BELCHIOR, Ygor Klain ; FAVERSANI, F. Patronato e governo imperial sob Nero, nos Anais, de Públio Cornélio Tácito. In: Terceras Jornadas Nacionales de Historia e segunda Jornadas Internacionales de Historia, 2010, pp. 264- 276. Córdoba.

September 1, 2017 | Autor: Ygor Belchior | Categoria: Emperor Nero, Ancient Rome, Patronage and Clientage
Share Embed


Descrição do Produto

PATRONATO E GOVERNO IMPERIAL SOB NERO, NOS ANAIS DE TÁCITO PATRONAGE AND IMPERIAL GOVERNMENT UNDER NERO IN THE ANNALS OF TACITUS Ygor Klain Belchior Mestrando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto e pesquisador do Laboratório de Estudos Sobre o Império Romano. E-mail: [email protected]

RESUMO

Este artigo visa estudar a parcela da obra Anais de Públio Cornélio Tácito que narra os anos do principado neroniano (XII, 48 a XVI, 35). Por meio da análise da narrativa taciteana pretendemos identificar como a atuação do imperador como patronus de uma vasta cadeia de redes de clientela que compunham a sociedade romana influenciou no critério de julgamento de seu governo. Partindo da discussão a respeito da fronteira construída por uma tradição intelectual que divide o principado neroniano em dois momentos distintos; o primeiro em que o imperador teria realizado um “bom governo”, e o segundo quando Nero teria se voltado aos vícios e realizado um “mau governo”, pretendemos verificar a atuação desse princeps como patronus, tendo em vista seu papel como pater patriae e as relações interpessoais que perpassam as casas que compõem a sociedade romana.

INTRODUÇÃO Neste artigo pretendemos apresentar alguns resultados obtidos através do estudo sobre as relações sociais entre o princeps Nero e as domus senatoriais, desenvolvido através do programa de iniciação científica financiado pela FAPEMIG e em nossa monografia de bacharelado, intitulada “Patronato e governo imperial sob Nero, nos Anais de Tácito”. Pretendemos, assim, contribuir para o estudo sobre como essas relações sociais e interpessoais, sejam elas realizadas na esfera privada ou pública, poderiam interferir na política do principado. Partimos do pressuposto que existia uma ordem imperial no principado, e esta ordem era composta através do conflito entre as diferentes identidades que compunham esta sociedade tão homogênea, que era a romana. Cabia, assim, ao princeps a busca por um consenso universal que legitimasse o seu papel. Ao mesmo tempo, podemos III Jornadas Nacionales de Historia Antigua – II Jornadas Internacionales de Historia Antigua

Página 264

observar na narrativa de Tácito, como as domus senatoriais se articulavam em grupos de oposição que buscavam a desestabilização do império e a conseqüente substituição desse núcleo de poder. Cabe assim, estudar como eram compostas essas redes de solidariedade e quais estratégias eram utilizadas por esses agentes para a manutenção ou a sublevação da ordem. AUGUSTO E A “RESTAURAÇÃO” DA RESPUBLICA Durante a expansão militar nos últimos anos da respublica, as domus da nobilitatis passaram a adquirir um enorme prestígio militar e econômico. Essa posição proeminente criou um sistema de disputas que visava o acúmulo de honra, de glória pessoal (cursus honorum) e glória para suas familiae. O mundo romano estava dividido em facções que apoiavam importantes casas, representadas por seus Generais (César, Pompeu, Marco Antônio e Otávio). Gradualmente, essas ambições pessoais principiaram conflitos entre essas facções1 possuidoras de grandes riquezas e com o controle de legiões. Esta foi a rota traçada para a guerra civil. Para Tácito, essas comoções que principiavam no findar do século I a.C e no início do século I d.C., mostravam que a única maneira que a respublica “dilacerada pelos diferentes partidos” (Anais, I, 9, 4) poderia recuperar sua antiga dignidade e suas forças era “senão a autoridade e o governo de um só” (Anais, I, 9, 5), que passava a chefiar a respublica através da casa reinante2. Junto ao surgimento da figura do princeps consolidada no topo da hierarquia social foram estabelecidos novos tipos de relações sociais entre o imperador e os outros grupos sociais que habitavam o império. Essas relações de patronato estabelecidas em torno da figura do princeps foram essenciais para a pacificação dos diversos grupos de oposição que compunham o império, pois, com o surgimento da domus Caesaris, esses grupos continuaram a competir uns com os outros, contudo tinham que estabelecer estratégias de aproximação para com a domus mais proeminente da respublica. Contudo, como se percebe através da análise dos governos subseqüentes, podemos notar que Tibério, Calígula, Cláudio e Nero, além de serem criticados pelas fontes por não seguirem o “modelo” de Augusto, são imperadores que não morreram de morte natural. Ou seja, a

1

“a revolutionary leader arose in civil strife, usurped power for himself and his faction, transformed a faction into a national party, and a torn and distracted land into a nation, with a stable and enduring government”. cf. SYME, Ronald. The Roman revolution. Oxford University Press. 1939. p. 4. 2 “domo regnatrice” (Anais, I, 4, 4) III Jornadas Nacionales de Historia Antigua – II Jornadas Internacionales de Historia Antigua

Página 265

principal posição do Império, cujo modelo era de um soberano, era constantemente substituído. Afinal, em 32 anos tivemos quatro mortes violentas de imperadores. Neste ponto que pretendemos pensar que a política romana continuava a ser composta por diversos indivíduos que constantemente disputavam a liderança desse poder. E que poderiam, em muitos casos, formar grupos de oposição ao poder imperial. Pensando em uma lógica inversa, podemos afirmar que cabia ao imperador a busca pela “ordem imperial”, ou seja, a aplicação de uma política de manutenção desse império através do patronato, ou seja, estratégias estabelecidas por meio de relações sociais de caráter interpessoal que visavam arbitrar esses conflitos e manter a unidade do império. A presença de diversos grupos de poder político internos ao principado pode ser melhor observada após a queda de Nero. A guerra civil que corresponde ao final do ano de 68 e ao ano de 69 d.C. é conhecida pela historiografia como o ano dos quatro imperadores. Ou seja, podemos observar o principal posição do Estado Romano sendo ocupado por quatro imperadores (Galba, Otho, Vitélio e Vespasiano). Após a morte do princeps Nero, o jogo pelo poder político supremo do império fica em aberto, gerando uma guerra civil que englobou vários grupos políticos com força suficiente para aclamar um imperador. Ergo dum scelera principis, et finem adesse imperio diligendumque, qui fessis rebus succurreret (Tac. Anais XV, 50, 1). É assim que Tácito, em uma passagem dos Anais, situada no contexto da conspiração pisoniana durante o principado de Nero, introduz a discussão entre os conspiradores que apoiavam a causa do Senador Caio Píson. Essa asserção de Tácito, traduzida para o português como um debate acerca “das maldades do príncipe, sobre a total decadência do império, e o quanto se fazia preciso eleger outro chefe que salvasse o Estado”, relata o momento de tensão que as elites senatoriais perpassavam e as estratégias que pretendiam adotar, através da elevação da domus de um dos conspiradores à condição de domus Caesaris. Delatada essa conspiração ocorrida no ano de 65 d.C., inúmeras sentenças foram proclamadas, dentre elas, por exemplo, as de Pláucio Laterano e Súbrio Flávio (Anais XV, 47), que foram decapitados; e a de Sêneca (Anais XV, 60 – 65), constrangido ao suicídio. Morreram ainda Sulpício Ásper e Fênio Rufo (Anais XV, XLVIII); Vestino (Anais XV, 49); Aneu Lucano3, Senecion, Quinciano, Cevino (Anais XV, 70), Petrônio (Anais XVI, 19); além

3

Segundo Tácito, esse conspirador queria se vingar do princeps por ofuscar a glória de seus talentos poéticos (Anais, XV, 49). III Jornadas Nacionales de Historia Antigua – II Jornadas Internacionales de Historia Antigua

Página 266

de muitos centuriões (Anais XV, 48)4. Quanto a Pisão, este senador abriu as veias antes mesmo de ter sido constrangido por Nero (Anais XV, 59). Houve um total de dezenove mortos e treze exilados. É importante destacar que esses grupos de oposição eram compostos muitas vezes por membros que usufruíram do beneficium do princeps, inclusive tendo como conspiradores importantes personalidades da vida pública, como cônsules, cavaleiros e senadores. Esta presença maciça de indivíduos que ascenderam socialmente graças ao patronato exercido por Nero nos oferece uma pista a respeito do jogo político pela disputa de um lugar mais elevado socialmente. As domus senatoriais, os libertos, a plebe, os exércitos, constantemente elaboravam estratégias de ascensão social. E uma dessas estratégias era se aliar a um grupo de oposição que visava substituir o núcleo de poder. Contudo, o que fica claro em Tácito é que para que essas conspirações viessem à tona, umas séries de cálculos, de estratégias e de alianças interpessoais ou de grupos precisavam ser feitas para o sucesso da empreitada. Por exemplo, era necessário decidir quem seria o próximo imperador para que os indivíduos pudessem medir quais ganhos que receberiam com a realização dessa empresa. Quem fizesse um novo imperador poderia arbitrar em importantes assuntos do império e gozar de uma posição social muito privilegiada. Ou ainda, era imprescindível calcular bem, pois uma conspiração sem sucesso significaria a perseguição e a morte de todos os envolvidos. Tendo em vista esse ambiente de relações sociais muito voláteis, Tácito nos oferece uma das passagens mais importantes para compreendermos esse jogo político: “De todas as coisas humanas nada há de tão instável e tão pouco seguro como a fama do poder, quando esse não tem forças próprias com o que se sustentar” (Anais XIII, 19)5. Assim, podemos perceber que o historiador latino descreve a instabilidade com a qual os diversos grupos que compunham a sociedade romana conviviam. A amizade com o César é um método incerto para quem visa à ascensão social, difícil de alcançar, fácil de perder e limitado pelas próprias chances de sobrevivência do César. Este ponto se aplica também aos amici Caesaris. Contrariamente, podemos observar que os grupos de oposição ao poder imperial não eram tão coesos e podia haver fendas, sendo assim não podemos considerar essas conspirações como algo concreto e certo. Pois, a lealdade e amizade poderiam evaporar a qualquer momento. Depende de quem tem mais a oferecer e o quanto se confia na fidelidade dos envolvidos. 4

“The knights numbered five, among whom was Claudius Senecio who had been one of the intimate friends of Nero” cf. MOMIGLIANO, Arnaldo. “Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. First Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 728. 5 “Nihil rerum mortalium tam instabile ac fluxum est quam fama potentiae non sua vi nixa[e]” (Analles XIII, 19) III Jornadas Nacionales de Historia Antigua – II Jornadas Internacionales de Historia Antigua

Página 267

PATRONATO E GOVERNO IMPERIAL Antes de adentrarmos em nossa discussão devemos destacar o que entendemos por ordem imperial. Este conceito busca auxiliar na compreensão sobre a forma pela qual os diversos grupos que compunham a sociedade romana se ordenavam, hierarquizavam-se, e atuavam junto, ou paralelamente ao Estado romano. Nossa hipótese é que esta ordenação se dava em razão da existência de uma posição superior a todos os grupos, que era a do imperador, e que o imperador poderia gerar uma maior ou menos coesão destes grupos em torno de si. Caso esta coesão se tornasse baixa demais, a posição do imperador era colocada em risco e, consequentemente, toda a ordenação social também era abalada. Exigia-se, assim, o surgimento de um novo imperador. Chamamos, deste modo, de ordem imperial todos os elementos relativos à ordenação social, sua hierarquia e redes de solidariedade constituídas pelo conjunto das domus senatoriais, da plebe e dos exércitos em interação com a casa imperial. A historiografia sobre a Antigüidade Clássica concentrava-se antes em tentar compreender as sociedades antigas basicamente de duas formas distintas. A primeira delas seria que a formação sociedade romana estaria mais próxima das sociedades modernas. A segunda seria que está sociedade era muito diversa da nossa atual sociedade capitalista. Estes dois grupos estariam divididos comporiam duas correntes de pensamento, sendo elas, respectivamente, os modernistas e os primitivistas6. Para os primitivistas, as sociedades antigas seriam muito diferentes das sociedades modernas, já que não seriam marcadas apenas por uma racionalidade econômica e por um individualismo por demais exacerbado. A lógica que regia essas sociedades antigas estaria baseada em critérios de distinções sociais da honra, principalmente através do acúmulo prestígio, a qualquer custo. Assim, a hierarquia social não se resumiria à capacidade dos indivíduos acumularem recursos materiais, mas em distinções estamentais7 fundamentadas pelo estatuto jurídico de cada indivíduo. Outra tendência de compreensão da hierarquia das sociedades antigas ficou conhecida como os “modernistas”. Reúnem-se sob esta qualificação aqueles autores que criaram um modelo 6

FAVERSANI, Fabio. A pobreza no Satyricon de Petrônio. 1995. Dissertação (Mestrado em História econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Estadual de São Paula, Universidade Estadual de São Paulo, São Paulo, 1995. 7 Um representante moderno de tal perspectiva é Paul Veyne. III Jornadas Nacionales de Historia Antigua – II Jornadas Internacionales de Historia Antigua

Página 268

de interpretação das sociedades antigas como sendo regidas por uma racionalidade muito próxima das sociedades modernas. Assim, a hierarquia dessas sociedades seria marcada por diferenças estabelecidas pela capacidade de cada indivíduo acumular os benefícios socialmente produzidos.8 Na historiografia atual, as interpretações que dão mais ênfase ao que nos separa do mundo antigo têm predominado com relação a estas ditas modernistas. Contudo, segundo Fábio Faversani9, nas interpretações mais tradicionais, existem limites muito bem demarcados nos modelos de interpretação da sociedade romana que enfatizam essa “ordem” como fruto de divisões entre classes e estamentos. Mais recentemente, contudo, têm prevalecido interpretações que tomam por pressuposto que a figura do imperador é o elemento fundamental para a ordenação social. A alternativa, segundo o autor, surgiu através dos debates e da contribuição de Moses Finley, Peter Garnsey, Andrew Wallace- Handrill, entre outros pesquisadores que “tem trabalhado com o propósito de apreender a sociedade tornando chave o uso de conceitos como o de patronato” 10. Segundo Andrew Wallace- Handrill em seu texto “The imperial court”, publicado como capítulo na prestigiosa The Cambridge Ancient History, a corte imperial romana funcionava à imagem de nosso sistema solar. O sol seria o imperador, fonte de toda a energia (benefícium), e as casas senatoriais seriam os planetas que circundavam a esfera solar, e as casas provinciais seriam representadas pelos satélites planetários. Contudo, dentro desse sistema, a energia proveniente do imperador não se propaga no vácuo, mas sim, através de mediadores envolvidos em grandes redes de solidariedades (relação patrono x cliente). Como podemos perceber, a inovação trazida por esse modelo de interpretação é que o patronato passaria a assumir a centralidade nas análises sociais. As interações seriam a chave para compreender a hierarquização e a formação de grupos sociais. A busca pela absorção de uma parcela maior de benefícios era refletida na disputa entre as domus senatoriais por uma maior aproximação com a casa imperial e, assim, com a maior quantidade de beneficia, cuja fonte exclusiva era a domus Caesaris. A busca pela absorção de uma parcela maior de benefícios era refletida na disputa entre as domus senatoriais, os exércitos e a plebe por uma maior aproximação com a casa imperial e, assim, com a maior quantidade de beneficia, cuja fonte exclusiva era a domus Caesaris.

8

Um representante moderno de tal perspectiva é G. E. M. de Ste. Croix. FAVERSANI, Fábio. “Trimalchio, classe social e estamento”. Revista de História. USP, São Paulo, n. 134, p. 7-18, 1996a. 10 FAVERSANI, Fábio. “As relações interpessoais sob o Império Romano: uma discussão da contribuição teórica da escola de Cambridge para o estudo da sociedade romana”. In__Interação social, reciprocidade e profetismo no Mundo Antigo. Vitória da Conquista: Edições UESB. 2004. 9

III Jornadas Nacionales de Historia Antigua – II Jornadas Internacionales de Historia Antigua

Página 269

A aproximação para com o princeps passou a ser a principal via de ascensão social. O estabelecimento de vínculos com o imperador poderia resultar, por exemplo, na ascensão de um liberto com poderes políticos e sociais extraordinários, inclusive a capacidade de exercer o patronato e gerir uma extensa rede de clientes. Àqueles que não compartilhavam dos meios que proporcionavam a ascensão social, esse processo poderia acarretar na formação de grupos de oposição. Portanto, estamos diante da criação de laços fundados sobre relações pessoais que se manifestaram, sobretudo, na instituição do patronato. Assim, as redes de clientela controladas pelo imperador seriam fontes de promoção social e aquelas independentes do princeps seriam consideradas como grupos de oposição ao menos até o momento que elas gerassem um novo imperador...

ANÁLISE DO PATRONATO E O GOVERNO IMPERIAL NOS ANAIS, DE TÁCITO Para Tácito, o estabelecimento do Principado é representado como uma forma de governo fundada na concessão de benefícios entre os diversos grupos sociais como a plebe, o exército e, principalmente, a aristocracia. Em seu livro “Anais”, o historiador latino nos apresenta a história dos imperadores da linha Juliana, partindo de Tibério e chegando a Nero, o que compreende, portanto, o período que vai do ano 14 ao ano 68 da era cristã. Utilizando-se de severos critérios de moralidade, Tácito tece observações críticas sobre a conduta moral e política no Principado. O autor deixa claro qual o objetivo da sua obra ao nos dar a seguinte declaração: “Não é meu intento referir senão as opiniões que se fizeram mais notáveis ou pela sua decência ou pela sua insigne baixeza: porque creio ser o principal objeto dos Anais pôr em evidência as grandes virtudes, assim como revelar todos os discursos e ações vergonhosas, para que ao menos, o receio da posteridade acautele os outros de caírem nas mesmas infâmia”. (Anais, 3, XLIV)

No decorrer de sua obra, podemos perceber que parte dessas “ações vergonhosas” era a estratégia utilizada pelos senadores para receber benefícios e honrarias do princeps. Esta estratégia estava calcada na subserviência e na adulação desenfreada de vários membros do Senado para com o Imperador e, como reflexo da concorrência entre os aduladores, um número cada vez maior delatores fazendo parte da corte neroniana. Dentro dessa lógica, podemos observar o papel do imperador como elemento ordenador de uma vasta cadeia de redes de relações interpessoais. O bom princeps, investido do título de pater, seria o detentor de grande parte dos benefícios e, portanto, patrono maior dessas redes clientelares. III Jornadas Nacionales de Historia Antigua – II Jornadas Internacionales de Historia Antigua

Página 270

Como vimos, para se aproximar do imperador, uma das estratégias seria a relação entre patrono x cliente baseada em um elemento moral de ligação entre os indivíduos envolvidos, ao mesmo tempo em que legitima a diferença hierárquica entre eles. O princeps estaria então no topo da rede de trocas de benefícios. Como essas relações eram de caráter interpessoal, a proximidade de uma personalidade para com o imperador facilitava a troca de benefícios e a absorção de signos para a ascensão ou a manutenção do status social, como também os constantes sussurros e intrigas internas à corte que visavam a eliminar concorrentes nesta estratégia de aproximação com o imperador. Outra estratégia de aproximação ao imperador, e a mais criticada por Tácito, é através das adulações. Segundo Fábio Joly, em seu livro intitulado A metáfora da escravidão em Tácito, as adulações desenfreadas à figura do Imperador são o principal motivo da subserviência do poder do Senado em relação ao poder do Imperador (JOLY, 2005: 115). O autor, valendo-se da “metáfora da escravidão”, realiza a análise da obra taciteana tendo em vista a ambivalência entre a libertas e seruitus no âmbito do principado. Segundo ele: “Essa ambivalência pode ser observada no emprego que faz da metáfora da escravidão, que tanto serve para caracterizar a renúncia, como para criticar o monopólio do poder pelo imperador, como no trecho que se segue, em que Tácito equipara o regime instaurado por Augusto a uma escravidão: “já sem encontrar oposição, porque os mais altivos tinham morrido nos combates e proscrições, e o resto da nobreza, na proporção em que era disposta à escravidão, se acrescentava, com a nova ordem das coisas, em honras e riquezas e preferiam a segurança do presente aos perigos do passado” (Anais, 1, II). (JOLY, 2005:116)

Segundo Tácito, o monopólio do poder por parte do Imperador permitiu a supressão da liberdade de expressão dentro do principado (libertas). Contudo, a repressão da libertas veio acompanhada da supressão do ambitus (conflito) e, como conseqüência, o estabelecimento da ordem. Através dessa idéia, a adulação desenfreada em busca de benefícios do princeps aparece como escravidão voluntária, de modo que com esta concepção o historiador sugere que a conseqüente perda de poder por parte do Senado e a centralização política pelo imperador (dominatio) não é apenas o resultado da dominação e coerção impostas pelo princeps, mas, em grande parte, constituída por opção da própria aristocracia. Esta lógica só pode ser observada se há um imperador que se mostra superior aos patronos das demais casas. Mas o que ocorre quando o imperador passa a ser visto como incapaz de articular todas as principais casas? O que se dá quando a se observa a progressiva ruína da casa imperial, como ocorreu sob Nero? A aristocracia se volta à libertas quando deixa de existir “segurança do presente”, como a que ofereceu o governo de Augusto? Contudo, nem toda a adulação a um determinado patrono poderia ser considerada bajulação. Segundo Paul Veyne, “naturalmente livre dentro dos limites da convenção, o ex-escravo III Jornadas Nacionales de Historia Antigua – II Jornadas Internacionales de Historia Antigua

Página 271

permanecia simbolicamente sob a dependência do patrono, e os romanos, que gostavam dos trocadilhos paternalistas, repetiam que um liberto tem deveres de filho para com o ex-senhor, cujo nome de família se tornou seu; tem para com ele deveres de devoção” 11. Dentro dessa lógica de funcionamento da sociedade romana no principado, as candidaturas e alianças políticas se faziam por meio da recomendação de um indivíduo à carreira pública. Tratava-se de redes de relação de caráter pessoal que dependia de um “patrono”. Como nos mostra Tácito em sua narrativa sobre o governo do imperador Tibério: “Umas vezes, calando os nomes dos candidatos, mandava fazer uma relação da origem de cada um, de sua vida, e número de campanhas, para assim os dar a conhecer: outras vezes, deixando esse método, exortava os mesmos candidatos a que não perturbassem os comícios com suas petições e intrigas, porque ele só se encarregava de os recomendar: outras vezes publicava que não haviam outros pretendentes senão aqueles de quem remetera os nomes para os cônsules: dizia porém “que outros quaisquer podiam pretender, contanto que tivessem consideração e merecimentos”. Contudo, tais expressões na sua boca eram todas aparentes, não tinham realidade, e eram eminentemente insidiosas; porque quanto mais trabalhava por enfeitá-las com as cores brilhantes da liberdade, tanto mais apressado corria a pôr em prática uma pesada escravidão.” (Anais, 1, LXXXI)

Segundo comentário de Faversani, Andrew Wallace- Hadrill em seu texto “The imperial court”, já citado, defende que: “os benefícios produzidos pela sociedade estariam concentrados nas mãos do imperador, que os distribuiria por intermédio de uma rede de dependentes e casas. Quanto mais próximos ao Imperador, maior a chance de os mediadores absorverem benefícios de forma direta ou se apropriarem de parte das vantagens que eram encarregados de repassar a outros, ou ainda, extrair benefícios de forma direta ou se apropriarem de parte das vantagens que eram encarregados de repassar a outros ou, ainda, extrair benefícios daqueles que deviam o acesso ao Imperador à sua intermediação”.12

A busca pela absorção de uma parcela maior de benefícios era uma disputa entre as casas senatoriais por uma maior aproximação da casa com a maior luminosidade, a casa imperial. Porém cabe ressaltar, que diferentemente dos planetas do nosso sistema, as casas senatoriais também possuíam brilho próprio, que era distribuído para outras casas que formavam redes particulares de solidariedade. A presença de uma casa senatorial com um brilho semelhante a do Imperador poderia deturpar a ordem vigente e colocar em risco o próprio poder do imperador. É importante destacar, dentro desse sistema, a importância dos diversos patronatos dentro dessas redes de solidariedade. Não havia apenas o patronato imperial.

11

VEYNE, Paul. “O Império Romano” In: DUBY, G. & ARIÈS, P. (eds.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia das Letras, 1990. p. 97. 12 FAVERSANI, Fábio. “As relações interpessoais sob o Império Romano: uma discussão da contribuição teórica da escola de Cambridge para o estudo da sociedade romana. Interação social, reciprocidade e profetismo no Mundo Antigo”. In: GALVÃO, Alexandre (org.). Interação social, reciprocidade e profetismo no Mundo Antigo. Vitória da Conquista: Edições UESB. 2004. p. 34. III Jornadas Nacionales de Historia Antigua – II Jornadas Internacionales de Historia Antigua

Página 272

Em sua argumentação, Wallace-Hadrill demonstra que o patronato não é somente uma estrutura de poder, mas também um sistema para a reprodução deste. Nesse sentido, afirma que: “O sistema político romano em todos os tempos demonstrou algum tipo de direito regional na representação no governo. Entretanto, o acesso era mediado através de indivíduos. Foi essa inacessibilidade ao centro, exceto através de círculos pessoais, que gerou o poder do patronato, e foi através do exercício deste poder que o patronato promoveu a integração social sem limites e assegurou o controle social”. 13

As casas senatoriais estariam então unidas à casa imperial através de um elemento de ligação moral (fides), ou através das bajulações. Contudo, o que esse modelo não consegue responder são as conspirações visando derrubar o poder do imperador, e como esse sol (casa imperial) era constantemente apagado e substituído por outra casa. O que nos importa destacar a partir do argumento de Wallace-Hadrill é que as diversas casas tinham um certo poder que poderia ser associado ao poder imperial. A pergunta que resta é quando esta opção é exercida e quando ela não é. O relato de Tácito deixa claro que, especialmente quando o poder imperial declina, muitas casas tendem a se afastar da casa imperial. Em outras palavras, pode-se perguntar se a mesma tendência que fortalece a casa imperial não pode atuar em sentido contrário, enfraquecendo-a. Em Tácito, estas redes de clientela dos cortesãos aparecem com um certo nível de autonomia, inclusive conflitando umas com outras. O quanto esta autonomia não poderia gerar um poder paralelo e superior ao do imperador? O mesmo pode ser perguntado a respeito das principais casas de Roma. Em que medida elas não congregavam interesses próprios e diversos daquela do imperador? O quanto o enfraquecimento da casa imperial não poderia levar os patroni de diversas casas a procurar a proteção de uma outra casa importante? Como diferir novos quadros de alianças entre casas de conspirações? Como distinguir os que agem em nome do imperador daqueles que atuam passando por cima da autoridade imperial? Estas perguntas indicam bem um amplo universo de análise colocado pelo texto de Tácito para uma compreensão da dinâmica social sob o principado de Nero. Nossa proposta de estudo é analisar a atuação de Nero como patronus, tendo em vista seu papel como pater patriae e as relações interpessoais que perpassam as outras casas que compõem a sociedade romana tendo em vista que estas relações intrinsecamente ligadas à ordem imperial vigente, e esta ordem, era composta através da fidelidade das casas senatoriais para com a domus Caesaris, ao mesmo tempo em que era ordenada por esta. 13

WALLACE-HADRILL, A. “Patronage in Roman society; from Republic to Empire”. In: WALLACEHADRILL, A. Patronage in ancient society. London: Routledge, 1989. p. 74.

III Jornadas Nacionales de Historia Antigua – II Jornadas Internacionales de Historia Antigua

Página 273

Alternativamente, pretendemos pensar que sempre opera uma possibilidade inversa de a casa imperial ir progressivamente perdendo sua capacidade de articular esta ampla rede de clientela e colocar em risco a unidade do Império.

CONCLUSÕES A “ordem imperial” não se dava somente através da força, da autoridade ou do patronato exercido pelo princeps. Existiam muitas outras questões e cálculos a serem pensados, tendo em vista que estamos nos deparando com uma sociedade composta por inúmeras domus que competiam entre si e que encerravam em seu interior disputas internas, tendo como maior objetivo a aproximação para com a domus Caesaris ou a constituição de uma alternativa a ela. Esses conflitos teriam que ser arbitrados pelo imperador, elemento de coesão e de consenso entre as inúmeras factiones que surgiam no seio da respublica. Uma domus Caesaris enfraquecida era uma avenida aberta para a discórdia e a sempre iminente guerra civil. Contrariamente, essa domus poderia, através do patronato, estabelecer vínculos de ligação moral e aumentar o seu poder. Lembrando que uma domus sem clientes era uma domus enfraquecida. No relato de Tácito, simplesmente favorecer a outros não era, contudo, garantia de fidelidade. Nas diversas conspirações, domus que receberam a atenção imperial conspiraram para a sua substituição. Nero, nos anos iniciais conseguiu administrar esse jogo político, seja pelo controle exercido por seus tutores, ou pelas concessões às elites mais tradicionais que compunham o império, ou, ainda, pela fraqueza demonstrada pelo Senado frente ao poder imperial. Contudo, não conseguiu arbitrar nos negócios no interior de sua própria domus. Esta estava imersa em disputas pessoais envolvendo o controle do imperador. A partir do momento em que as bases importantes de sustentação da domus Caesaris começam a ruir, temos em cena um princeps enfraquecido e que se torna alvo para contestações e conspirações. Porém, o partido de Nero ainda se mostra forte perante as factiones que começam a aparecer. Conseguindo, em muitos casos, estabelecer políticas de manutenção do núcleo de poder e de extermínio de seus concorrentes. Outro elemento importante é que essas factiones eram compostas muitas vezes por membros que usufruíram do beneficium do princeps, inclusive tendo como conspiradores importantes personalidades da vida pública, como Cônsules, cavaleiros e Senadores. Esta presença maciça de indivíduos que ascenderam socialmente graças ao patronato exercido por Nero nos oferece uma pista a respeito do jogo político pela disputa de um lugar mais elevado socialmente. As III Jornadas Nacionales de Historia Antigua – II Jornadas Internacionales de Historia Antigua

Página 274

domus constantemente elaboravam estratégias de ascensão social. E uma dessas estratégias era se aliar a uma factio que visava substituir o núcleo de poder. Essas estratégias que geralmente envolviam elementos de bajulações e intrigas são os temperos da narrativa de Tácito. As bajulações poderiam ser um meio de fácil acesso ao beneficium imperial, contudo foram amplamente criticadas por Tácito. O mau patrono, aquele que estabelecia suas relações através da bajulação, pautaria suas escolhas tendo os olhos voltados para longe dos merecedores. Outra estratégia seria aquela em que as domus conflitavam entre elas através de sussurros e delações. Afinal, eliminar um concorrente importante poderia ser sua porta de acesso aos favores do princeps. Ao contrário, esse sistema possibilitou que os méritos ficassem escondidos no seio da corte. Ter uma domus com muito prestígio passava significar um afrontamento contra a domus Caesaris. Portanto, “patronato e governo imperial” são figuras gêmeas de uma mesma carta. Para Tácito, o governo imperial é indissociável da política do patronato exercido pelo imperador. Cabia ao princeps estabelecer estratégias de gerenciamento dessas redes clientelares, seja através do patronato ou da coerção, com o intuito de manter a “ordem imperial”. Afinal, sua casa era a mais proeminente da respublica, e ele, como pater, era incumbido do papel de maior patrono das redes clientelares. Inversamente, ao mesmo tempo em que esta domus Caesaris se mostrasse fraca, poderia ser enfrentada e substituída por outra domus. FONTES TÁCITO. Anais. Trad. J.L. Freire de Carvalho. São Paulo: W.M. Jackson Inc. Editores, 1952 (Clássicos Jackson, Vol XXV). TACITE. Annales. Texte établi et traduit par Henri Goelzer. Paris: Les Belles Lettres”, 1953. 3vv. BIBLIOGRAFIA ALFÖLDY, Géza. Historia Social de Roma. Lisboa: Presença, 1989. BELCHIOR, Ygor Klain. Patronato e Governo Imperial, sob Nero, nos Anais, de Tácito. (Graduação em História). Mariana: UFOP. 2009. BOUDON, Raymond. Ação. In.: BOUDON, Raymond (Org.). Tratado de Sociologia. Trad. Teresa Curvelo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1995. DAVID, Konstan. A amizade no mundo clássico. Trad. Marcia Epstein Fiker. São Paulo: Odysseus Editora, 2005. III Jornadas Nacionales de Historia Antigua – II Jornadas Internacionales de Historia Antigua

Página 275

EISENSTADT, S. N. Patrons, cliens and friends – (Themes in the social sciences). Cambridge University Press. New York: 1999. ELSTER, Jon. Peças e engrenagens das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 1995. FAVERSANI, Fábio. A Sociedade em Sêneca. 209fls. Tese (Doutorado em História Econômica) DH/FFLCH/USP, 2000. FAVERSANI, Fábio. “Trimalchio, classe social e estamento”. Revista de História. USP, São Paulo, n. 134, p. 7-18, 1996a. FINLEY, Moses. I. A política no mundo antigo. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editoras, 1985. GRIMAL, Pierre. O Império Romano. Tradução Isabel Saint-Aubyn. Lisboa: Edições 70, 1993. JOLY. Fábio Duarte. “A sociedade romana do Alto Império”. In: SILVA, Gilvan Ventura da; MENDES, Norma Musco. (Org.). Repensando o Império Romano, perspectivas socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro: Mauad, p. 21-53. 2006. JOLY, Fábio Duarte. Tácito e a metáfora da escravidão. São Paulo: Edusp, 2004. MOMIGLIANO, Arnaldo. “Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. First Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. MOMMSEN, Theodor. A history of Rome under the emperors. London: Routledge. 1999. PINSKY, Jaime. Cem textos de história Antiga. São Paulo: Global Editora e Distribuidora Ltda., 1980. ROPER, Theresa K. “Nero Seneca and Tigellinus”. Historia, Band XXIV/3. Franz Steiner Verlag GmbH. Wiesbaten. 1979. SHOTTER, David A. C. Nero. London: Routledge. 1997. SYME, Ronald. The Roman Revolution. Oxford: Oxford University Press. 2002. VEYNE, Paul. “O Império Romano” In: DUBY, G. & ARIÈS, P. (eds.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia das Letras, 1990. P. 81. WALLACE-HADRILL, A. Emperors and houses in Rome. In.: DIXON, Suzanne (ed). Childhood, class and kin in the Roman World. London: Routledge, 2001. WALLACE-HADRILL, A. “Patronage in Roman society; from Republic to Empire”. In: WALLACE-HADRILL, A. Patronage in ancient society. London: Routledge, 1989. p. 63-88. WALLACE-HADRILL, A. “The imperial court”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006.

III Jornadas Nacionales de Historia Antigua – II Jornadas Internacionales de Historia Antigua

Página 276

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.