BELCHIOR, Ygor Klain. Cartas, notícias e rumores nos Commentariorum de Bello Civili: o caso de Lérida. Calíope (UFRJ). , v.2, p.53 - 76, 2015.

June 2, 2017 | Autor: Ygor Belchior | Categoria: Roman History, Roman Republic, Food in antiquity, Civil Wars (Roman Republic)
Share Embed


Descrição do Produto

Calíope: Presença Clássica | 2015.2 . Ano XXXII . Número 30

Cartas, notícias e rumores nos Commentariorum de Bello Civili: o caso de Lérida Ygor Klain Belchior RESUMO

O presente artigo tem como objetivo estudar a comunicação durante um episódio específico das guerras civis entre César e Pompeu, conhecido como o cerco de Lérida (junho a outubro de 49 a.C.). Neste estudo, será dada atenção especial aos rumores como uma forma de notícia que era recebida pelas cidades ao entorno do conflito e que elas utilizavam para decidirem qual exército concederiam apoio na forma de alimentos e de soldados. Esta perspectiva parte da discussão sobre a dinâmica social dos rumores que empregamos em nossa tese de doutoramento em História Social, como uma forma de estabelecer um modelo de análise sobre este tipo de fenômeno em um conflito civil na antiguidade romana. A este objetivo acrescentamos a possibilidade de, através deste tipo de leitura, observar um universo social mais dinâmico sobre o cotidiano da guerra para além das batalhas entre os exércitos. PALAVRAS-CHAVE

Rumor; César; Guerras Civis; República romana; frumentum.

Sumário | 53

Ygor Klain Belchior | Cartas, notícias e rumores nos Commentariorum de Bello Ciuili

D

INTRODUÇÃO

ia após dia a podridão iguala os corpos e os pais recolhem lamentosos os retalhos: o que eles reconhecem guardam afobados. Lembro eu querer do meu irmão decapitado cremar a face informe, algo então proibido; percorri os cadáveres da paz sulana tronco após tronco, procurando em qual pescoço o crânio cortado cabia. (LUC. 2, 166 – 173)

Sangue, suor e lágrimas. A podridão dos corpos recheados de putrefação. Vermes, abutres, o cheiro de carne marcada pelo ferro. Carne irmã! Onde estão as cabeças para esses corpos? Deuses. Que imagem! A morte está aí e ela anda lado a lado com as informações e com as notícias sobre aquilo que estava acontecendo ou que tinha acontecido. Rumores e assassinatos. O sangue corre solto junto com as palavras e o que temos disso tudo é a criação de um ambiente da guerra que extrapola o texto e começa a criar vida e comoções por parte daqueles que se deparam com esse tipo de relato. Afinal, quem gostaria de procurar cabeças para corpos? Em suma, não é preciso muitas linhas extensas para provocar no leitor um sentimento de ansiedade, perigo, comoção e até mesmo de ânsia contra todos os fluidos corporais correntes que sempre jorram aos montes quando falamos de guerra. E o caso das guerras civis romanas não é exceção. Neste caso, o ambiente pode ser muito bem ilustrado por essa passagem extraída de Lucano que conta um pequeno pedaço dos horrores que assolavam a vida daqueles que estavam vivenciando esses conflitos, mesmo não sendo combatentes. A morte e o perigo, portanto, são lugares comuns que devem ser levados em consideração. Principalmente, quando falamos de uma literatura grafada através dos preceitos da retórica clássica e da oratória romana, e que tinha esse efeito literário como um dos principais objetivos. Por fim, para um público de ouvintes, nada melhor do que um ambiente bem construído e que os coloque dentro desses acontecimentos como participantes longínquos, mas com a memória de que aquilo realmente aconteceu e que poderia ter acontecido daquela maneira.

Sumário | 54

Calíope: Presença Clássica | 2015.2 . Ano XXXII . Número 30

Todavia, guerra não é só isso. E esta afirmação fica evidente ao analisarmos toda a literatura que temos disponível como testemunhos desses marcantes eventos que temos sobre o passado, como o caso dos Comentários sobre as Guerras Civis, de César. Esta obra em questão é de autoria do próprio general romano Caio Júlio César e narra os acontecimentos da guerra civil em forma de comentários, isto é, o relato da guerra sob o seu ponto de vista, escrito em terceira pessoa e com um forte caráter autobiográfico. A cronologia destes relatos é breve, de apenas um ano, de 49-48 a.C., período em que este general decide marchar para Roma, após a sua travessia do Rubicão, e declarar guerra contra Pompeu e alguns aristocratas que se colocavam contra a dignitas de César e o seu poder de imperium. Já em Alexandria (o fim de sua narrativa é marcado pela morte de Pompeu), a mando do jovem Ptolomeu, irmão de Cleópatra, e com o início da Guerra Alexandrina. Sobre a divisão da obra, ela se encontra dividida em três partes. O primeiro livro conta com oitenta e sete capítulos e abrange os seguintes assuntos: a ida de César a Roma; a tentativa de impedir que Pompeu e o Senado fujam para a Grécia, o início das hostilidades contra a cidade de Marselha, a sua campanha contra os pompeianos na Hispânia, com a derrota de muitos dos seus adversários. No segundo livro, composto por quarenta e quatro capítulos, César narra o cerco e a submissão de Marselha, a rendição de Varrão, na Hispânia Ulterior, e a expedição de Curião, um lugar-tenente de César, que acaba derrotado pela cavalaria do Rei Juba, na Numídia. Por último, o terceiro livro compreende cento e doze capítulos e registra os acontecimentos em Roma, como a eleição de César ao consulado, em 48 a.C., passando para uma extensa narrativa das batalhas travadas na Grécia, como as de Dirráquio e de Farsália e a fuga de Pompeu para o Egito. Sobre o ambiente da guerra descrito nos Comentários sobre a Guerra Civil, cabe apontar que alguns pontos importantes para a nossa analise devem ser destacados para além das batalhas e da própria organização militar. Neste caso, falamos aqui do elemento da comunicação. Para César, boa parte da guerra se resumia ao ato de se comunicar. E isso fica evidente pela primeira passagem de sua obra que é iniciada com a palavra litteris, carta, esta que foi entregue ao Senado para que fosse lida em reunião (Caes. B. Civ. 1,1,1). A carta

Sumário | 55

Ygor Klain Belchior | Cartas, notícias e rumores nos Commentariorum de Bello Ciuili

em si é importante para o contexto, já que era enviada para que os senadores se dissuadissem da proposta de retirar o imperium de César e que permitissem que tanto ele como Pompeu pudessem disputar as eleições para o consulado em igualdade e, através disso, evitassem que um mal maior, neste caso a guerra, viesse assolar a república (1,5,3). Após esse ato, o que fica evidente em sua narrativa é que o general esperava em Ravena que respostas fossem enviadas a ele sobre o que havia sido deliberado quanto às suas exigências para que se pudesse chegar à paz (1,5,5). E esta resposta chegou através da fuga dos tribunos da Plebe que, como aliados de César, foram expulsos da cidade de Roma (1,5,5). Para além da comunicação, circulação de pessoas e a importância destes elementos na guerra, cabe destacar que aquilo que acontece em meio a esse circuito é a deliberação, esta que era feita em reuniões fora da Cidade para que Pompeu, de posse do imperium pudesse participar (1,6,1). O Senado e Pompeu, portanto, temendo aquilo que poderia vir, começam a argumentar sobre as principais estratégias que empregariam para que pudessem, por fim, vir a enfrentar a César em condições de vitória. E, dentro desta deliberação, os argumentos eram embasados em informações recebidas sobre os ânimos das tropas de César de que eles não abandonariam a lealdade que tinham para com o mesmo (1,6,2). E as decisões tomadas a partir desse trânsito de informações eram extremamente racionais e voltadas para a guerra, já que propunham o recrutamento imediato de tropas em toda a Itália, o recolhimento do dinheiro do erário da Mauritânia e a aliança com o Rei Juba da Mauritânia (1,6,3). Visto isto, podemos destacar que uma leitura tendo em vista a comunicação entre exércitos, comandantes, soldados e cidades é uma leitura possível e que merece uma atenção especial por parte de um historiador que busca compreender a dinâmica social, principalmente de ambientes extremamente ambíguos e perigosos, como o da guerra civil, onde toda e qualquer informação que pudesse ser interceptada e trazida às lideranças certas poderia poupar muitas vidas e proteger até mesmo uma comunidade inteira. Como já foi dito anteriormente, para checarmos esse processo ocorrido com rumores, iremos nos focar em um episódio específico das inúmeras batalhas que ocorreram entre as tropas de César e de Pompeu: o

Sumário | 56

Calíope: Presença Clássica | 2015.2 . Ano XXXII . Número 30

cerco de Lérida. Porém, antes de passarmos para tal análise, convém estudarmos uma maneira metodológica de se observar a dinâmica de transmissão dos rumores e também da ação social decorrente deles. Nesse sentido, acreditamos que a melhor maneira de adentrar nesse debate seja adotar uma perspectiva semelhante àquela que foi adotada pelas novas leituras de cunho marxista, da História Social inglesa. Destas obras, por exemplo, as de Hobsbawm (1978), Rudé (1991) e Thompson (1998), serão de extrema importância para começarmos a construir o nosso modelo de análise específico sobre os rumores na antiguidade romana, em especial, dentro dos exércitos e das cidades que se encontravam em um conflito civil. Basicamente, o que fica claro dentro das obras supramencionadas é que os movimentos sociais representados em conflito, ou não, são entendidos como pertencentes ao “organismo” social, já que se manifestavam em acordo com solidariedades preestabelecidas, como os interesses prévios de classe ou em identidades anteriores ao seu próprio surgimento. O que não temos aqui é a noção de “classe social pura”, ou “weberianamente” falando tipos ideais, mas algo que se constrói e desconstrói a todo momento nas relações humanas, principalmente em conflito ou em luta dentro das suas particularidades locais e culturais. Seria mais ou menos como pensar que um rumor em uma guerra antiga, quando atingisse o interior de uma cidade murada, funcionasse como uma forma de separar, por exemplo, aqueles que apoiavam a resistência armada a determinado general que estava marchando e outros que apoiavam a abertura das portas da cidade e a sua rendição perante ao comandante.

RUMORES E METODOLOGIAS

Afora o aporte teórico já mencionado, o maior exemplo aplicado desta noção que vamos adotar para o estudo dos rumores é a obra “O grande medo de 1789: Os camponeses e a revolução francesa”, de Georges Lefebvre, autor que viveu entre 1874 a 1959. Mas por que ele e esta obra? Bem, a começar pela biografia do autor e a sua identificação enquanto um “eu-lírico”, o historiador, e o conteúdo da sua obra, uma História Social pura, marcada por uma busca pela História das Mentalidades Coletivas. E, como foi dito, ele estava inserido nela em “mentalidade” e em “materialidade”. 1

Sumário | 57

Ygor Klain Belchior | Cartas, notícias e rumores nos Commentariorum de Bello Ciuili

Lefebvre foi neto de camponeses que vivenciaram a Revolução Francesa, também foi filho de um empregado do comércio da indústria têxtil local, em Lille, e, como tal, iniciou seus estudos na escola pública local, tendo que futuramente custear seus estudos através de bolsas concedidas pelo governo.2 Muito cedo, passou para o ensino em escolas secundárias e à militância de esquerda, inclusive ingressando, na primeira década no séc. XX, na Comissão de História Econômica da Revolução.3 Na década de 20, Georges Lefebvre conhece, em Estrasburgo, uma região disputada militarmente entre a Alemanha e a França, Marc Bloch e Lucien Febvre, membro importantes no cenário historiográfico da efervescente França, e, em 1929, sob a tutela desta amizade, se torna então um colaborador importante da nova revista, fundada naquele ano com o nome de Annales d’histoire économique et sociale.4 Todas essas experiências de vida e de sua carreira acadêmica vieram antes da publicação de sua obra O grande medo e com certeza é possível afirmar que esta foi fruto de sua maturidade como pensador, pois foi publicada em 1933, e expressa claramente suas influências marxistas e também aquelas que haviam sido desenvolvidas em contato com a Escola dos Annales.5 Sobre a sua “parte” de Annales, não é preciso grande esforço e muitas linhas para justificar essa relação, afinal, Lefebvre é um dos membros mais conhecidos desta escola. Talvez, por isso, seja essencial falar do porquê de ele ser considerado um dos membros mais importantes, pois não foi um pensador que apenas reproduziu os debates desenvolvidos, mas propôs contribuições importantes no campo da História Social a tal ponto que obteve este certo destaque. E isso foi feito através de sua abordagem multidisciplinar feita com um intenso diálogo com outras ciências, como a Geografia, a Economia, a Sociologia, a Antropologia etc., como uma forma de atingir uma história social total. À vista disso, outro resultado marcante desta relação é sentido através da coletânea de diversas mentalidades dentro dessa história totalizante e as suas análises pelo viés das grandes estruturas históricas do período, como economia, o antigo regime, a situação camponesa, os errantes e até mesmo os motins. Ao final deste exercício, o que temos é uma obra que reúne objetos de estudo desprezados e pouco conhecidos, por exemplo, para o positivismo do historicismo alemão, no séc. XIX,6 já que, pelo contrário, analisa a

Sumário | 58

Calíope: Presença Clássica | 2015.2 . Ano XXXII . Número 30

história demográfica, as estruturas sociais, os movimentos e lutas sociais, as mentalidades coletivas, a transmissão cultural, as questões urbanas e a problemática do mundo rural. Já sobre as influências marxistas, conforme apontado por Stéphane Buzzi, essa relação fica bem explícita quando ele, analisando uma fala de Marc Bloch sobre o trabalho de Lefebvre, afirma que, segundo Bloch, “naturalmente, é o problema das classes que, acima de tudo, preocupa Sr. Lefebvre”.7 No caso de O grande medo, esta preocupação recairá nas classes constituídas em um ambiente de ruralidade, a França do séc. XVIII, com as suas “classes rurais” (Os camponeses do norte) e as “classes urbanas” (Estudos sobre a história econômica e social de Orléans) sendo compreendidas dentro de suas estruturas econômicas, da repartição dos capitais produtivos, como a forma de exploração do solo, e de suas mentalidades coletivas. O primeiro capítulo deste livro, por exemplo, é intitulado “A fome” e serve para ilustrar essa relação entre o materialismo histórico, a falta de comida e de meios para se produzi-la, pode ser expresso na consciência do terceiro Estado e a partir dela criar o ambiente ideal para a aceitação de rumores sobre uma possível retaliação por parte da Nobreza contra um terceiro Estado faminto e revoltoso. Cabe destacar ainda que na continuação dessa primeira parte suas personagens são, para além da fome, os errantes, as revoltas, os tumultos, o armamento popular numa reação de defesa. Com a junção destes personagens, Lefebvre começa a constituir em sua narrativa um cenário extremamente vívido, afinal, o social começa a se movimentar dentro da própria dureza da exposição historiográfica e de sua heurística tão característica de muitos exercícios monográficos duros e expositivos. O que queremos dizer com isso é que, diferentemente de propostas que estudam pequenos enfoques dentro do universo social, os contextos, os agentes e a ação social são entrelaçados por Lefebvre a todo momento, de forma tal que chegam a influenciar a todo o momento os estímulos que colocarão esse social em movimento, como o rumor. E este nosso objeto de estudo pode ser observado nesta obra dentro de um contexto que vai questionar a sua propagação por pessoas reais que enfrentavam perigos “materiais”, e também temidos de uma maneira “mental”, do imaginário, demonstrando que o que se vê como resultado final são as ações sociais aparentemente contraditórias dos

Sumário | 59

Ygor Klain Belchior | Cartas, notícias e rumores nos Commentariorum de Bello Ciuili

camponeses de certas províncias da França, entre os últimos dez dias de agosto de 1789, como aqueles que fugiam de suas cidades e outros que pegavam em armas para se defenderem daqueles que estavam vindo: os errantes. Somado a esse contexto, Lefebvre é muito feliz em relacionar esse rumor como a aproximação do inverno e um período de colheitas ruins devido ao clima de uma forma geral (influência da Geografia), onde muitos famintos começam a fugir e abandonar as suas localidades, com mais fome ainda, partindo atrás de comida nos bosques, nas cidades ou através do saque. Esses errantes, como foram chamados, aumentavam o sentimento de angústia e de alarme já que serviam de indícios para a constatação de que o rumor estava correto, pois dialogavam com o imaginário do perigo dos bosques e das criaturas que vagavam à noite. Afinal, bandidos, errantes, esfomeados e vagabundos, começam a ser confundidos dentro desse imaginário que estava sendo construído nesse ambiente de extremo perigo e de ameaças eminentes como a ameaça anunciada pelos rumores e que também servia para produzir mais rumores. E ao longo de sua obra, o tema da fome volta a permear a análise dos conflitos e dos rumores como o principal motivo que levaram essas pessoas à ação conflitiva. O povo, temeroso com a falta de grãos nos campos, mesmo que em períodos de safra ruim, precisa comer e vai comer. Porém, o pão fica mais caro e os campos carecem de trigo, e repletos esfomeados; a crise vem ainda mais forte e aumenta com os saques e com a destruição das colheitas antes de sua maturação. E com isso, vem também à tona as manifestações violentas, como a queima dos castelos dos Nobres, mas também através de outras formas que podemos encontrar em uma sociedade rural marcada por uma vasta população de campesinos que compunham as cidades do interior, como a formação de milícias, motins nos mercados e até mesmo o exigir de notícias sobre o que acontecia na capital. Desta maneira, o que também é possível perceber nesta análise é que cada vez mais o terceiro Estado não aparece como uno, que parte em busca dos seus interesses como uma classe social dos trabalhadores organizada em sindicatos, mas pode ser entendido como uma coletânea de diversas mentalidades, com interesses materiais e políticos distintos. Esses grupos, por sua vez, assumem papeis distintos dentro desse ambiente de conflito a

Sumário | 60

Calíope: Presença Clássica | 2015.2 . Ano XXXII . Número 30

tal ponto que é possível observar, por um lado, a criação de novos vínculos de solidariedade sendo formados dentro de aldeias menores que acabavam economizando nos valores alimentares próprios para praticar solidariedade para com membros da própria comunidade e com errantes. De outra forma, os membros do terceiro Estado urbano passavam a vivenciar uma situação inversa, onde o que se vê é a criação de identidades de oposição aos membros da burguesia pelos elementos mais pobres de uma plebe urbana. O motivo disso é que esses esfomeados passavam a procurar alimento de maneiras que não agradavam os comerciantes, pois eram sempre calcadas no pagamento do “preço justo”, que desconsiderava a inflação do pão, e também através de saques feitos aos mercados, em propriedades comerciais que pertenciam aos burgueses. O resultado disto foi a criação e a afirmação de um grupo que cada vez mais se distanciava da parte mais pobre do terceiro Estado, quase que o jogando para um “quarto”, através da organização de milícias burguesas que passaram a combater os esfomeados causadores de pânico nos mercados da capital, expulsando cada vez mais errantes amedrontados para o interior. Visto isso, o que também cabe destacar da análise de Lefebvre é que estamos falando de um ambiente rural marcado por intempéries no modo de produção agrícola e também por dificuldades técnicas e da ordem da propriedade privada da terra nas mãos de poucos. Assim como, estamos falando de um ambiente onde a oralidade tinha seu lugar de destaque na forma que essas pessoas que se comunicavam, muitas vezes assumindo um papel maior do que o das informações escritas. O que estamos tentando dizer com isso é que o fechamento desta discussão com as ideias de Lefebvre é algo proposital e feito como parte da nossa metodologia de análise. Pois, ao falarmos do mundo da Revolução Francesa, após um extenso debate sobre o mundo moderno e seus rumores, estamos nos colocando em um mundo muito mais próximo ao mundo antigo e das guerras civis. E, ao olharmos para essa temporalidade proposta através de tudo aquilo que foi debatido até o momento, começamos a ver os rumores dentro de uma lógica de transmissão de informações que eram muito importantes para esse mundo oral. De outra forma, a ruralidade

Sumário | 61

Ygor Klain Belchior | Cartas, notícias e rumores nos Commentariorum de Bello Ciuili

também se torna sintomática no sentido em que nos revela uma grande dificuldade para os habitantes de um mundo pré-industrial no quesito alimentação, e aqui falamos dos valores nutricionais que devem ser atingidos para a sobrevivência de qualquer organismo vivo. Sendo assim, é possível extrair desta obra algumas características metodológicas que julgamos como importantes para a continuação deste trabalho, principalmente, porque elas nos revelam o conteúdo que temos que abordar para a análise do episódio específico.

O CERCO DE LÉRIDA

A região de Lérida era uma região muito povoada com cidades ao seu entorno. Dentro da proposta até então apresentada, a de que a comunicação era essencial para a guerra, César não refuta em dizer que uma das estratégias empregadas pelo seu encarregado, Fábio, foi a de enviar cartas e emissários para as cidades vizinhas para que pudesse recolher todo o tipo de forragem (pabulatus) as quais necessitavam para começar o cerco à cidade (1,40,1). E para não dizer que esta era uma alternativa apenas empregada por um dos lados, César é enfático em dizer que os comandantes do exército de Pompeu faziam em geral a mesma coisa, fato que muitas vezes proporcionava algumas lutas entre as cavalarias que iam atrás desses alimentos e das cidades que pudessem oferecer esse tipo de auxílio (1,40,2). Este tipo de embate era inevitável, haja vista que na narrativa destes acontecimentos o general romano diz que a única maneira de conseguirem alimento era através de uma única ponte, esta que também chegou a ser destruída por uma tempestade, o que deixou os dois exércitos isolados. Passados dois dias do início das hostilidades e da destruição da ponte, César chega a Lérida com novecentos homens e logo se propõe a reconstruir a ponte para reestabelecer as linhas de abastecimento (1,41,1). Além disso, com o reestabelecimento da ponte, os dois exércitos puderem ser colocados face-a-face. O assunto “comida” começa a ganhar mais importância nesta parte da narrativa do que aquela mencionada em nosso parágrafo anterior. Principalmente porque uma das estratégias claras de César era a de fortificar o espaço que ficava entre o acampamento de Afrânio e a cidade com o claro intuito de cortar o acesso dos adversários à

Sumário | 62

Calíope: Presença Clássica | 2015.2 . Ano XXXII . Número 30

cidade, à ponte e às provisões todas que ali tinham armazenado (1,43,2). Este fato deixa a batalha mais interessante porque não é possível observar qualquer tipo de ação que não seja aquela voltada para a estratégia de garantir a proximidade para com a cidade e seus recursos. E o mesmo ato era também seguido por Afrânio que prontamente ordenou que suas tropas ocupassem o lugar pretendido por César para que as pretensões deste não se concretizassem. A batalha entre os dois exércitos começa e somente se desenrola por causa deste interesse específico: a aproximação para com a cidade. Tanto que durante o combate, uma das estratégias dos inimigos de César era a de correr para os muros no intuito de buscar proteção (et sub muro consistere cogit), defendendo a retaguarda, mas também contando com projéteis que eram lançados de cima deles (1,45,2). Além disso, a cidade era um local de descanso para as tropas e também de fornecimento de mais “que eram enviadas ininterruptamente coortes de reforço para que tropas frescas substituíssem as cansadas” (1,45,2). A luta em questão durou apenas cinco horas (1,46,1), como em muitas das batalhas quando as hostilidades armadas perduram muito menos do que os momentos que antecedem a elas, como toda a comunicação e a logística da guerra. E falando em comunicação, César nos traz um elemento importante para inserir nessa equação: o juízo de valor sobre o resultado do combate. Afinal, em um ambiente onde cartas e outros tipos de relatórios circulavam em busca de alimentos, conforme foi descrito por ele, nada melhor do que levar também informações sobre quem estava vencendo o combate. E, neste caso específico, César afirma que “a opinião corrente a respeito dos acontecimentos desse dia era que ambos os lados achavam que saíram vencedores” (1,47,1). O juízo de valor também era importante para a moral das tropas, já que era necessário reunir aqueles que haviam sobrevivido, salvaguardar os feridos, mas, principalmente, começar a fortificar o terreno para um outro dia de batalha. Principalmente, se desastres naturais viessem aparecer como inimigos de ambos os lados. Accidit etiam repentinum incommodum biduo, quo haec gesta sunt. Tanta enim tempestas cooritur, ut numquam illis locis maiores aquas fuisse constaret. Tum autem ex omnibus montibus nives proluit ac summas ripas fluminis

Sumário | 63

Ygor Klain Belchior | Cartas, notícias e rumores nos Commentariorum de Bello Ciuili

superavit pontesque ambo, quos C. Fabius fecerat, uno die interrupit. Quae res magnas difficultates exercitui Caesaris attulit. Castra enim, ut supra demonstratum est, cum essent inter flumina duo, Sicorim et Cingam, spatio milium XXX, neutrum horum transiri poterat, necessarioque omnes his angustiis continebantur. Neque civitates, quae ad Caesaris amicitiam accesserant, frumentum supportare, neque ei, qui pabulatum longius progressi erant, interclusi fluminibus reverti neque maximi commeatus, qui ex Italia Galliaque veniebant, in castra pervenire poterant. Tempus erat autem difficillimum, quo neque frumenta in hibernis erant neque multum a maturitate aberant; ac civitates exinanitae, quod Afranius paene omne frumentum ante Caesaris adventum Ilerdam convexerat, reliqui si quid fuerat, Caesar superioribus diebus consumpserat; pecora, quod secundum poterat esse inopiae subsidium, propter bellum finitimae civitates longius removerant. Qui erant pabulandi aut frumentandi causa progressi, hos levis armaturae Lusitani peritique earum regionum cetrati citerioris Hispaniae consectabantur; quibus erat proclive tranare flumen, quod consuetudo eorum omnium est, ut sine utribus ad exercitum non eant. Ora, dois dias depois que se passaram esses fatos, ocorreu um contratempo inesperado. Houve uma tromba-d’água tão violenta de que não se tinha notícias ter aguaceiro maior naquela região; nessa ocasião, a borrasca varreu a neve de todas as montanhas, fez o rio extravasar e num único dia rompeu as pontes que Caio Fábio tinha construído. Esse fato acarretou sérias dificuldades ao exército de César. Como o acampamento, segundo acima se explicou, ficava entre dois rios, o Sícoris e o Cinga, distantes um do outro cerca de trinta milhas, nenhum dos dois podia ser atravessado e todos os nossos ficavam confinados nesse espaço estreito. Era impossível às populações que tinham estabelecido relações de amizade com César transportar até ele o trigo, impossível a volta aos que tinham se afastado para bem longe na busca de forragem, agora interceptados pelos rios, impossível aos grandes comboios de provisão que vinham da Itália e da Gália chegar até nosso acampamento. Por outro lado, a estação era muito difícil porque não havia trigo nos armazéns e a colheita estava perto de madurar; as populações estavam totalmente desabastecidas porque Afrânio, antes da chegada de César tinha consumido nos dias anteriores o gado que pela penúria do trigo podia ser um substituto, as populações vizinhas tinham removido para bem longe por causa da guerra. Os homens que tinham partido em busca de trigo e forragem eram fustigados pelos lusitanos, providos de armas leves, e pelos soldados da Hispânia citerior, munidos de pequenos escu-

Sumário | 64

Calíope: Presença Clássica | 2015.2 . Ano XXXII . Número 30

dos e bons conhecedores da região; era-lhes fácil atravessar os rios a nado, pois é hábito de todos eles não sair em campanha sem odres (1,48).

Como se vê, o ambiente da guerra para César não é um ambiente marcado apenas pelo sangue e pelas batalhas. Não! Ela aqui aparece de uma forma muito racional e extremamente voltada para os perigos que concerniam uma boa posição para se obter alimentos (frumentum/pecus) e uma boa tática de promover a comunicação entre as cidades (civitates) ao entorno. Estas que eram importantes como uma forma de apoio para que a comida pudesse continuar chegando aos campos de batalhas (neque civitates, quae ad Caesaris amicitiam accesserant, frumentum supportare), mas que ainda possuíam interesses próprios, como os das suas comunidades, marcados aqui pelo recolhimento dos alimentos e do gado como uma forma de proteger esses recursos dos soldados que estavam em batalhas. Afinal, nenhuma comunidade poderia se dar ao luxo de perder o seu sustento e até mesmo a sua única moeda de barganha para soldados esfomeados que estavam dispostos ao saque. E estas dificuldades iriam inevitavelmente aparecer em uma guerra, pelo menos ao que parece no relato em questão, pois estamos lidando muitas vezes com desastres naturais, chuvas e a colheita do trigo que ainda não chegou. Esse quadro poderia piorar, e assim aconteceu, caso seus inimigos, como os de César, não tivessem sofrido as mesmas perdas que os seus exércitos e ainda se encontrassem em situação privilegiada quanto à quantidade de forragem e de trigo “que era trazido de toda a província” (1,49,1). Como a enchente em questão durou muitos dias, a primeira atitude de César foi a de tentar reerguer as pontes e reestabelecer a comunicação de seu acampamento com outras comunidades, mas essa tarefa se tornava cada vez mais difícil porque era impossível levar a cabo duas construções em um rio com muita correnteza e se defender dos ataques de projéteis que eram lançados a todo momento (1,50,2). A pressa de César se acentuava cada vez mais porque do outro lado do rio se encontravam estacionados comboios com destino ao seu acampamento (1,51,1-2), com arqueiros (sagittarii), cavaleiros (equites) gauleses, carros (carri) de guerra, uma enorme quantidade de bagagem (impedimentum), seis mil homens de

Sumário | 65

Ygor Klain Belchior | Cartas, notícias e rumores nos Commentariorum de Bello Ciuili

todas as classes com seus escravos e libertos (generis hominum milia circiter VI cum servis liberisque), jovens importantes, filhos de senadores ou da ordem equestre (honesti adulescentes, senatorum filii et ordinis equestris), delegações de cidades (erant legationes civitatum) e emissários de César (erant legati Caesaris). Todavia, como não poderia faltar, a comunicação mais uma vez aparece como decisiva para a tomada de decisões na guerra. Neste caso, César narra que Afrânio recebe a notícia (nuntius) de que todos esses reforços estavam esperando na outra margem do rio (1,51,1). E disposto a massacrá-los, Afrânio envia sua cavalaria e três legiões no meio da noite e os ataca de surpresa. Após o término desse breve combate, já que as tropas de César se retiram para uma montanha e, após ganhar posição elevada, se protegem, os inimigos desistem do seu intento tendo matado apenas duzentos arqueiros, alguns cavaleiros e um número baixo de criados de soldados (1,51,6). Com a impossibilidade de obter reforços, o resultado das façanhas de Afrânio em impedir toda essa comitiva foi sentido em um elemento muito específico para a guerra: o trigo. Neste caso, César afirma que o preço para adquirir esse alimento nos mercados locais aumentou de tal modo que agravava a penúria e também o temor pelo futuro (1,52,1). Em números exatos, a narrativa oferece o seguinte dado: o módio de trigo chegou a valer cinquenta denários. Para se ter uma ideia do aumento, basta atentarmos que, no tempo da pretura de Verres, ou seja, vinte anos antes desse conflito, por um denário se comprava um módio de trigo (Cic. In Verrem, 3,196). Mais uma vez é dito na narrativa que os de Afrânio estavam em situação privilegiada quanto às necessidades alimentares, fato que César mais uma vez tentava resolver através das cidades amigas, exigindo que elas enviassem gado ou pequenas levas de trigo, despachando até mesmo mensageiros para as cidades mais distantes (1,52,4). A situação era desesperadora e alguma alternativa para se conseguir apoio precisava ser encontrada. Haec Afranius Petreiusque et eorum amici pleniora etiam atque uberiora Romam ad suos perscribebant; multa rumor affingebat, ut paene bellum confectum videretur. Quibus litteris nuntiisque Romam perlatis magni domum concursus ad Afranium magnaeque gratulationes fiebant; multi ex Italia ad Cn. Pompeium proficiscebantur, alii, ut principes talem nuntium attulisse, alii ne eventum belli exspectasse aut ex omnibus novissimi venisse viderentur.

Sumário | 66

Calíope: Presença Clássica | 2015.2 . Ano XXXII . Número 30

Afrânio, Petreio e os seus amigos faziam aos seus partidários em Roma um relato exagerado e ampliado desses acontecimentos. Os boatos acrescentaram muitas fantasias a ponto de fazer parecer que a guerra tinha acabado. Quando essas cartas e notícias chegaram a Roma, foi grande a aglomeração em frente a cada de Afrânio e calorosos os cumprimentos; muitos partiam da Itália para a companhia de Pompeu, alguns para mostrar que eram os primeiros a lhe trazer a notícia, outros para não parecer ter aguardado a conclusão da guerra, ou que eram os derradeiros a chegar (1,53).

Chegamos, enfim, a primeira aparição do rumor enquanto vocábulo rumor. César passava por dificuldades de abastecimento em relação a Afrânio e este, ao invés de promover mais investidas bélicas visando liquidar de vez com os adversários, decide enviar notícias (nuntii) e cartas (litterae) para Roma com relatos exagerados que diziam que a guerra havia acabado e César havia sido derrotado. Essa circulação de notícias, por assim dizer, oficiais, ocasionaram a propagação de rumores, do boca-a-boca que também se incumbia de propagar aquilo que estava sendo levado como fato sobre os acontecimentos, mas que aqui aparecem relacionados ao fato de que existe outros tipos de comunicação. No caso do contexto em que estamos inseridos, a circulação de que César poderia ser derrotado, ao menos para as comunidades vizinhas, ocasionaria um tipo de efeito diferente daquele que ocorreu em Roma, mas de qualquer forma, o que se vê é que as notícias sobre a real situação da guerra também mobilizavam as pessoas a agirem em busca de recompensas ou de se afastarem de um possível lado perdedor. De uma forma ou de outra, o que temos aqui é uma descrição muito viva do ambiente da comunicação da guerra, de notícias locais e daquelas que tinham como objetivo atingir a capital para conseguir apoio das pessoas que ali estavam. Além disso, ao chegarem em Roma, o que se vê é que estas notícias poderiam, e assim o foram, ser redirecionadas para outras localidades do mundo romano, como o caso da Grécia com Pompeu. Em meio a esses acontecimentos, César decide ordenar que seus soldados construam embarcações leves que permitissem a travessia do rio. Dessa forma, resgatou com segurança os seus soldados e os comboios que tinham saído para buscar trigo e começou a regularizar o abastecimento (1,52,1). Outra atitude tomada pelo general foi a de transpor o rio com a cavalaria e começar a tomar de

Sumário | 67

Ygor Klain Belchior | Cartas, notícias e rumores nos Commentariorum de Bello Ciuili

assalto os alimentos que eram recolhidos pelos forrageadores (pabulatores) inimigos, que eram os responsáveis por coletarem alimentos para as tropas de Afrânio. Após esses feitos, a narrativa dos conflitos de Lérida se interrompe e César volta suas atenções para o cerco de Marselha, onde narra as manobras militares que fizeram com que Décio Bruto, seu legado, derrotasse os soldados de Domício Aenobarbo (1,56-58). Com a vitória dos cesarianos, a notícia (nuntius) sobre esse feito não tardou a chegar aos ouvidos de César, que ainda estava em Lérida, e ela chegou simultaneamente ao término da ponte que reestabelecia o contato entre suas tropas e as redes de abastecimento (1,59,1). Em posse desta informação, os cesarianos se inflamaram e passaram a atacar com mais bravura os inimigos, especialmente aqueles que forrageavam nas redondezas. Aqui outra vez a comunicação tem um efeito importante e a batalha, ao que parece, se concentra ainda em estabelecer a melhor maneira de se conseguir alimento ou de privar o seu inimigo dele. Ainda dentro da comunicação e alimento, convém mencionarmos que César afirma posteriormente que os habitantes de cidades vizinhas, de Osca e de Caladorre, enviam embaixadores (legati) ao general dizendo que estavam prontos para seguir as suas ordens. Vale a pena lembrar que estamos falando de uma província que se declara a favor de Pompeu desde o início das hostilidades civis. Mais uma vez, estamos trazendo uma passagem muito ilustrativa para nossa hipótese e que merece ser lida nas através das palavras legadas pelo próprio relato de César. Hos Tarraconenses et Iacetani et Ausetani et paucis post diebus Illurgavonenses, qui flumen Hiberum attingunt, insequuntur. Petit ab his omnibus, ut se frumento iuvent. Pollicentur atque omnibus undique conquisitis iumentis in castra deportant. Transit etiam cohors Illurgavonensis ad eum cognito civitatis consilio et signa ex statione transfert. Magna celeriter commutatio rerum. Perfecto ponte, magnis quinque civitatibus ad amicitiam adiunctis, expedita re frumentaria, exstinctis rumoribus de auxiliis legionum, quae cum Pompeio per Mauritaniam venire dicebantur, multae longinquiores civitates ab Afranio desciscunt et Caesaris amicitiam sequuntur. E seguem-lhes o exemplo os tarraconenses, os jacetanos, os ausentanos e, alguns dias após, os ilugavinenses, ribeirinhos do rio Ebro. César exige de todos eles que lhe assegurem o

Sumário | 68

Calíope: Presença Clássica | 2015.2 . Ano XXXII . Número 30

fornecimento de trigo. Eles o prometem, requisitam por toda a parte todos os animais de carga e os trazem ao acampamento. Ao tomar conhecimento da decisão de sua gente, uma coorte ilurgavonense passa para o lado de César, desertando o seu posto de guarda. Rapidamente se produz uma grande reviravolta na situação com o término da ponte, com a aliança de cinco grandes cidades, com a solução do problema do abastecimento e com o fim dos boatos acerca das legiões de reforço que estariam em viagem com Pompeu pela Mauritânia. Muitas populações mais distantes desertam Afrânio e aderem a César (1,52,2-5).

IMAGEM 1: a península Ibérica em 31 a.C. | FONTE: ACH, p. 144.

Com o apoio destas cidades, a narrativa não recaí no fato de que César estava em superioridade bélica, mas no grande medo que acometia as mentes de Afrânio e Petreio de terem o trigo e toda a forragem interceptados pela cavalaria de César e sem a possibilidade de recorrerem aos vizinhos mais próximos (1,61,2). Em vista disso, decidem abandonar Lérida e partem para a região da Celtibéria, no sudoeste do rio Ebro. Esta decisão, contudo, não foi aleatória, mas baseada no fato de que as cidades (civitates) daquela região tinham sido muito atuantes durante as guerras de Sertório e, por isso, temiam sobremaneira o nome de Pompeu, além de não conhecerem o nome de César (1,61,3). Aqui, mais uma vez, a comunicação chega a ser importante, só que desta vez através do conhecimento e do renome. Haja vista que com essa abordagem poderia contar com o apoio cedido na forma de soldados de cavalaria, tropas auxiliares e um terreno

Sumário | 69

Ygor Klain Belchior | Cartas, notícias e rumores nos Commentariorum de Bello Ciuili

favorável para que pudessem enfrentar o inverno que estava chegando (et suis locis bellum in hiemem ducere cogitabant). César é informado desta manobra por exploratores e se põe a marchar para tentar interceptar os exércitos inimigos. Porém, com o término da ponte, a notícia (nuntius) deste feito chegando aos ouvidos dos aliados de Pompeu, estes se põem a marchar cada vez mais rápido temendo a aproximação das tropas que seguiam em seu encalço (1,6263). Nesse momento, a narrativa se prende na perseguição dos de César a Petreio e Afrânio que somente termina quando ambas as tropas decidem descansar, armar o acampamento e se preparar para a luta armada pela manhã (1,65). Na noite em questão, um episódio específico é importante de ser mencionado, pois as tropas dos pompeianos estavam com sede e decidem sair para recolher água. César, todavia, consegue capturar alguns destes soldados e por eles vem a saber que os generais inimigos estavam retirando em silêncio suas tropas do acampamento e se colocando em fuga. Diante desta notícia, ordena o ataque e, com a movimentação e o barulho das tropas, é ouvido pelos inimigos (exaudito clamore – 1,66,2) fazendo com que eles desistam da marcha e retornem para o acampamento. No dia seguinte, ambos os lados enviam soldados para reconhecerem o terreno no intuito de procurarem a melhor posição que garantiria vantagem no combate, como a de privar o inimigo do abastecimento (frumento prohibere potuissent- 1,68,3). E, como a região favorecia os pompeianos, César se viu mais uma vez com problemas para obter alimento. Assim, a princípio os soldados de Afrânio estavam exultantes e saíam correndo do acampamento em direção aos seus inimigos para ofender aqueles que passavam fome aos berros: “por falta de víveres, eram forçados a fugir e tornar a Lérida” (1,69,1), eles diziam, enquanto acreditavam que desta vez tinham adotado a estratégia certa para sufocar os de César, já que estes não podiam “por mais tempo suportar a falta de alimentos” (1,69,2).8 O general então decide simular uma retirada, fato que relaxou as tropas de Afrânio e Petreio, mas o real motivo de tal manobra era a de ir ao encontro para o combate, este que seria tomado visando ganhar a posição dos inimigos, mas, principalmente, ter acesso às suas bagagens com suplementos (impedimenta – 1,70,2). Essa missão arriscada é cumprida pela cavalaria que ainda repele para longe dos suprimentos os soldados inimigos.

Sumário | 70

Calíope: Presença Clássica | 2015.2 . Ano XXXII . Número 30

Este fato desmoralizou os pompeianos que não tinham mais condições de se sustentarem com os recursos que tinham e muito menos em uma batalha em campo aberto, já que a cavalaria de César ainda ocupava as melhores posições do terreno (1,71,1). Os de Afrânio, então, se refugiam em Octogesa, ao sul de Lérida, no alto de uma colina. César, em vista disso, fixa acampamento embaixo da colina onde seus inimigos se protegiam, sabendo que uma hora ou outra teriam que descer, pois estavam, entre outras coisas, sem água (1,71,4). Mais uma vez, o ambiente da guerra se resume, ao menos para César, em uma disputa pelos recursos, a tal ponto que: Caesar in eam spem venerat, se sine pugna et sine vulnere suorum rem conficere posse, quod re frumentaria adversarios interclusisset. Cur etiam secundo proelio aliquos ex suis amitteret? cur vulnerari pateretur optime de se meritos milites? cur denique fortunam periclitaretur? praesertim cum non minus esset imperatoris consilio superare quam gladio. Alimentava a esperança de pôr termo à campanha sem necessidade de combates e sem perdas entre os seus, uma vez que tinha cortado aos adversários o fornecimento de víveres: porque perder alguns dos seus, ainda em batalha vitoriosa? Por que permitir que se firam soldados credores seus de tão excelentes serviços? Por que desafiar a Fortuna? Principalmente levando-se em conta que não é menos ofício de um general vencer pela inteligência do que pela espada (1,72,1-2).

E este sentimento era tal que na continuação desta mesma passagem o general relata que os seus soldados começavam a deliberar (milite uero palam inter se loquebantur) e decidiram que, com a batalha ganha, não iriam mais combater o inimigo, mesmo que César viesse a querer. Ele então decide do intento de acabar com a batalha naquele momento, recuando seus homens, montando acampamento e colocando guardas nas montanhas, deixando com que seus inimigos se recolham e também deliberem sobre o futuro (1,72,4-5). Isto ocorro logo pela manhã do dia seguinte, quando os generais, desalentados por terem perdido qualquer esperança de adquirirem frumentum começam a decidir sobre quais rumos a sua campanha deveria trilhar (1,73,1). E enquanto deliberavam, recebem a notícia (nuntius) de que seus aquatores, os responsáveis pelo abastecimento de água, tinham sido capturados pela cavalaria inimiga, e a única solução apresentada

Sumário | 71

Ygor Klain Belchior | Cartas, notícias e rumores nos Commentariorum de Bello Ciuili

era a de cavar uma trincheira que ligasse o seu acampamento ao rio Ebro (1,73,3). Porém, esta era uma tarefa quase impossível. Enquanto os comandantes dos pompeianos estavam distantes das tropas decidindo o futuro de todos eles, os seus soldados decidem conversar (colloquium) com os de César. Nesta conversa, pedem uma audiência com o comandante e decidem se entregar, porém, exigem que este poupe a vida dos seus comandantes para que este ato não transpareça ser de traição (1,74,3). Com o perdão anunciado, mais soldados começam a sair do acampamento inimigo e se juntar aos cesarianos pedindo proteção. Dentre eles, “um grande número de tribunos militares e centuriões” (1,74,3), “seguem-lhes o exemplo os chefes espanhóis que os pompeianos tinham convocado e mantinham consigo como reféns” (1,74,5) e “até mesmo o jovem filho de Afrânio, por intermédio do legado Sulpício, tratava com César de salvar a própria pele e a de seu pai” (1,74,6). Quando a notícias (nuntius) desses acontecimentos chegam aos ouvidos de Afrânio, ele abandona a obra das trincheiras, arma seus escravos e recolhe todos os homens que podia em seu acampamento (1,75). Consumado este episódio, Petreio sai aos prantos pelos manípulos, dirige-se aos soldados, e ameaça a todos para que não se entreguem aos adversários. César ainda relata que este comandante exige que todos refaçam o juramento de fidelidade que tinham com Pompeu e que entreguem todos os soldados que estavam agora apoiando César para o merecido castigo. Esta crueldade e a ferocidade demonstrada pelo comandante ascendeu novamente a chama da guerra e eles, mais uma vez, estavam prontos para a batalha (1,76). Visto isso, César ordena que os soldados de Afrânio e Petreio que haviam se entregado fossem devolvidos ao acampamento, mas esses se recusam e passam a lutar ao lado dele (1,77). Enquanto isso, Premebantur Afraniani pabulatione, aquabantur aegre. Frumenti copiam legionarii nonnullam habebant, quod dierum XXII ab Ilerda frumentum iussi erant efferre, cetrati auxiliaresque nullam, quorum erant et facultates ad parandum exiguae et corpora insueta ad onera portanda. Os afranianos passavam por apertos na forragem e lhes era difícil o abastecimento de água. Os legionários tinham uma certa abastança de trigo, porque lhes tinha disso dada a ordem de trazer de Lérida víveres para oito dias; os caetrati e auxiliares nada tinham porque eram pequenos seus recursos para adquiri-los e seus corpos não estavam habituados a carregar peso (1,78,1).

Sumário | 72

Calíope: Presença Clássica | 2015.2 . Ano XXXII . Número 30

É por isso que muito soldados mais passavam para o lado de César, enquanto alguns dos seus inimigos tentavam retornar a Léria para buscar o resto das provisões. Porém, eram atacados duramente pela cavalaria durante este percurso, o que causava mais pânico e deserção nas tropas (1,79-80). Os que continuavam, ficavam acampados após algumas milhas percorridas, só que sempre distantes da água e de alguma situação que permitisse fazer forragem de alimentos ou coletar água (1,81,5). A solução apresentada foi a de buscar desesperadamente água ao anoitecer, mas eles sempre acabavam sendo surpreendidos pela cavalaria de César. Além disso, a fome fez com que eles matassem os animais de carga para comer, pois já não tinham esperanças de obter alimento (1,81,7). Por mais cruel que seja este cenário, cabe destacar que esta era uma estratégia de César que “preferia que eles passassem por essas privações e se vissem forçados a se submeter a uma rendição a ter que travar combate” (1,81,6). Finalmente, após vários dias de cerco, os hispânicos decidem avançar sobre César fazendo com que este retirasse os soldados dos afazeres, pedindo que sua cavalaria entrasse em linha e avançasse sobre os inimigos. A Ideia aqui é que ele não queria fazer uma batalha aberta, mas acaba autorizando que seus soldados rechacem tentativa dos inimigos para que sua fama, isto é, os rumores sobre seu nome, não fosse afetada e ele tomado como um covarde. Além disso, parte desta reputação consistia em não atacar os esfomeados, pois é bem claro que ele esperou que atacassem, já que não queria ser o primeiro a fazê-lo (1,82). A batalha, então é travada e ela dura apenas dois capítulos (82-83), pois a narrativa logo se volta para outras dificuldades importantes em uma batalha, como os “ quatro dias sem forragem, com os animais retidos dentro do acampamento, com a falta de água, lenha e trigo” (1,84,1). Assim, tendo em vista o limite que os soldados se encontravam, pedem que César venha a ter uma conversa (colloquium) com eles que não tinham mais condições de “mover um passo, não tinham mais como suportar o corpo a dor e na alma a humilhação” (1,84,4). E, após um longo debate que se estende do capítulo 85 ao 87, César aceita a rendição, oferece comida (frumentum) aos soldados e realiza os seus pagamentos (pecunia - 1,87,1). Seu pedido final é que eles desbandem para o interior da Espanha (exercitus dimissa est). E aqui entra a questão final que fecha este livro e que

Sumário | 73

Ygor Klain Belchior | Cartas, notícias e rumores nos Commentariorum de Bello Ciuili

mais uma vez dá a tonalidade para o ambiente da guerra de César. Por quê? Estes soldados voltariam às suas cidades e espalhariam notícias sobre os feitos de César e também sobre a sua benignidade para com eles.

CONCLUSÃO

Como se vê, rumores, notícias e cartas eram importantes em um contexto onde as informações sobre os acontecimentos da guerra poderiam ser essenciais para que outras comunidades próximas aos conflitos pudessem oferecer ajuda aos generais que estavam em combate. A fome e a sede, portanto, aparecem como partes integrantes do ambiente da guerra, assim como, fazem parte da estratégia de generais para que o inimigo possa ser vencido sem batalhas. Neste caso, aliar-se a maior quantidade de cidades também poderia servir como uma forma de privar o inimigo de víveres para a guerra, já que garantiria uma fonte de suprimentos para apenas um dos lados do conflito.

Sumário | 74

Calíope: Presença Clássica | 2015.2 . Ano XXXII . Número 30

ABSTRACT

Letters, news and rumors in Commentariorum Bello Civili: the case of Lleida. This article aims to study the communication during a specific episode in the civil war between Caesar and Pompeii, also known as the siege of Lleida. In this paper, we will give special attention to the rumors taken here as a kind of notice that was received by the cities next to the conflict and was used by them to decide which army they could help with food and soldiers. This perspective starts from the discussion about the social dynamics of the rumor in the roman world worked in our PhD thesis in Social History. We add to this objective the possibility to observe a more dynamic social universe about the daily life of those who lived the civil wars beyond the focus on the conflict between armies. KEYWORDS

Rumor; Caesar, Civil Wars; Roman Republic; frumentum.

Sumário | 75

Ygor Klain Belchior | Cartas, notícias e rumores nos Commentariorum de Bello Ciuili

NOTAS

Fazemos aqui referência à noção marxiana de “materialismo histórico”, ou seja, o “material” como oposto ao “mental”. 2 BUZZI, Stéphane. Georges Lefebvre (1874-1959), ou une histoire sociale possible. L’histoire sociale en mouvement, Françe, n. 200, mar. 2002, p. 177. 3 Idem, p.176. 4 BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. São Paulo: UNESP, 1990, p. 16. 5 Lefebvre, por exemplo, defendeu a sua dissertação de Mestrado com quarenta anos. 6 SIMIAND, François. Método histórico e ciências sociais. São Paulo: EDUSC, 1972. 7 BUZZI, Stéphane. Georges Lefebvre (1874-1959), ou une histoire sociale possible. L’histoire sociale en mouvement, Françe, n. 200, mar. 2002, p. 146. 8 Ut non posse inopiam diutius sustinere confiderent. 1

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. São Paulo: UNESP, 1990. BUZZI, Stéphane. Georges Lefebvre (1874-1959), ou une histoire sociale possible.

L’histoire sociale en mouvement. Françe, n. 200, Mar. 2002. CAESAR,

Julio. The civil wars: With an English Translation by A.G. Peskett. Edited by G.P. Gool. Edinburgh: St Edmundusbury Press Ltd. 1990. CÉSAR, Júlio. Comentários sobre as guerras civis. Tradução de Antônio da Silveira

Mendonça. São Paulo: Estação Liberdade, 1999. CICERO, Marcus Tullius. Orations for Quintius, Sextus Roscius, Quintus Roscius.

Against Quintus Caecilius, and against Verres. London: Henry G. Bohn, York Street, Covent garden, 1866. GRIFFIN, Miriam (Ed.). A Companion to Julius Caesar. Oxford: Blackwell Publishing

Ltd, 2009. HOBSBAWN, E. Rebeldes primitivos: estudos sobre formas arcaicas de movimentos

sociais nos séculos XIX e XX. 2. ed. Revisão e Tradução de Waltensir Dutra. Rio de janeiro: Zahar, 1978. LEFEBVRE, Georges. O grande medo de 1789: os camponeses e a Revolução Francesa.

Rio de Janeiro: Campus, 1979. RUDÉ, G. A multidão na História: estudo dos movimentos populares na França e na Inglaterra, 1730-1848. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1991. SIMIAND, François. Método histórico e ciências sociais. São Paulo: EDUSC, 1972. TALBERT, Richard J. A. (Ed.). Atlas of

Classical History. London: Routledge, 1985.

THOMPSON, E.P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.

Trad. de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Sumário | 76

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.