formas aceitam a reprodução e o uso de seus bens, expressões ou símbolos culturais. Essas questões, relacionadas a direitos de propriedade intelectual e ao uso de imagem e, ainda, outras questões relacionadas ao acesso a informação e a repartição de benefícios com as comunidades detentoras do saber, ao uso sustentável do meio ambiente

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envolvente e a preservação de monumentos históricos e sítios arqueológicos são parte do cotidiano de um inventário de referências culturais. A diversidade de situações presenciadas no cotidiano de realização do inventário requer da equipe um conhecimento mínimo do arcabouço legal que envolve as pesquisas com comunidades locais e populações tradicionais. Essa percepção dos aspectos legais envoltos no trabalho de campo pode, se não evitar, ao menos minimizar uma das grandes preocupações de gestores, de pesquisadores e, sobretudo, das comunidades: o risco de que os inventários acabem servindo para facilitar apropriações indevidas de saberes e expressões culturais. Nesse sentido, o presente trabalho aponta interfaces entre o INRC e algumas legislações vigentes. O objetivo é a constituição de parâmetros legais mínimos que sirvam de referência às atividades de campo na realização dos inventários culturais. O texto está dividido em três tópicos, além das considerações finais e dos anexos. O primeiro trata a questão a partir de regulamentações na área ambiental; o segundo na área cultural e o terceiro sobre direitos morais e patrimoniais de criações coletivas e o uso da imagem das comunidades. Em anexo encontram-se todas as legislações utilizadas.

II – O INRC e a sua interface com legislações na Área Ambiental.

O meio ambiente não é apenas o espaço de produção e reprodução dos bens culturais, constitui, na maioria das vezes, a própria essência desses bens. É parte indissociável do imaginário coletivo, expresso nas letras das músicas, na sonoridade dos ritmos, na coreografia das danças e na história oral. Constitui, sobretudo, matéria-prima a criação de utensílios, instrumentos, meios de transporte, moradias, remédios e artefatos simbólicos. A valorização do conhecimento das comunidades locais e populações tradicionais no que se refere à transformação e ao uso dos recursos naturais passou a constituir uma demanda efetiva nos fóruns ambientais a partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD). Nesta Conferência, conhecida como Rio ECO92, foi elaborada a Convenção da Diversidade Biológica (CDB), que no seu art. 8 (j) conclama os países signatários a:

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Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento.

Outro tema importante da CDB expresso no art.15 se refere ao reconhecimento da soberania dos países na gestão do acesso a seus recursos naturais e ao conhecimento tradicional dos povos de seus territórios. O mesmo artigo propõe ainda que esse acesso esteja sujeito ao consentimento prévio da parte provedora dos recursos, conforme o que segue nos incisos 1 e 5: Em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional (CDB, art.15, 1); e O acesso aos recursos genéticos deve estar sujeito ao consentimento prévio fundamentado da Parte Contratante provedora desses recursos, a menos que de outra forma determinado por essa Parte (CDB, art.15, 5).

A CDB é uma convenção que tem por função o estabelecimento de diretrizes amplas, ficando a cargo dos países regulamentar seus dispositivos a partir da criação de leis específicas e o estabelecimento de programas e metas. Dessa forma, tem servido como parâmetro à formulação de legislações nacionais na área ambiental como: a lei n.9.985/00, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC); a lei.n.9605/98 referente a crimes ambientais; e, sobretudo, as discussões sobre o acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais, hoje regulamentado pela Medida Provisória n.2186-16/01. Mas, qual a relação dessas legislações com o Inventário Nacional de Referências Culturais? Algumas Unidades de Conservação, regulamentadas pelo SNUC como Unidades de Uso Sustentável, abrigam populações tradicionais que, em muitos casos, pelo distanciamento dos centros urbanos, têm preservado técnicas e conhecimentos milenares repassados de geração em geração desde os primeiros habitantes locais. As Áreas de Proteção Ambiental (APAS), as Reservas Extrativas (RESEX), as Florestas Nacionais (Flonas) e as Reservas de Desenvolvimento Sustentável constituem exemplos de Unidades

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de Conservação que mantém não apenas uma rica diversidade biológica, mas também diversidade cultural. Constituindo, dessa forma, áreas potenciais para a realização dos referidos inventários. Podemos citar ao menos dois inventários de referências culturais realizados em áreas desse tipo: o Inventário dos Trançados do Arapiuns, realizado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular dentro da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, em Santarém no Pará; e o Inventário Cultural da Ilha do Marajó, área de Preservação Ambiental que possui uma reserva extrativista em Pesqueiro, município de Soure. Este inventário, também no estado do Pará, vem sendo realizado pela 2a.SR do IPHAN. A realização de inventários dentro de unidades de conservação deve obedecer às regras legais de tais unidades, sobretudo no que se refere à obtenção de autorização para acesso e pesquisa na área e, também, ao incentivo a exploração comercial de bens culturais como explicito nos textos legais que se seguem: A realização de pesquisas científicas nas unidades de conservação, exceto Área de Proteção Ambiental e Reserva Particular do Patrimônio Natural, depende de aprovação prévia e está sujeita à fiscalização do órgão responsável por sua administração (SNUC, Art.32, § 2o ); E A exploração comercial de produtos, subprodutos ou serviços obtidos ou desenvolvidos a partir dos recursos naturais, biológicos, cênicos ou culturais ou da exploração da imagem de unidade de conservação, exceto Área de Proteção Ambiental e Reserva Particular do Patrimônio Natural, dependerá de prévia autorização e sujeitará o explorador a pagamento, conforme disposto em regulamento (SNUC, Art.33)

Tendo em vista o objetivo das unidades de conservação de: proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente (SNUC, art.4, inciso XIII)

Os responsáveis pela administração de tais reservas podem, mais que conceder autorizações, vir a ser verdadeiros parceiros na realização do trabalho de identificação e documentação dos bens culturais para o inventário1.

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Para conhecer melhor os tipos de unidades de conservação e as regras de acesso a cada uma delas, ver legislação em anexo.

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No que se refere à Lei de Crimes Ambientais, Lei n. 9.605/98, os crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural possuem uma seção específica (seção V). O art.62 estabelece proteção penal contra atos de destruição, inutilização ou deterioração que atinja bens, arquivos, registros, museus, bibliotecas, pinacotecas, instalações científicas ou similar protegido por lei. Também os arts. 63, 64 e 65 seguem a mesma linha no sentido de evitar atos de vandalismo, alterações em bens ou construções em locais protegidos por seu valor

“paisagístico,

ecológico,

turístico,

artístico,

histórico,

cultural,

religioso,

arqueológico, etnográfico ou monumental”. Contudo, as referências de interesse a realização dos inventários culturais não se restringem à seção V, dizem respeito também as questões relacionadas com os crimes contra a fauna e a flora (Seção I e II). Mencionamos anteriormente que o meio ambiente local fornece boa parte da matéria-prima a produção dos bens culturais. Assim, madeira, argila, sementes e casca de frutos, penas, couro e dentes de animais, se transformam em barcos, artefatos de cerâmica, bijuterias, instrumentos musicais e/ou rituais. Dessa forma, a natureza tanto influencia o modo de vida do homem e sua dinâmica cultural quanto é influenciada pelo mesmo. A intrínseca relação entre diversidade biológica e diversidade cultural nos mostra que a preservação e salvaguarda de inúmeros bens culturais depende também da preservação dos recursos naturais que lhes servem de base. O uso intensivo de um determinado recurso natural pode por em risco a produção e reprodução futura de um determinado bem cultural. A extração de argila em grande quantidade para a produção de artefatos de cerâmica, por exemplo, pode levar a exaustão desse recurso num determinado local caso não haja uma avaliação da capacidade de suporte deste local e, quando necessário, a realização de manejo por meio da diversificação dos locais de retirada. O mesmo se aplica a madeira para a construção de casas, embarcações e instrumentos musicais; a seringueira, que fornece a borracha usada na fabricação de produtos diversos; e ao miriti, palmeira muito usada no Pará para a produção dos famosos brinquedos de miriti, característicos das festividades relativas ao Círio de Nazaré. De outro modo, nos casos onde os recursos naturais já se encontram exauridos ou em processo, a adaptação talvez seja a única forma de garantir a reprodução de um determinado bem cultural. Este foi o caso da Viola de Cocho, instrumento musical tocado, sobretudo, na região do pantanal nos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, em

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manifestações como o Cururu e o Siriri. De acordo com Vianna et al (s/d), o modo tradicional de fabricação da viola empregava “tripas de ouriço-cacheiro (porco espinho) ou de bugio (macaco de grande porte), ou da irara, ou do macaco-prego para fazer as cordas”... e, ainda, “para colar as diversas partes, empregava-se a batata-de-sumaré (espécie de orquídea selvagem) ou um grude feito pelo cozimento de poças de piranhas (bexiga natatória, pequena tripa cheia de ar)”. A substituição dessa matéria-prima tradicionalmente utilizada por cola industrial e linha de náilon foi à forma encontrada pela comunidade para que a preservação do patrimônio cultural não comprometesse a preservação do patrimônio ambiental. Na citação abaixo a autora argumenta que essa diversificação da matéria-prima empregada na fabricação da Viola de Cocho não constitui uma descaracterização desse instrumento enquanto bem cultural: ... essa diversificação não descaracteriza ou ameaça a qualidade, a singularidade, o papel e o significado que esse instrumento tem na vida dos grupos de cururueiros e para o conjunto dos cidadãos brasileiros. A forma e a sonoridade em princípio não desaparecem; tampouco o prazer da brincadeira musical e as representações culturais associadas correm risco de extinção com a adaptação do processo de fabricação a outras matériasprimas.(Vianna et al, s/d)

Esses princípios de preservação ambiental como os que foram utilizados no Inventário da Viola de Cocho, realizado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, encontram-se presentes também no art. 225 da Constituição do Brasil, na seguinte forma: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defende-lo e preserva-lo para as presentes e futuras gerações (CF, art.225)

O acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, como já mencionado a partir da transcrição dos artigos 8 (j) e 15 da CDB, constitui outro tema legislativo de interesse na realização dos inventários culturais. A Medida Provisória n.2186-16, atualmente o principal instrumento de regulamentação dessa temática no país, afirma em seu art. 9o que:

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À comunidade indígena e à comunidade local que criam, desenvolvem, detêm ou conservam conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, é garantido o direito de: I - ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em todas as publicações, utilizações, explorações e divulgações; II - impedir terceiros não autorizados de: a) utilizar, realizar testes, pesquisas ou exploração, relacionados ao conhecimento tradicional associado; b) divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que integram ou constituem conhecimento tradicional associado; III - perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional associado, cujos direitos são de sua titularidade, nos termos desta Medida Provisória. Parágrafo único. Para efeito desta Medida Provisória, qualquer conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético poderá ser de titularidade da comunidade, ainda que apenas um indivíduo, membro dessa comunidade, detenha esse conhecimento.

O conceito de conhecimento tradicional que consta na MP é claramente restrito ao patrimônio genético com potencial comercial, como definido no art.7 inciso II. informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético.

Contudo, há previsões de que essa definição de conhecimento tradicional associado logo seja substituída por outra, constante no Anteprojeto de Lei de Acesso ao Material Genético e seus Produtos, a Proteção aos Conhecimentos Tradicionais Associados e a Repartição de Benefícios Derivados de seu Uso. Este anteprojeto, enviado a Casa Civil, para apreciação e posterior encaminhamento ao Congresso Nacional, foi elaborado nas reuniões do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN/MMA) visando à substituição da MP por uma legislação mais definitiva sobre o tema. A elaboração desse anteprojeto contou com uma ampla participação de representantes de órgãos governamentais, instituições de pesquisa, membros das comunidades e demais interessados da sociedade civil. A riqueza do debate propiciada pelo envolvimento de todos esses atores possibilitou rever e ampliar o conceito de conhecimento tradicional associado, definido no art.9, inciso II na forma seguinte: Todo o conhecimento, inovação ou prática individual coletiva dos povos indígenas, comunidades locais e quilombolas associados às propriedades,

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usos e características da diversidade biológica, dentro de contextos culturais que podem ser identificados como indígenas, locais ou quilombolas, ainda que disponibilizados fora desses contextos, tais como em banco de dados, inventários culturais, publicações e no comércio.

Em comparação com a MP 2186-16, a definição que consta na APL torna muito mais explícita a relação do conhecimento tradicional associado à biodiversidade com os contextos sociais em que os mesmos têm sido criados e mantidos. Há de se supor que esse evidenciamento, inclusive, citando os inventários culturais como forma de documentação desses saberes, constitui uma via de mão dupla. Ou seja, se por um lado caracteriza uma vitória dos setores culturais quanto à adoção de uma visão menos reducionista e restrita do conhecimento tradicional a informações de potencial comercial para a área de fármacos, por outro, se traduz em novas implicações e demandas aos setores da esfera cultural que desenvolvem e utilizam instrumentos de documentação, inventários e registros de bens culturais. A inclusão dos inventários culturais na definição dos conhecimentos tradicionais associados leva a supor que, tão logo vigore esta legislação, a realização de inventários que envolvam de alguma forma acesso aos conhecimentos tradicionais associados, deverá se submeter à concordância do CGEN, órgão atualmente responsável por conferir as autorizações de acesso. Nesse aspecto, deve ser dada especial atenção aos inventários que

têm como base de atuação a identificação de manifestações culturais de comunidades ribeirinhas ou povos indígenas que habitam áreas de grande biodiversidade, a exemplo dos inventários realizados na Ilha do Marajó (PA) e no Alto Rio Negro (AM). Sabe-se hoje que o referencial etnobotanico, ou seja, a informação que a comunidade fornece sobre o uso local de uma determinada planta ou qualquer outro recurso da fauna e da flora, embora não dispense a necessidade de se realizar inúmeros procedimentos como, por exemplo, os testes toxicológicos e a avaliação da viabilidade para a produção em larga escala, reduz substancialmente o custo da pesquisa para obtenção de novos produtos cosméticos ou medicamentos quando comparado ao uso exclusivo de técnicas de identificação puramente laboratorial. O interesse das empresas nesse tipo de conhecimento está tanto relacionado com a possibilidade de reduzir os custos da pesquisa, quanto em agregar valor aos seus produtos a partir do uso da imagem

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das comunidades. Nesse sentido, entendemos que a realização dos inventários culturais nessas áreas deve prever uma discussão com as comunidades sobre o potencial valor comercial das informações que estão fornecendo e, ainda, lhes deve ser dado o direito de opinar se desejam ou não que essa informação seja acessada por um público amplo.

II – O INRC e a sua interface com legislações na Área Cultural. A valorização do patrimônio imaterial tem como referência, no âmbito internacional, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003, e também o documento “Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular” de 1989. Esses documentos surgiram no âmbito da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) como uma reação ao documento da Convenção Relativa a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972, que restringe o conceito de patrimônio cultural a monumentos, conjuntos arquitetônicos e sítios urbanos e naturais, conforme o art.1o. abaixo transcrito: Para fins da presente Convenção serão considerados como : - os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de elementos, que tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; - os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas que, em virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; os lugares notáveis: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como as zonas, inclusive lugares arqueológicos, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.

Contrapondo esta definição presente na Convenção de 1972, a Convenção de 2003 aborda o patrimônio cultural a partir de duas vertentes: o patrimônio cultural imaterial e o patrimônio cultural material e natural. Adotando no art.2o. §1o. a seguinte definição de patrimônio imaterial: Se entiende por “patrimonio cultural inmaterial” los usos, representaciones, expresiones,conocimientos y técnicas-junto con los instrumentos, objetos, artefactos y espacios culturales que les son inherentes- que las comunidades, los grupos y en algunos casos los individuos reconozcan como parte integrante de su patrimonio cultural. Este patrimonio cultural inmaterial, que se transmite de generación en

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generación, es recreado constantemente por las comunidades y grupos en función de su entorno, su interacción con la naturaleza y su historia, infundiéndoles un sentimiento de identidad y continuidad y contribuyendo así a promover el respeto de la diversidad cultural y la creatividad humana. A los efectos de la presente Convención, se tendrá en cuenta únicamente el patrimonio cultural inmaterial que sea compatible con los instrumentos internacionales de derechos humanos existentes y con los imperativos de respeto mutuo entre comunidades, grupos e individuos y de desarrollo sostenible.

No Brasil, a idéia de preservação do patrimônio imaterial remonta a década de 30, com a elaboração do Anteprojeto de Proteção do Patrimônio Artístico Nacional por Mario de Andrade. Esse anteprojeto propunha a criação de um órgão no Ministério da Educação, mais especificamente o Serviço do Patrimônio Artístico Nacional (SPAN), com o objetivo de “determinar, organizar, conservar, defender e propagar o patrimônio artístico nacional”2. O conceito de patrimônio cultural adotado por Mario de Andrade era bastante amplo e envolvia tanto os monumentos e bens históricos e arqueológicos quanto às manifestações da cultura popular e indígena, como: músicas, contos, lendas, medicina, culinária e outros. Inovador, tanto nacional quanto internacionalmente, serviu de referência à elaboração do Decreto-Lei n.25/37, responsável por organizar a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Embora tenha criado o instituto do tombamento, inclusive prevendo sanções administrativas, civis e penais ao não cumprimento da lei, o Decreto-lei 25/37 não enfatizou a proteção das expressões da cultura popular e indígena na mesma medida que o texto do Anteprojeto escrito por Mario de Andrade3. A ênfase exclusiva no patrimônio material foi mantida pelo Instituto Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) até a década de 70, quando, segundo Márcia Sant’Anna (2003), a questão da proteção do patrimônio imaterial retorna por meio de iniciativas e ações experimentais de registros do Centro Nacional de Referência Cultural e pela Fundação Nacional Pró-Memória. Um trabalho mais efetivo e sistemático nesse sentido só 2 Andrade, M. de “Anteprojeto para a Criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional”. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, no.30, 2002. 3 De acordo com Falcão “...a defesa de Mário de Andrade do patrimônio imaterial não granjeava o mesmo apoio político da classe média que o patrimônio material de pedra e cal obtinha de nossa elite. Era proposta restrita a um grupo de intelectuais avançados no tempo. Demanda de ninguém politicamente poderoso. Nem dos partidos de esquerda, nem dos de direita. Nem dos democratas, nem dos ditatoriais. A preservação da lenda ou da dança indígena não tinha a mesma legitimidade social de um altar barroco resplandecendo a ouro. Era quase uma extravagância intelectual. Ter razão antes do tempo, diz o ditado, é errado” ( 2001: p.169-170)

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foi possível a partir da Constituição de 1988, que seguindo a tendência internacional, identifica formalmente os bens imateriais como parte do patrimônio cultural da nação, como descrito no art.216: Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais incluem: I- as formas de expressão; II- os modos de criar, fazer e viver; III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artísticos-culturais; V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arquitetônico, paleontológico, ecológico e científico.

Nos parágrafos que seguem o caput do mesmo artigo são mencionados os meios de salvaguarda, proteção e incentivo a preservação e manutenção desses bens culturais de natureza material e imaterial: §1o. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. §2o. Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

O uso de inventários e registros para a documentação do patrimônio cultural a que se refere § 1o. acima citado, foi regulamentado pelo decreto 3551/00. O Decreto cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro a partir da documentação em 4 livros específicos: I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e

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reproduzem práticas culturais coletivas. (Decreto 3551/00, Art.1o, § 1o ).

O art. 2o. estabelece que a instauração de um processo de registro pode ser solicitada pelo Ministro de Estado da Cultura; instituições vinculadas ao Ministério da Cultura; Secretarias de Estado, de Município e do Distrito Federal; sociedades ou associações civis. Depende, entretanto, de avaliação do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, que decidirá em ultima instância pela inscrição do bem e a sua titulação como Patrimônio Cultural do Brasil a partir de critérios como o de relevância nacional exposto no trecho a seguir: A inscrição num dos livros de registro terá sempre como referência a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira (Art. 1o., § 2o ).

No caso específico dos bens culturais dos povos indígenas a Funai estabeleceu uma regulamentação própria, a Portaria n.693/00. De acordo com Ana Valéria Araújo esta Portaria, que cria o Cadastro do Patrimônio Cultural Indígena, foi estabelecida pelo presidente da Funai visando aos indígenas “maior autonomia para a proteção dos seus bens e garantir a independência em relação aos diversos interesses que os contrapõem” (2000, p.100). Em comparação com o Decreto 3551/00 a Portaria n.693/00 opta por um caminho mais simplificado, tanto no que se refere à solicitação, quanto à instauração do processo de registro. O cadastro pode ser requisitado por um número maior de atores, prevendo no Art.3o não apenas solicitações coletivas, mas também individuais. Além disso, esse mesmo artigo garante a sociedade indígena o direito de se opor ao registro: Art.3o. Poderão solicitar a instauração do procedimento de cadastro I – as sociedades indígenas e suas comunidades; II – as organizações indígenas; III – as organizações da sociedade civil; IV – as instituições científicas; V – o Ministério Público Federal; VI – a Fundação Nacional do Índio; VII – o índio, no caso de produção individual Parágrafo Único – Em qualquer hipótese, fica ressalvado o direito da sociedade indígena interessada obstar o cadastro de um bem integrante do seu patrimônio cultural.

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O estabelecimento de uma Comissão Deliberativa (art.7o.), ao contrário do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural previsto no Decreto 3551/00, não tem por função o julgamento do que deve ou não ser registrado, mas apenas o de dirimir dúvidas ou conflitos decorrentes de um cadastro já efetuado. Outro aspecto importante se refere à preocupação com a gratuidade e não obrigatoriedade do registro, sendo expresso de forma explícita no art. 2o. que o cadastro não constitui condição necessária para atestar a existência e titularidade do bem cultural. Não obstante a sua proposta de simplificação, na prática, contudo, o cadastro do patrimônio cultural indígena não tem tido o mesmo desempenho que o registro dos bens culturais de natureza imaterial. Em palestra proferida no seminário “Propriedade Intelectual & Patrimônio Cultural: proteção das expressões culturais tradicionais” (Belém, 2004) José Carlos Levinho, diretor do Museu do Índio, afirmou que por dificuldades de infra-estrutura institucional o Museu do Índio ainda não implementou esse instrumento legal de forma efetiva. Outro tipo de inventário que possui interface com a preservação do patrimônio imaterial é o inventário com finalidades turísticas dos bens de valor cultural e natural previsto na Lei n.6513/77 que dispõe sobre a criação de Áreas Especiais e de Locais de Interesse Turístico. São considerados de interesse turístico, dentre outros, “os bens de valor histórico, artístico, arqueológico ou pré-histórico” e, ainda, “as manifestações culturais ou etnológicas e os locais onde ocorram” (art.1o.). A responsabilidade de implantar e manter atualizado o Inventário das Áreas Especiais de Interesse Turístico, dos Locais de Interesse Turístico e dos bens culturais e naturais protegidos por legislação específica, foi dada a Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR). Esta entidade é também responsável por manter entendimento com outros órgãos e entidades com a finalidade de definirem os bens culturais e naturais protegidos que possam ter utilização turística e os usos turísticos compatíveis com os mesmos bens. Esses órgãos e entidades encontram-se enumerados como se segue no artigo 5o: Art . 5º - A ação do Governo Federal, para a execução da presente Lei, desenvolver-se-á especialmente por intermédio dos seguintes órgãos e entidades: I - Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR) vinculada ao Ministério da Indústria e do Comércio; Il - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), do Ministério da Educação e Cultura;

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III - Instituto Brasileiro Desenvolvimento Florestal (IBDF), do Ministério da Agricultura; IV - Secretaria EspeciaI do Meio Ambiente (SEMA), do Ministério do Interior; V - Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU), organismo interministerial criado pelo Decreto nº 74.156, de 6 de junho de 1974; VI - Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), do Ministério da Agricultura.

A lei afirma ainda, que esses órgãos e entidades acima enumerados têm a responsabilidade de enviar “a EMBRATUR, para fins de documentação e informação, cópia de todos os elementos necessários à identificação dos bens culturais e naturais sob sua proteção, que possam ter uso turístico” (art. 6o, § 2º). Além das legislações que tratam a questão do patrimônio imaterial de forma mais explicita é fundamental a realização do trabalho do INRC o conhecimento de legislações voltadas à preservação do patrimônio material como: a lei n.3924/61 que dispõe sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos. O conhecimento desse arcabouço legal pode ser útil a condução das atividades de campo em áreas tombadas por seu valor histórico ou com incidência de sítios arqueológicos. Este é o caso da Ilha do Marajó, onde a equipe de campo do inventário cultural tanto ouviu relatos quanto documentou as condições físicas de alguns bens históricos e sítios arqueológicos. Para Márcia Sant`Anna (2001), a idéia de patrimônio cultural traz em si tanto o conceito de patrimônio material quanto imaterial. Segundo a autora esses dois conceitos devem ser entendidos não como opostos, mas como complementares, “um não faz sentido sem o outro, e um não pode ser completamente apreendido sem o outro” (p.160). O patrimônio imaterial tem uma face material expressa em objetos concretos (artefatos, vestimentas, locais de produção e reprodução) da mesma forma que monumentos, edificações e sítios possuem uma face imaterial expressa em valores e representações sociais a eles atribuídos. Sant`Anna usa o exemplo de um sítio urbano tombado, no qual “além dos valores históricos, artísticos, arqueológicos e paisagísticos que nele se reconheça – valores que se vinculam a determinada configuração espacial ou física – possui ainda valores que se ligam ao uso e a prática social daquele espaço”(2001:p.160). Essa mesma lógica também permeia o trabalho de Choany como explicito na citação abaixo:

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A especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu modo de atuação sobre a memória. Não apenas ele a trabalha e a mobiliza pela mediação da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo vibrar como se fosse presente. Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma encantado, não é o passado qualquer: ele é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar... O monumento assegura, acalma, tranqüiliza, conjurando o ser no tempo. Ele constitui uma garantia das origens e dissipa a inquietação gerada pela incerteza dos começos. (Choany, Françoise; apud Cunha, 2004, p.95-96)

A metodologia do INRC ao propor a documentação de lugares e edificações abre espaço a superação dessa falsa dicotomia. Faces de uma mesma moeda, material e imaterial compõem juntos o chamado Patrimônio Cultural.

IV – O INRC e as questões referentes a direitos morais e patrimoniais sobre criações das comunidades. Nessa discussão sobre legislação não podemos deixar de lado questões referentes a direitos morais e patrimoniais relacionados a criações coletivas e individuais e ao uso da imagem das comunidades. Uma das maiores preocupações geradas na implantação de inventários como instrumento de documentação das expressões da cultura popular e tradicional é a gestão posterior das informações reunidas. O documento da UNESCO “Recomendações sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular de 1989” trata a questão num item específico chamado proteção da cultura tradicional e popular. São recomendados aos países signatários: proteger a privacidade dos portadores de tradição; adotar medidas para salvaguardar as informações reunidas de apropriações indevidas e mal usos; manter a monitoração do uso do material coletado; proteger o interesse dos pesquisadores cuidando para que o material coletado seja bem acondicionado. O documento recomenda, ainda, atenção aos direitos de propriedade intelectual, embora reconheça as limitações desse instrumento no que se refere à proteção das expressões da cultura tradicional e popular. Em parte, atribui-se tais limitações ao fato das legislações de direitos autorais e de propriedade industrial terem sido formuladas com o

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intuito de assegurar, sobretudo, direitos individuais, enquanto os bens culturais se referem eminentemente a direitos coletivos. Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) em conjunto com a UNESCO têm realizado pesquisas no sentido de avaliar dentre os atuais mecanismos de proteção da propriedade intelectual quais seriam mais adequados ou mais facilmente adaptados à proteção dos conhecimentos tradicionais e das expressões culturais4. Tem se discutido, por exemplo, se as indicações geográficas não poderiam constituir uma forma eficiente de agregar valor a produtos com um modo de fazer específico e restrito a uma determinada comunidade. No caso dos bens culturais difusos, aos quais não se consegue claramente identificar a autoria, a idéia mais recorrente é a da criação de mecanismos desvinculados do atual sistema de propriedade intelectual. No âmbito das discussões da criação de tais mecanismos, conhecidos como sui generis, surgiu a idéia do domínio público pago. No qual, o pagamento pelo uso comercial de um saber popular amplamente difuso e documentado serviria a um fundo para financiamento de projetos para as comunidades de uma forma em geral. No entanto, é importante observar que nem todos os casos se referem a criações coletivas ou de domínio público. Existem produtos, processos ou expressões artísticas individuais cujos autores são plenamente identificáveis. Nestes casos, dependendo da natureza da criação, podem e devem ser utilizados como instrumentos de proteção patentes, marcas e desenhos industriais, em se tratando de produtos e processos inovadores como: um motor mais potente ou um desenho de barco mais arrojado, um novo equipamento ou melhorias tecnológicas em produtos já conhecidos. Também, no que se refere a músicas, estórias e outras formas de expressão, quando resultante de criatividade individual, devem ter a autoria reconhecida. Esses direitos são garantidos na lei nº.9.610/98 de Direitos Autorais, na lei n.9279/96 de propriedade industrial e no art. 5o. incisos XVII e XXIX da Constituição Federal de 1988. No entanto, mesmo nos casos de autorias individuais, sempre há possibilidade de novos arranjos. Essa tem sido a proposta do Instituto Nacional para a Propriedade Intelectual Indígena (INBRAPI), que incentiva os 4 O resultado dessas pesquisas encontram-se disponíveis na página da OMPI: www.wipo.int/globalissues/tk/repor/final/index

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autores indígenas a revertem parte dos recursos obtidos com os direitos autorais de publicações sobre o imaginário indígena em benefício da própria etnia, enquanto detentora do saber que subsidiou a publicação. No que se refere à questão da imagem das comunidades tradicionais, encontramos também no art.5o. da Constituição Federal, anteriormente citado, a garantia de inviolabilidade em relação à imagem, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente da violação desse direito. Embora ainda não existam mecanismos legais de caráter global voltados especificamente a proteção dos conhecimentos e expressões da cultura popular e de povos tradicionais, entende-se hoje que o uso do conhecimento e da imagem de comunidades demanda uma permissão formal mesmo nos casos nos quais não haja interesse comercial. Araújo (2000) ao abordar a questão no âmbito dos povos indígenas afirma a importância da formulação de contratos que garantam os créditos de autoria coletiva e a proibição de reprodução total ou parcial sem autorização dos detentores do conhecimento. No caso específico do uso da imagem, chama a atenção para a necessidade de garantir que a utilização da imagem não seja ilimitada ou ofensiva aos usos, costumes e tradições da comunidade em questão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho procurou demonstrar que a documentação, a manutenção e a salvaguarda do patrimônio imaterial possuem implicações legais além do Decreto 3.551/00, que atualmente regulamenta a temática no país. São inúmeras as interfaces com legislações que tratam de questões ambientais, turismo, comércio, propriedade intelectual e outros. Constituindo, assim, um arcabouço legal importante enquanto subsídio à realização dos trabalhos de campo dos inventários. Quatro problemáticas nortearam a escolha das legislações pesquisadas: primeiro, a necessidade de preservação do meio ambiente enquanto local de produção de expressões culturais e subsídio à manutenção e continua reprodução das mesmas; segundo, a constituição e gestão do acervo reunido na pesquisa e, ainda, o envolvimento e o

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consentimento das comunidades no que se refere à realização, a divulgação e ao acesso aos bens inventariados; terceiro, a interface entre patrimônio material e imaterial; e, quarto, os direitos de autoria coletiva e individual sobre as produções culturais. Em relação à primeira problemática as legislações pesquisadas na área ambiental (a CDB, o SNUC e a lei de Crimes Ambientais) evidenciaram, dentre outros aspectos, a necessidade de obtenção do consentimento prévio das comunidades para a realização de pesquisas, a atenção as regras de acesso para pesquisa em áreas de proteção ambiental, e, ainda, a preocupação com o uso sustentável dos recursos naturais na produção dos bens culturais. As legislações nessa área demonstram, sobretudo, uma imbricada relação entre biodiversidade e sóciodiversidade, sendo a cultura tanto influenciada como influência ao meio ambiente local. No que se refere à segunda problemática, ainda na área ambiental, a CDB e a MP n.2186-16/01 explicitam um dilema que aparece como inerente à proposta de realização dos inventários culturais: divulgar ou não divulgar os resultados da pesquisa. O crescente interesse comercial nos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade tem levado pesquisadores, comunidades, instituições governamentais e não governamentais, a discutirem a criação de um sistema legal que regulamente o acesso ao conhecimento tradicional e assegure a repartição de benefícios com comunidades detentoras de saberes locais. Esse esforço conjunto tem como base a concepção de que o conhecimento que essas comunidades possuem dos recursos naturais que as envolvem é resultado de um longo processo de pesquisa, experimentação, observação, raciocínio e intuição não apenas transmitido como reformulado por inúmeras gerações. E, como tal, nada mais justo que as populações detentoras de saberes tradicionais recebam benefícios pelo repasse desses conhecimentos, principalmente quando se destina a uso comercial e lucro de terceiros. Esse tipo de preocupação tem sido associada com maior freqüência a conhecimentos relacionados à medicina tradicional, sobretudo pelo grande potencial de mercado que apresentam. Mas, não se restringe a estes, como bem mostra o documento Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (UNESCO, 1989), quando aborda a possibilidade dos inventários servirem como fonte de consulta a facilitar cópias e, por conseguinte, reproduções de bens culturais sem autorização ou benefício das comunidades que os originaram.

Numa pesquisa sobre conhecimentos tradicionais

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realizada pela OMPI (1998 a 1999)5 com comunidades de vários países, a perda de significação e, por conseguinte, o desaparecimento da própria cultural, foram apontados pelas comunidades como possíveis conseqüências indesejáveis da exploração comercial de suas expressões culturais. Por outro lado, algumas comunidades vêem o inventário e a divulgação posterior das informações nele reunidas como uma possibilidade de inserção dos seus produtos e bens culturais no mercado. A visibilidade, neste caso, é desejada por gerar interesse e demandas em relação aos bens culturais e, por conseguinte, novas perspectivas de aumento da renda dos grupos produtores desses bens. A perspectiva de inserção no mercado - a exemplo do trabalho que tem sido realizado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular com o apoio aos artesãos em inventários como os da Cuia de Santarém, do Bumba-meu-boi e outros – constitui uma forma de inclusão social e, em muitos casos, manutenção da cultura de comunidades historicamente alijadas dos processos de desenvolvimento social. Nesse aspecto inúmeras instituições tanto no âmbito local quanto federal poderiam se constituir parceiras. No caso da EMBRATUR essa parceria já se encontra respaldada na lei n.6513/77, que dispõe sobre a criação de Inventários com finalidades turísticas dos bens de valor cultural e natural. Outra instituição importante é o Museu do Índio, atualmente responsável pelo cadastro e inventário do patrimônio cultural indígena, de acordo com a Portaria n.693/00 da FUNAI, que poderia, com o apoio do IPHAN, concentrar os esforços e as iniciativas de inventários relacionados a povos indígenas, dada à especificidade deste tipo de inventário e a experiência deste órgão. As distintas expectativas quanto à inserção dos bens culturais no mercado reforçam a idéia de que é necessário que os membros das comunidades sejam convidados a participar de forma mais intensa nas decisões que envolvem as diferentes etapas de realização dos inventários. É importante que as comunidades sejam vistas não simplesmente como beneficiarias, mas, sobretudo, como parceiras na realização deste tipo de trabalho. A participação das comunidades, grupos e indivíduos nas atividades que

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As missões de enquêtes foram realizadas entre 1998 e 1999 e o relatório final encontra-se disponível in: www.wipo.int/globalissues/tk/repor/final/index .

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visam a salvaguarda do patrimônio imaterial é, inclusive, objeto do art. 15 da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003. O estabelecimento de parcerias com membros das comunidades ou grupos pesquisados e, ainda, com diferentes instituições de apoio a manutenção e ao desenvolvimento da cultura local, favorece a compreensão de uma realidade extremamente complexa e dinâmica, que envolve tanto o imaginário per si quanto sua expressão em edificações, produtos e processos. Dessa concepção surge a terceira problemática do trabalho, a percepção de que o inventário engloba tanto o patrimônio imaterial quanto o material reforçando a importância do conhecimento de algumas legislações voltadas a proteção do patrimônio material como: a Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da UNESCO6; a Lei n. 3924/61 que Dispõe sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos; a Lei n. 7.347/85 que disciplina ação civil pública de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e turístico; além do Decreto-Lei n.25/37, que Organiza a proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional. Quanto a quarta problemática, referente a questões de direitos de propriedade intelectual e uso da imagem das comunidades, foi utilizado como apoio à legislação de direitos autorais, lei nº.9.610/98, e de propriedade industrial, lei n.9279/96, além do art. 5o. incisos XVII e XXIX da Constituição Federal de 1988. No entanto, em relação a essa questão específica, o conhecimento da legislação não é o bastante. É importante ter alguma noção de como esses mecanismos funcionam na prática a fim de que se possa oferecer uma assessoria mínima tanto no que se refere à salvaguarda de criações coletivas quanto individuais. Nesse sentido, poderia ser estabelecida uma parceria com o INPI, visando a criação de programas para a capacitação das equipes de campo dos inventários e, ainda, para oferecer apoio as comunidades. Embora se tenha dado destaque a legislações da área ambiental e cultural, o presente texto não sustenta a opinião de que essas seriam as duas únicas áreas com mecanismos legais de implicações diretas a realização dos inventários. Também não há qualquer pretensão de que o trabalho esgote todas as possibilidades de discussão nessas Aprovada no Brasil pelo decreto legislativo n.74 de 30.06.1977 e promulgada pelo decreto n.80.978, de 12.12.1977 6

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áreas. A proposta é apenas a de iniciar a discussão, abrindo o caminho a trabalhos similares, tanto no âmbito federal quanto no estadual, que apontem ou aprofundem novas interfaces com mecanismos legais em outras áreas do conhecimento como: a agrária, a educação e o comércio. Entendemos, que evitar que os inventários facilitem apropriações indevidas, de saberes e expressões culturais de comunidades e, ainda, possibilitar as condições para a manutenção e reprodução desses bens culturais, implica no respeito às regras legais de acesso a esses inúmeros saberes, ao ambiente onde os mesmos se desenvolvem e, também, ao imaginário que os envolve. Nesse sentido, entendemos que as comunidades possuem não apenas o direito de se beneficiarem coletivamente por seus conhecimentos e serem compensadas pela conservação dos recursos genéticos (mediante remunerações monetárias, bens, serviços, direitos de propriedade intelectual ou outros mecanismos) como, o direito de negar o acesso a tal conhecimento ou romper acordos quando julgarem ameaçada a integridade de seu patrimônio natural ou cultural.

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BIBLIOGRAFIA ARAÚJO, A . V. “Direito Autoral e Direito de Imagem: novos desafios para os índios”. In: Carlos Alberto Ricardo (editor) Povos Indígenas no Brasil, 1996-2000. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000. BELAS, C.A. “A Propriedade Intelectual no Âmbito dos Direitos Difusos”. In: Teixeira, J.G.L.C. et al (org) Patrimônio Imaterial, Performance Cultural e (Re)Tradicionalização. Brasília: ICS-UnB, 2004. CARVALHO, L. Trançados de Arapiuns. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2004. CUNHA, D. F. S. Patrimônio Cultural: proteção legal e constitucional. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004. DIAS, L. M. e VIANNA, L. (orgs) Viola de Cocho Pantaneira. Rio de Janeiro: Funarte, CNFCP, 2003. FALCÃO, J. “Patrimônio Imaterial: um sistema sustentável de proteção”. In: Revista Tempo Brasileiro, n. 147, p. 163-180, out-dez, 2001. GONÇALVES, N. “O folclore e a Gestão Coletiva de Direitos”. In: Revista da ABPI. São Paulo, n.60, p.53-55, set/out, 2002. LIMA, A. et alli. “Direitos Intelectuais Coletivos e Conhecimentos Tradicionais” In: Quem Cala Consente? Subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. Organizadores André Lima & Nurit Bensusan. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2003. MINC/IPHAN. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: MinC/IPHAN, 2003. VIANNA, L. et alli Viola de Cocho:Patrimônio Nacional. Rio de Janeiro: Funarte, CNFCP, (s/d) SANT’ANNA, M. “Patrimônio Imaterial do Conceito ao Problema da Proteção”. In: Revista Tempo Brasileiro, n. 147, p.151-161, out-dez, 2001. SILVA, F.F. “Mario e o Patrimônio, um Anteprojeto ainda atual”. In: Marta Rosseti Batista (org.) Mario de Andrade, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília, n.30, p.129-137, 2002. VIANNA, L. “Patrimônio Imaterial: legislação e inventários culturais”. In: Cecília Londres et al. Celebrações e Saberes da Cultura Popular: pesquisa, inventário, crítica, perspectivas. Rio de Janeiro: Funarte, Iphan, CNFCP, Encontros e Estudos n.5, 2004. WIPO/GRTKF/IC/3/10 Rapport final sur l’expérience Acquise au Niveau National en ce qui concerne la Protection Juridique des Expressions du Folklore. Genéve: Troisième Session du Comitê Intergouvernamental de la Propriété Intelectuelle Relative aux

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Ressources Génétiques, aux Savoirs Traditionnels et au Folklore, 13 a 21 de juin, 2002. WIPO/GRTKF/IC/3/6 Inventario de Bases de Datos en Línea de Catalogación de Conocimientos Tradicionales. Ginebra: Comité Intergubernamental sobre Propiedad Intelectual y Recursos Genéticos, Conocimientos Tradicionales y Folclore, 13 a 21 de junio, 2002.

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ANEXOS

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Listagem das Legislações Usadas como Referência no Trabalho 1. Legislação na Área Ambiental Convenção da Diversidade Biológica (CDB) Lei n. 9.985/00

Aprovada no Brasil pelo decreto legislativo n.2 de 30.02.1994 e promulgada pelo decreto n.2.519, de 16.103.1998. Dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, regulamentado pelo decreto n.4340 de 22.08.2002.

Lei n. 9605/98

Crimes Ambientais

Medida Provisória n.2186-16/01

Regulamenta o inciso II do § 1º e o § 4º do art. 225 da Constituição, os arts. 1º, 8º, alínea "j", 10, alínea "c", 15 e 16, alíneas 3 e 4 da Convenção sobre Diversidade Biológica, dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e a transferência de tecnologia para sua conservação e utilização, e dá outras providências Capitulo VI do Meio Ambiente, Art. 225

Constituição Federal 2. Legislação na Área Cultural

Convenção Relativa à Proteção Aprovada no Brasil pelo decreto legislativo n.74 de 30.06.1977 e do Patrimônio Mundial, Cultural promulgada pelo decreto n.80.978, de 12.12.1977 e Natural da UNESCO Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial Lei n. 3924/61 Dispõe sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos Lei n. 7.347/85 Disciplina ação civil pública de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e turístico. Lei n.6513/77 Dispõe sobre a criação de Áreas Especiais e de Locais de Interesse Turístico; sobre o Inventário com finalidades turísticas dos bens de valor cultural e natural. Decreto 3551/00. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Decreto-Lei n.25/37 Organiza a proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional. Portaria n.693/00 FUNAI Cria o Cadastro do Patrimônio Cultural Indígena Constituição Federal Capítulo III referente a Educação, Cultura e Desporto. Seção II da Cultura, Art.215 e 216 3. Outras Legislações Lei n.9279/96 (Lei de Patentes) Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial – patentes de produtos e processos; marcas e indicações geográficas Lei nº. 9.610/98 (Lei de Direitos Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá Autorais) outras providências.

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