BELCHIOR, Ygor Klain. Patronato e Governo Imperial, sob Nero, nos Anais, de Tácito. (Graduação em História). Mariana: UFOP. 2009.

July 25, 2017 | Autor: Ygor Belchior | Categoria: Neronian Literature, Emperor Nero, Tacitus, Tacitus on Women
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YGOR KLAIN BELCHIOR

Patronato e governo imperial sob Nero, nos Anais, de Tácito.

MONOGRAFIA DE BACHARELADO

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO Mariana, 2009.

YGOR KLAIN BELCHIOR

Patronato e governo imperial sob Nero, nos Anais, de Tácito.

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal de Ouro Preto como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Bacharel em História. Orientador: Professor Doutor Fábio Faversani.

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA INTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO Mariana, 2009.

A meus pais

“Nihil rerum mortalium tam instabile ac fluxum est quam fama potentiae non sua vi nixa[e]”1 Tácito, Anais XIII, XIX, 1.

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“De todas as coisas humanas nada há de tão instável e tão pouco seguro como a fama do poder, quando esse não tem forças próprias com o que se sustentar”.

Agradecimentos Esta monografia de bacharelado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto é resultado do trabalho em conjunto com o Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (LEIR), e inicialmente cabe agradecer a Deus, meu refúgio e minha fortaleza, por esta conquista. Agradeço aos meus pais, Elisete e Tonhão, pelo amor incondicional. Meus irmãos, Raíssa, Natasha e Yan, que sempre torceram e me apoiaram em todos os momentos da minha graduação. Meus avós, Etvaldo, Isaltina, Benedita, e Abel (in memoriam), e todos meus familiares. Agradeço muito minha companheira Maria Tereza, fonte de minha inspiração, obrigado por tudo. Sou particularmente grato aos professores que contribuíram para minha formação, Fábio Faversani, Adriana Figueiredo, Álvaro Antunes, Celso Taveira, Fábio Joly, Adriano Cerqueira, Aldo Eustáquio e Bernardo Lins Brandão. Ao LEIR pelos momentos incríveis de discussão e risadas. Agradeço em especial à Sarah, Lucas, William e Mariana, e ao pessoal do NEASPOC, agradeço pelo apoio e amizade. E o apoio financeiro e institucional da FAPEMIG e da UFOP. Em especial, agradeço, meio que sem encontrar palavras para descrever minha gratidão, ao Professor Fábio Faversani que me acolheu como um filho. Obrigado pelas lições sobre o Império Romano, sobre a vida e o Palmeiras. Obrigado pela companhia e por acreditar muito em todos os bolsistas do LEIR. Com o velho jargão: por último, mas não menos importante, agradeço muito à República Orfanato por todos os momentos que contribuíram para minha formação pessoal e, principalmente, pelo futebol. Agradeço muito ao Nescau, Betão, Tércio, Fúlvio, Zizou, Fábio, Tavão, Calvino, Fabanjão, Quick, Pimpão, Tuta, Celim, Carol, Clarita, Cida, Audimar, Jose e seus filhos. Agradeço também à Dona Efigênia e sua família que me acolheu em meus primeiros momentos em Mariana. Ao ICHS e principalmente à UFOP. (E àquele que deixou este espaço para agradecer todos que contribuíram para aquele que sou).

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RESUMO

Esta monografia de bacharelado em História tem como objetivo verificar através da análise do principado neroniano escrito na parcela da obra Anais, de Tácito, a atuação do princeps como patronus, tendo em vista seu papel como pater patriae e as relações interpessoais que perpassam as domus que compõem a sociedade romana. A condição de patronus universal a qual correspondia o lugar do imperador impunha uma dupla condição: superior a todos e a serviço de todos. Ao longo do governo de Nero, a domus Caesaris perde prestígio e outras domus começam a surgir como possíveis novas casas imperiais. Cabe assim estudar como se constituem as redes de clientela em competição e quais estratégias eram adotadas pela domus Caesaris para a manutenção do núcleo de poder.

ABSTRACT This is a Baccalaureate Final Paper in History which the objective is to analyze by examining the principate of Nero, writing in the Annals`of Tacitus, the actions of the princeps as patronus in view their role as pater patriae and the interpersonal relations that permeate the domus of Roman society. The condition of universal patronus which was the role of the emperor imposed a double condition: over all, and service of all. Over Nero`s government, the domus Caesaris lost prestige and others domus are beginning to emerge as possible new imperial domus. We check how the interpersonal networks are in competition and what strategies were adopted by domus Caesaris for maintaining the core of power.

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Sumário

Agradecimentos....................................................................................................... V RESUMO ............................................................................................................... VI ABSTRACT ........................................................................................................... VI Introdução .................................................................................................................... 1 Capítulo 1 - O principado de Nero: fontes e historiografia........................................ 11 Fontes e historiografia sobre o principado neroniano ...................................... 20 Capítulo 2 – O papel do Imperador e a Ordem Senhorial .......................................... 36 Capítulo 3 – Patronato e Governo Imperial ............................................................... 67 Análise do patronato e o governo imperial nos Anais, de Tácito ..................... 82 Conclusão ................................................................................................................. 111 Fontes ................................................................................................................... 114 Obra de Referência ............................................................................................... 114 Referências Bibliográficas ................................................................................... 114

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Introdução Durante a expansão militar nos últimos anos da respublica, as domus da nobilitas passaram a adquirir um enorme prestígio militar e econômico. Essa posição proeminente criou um sistema de disputas que visava o acúmulo de honra, de glória pessoal (cursus honorum) e glória para suas famílias. O mundo romano estava dividido em facções que apoiavam importantes casas, representadas por seus Generais (César, Pompeu, Marco Antônio e Otávio)2. Gradualmente, essas ambições pessoais principiaram conflitos entre essas facções3 possuidoras de grandes riquezas e com o controle de legiões4. Esta foi a rota traçada para a guerra Civil. Com o advento do Império a política romana sofreu transformações profundas em sua base. Consumada a vitória de Otávio sobre Marco Antônio a guerra civil havia acabado e a respublica teria que ser restabelecida. Contudo, o que observamos neste quadro é que Augusto promoveu um processo de renovação política, concedendo cargos e magistraturas, e concentrando em suas mãos vários títulos consentidos e legalizados pelo Estado. Para Ronald Syme,

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“Doravante, o mundo romano encontrava-se dividido em duas partes: a Ocidente, os homens que se reclamavam de César, a Oriente, os que havia abatido. De novo, os jogos políticos em que os senadores se compraziam teriam por efeito tornar inevitável um conflito armado entre as duas metades do império”. cf. GRIMAL, Pierre. O Império Romano. Tradução Isabel Saint-Aubyn. Lisboa: Edições 70, 1993. p. 39. 3 “a revolutionary leader arose in civil strife, usurped power for himself and his faction, transformed a faction into a national party, and a torn and distracted land into a nation, with a stable and enduring government”. cf. SYME, Ronald. The Roman revolution. Oxford University Press. 1939. p. 4 4 “César, quando morreu, era o chefe de trinta e nove legiões” cf. GRIMAL, Pierre. O Império Romano. Tradução Isabel Saint-Aubyn. Lisboa: Edições 70, 1993. p. 34.

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“It was the end of a century of anarchy, culminating in twenty years of civil war and military tyranny. If despotism was the price, it was not too high: to a patriotic Roman of Republican sentiments even submission was a lesser evil than war between citizens. Liberty was gone, but only a minority at Rome had ever enjoyed it”5.

Essa revolução política6 conservou as bases da respublica romana, como o Senado, as magistraturas e os comícios de centúrias e as tribos, contudo alterou profundamente os poderes do princeps republicano. Otávio se tornou chefe dos exércitos (imperium), senhor das províncias, pater patriae, Augusto e, através de um juramento de fidelidade, todos os funcionários do Estado e a carreira de alguns senadores eram colocadas ao seu serviço. Essa nova realidade política construída por Augusto também modificou as relações entre as domus. Durante o estabelecimento do principado, as domus que compunham a elite romana continuam sendo importantes, mas de outra maneira. Segundo Fábio Joly, A casa (domus) imperial, desde o início do Principado, passou por uma transformação, tornando-se uma nova formação social distinta das casas aristocráticas, seja de um ponto de vista quantitativo, de concentração de recursos materiais, seja no plano qualitativo, por meio da elaboração de um estilo de vida próprio.7

Junto ao surgimento da figura do princeps consolidada no topo da hierarquia social foram estabelecidos novos tipos de relações sociais entre o imperador e os outros grupos sociais que habitavam o império. Para Alfödy, as relações sociais no final da República – com exceção da relação senhor x 5

SYME, Ronald. The Roman revolution. Oxford University Press. 1939. p. 2. “In the Revolution the power of old governing class was broken, its composition transformed”. cf. SYME, Ronald. The Roman revolution. Oxford University Press. 1939. p. 20. 7 JOLY, Fábio Duarte. A escravidão no centro do poder: observações acerca da família Caesaris”. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, Janeiro/ Fevereiro/ Março de 2007 Vol. 4 Ano IV.nº 1. 2008. 6

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escravo - eram baseadas na amicitia, quando se tratava de pessoas com o mesmo estatuto jurídico, ou seja, entre “iguais”. Outro tipo de relação era a patronus-cliens, quando havia uma grande diferença de poder, prestígio e fortuna entre os envolvidos. Assim, as relações de amicitia promovidas pelo princeps eram somente destinadas àquelas pessoas que possuíam o maior estatuto jurídico na sociedade – salvo o estatuto de princeps – como os senadores e os cavalheiros 8. O cenário de disputa entre as domus continuava o mesmo. Contudo, esse sistema de disputas possuía novas regras que eram ditadas pela domus Caesaris. Essas relações de patronato estabelecidas em torno da figura do princeps foram essenciais para a pacificação das diversas facções que compunham o império, pois, com o surgimento da domus Caesaris, essas domus continuaram a competir umas com as outras, contudo, teriam que estabelecer estratégias de aproximação para com a domus Caesaris, que havia se tornado a domus mais proeminente da respublica. De certa forma, Augusto promoveu uma excelente política de organização dessa sociedade através da sua auctoritas pessoal e do seu patronato9. Segundo Tácito, referindo-se ao governo de Augusto, “Com o transtorno do governo de Roma desapareceram todas as virtudes e os costumes antigos. Perdia-se a igualdade, já não se atendia senão para as vontades do príncipe: e apesar disso, todos viviam satisfeitos com o presente, enquanto Augusto estava vigoroso, e conservava sua autoridade, sua família, e a paz” (Anais, I, 4, 1).

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ALFÖLDY, Géza. Historia Social de Roma. Lisboa: Presença, 1989. p. 115 – 120. “Cum domino pax ista veni” (Lucano, Pharsalia I, 670) cf. SYME, Ronald. The Roman revolution. Oxford University Press. 1939. p. 9. 9

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Tido para os historiadores e biógrafos antigos, a exemplo Tácito e Suetônio, como “modelo de governante”, e de um “bom governo”, Augusto foi eternizado nas produções intelectuais como referência para tecer critérios de julgamento de um governo. Os sucessores de Augusto (dinastia Júlio-Cláudia) deveriam seguir seu “modelo” de governo, afastando o império de outra guerra civil. Contudo, o que passamos a observar é uma seqüência de governos que se equiparam, não ao “modelo” de Augusto, mas a um modelo de crise, de uma crise da moral e dos costumes romanos. Essa crise no “modelo” de governo adotado por Augusto é discutida por Mário Torelli. Segundo o autor, os anos finais do principado de Tibério e o principado de Calígula foram marcados pelas constantes citações dos trabalhos de Augusto. Contudo, esses atos ficaram traduzidos apenas em palavras, sendo que as ações foram desenhadas de certa maneira que se tornaram cada vez mais evidentes os distanciamentos do “modelo” construído por Augusto. 10 Continuando nessa mesma linha de análise, Torelli analisa os governos sucessores, de Cláudio até Nero, como a crise fatal do “modelo” de Augusto. Segundo o autor, esses governos foram caracterizados pela excessiva centralização da “coisa pública” nas mãos do princeps.11 Assim, através da análise dos governos subseqüentes podemos notar que Tibério, Calígula, Cláudio e Nero, além de serem criticados pelas fontes 10

TORELLI, Mario. “Roman art, 43 B.C. to A.D. 69” Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 953. 11 Ibidem, p. 953.

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por não seguirem o “modelo” de Augusto, são imperadores que não morreram de morte natural. Ou seja, o principal cargo do Império, cujo modelo era de um soberano, era constantemente substituído. Afinal, em 44 anos tivemos quatro mortes violentas de imperadores. Neste ponto que pretendemos pensar que a política romana era composta por diversos grupos que constantemente disputavam a liderança desse poder. Pensando em uma lógica inversa, podemos afirmar que cabia ao imperador a busca pela “ordem imperial”, ou seja, a aplicação de uma política de manutenção desse império através do patronato, ou através de outros meios, como a coerção. Contudo, como estamos lidando com um sistema composto por constantes disputas, essa “ordem imperial” poderia ser facilmente alterada pelos grupos que se articulavam independente do poder imperial. Como também, através de más práticas políticas realizadas por “maus” princepes. Dentro dessa lógica da “ordem imperial”, estudamos a obra “Anais”, de Públio Cornélio Tácito, com o intuito de debater acerca do patronato exercido pelo Imperador Nero para com o Senado e as redes de solidariedade internas à corte neroniana. Em Tácito estas redes de clientela dos cortesãos aparecem com um certo nível de autonomia, inclusive conflitando umas com outras. O quanto esta autonomia não poderia gerar um poder paralelo e superior ao do imperador? O mesmo pode ser perguntado a respeito das principais casas de Roma. Em que medida elas não congregavam interesses próprios e diversos

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daquela do imperador? O quanto o enfraquecimento da casa imperial não poderia levar os patroni de diversas casas a procurar a proteção de outra casa importante? Como diferir novos quadros de alianças entre casas de conspirações? Como distinguir os que agem em nome do imperador daqueles que atuam passando por cima da autoridade imperial? Estas perguntas indicam bem um amplo universo de análise colocado pelo texto de Tácito para uma compreensão da dinâmica social sob o principado de Nero. Tendo em vista essas questões, o objetivo desta monografia de bacharelado é traçar a relação entre o patronato e o governo imperial em Tácito, tendo como recorte temporal o principado de Nero (54-68 d.C.). Nosso propósito é refletir a respeito da ordem imperial e das fronteiras internas ao governo desse imperador. Nossa opção pelo tema “ordem imperial e fronteiras” está alinhada aos debates realizados pelo LEIR, Laboratório de Estudos sobre o Império Romano, um grupo de pesquisa que abriga seis grandes Universidades Públicas (USP, UFES, UFG, UFRB, UNESP Franca e UFOP) sob coordenação geral do Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello. Como veremos no primeiro capítulo, as críticas realizadas pelas fontes a respeito do governo de Nero, influenciaram profundamente a imagem que possuímos sobre este imperador. Contudo, como poderemos observar nesse processo de re-leitura das fontes por nossos contemporâneos, a utilização de conceitos modernos de análise das representações dos governos antigos é

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amplamente

difundida.

Esse

processo

gerou

ambigüidades

entre

a

historiografia e o que nos foi legado pelas fontes. Partindo dessa discussão, iremos propor um debate a respeito da fronteira construída por uma tradição intelectual que divide o principado neroniano em dois momentos distintos; o primeiro em que o imperador teria realizado um “bom governo”, e o segundo quando Nero teria se voltado aos vícios e realizado um “mau governo”, com o intuito de verificar a atuação desse princeps como patronus, tendo em vista seu papel como pater patriae e as relações interpessoais que perpassam as casas que compõem a sociedade romana. Em nosso segundo capítulo pretendemos abordar o papel e os limites da potestas do imperador através da aplicação da lógica da “ordem senhorial”. Contudo, cabe ressaltar que iremos construir essa lógica da “ordem senhorial” através da comparação entre os direitos e deveres de um pater familias (pai de família) no nível da domus com os direitos e os deveres do princeps (investido do título de pater patriae), no Estado. Dentro desse debate iremos debater a respeito da imagem – que hoje é bastante influente na historiografia – do imperador como patrono ordenador de todas as relações sociais. Essa visão, advinda dos estudos de Andrew WallaceHadrill, publicados como capítulo na prestigiosa Cambridge Ancient History, analisa o funcionamento da corte imperial romana à imagem de nosso sistema solar. O sol seria o imperador, fonte de toda a energia (benefícium), as casas

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senatoriais seriam os planetas que circundavam a esfera solar, e os clientes seriam representados pelos satélites planetários. Contudo, dentro desse sistema, a energia proveniente do imperador não se propagava no vácuo, mas sim, através de mediadores envolvidos em grandes redes de solidariedades (relação patrono x cliente). O que ocorria quando o “sol” imperial perdia seu brilho, como vemos ocorrer no relato de Tácito sobre o governo de Nero? Como surge um novo “sol”? É uma casa que se apresenta como nova casa imperial? São as diversas casas que buscam uma nova casa imperial, levando à promoção de um novo “sol” que substituirá o antigo? Qual o papel daqueles elementos que compunham a casa imperial decadente ao longo deste processo? Trata-se de mais um universo de perguntas que ainda não tem sido colocada pela historiografia que tem privilegiado visões do império romano como uma ordem unipolar. Tácito afirma no decorrer de sua obra que a estratégia utilizada pelos senadores para absorver benefícios e honrarias do princeps estava calcada na subserviência e na adulação desenfreada de vários membros do Senado para com o Imperador e, como reflexo da concorrência entre os aduladores, um número cada vez maior delatores fazendo parte da corte neroniana. Segundo o historiador,

a

aristocracia

representada

em

suas

obras

renunciaria

voluntariamente ao seu poder político em troca de honras e riquezas oferecidas pelo imperador, visando à sua estabilidade político-social particular em

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detrimento de sua ordo e da Respublica. Tácito qualifica este comportamento de “escravidão” (Anais. I, 81). Mas o próprio Tácito apresenta tanto personagens quanto casas que não adotavam esta estratégia. Há casos em que os senadores buscam mesmo se afastar do imperador. Qual a conseqüência da tomada desta posição por algumas casas para o poder imperial? Trata-se de mais uma pergunta com a qual a historiografia não tem se preocupado. No terceiro capítulo pretendemos abordar como o patronato exercido pelo imperador poderia manter ou alterar a “ordem imperial”. Para tanto discutiremos os modelos de interpretação da organização da sociedade e como esses modelos nos ajudam a compreender as estratégias de ascensão social, em Tácito. Dentro dessa lógica, podemos observar o papel do imperador como elemento ordenador de uma vasta cadeia de redes de relações interpessoais. O bom princeps, investido do título de pater patriae, seria o detentor de grande parte dos benefícios e, portanto, patrono maior dessas redes clientelares. Portanto, analisando por esse viés, um “bom patrono” seria aquele que pautaria suas relações na amicitia, baseada na assistência mútua e na fides, isto é, na lealdade entre os amici. Já o “mau patrono” teria suas relações interpessoais pautadas na bajulação e na concessão desenfreada de benefícios, na tentativa de comprar a “lealdade” de seus clientes. Um ponto que nos parece oportuno investigar é: Quais são as estratégias que são usadas pelas diversas casas em um cenário em que cresce o consenso de que se é regido por

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um “mau imperador”? Pareceria interessante adular uma casa imperial cada vez mais fraca? Quais são os riscos que corre um pater familias ao se afastar da domus Caesaris? Nossa hipótese é de que a atuação de Nero como patronus, tendo em vista seu papel como pater patriae e as relações interpessoais que perpassam as outras casas que compõem a sociedade romana estão intrinsecamente ligadas à ordem imperial, e esta ordem, era composta através da fidelidade das casas senatoriais para com a domus Caesaris, ao mesmo tempo em que era ordenada por esta. Alternativamente, pode-se pensar que sempre opera uma possibilidade inversa de a casa imperial ir progressivamente perdendo sua capacidade de articular esta ampla rede de clientela e colocar em risco a unidade do Império.

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Capítulo 1 - O principado de Nero: fontes e historiografia Como nosso objetivo de análise é relação entre o patronato e o governo imperial sob Nero, nos Anais, de Públio Cornélio Tácito, convém iniciar este estudo com uma breve apresentação do autor e de sua produção, assim como uma discussão sobre a parte da obra na qual descreve os anos do principado neroniano, bem como o legado desta fonte que serviu de guia para autores posteriores e que influenciou diretamente na imagem que possuímos sobre o governo do princeps Nero. Nosso conhecimento do principado neroniano repousa basicamente na leitura de três autores - Tácito (Anais, XII, 69 a XVI, 25), Suetônio (Vida de Nero) e Dião Cássio (História de Roma. LXI, 35 – LXIII, 3) – cujas obras foram compostas entre a primeira metade do século II e a primeira metade do século III.12 Para Arnaldo Momigliano, a crítica moderna ainda questiona se Tácito, Suetônio e Dião Cássio seguiram ou não uma única fonte na redação de suas narrativas. Segundo o autor, “podemos comparar Tácito com Suetônio, Plutarco e Dião Cássio no tratamento dos acontecimentos de 69. O relato de Tácito é muito próximo das outras autoridades e deriva claramente da mesma fonte”13. Contudo, o autor se refere à narrativa taciteana das Histórias, considerando que nos “Annales, as semelhanças com as fontes paralelas já não 12

GRIFFIN, Miriam. Nero: the end of a dinasty. London: B. T. Batsford, 1984. p. 37. MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna; tradução Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru: EDUSC, 2004. p. 159.

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são tão próximas”14. Mas de certo sabemos que esses três autores podem ter fornecido o substrato para os autores posteriores. Outras obras compostas entre meados dos séculos I e II d.C. e que trazem importantes elementos sobre o período neroniano, como as biografias de Galba, escritas por Plutarco e por Suetônio, que tratam da queda de Nero. A grande exceção nesse contexto é a obra Guerra judaica (II, IV), escrita por Flávio Josefo, que foi composta nos últimos anos do governo de Nero e no início do período Flávio. Uma particularidade da obra de Flávio Josefo é que, segundo David Shotter, “he knew of sources more favourable to Nero”15, contudo, segundo o autor, essas fontes favoráveis ao imperador Nero foram suprimidas durante o período Flávio, “which remained universally hostile to the last of the JulioClaudians”16. Outras obras sobre o período neroniano que sobreviveram, incluindo os tratados filosóficos de Sêneca, suas Epístolas Morais e o De Clementia. Este tratado possui uma importância particular por descrever para Nero como deveria ser a conduta de um princeps. As obras de Sêneca são extremamente importantes para compreendermos o principado neroniano. Como se vê, há uma ampla documentação que pode ser usada para o estudo do principado neroniano. Tratando-se de um estudo de iniciação à pesquisa, impunha-se uma escolha em razão do tempo disponível para a 14

Ibidem. p. 159. SHOTTER, David A. C. Nero. London: Routledge. 1997. p. 97. 16 Ibidem. p. 97. 15

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realização deste estudo. Nossa escolha recaiu sobre os Anais, de Tácito. Nossa justificativa para a escolha de Tácito17 é que suas obras são uma das principais fontes para os períodos Júlio-Cláudio e Flávio. A obra que utilizaremos como fonte desta monografia, os Anais, nos apresenta a história dos imperadores da linha Juliana, partindo de Tibério e chegando a Nero. Segundo Fábio Duarte Joly, é regra geral, entre as obras de Tácito, independente do assunto que tratem, a observação e crítica sobre a conduta moral e política no Principado baseado em seus severos critérios de moralidade.18 Nesta monografia de bacharelado utilizaremos a edição dos Anais publicada na década de 1970 pela W.M. Jackson Inc. Editores. Esta edição compõe a coleção “Clássicos Jackson” (volume XXV), traduzida do francês por J. L. Freire de Carvalho. Passemos agora a uma breve apresentação de Tácito. Caio Cornélio Tácito ou Públio Cornélio Tácito19 nasceu entre os anos de 54 e 56 d.C. Não sabemos ao certo sua data de nascimento, nem o lugar preciso em que tal nascimento se deu. Acredita-se que tenha nascido em algum lugar da Itália, provavelmente na Gália Cisalpina. Seu falecimento parece ter ocorrido por volta do ano 120, em Roma. Durante sua vida de aproximadamente 64 anos, atravessou o governo de diversos imperadores. Entre esses imperadores se inclui o período do governo de Nero (54-68), que 17

Para Ronald Syme, referindo-se a Tácito, “The greatest of the Roman historians” cf. SYME, Ronald. The Roman Revolution. Oxford: Oxford University Press. 2002. 18 JOLY, Fábio Duarte. Tácito e a metáfora da escravidão. São Paulo: Edusp, 2004. p. 118. 19 As dúvidas a respeito de Tácito começam com seu praenomem: Gaius ou Publius? Nas edições das traduções de suas obras, encontramos os dois nomes.

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corresponde, portanto, aos seus primeiros 12 ou 14 anos de vida. Sua carreira política começou durante o reinado de Vespasiano, atuando, provavelmente, como questor. Sob o governo de Tito foi, presumivelmente, tribuno (80-81 d.C.), quando possuía cerca de 25 anos de idade20. Tácito afirma em suas Histórias (I, 1) que “Vespasiano me honrou com as primeiras dignidades, Tito as acrescentou, e sob Domiciano cresceram ainda mais21”. É claro que sua posição social elevada foi adquirida em parte por seu nascimento, onde adquiriu o status de eqüestre, herdado de um cavaleiro romano de nome Cornélio Tácito, mencionado por Plínio o Velho (Nat. Hist., 7, 76).22 Contudo, é consenso entre os historiadores e biógrafos de Tácito que sua ascensão política se torna mais verticalizada a partir de 78 d.C, quando se casa com a filha do Cônsul Cneio Júlio Agrícola. Em uma das passagens de sua obra Anais, Tácito nos oferece a informação de que no ano de 88 d.C, durante a execução dos jogos seculares (Ludi Saeculares), sob principado de Domiciniano, ocupou o cargo de pretor, ao mesmo tempo em que exerceu a função de sacerdote quindecenviral, ao qual pertencia “o cuidado destas festas; e os pretores eram os que mui

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LINTOTT, Andrew. “Roman historians”. The Oxford illustred history of the Roman world. John Boardman, Jasper Griffin, Oswyn Murray (Org.). Volume II, Oxford: Oxford University press. 2001. p. 236. 21 Para Gavin Townend, referindo-se aos escritores do século de Augusto, “most of these men of letters appear to have enjoyed comfortable means and independent position =, and to have fully assimilated into upper-class Roman society, with traditional Roman ideas and standards” cf. TOWNEND, Gavin. “Literature and society”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 908. 22 Cornelius Tacitus, eques romanus, Belgicae Galliae rationes procurans. Cf. JOLY, Fábio Duarte. “História e retórica em Tácito”. In__ Grandes nomes da História Intelectual. Marco Antônio Lopes (org.). São Paulo: Editora Contexto, 2003. p. 158.

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principalmente tinham a seu cargo a execução destas cerimônias” (Anais, XI, 11, 3).

Durante o ano de 97 d.C, Tácito, como consul suffectus (consul suplente), deu continuidade às funções de Virgínio Rufo, por ocasião de sua morte. No ano 100 d.C, sabe-se pelas cartas de Plínio, o Moço, a seu amigo Voconio Romano, que Tácito ganhou notoriedade nesta função da qual fora incumbido, defendendo os africanos numa acusação ao pró-cônsul Mário Prisco (Ep., II, 1). 23 “No curso de sua vida, Tácito, que de modo sumário na bibliografia romana, aparece com a qualificação de ‘favorito dos Césares’, se viu aureolado de todas as mais elevadas dignidades públicas e intelectuais a que um cidadão de seu tempo podia aspirar – afora a dignidade de imperador.” 24

O último cargo conhecido de Tácito é o proconsulado da Ásia Menor de 112 a 113 d.C, atestado pela inscrição de Mylasia, ainda sob o principado de Trajano. Supõe-se que tenha falecido durante os primeiros anos do principado de Adriano, na cidade de Roma. Especula-se que Tácito escreveu suas obras entre 75 e 115 d.C. No proêmio dos Anais, Tácito deixa transparecer a sua evidente preocupação política e a influência que esta tinha na atividade do historiador: “Porém, os sucessos do antigo do povo romano que, segundo sua variedade, ora foram prósperos, ora adversos, já grandes escritores têm publicado: e para as coisas de Augusto não faltaram talentos ilustres, que se coibiram depois que adulação e a lisonja se insinuarem na corte. Tudo quanto se escreveu no governo de Tibério, de 23

JOLY, Fábio Duarte. Tácito e a metáfora da escravidão. São Paulo: Edusp, 2004. p. 39. SILVEIRA, Breno. “Prefácio”. In___ TÁCITO. Anais. Trad. J.L. Freire de Carvalho. São Paulo: W.M. Jackson Inc. Editores, 1952 (Clássicos Jackson, Vol XXV). p. 16. 24

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Cláudio, de Caio e de Nero é mentiroso em conseqüência do medo: e o que depois da morte deles se publicou tem o mesmo caráter, por estarem os ódios ainda muito recentes. Lembrei-me pois dizer um pouco de Augusto, e só os últimos acontecimentos de sua vida: e continuar logo com os de Tibério, e seus sucessores, sem ódio nem afeição, porque nenhuns motivos tenho para isso”. (Anais, I, 1)

Suas obras históricas, Anais e Histórias, foram consideradas pelos pensadores políticos do século XVIII e no século XIX, como uma crítica ferrenha do autoritarismo imperial, que permitiu ser enquadrada no contexto de críticas políticas às monarquias européias – entre o Renascimento e o século XVIII - e até mesmo os regimes nazista e fascista da primeira metade do século XX.25 Segundo Arnaldo Momigliano, “Ele (Tácito) atuou em dois campos diferentes. Em primeiro lugar, ele ajudou os alemães a reafirmar sua nacionalidade e conseqüentemente a atacar o domínio político para aqueles que governavam e que eram governados. Aos primeiros ensinou mais do que um truque e aos segundos alertou que esses truques eram inevitáveis: cada um precisava conhecer o seu lugar.” 26

Momigliano também considera que o verdadeiro objetivo de Tácito era desmascarar o governo imperial, fundado na corrupção, hipocrisia e crueldade27. Para realizar tal tarefa embasada em uma história como fonte de exemplos (historia magistra vitae), escrita sine ira et studio, o historiador latino combate ferrenhamente as ações vergonhosas ocasionadas pela

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JOLY, Fábio Duarte. “Suetônio e a tradição historiográfica Senatorial: uma leitura da vida de Nero”. História, São Paulo, v.24, n.2. 2005. p.118. 26 MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna; tradução Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru: EDUSC, 2004. p. 157. 27 Ibidem. p. 167.

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“prostituição da aristocracia romana”28. Como exemplo, sob o governo de Tibério, Tácito relata que o Senado recorria “a mil adulações e torpezas” (Anais, IV, 74, 2) somente para desviar os pavores internos ocasionados pelo poder tirânico do princeps. Essa tirania é representada, segundo Tácito, pela perda da liberdade de expressão, e os homens que estão prontos a renunciar a liberdade pela adulação passam a ser uma origem do mal e um sintoma deste mesmo mal no relato de Tácito. Analisando o corpus documental composto por Tácito podemos encontrar essas preocupações sobre os aspectos indesejáveis dos governos tirânicos, escritas de forma analítica. Sua primeira obra conhecida, publicada em 98 d.C, foi uma biografia com um forte fundo etnográfico, composta por uma breve descrição da região da Bretanha e um relato sobre as conquistas romanas, que destacava a vida de seu sogro Júlio Agrícola (De Vita Iulii Agricolae29), sendo inserida no gênero das Laudationes Funebres. Publicada no mesmo ano de 98 d.C, a Germânia (Germania), é fruto da experiência que o autor obteve quando procurador da Germânia Bélgica. Descreve a geografia, a vida, instituição e cultura dos germânicos (obra etnográfica). Esta obra é considerada por muitos historiadores como uma tentativa de construir um modelo de antítese do homem romano, contrapondo

28 29

Ibidem. p. 168. Vida de Agrícola.

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a pureza e a liberdade dos costumes destes “bárbaros” germânicos aos valores da sociedade romana imperial30. A obra Diálogo dos Oradores (Dialogus de Oratoribus) foi escrita provavelmente em 109. Este texto explora uma preocupação comum também a outros autores do período imperial, debatendo as razões para o declínio da oratória. Embora não possamos saber ao certo sua autoria (a obra é atribuída a Tácito), esta obra de estilo ciceroniano relata um diálogo que o autor ouvira quando jovem, sob o de Vespasiano, acerca do declínio da eloqüência31. Segundo Townend, “Tacitus, Who claimed that the role of oratory had virtually ceased with the end of open discussion under the Republic (Dial. 401)”32 As Histórias (Historiae), obra inicialmente composta por doze volumes (conservaram-se apenas os cinco primeiros livros), nos apresenta a narrativa dos eventos que transcorrem após a morte de Nero em 68 d.C, o período das guerras civis, até o final do governo de Domiciniano, entre 96 e 97 d.C. Os Anais são um conjunto de dezesseis livros (estima-se que talvez fossem dezoito), que cobrem o período da morte de Augusto a morte de Nero. Esta obra, como a grande maioria da tradição textual antiga preservada, não 30

JOLY, Fábio Duarte. Tácito e a metáfora da escravidão. São Paulo: Edusp, 2004. p. 41. Esta obra foi atribuída a Tácito devido à descoberta de um códice no monastério de Hersfeld, na Alemanha, no século XV. Neste códice, estavam compiladas as chamadas obras menores (Germânia, Vida de Agrícola e Diálogo dos Oradores). cf. JOLY, Fábio Duarte. “História e retórica em Tácito”. In__ Grandes nomes da História Intelectual. Marco Antônio Lopes (org.). São Paulo: Editora Contexto, 2003. p. 159. 32 TOWNEND, Gavin. “Literature and society”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 913 31

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foi conservada em sua totalidade – apenas dois terços foram preservados. Os livros que nos restam são: os livros I a IV, o início do V, livro VI, sem o seu início, e os livros XI (sem o início) a XVI (sem o final). Nos Anais, Tácito nos apresenta a história dos imperadores da linha Juliana, partindo de Tibério e chegando a Nero, o que compreende, portanto, o período que vai do ano 14 ao ano 68 d.C. Utilizando-se de severos critérios de moralidade, o historiador latino tece observações críticas sobre a conduta moral e política sob o Principado. Segundo Momigliano, neste livro “cada imperador é analisado naquilo que tinha de pior, seus colaboradores compartilham de seu destino e apenas alguns indivíduos – principalmente senadores com fé filosófica – escapam da condenação porque enfrentam o martírio”33. Quanto ao que Tácito se propõe, deixemos que ele mesmo nos relate: Sei muito bem que muitos fatos que tenho referido, e que ainda espero referir, hão de parecer talvez a certa gente coisas de pouca importância, e como tais, indignas de memória: porém não se devem comparar os meus Anais com as antigas histórias do povo romano. Nesse tempo havia para contar grandes guerras e grandes batalhas; muitas cidades tomadas por força, e muitos reis vencidos ou feitos prisioneiros: e se alguma vez se fazia menção dos negócios domésticos era para relatar livremente as discórdias dos cônsules com os tribunos, os debates sobre as leis agrárias, e as contendas do povo com os grandes. Mas o meu objeto é muito menor, e pode ser talvez que também assim seja a minha glória; porque escrevo de uma época em que quase sempre tem havido paz, ou poucas vezes tem sido perturbada; e em que não posso dar notícia senão de desgraças internas, e do governo de um príncipe [refere-se a Tibério nesta passagem] que nunca ambicionou estender o seu império. Contudo, não se deve considerar como de pouca utilidade os sucessos, que, parecendo à

33

MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna; tradução Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru: EDUSC, 2004. p. 165.

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primeira vista pequenos, produzem muitas vezes grandes resultados. (Anais, IV, 32)

Como podemos perceber, para Tácito, os Anais possuem a função de mostrar todas as virtudes que não devem ser esquecidas pelo tempo, enquanto a responsabilidade se torna cada vez maior no diz respeito aos atos e as ações vergonhosas que devem ser mostradas como desgraças aos olhos da posteridade. E assim o fez. Em seus Anais, Tácito demonstrou que a dinastia Julio- Cláudia foi uma tirania e, através da exposição, ano após ano, dos acontecimentos dos governos de Tibério até Nero, a extinção impiedosa da antiga aristocracia romana.34 Fontes e historiografia sobre o principado neroniano

Ao analisarmos a obra Anais de Tácito, podemos perceber a presença de diversas fronteiras internas ao governo de Nero. Uma dessas fronteiras, construída por uma tradição intelectual, vem da crítica historiográfica ao imperador Nero que, após ser investido do título de imperator, teria realizado um governo marcado pelas influências de Sêneca, Burrus, Agripina minor e Tigelino. Personagens que, por possuírem uma efetiva participação no consilium principis, exerciam o poder do Imperador em seu nome, se tornando em muitos casos os patronos do Império. Essa fronteira delimitada dentro desta unidade empírica, o principado neroniano, pode ser percebida através da leitura das fontes e da produção 34

SYME, Ronald. The Roman revolution. Oxford University Press. 1939. p. 5.

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historiográfica que descrevem o principado deste imperador. Essa divisão arbitrária que impõe qualidades ao governo neroniano nos é apresentada de duas maneiras distintas: A primeira é através da leitura das fontes que tratam o principado, e a segunda pode ser feita através do estudo da historiografia moderna sobre o tema, fruto direto da visão apresentada por estas fontes. Como exemplo, citamos o conjunto de biografias “A vida dos doze Césares”, escrita por Suetônio. Em sua vita Neronis, o autor divide o principado de Nero em uma fronteira identificada por conceitos políticos específicos. Na primeira divisão do governo de Nero, Suetônio faz referência ao “bom governo” realizado pelo princeps. Segundo ele, Nero ao ser aclamado imperador prometeu a distribuição de riquezas ao povo e uma gratificação aos soldados, e assim o fez: “Na ânsia de dar uma idéia mais nítida do seu caráter, após haver declarado ‘que reinaria de acordo com os princípios de Augusto’, não perdeu nenhuma ocasião de demonstrar a sua liberalidade (liberalitas), sua clemência (clementia) e até mesmo sua amabilidade (comitas). Aboliu ou diminuiu os impostos mais pesados. Reduziu a um quarto os prêmios concedidos aos delatores pela lei Pápia. Depois de ter distribuído ao povo quatrocentos sestércios por cabeça, estabeleceu para os senadores mais nobres, porém sem fortunas, um ordenado anual que montava, para alguns, até cem mil sestércios. E, da mesma forma, às cortes pretorianas, uma ração de trigo anual gratuita. Certo dia em que o convidaram a assinar uma condenação capital, disse: “Queria não saber escrever!”. Saudou todos os membros das duas ordens correntemente e de memória. Ao senado que lhe endereçava ações de graça, respondeu: “Quando eu as tiver merecido”. Admitiu o povo nos exercícios no Campo de Marte. Ofereceu numerosíssimos espetáculos de todos os gêneros. Jogos da juventude, jogos do circo, jogos cênicos, combates de gladiadores”. (Suetônio, vita Neronis, X)

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Nero aparece aqui sob uma forte luz favorável por ter exercido suas obrigações com os grupos que constituíam a respublica: o povo, os soldados e o Senado. Além disso, atou como paterfamilias cuidando de casos que foram declarados por Suetônio como de extrema importância para Roma. Como pode ser percebido, o biógrafo enfatiza a enumeração das virtudes imperiais que Nero adotou: liberalitas, clementia e comitas (princípios de Augusto). Inversamente, quando o autor passa a descrever o outro lado da fronteira do governo neroniano, passando a expor os “atos vergonhosos e criminosos” de Nero, Suetônio apresenta ao leitor um princeps disposto a satisfazer os seus interesses pessoais, sobretudo artísticos, transmitindo a imagem desvinculada da ideologia senatorial. Esta crítica se dá principalmente no campo artístico, onde o imperador se exibia através de aparições em espetáculos, dentro e fora de Roma. A partir desse ponto, as demais menções ao imperador se centram exclusivamente em sua personalidade e em sua forma de agir completamente autônoma, desconsiderando o Senado, o Exército e o povo de Roma, grupos que davam sustentação política para seu governo. Quando, por exemplo, viajou à Grécia para participar de um concurso de música em Corinto, o autor o criticou por negligenciar os assuntos da cidade. Outra crítica feita à figura de Nero foi relativa ao seu afastamento dos assuntos militares, visto que, segundo Suetônio, o princeps trocava suas atribuições militares pelas artísticas, fazendo

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incursões pelo império a fim de promover espetáculos e fazer concursos de canto e teatro, descrevendo a volta do imperador como uma paródia: “De volta da Grécia, entrou em Nápoles, onde estreara como artista, num carro tirado por cavalos brancos, passando por uma brecha aberta na muralha, segundo o uso dos vencedores nos jogos sagrados. A mesmíssima coisa fez em Âncio, mais tarde em Alba, finalmente em Roma; aqui, porém, entrou no carro que servira outrora aos triunfos de Augusto, vestido dum manto de púrpura, com uma clâmide respingada de estrelas de ouro, à testa a coroa olímpica e a pítica na mão direita, enquanto as outras coroas eram carregadas pomposamente diante dele, com inscrições que indicavam o lugar, o nome dos seus concorrentes, o assunto dos cânticos e das peças em que saíra vencedor. Claquiatas seguiam o carro, como nas ovações, aos gritos de que eram eles os augustanos e os soldados de seu triunfo” (Suetônio, vita Neronis, XXV).

Nessa passagem extraída da biografia de Nero, fica clara a caracterização do imperador como o inverso da imagem de imperador ideal. Nero, ao invés de ser o pater familias, e de atuar para que as estruturas e os órgãos da respublica (senado e magistraturas, legiões, pretório e províncias) funcionem, passa, então, a mostrar as deficiências de seu caráter como, por exemplo: petulantia, libido, luxuria, avaritia e crudelitas, que se contrapõem às virtudes imperiais já mencionadas, ou seja, liberalitas, clementia e comitas, “componentes do repertório ideológico do Principado desde Augusto” 35. Através da leitura dos Anais podemos perceber que os primeiros anos do governo de Nero também foram marcados por disputas internas envolvendo sua mãe, Agripina minor, e seus conselheiros, Burrus e Sêneca. Segundo Tácito, “o maior trabalho, porém, que eles (Sêneca e Burrus) tinham era o de reprimir a ferocidade de Agripina minor (Anais, XIII, 2, 3). A ferocidade de 35

JOLY, Fábio Duarte. Tácito e a metáfora da escravidão. São Paulo: Edusp, 2004. p. 122.

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sua mãe, referida por Tácito, foi demonstrada através das tentativas de controlar o jovem imperador. Nero, muito jovem, ascendeu criminosamente ao poder em 54, graças às artimanhas de sua mãe Agripina minor, esposa de Cláudio, e que fora a principal articuladora do assassinato do imperador e da preparação da aclamação do jovem Nero (Anais, XII, 66-69). Desde o início do governo de Nero, Sêneca ajudou o Imperador a ocultar os seus vícios e maldades, a começar por estimular o romance do Imperador com a liberta Acte, afastando o jovem imperador dos desejos libidinosos de sua mãe (Anais, XIII, 13), e por fim ajudando Nero a resolver junto ao Senado a impressão de que o matricídio teria sido uma obra de salvação da respublica (Anais, XIV, 11). Nos livros XIII a XV, Anneu Lúcio Sêneca junto com Afrânio Burrus são caracterizados por Tácito como os controladores, até onde era possível, das paixões do jovem Imperador e das artimanhas de sua mãe Agripina minor. Segundo Tácito, Sêneca foi escolhido como preceptor de Nero graças “a sua arte de ensinar a eloqüência, e pelas graças e honesta amenidade de caráter” (Anais, XIII, 2, 2). O autor deixa clara a influência de Sêneca durante o início do principado neroniano. Segundo ele, o pronunciamento inicial do imperador fora composto por seu tutor. Tácito afirma que “sendo obra de Sêneca, havia

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sido muito bem trabalhado, e era digno do gênio brilhante do autor, mui conforme com o gosto do tempo” (Anais XIII, 3, 1). Neste discurso inicial, Nero asseverou que “nunca se constituiria juiz de todas as coisas, porque não podendo ouvir-se fora do recinto do palácio as vozes dos acusadores e dos réus, a sorte desses últimos viria então só a depender dos caprichos de alguns válidos. Que da sua corte desterraria a venalidade e as intrigas; e que os interesses da República haviam de ser independentes dos negócios da sua casa. Que o senado gozaria de toda a sua antiga jurisdição” (Anais XIII, 4, 3- 4).

Há uma evidente preocupação em repudiar as ações vergonhosas e os abusos cometidos durante o principado de Cláudio, especialmente, no que se refere à participação dos libertos nos negócios do império36 e à crítica aos julgamentos intra cubiculum. Além disso, Nero prometeu seguir o modelo construído por Augusto, respeitando a divisão de poderes entre o Senado e o princeps37. Para Momigliano, referindo-se ao discurso de Nero, “It abolished the abuses that had disgraced the reign of Claudius such as the secret trials intra cubiculum princepis, but its aim differed little. That aim was to win over members of the upper classes to help readily and efficiently as advisers or executive officers in the Augustan scheme by encouraging them and allaying their fears: trials, confiscations, and hasty condemnations were to be stopped”38.

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“He also promised that he would remove freedmen from the positions of power that they had held under Claudius; the removal of Agrippina´s favorite, Pallas, within months of the accession served to show that Nero meant what he said, though his motive, as we saw in the previous chapter, probably had little to do with conciliating the senate” c.f. SHOTTER, David A. C. Nero. London: Routledge. 1997. p. 17. 37 “That respect was made manifest by the appearance of the letters ‘EX S.C’ (senatus consulto), on aurei and denari between A.D. 54 and 64, to show that the use of gold and silver from the aearium had been authorized by the Senate” cf. WIEDEMANN, T. E. J. “Tiberius to Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 242. 38 MOMIGLIANO, Arnaldo. “Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. First Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 707.

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A explicação dada por Momigliano para o excelente governo nos primeiros anos do principado neroniano é que de fato não foram observados os preceitos da restituição das liberdades republicanas. Para o autor, Nero geriu seu governo como uma forte corrente de tendências absolutistas, concentrando todos as fontes de beneficium nas mãos do soberano, os quais distribuiria por meio da sua benevolência39. Aliado a esse fator, Momigliano nos oferece a interpretação de que nos anos iniciais do governo de Nero, o jovem princeps teria favorecido certas medidas conservadoras da aristocracia, como as questões envolvendo os libertos e os escravos, ou seja, nas palavras de Momigliano, “Nero, in contrast to his predecessor, posed as a protector of the interests of masters”40. Já, em um segundo momento, Nero é retratado como uma figura manipulada por um eqüestre chamado Tigelino, homem muito ambicioso que teria incentivado Nero a centralizar o poder cada vez mais. Com isso, o Imperador teria caminhado para um progressivo isolamento, caracterizado pela centralização do poder em detrimento do Senado e do exército, culminando, em 68 d.C., com eventos que a parte preservada dos Anais não traz, mas que conhecemos por outras fontes: Nero foi destronado e obrigado a se suicidar. Durante essa “segunda parte” do principado Neroniano, quando Nero se encontrava sob a influencia de Tigelino, podemos observar no decorrer da

39 40

Ibidem, p. 706. Ibidem, p. 705.

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narrativa dos Anais o progressivo aumento no número de assassinatos. Esse aumento do número de vitimas pode ser considerado como uma tentativa retórica de Tácito para caracterizar a transição de um “bom governo” para um “mau governo”, caracterizado por um Estado tirânico. Em um estudo realizado por Fábio Araújo de Oliveira encontramos, através do levantamento do número de assassinatos divididos em dois subgrupos, de 54 a 61 d.C, período anterior a influência de Tigelino e 62 a 66 d.C, quando Nero passa a ser controlado pelo eqüestre, um aumento significativo no número de mortes. Segundo o autor “Comparando o número de mortes violentas por motivações políticas nos dois períodos se apresenta um claro crescimento destas ocorrências nos anos em que Tácito expôs a figura de Tigelino frente as que aconteceram quando ele estava ausente das páginas dos Anais. Temos um número de mortes cerca de quatro vezes maior. Quando comparamos um período com o outro. Em termos relativos, ou seja, mortes por ano para cada período, a desproporção é ainda mais acentuada. Para o período sem Tigelino temos uma taxa de 1 morte por ano contra 6,6 mortes/ano no período em que Tigelino está presente. Ou seja, o número de mortes relatadas é mais de 6 vezes superior em um período do que em outro” 41.

A historiografia moderna tende a seguir Tácito no que tange às influências que esse imperador recebeu durante o seu governo. Essa tradição intelectual tende a analisar a obra taciteana tendo em vista a fronteira que envolve o governo de Nero e que compartimenta seu principado em dois momentos. A primeira parte de seu governo, nomeada por muitos historiadores como quinquennium neronis, teria sido positivo à medida que os

41

ARAÚJO, Fábio de Oliveira. Nas entrelinhas da Antiguidade: Tácito e as relações interpessoais entre Imperadores e súditos. (Monografia de Bacharelado). Mariana: UFOP. 2005, p. 52.

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vícios do Princeps e os excessos de sua mãe teriam sido controlados por Sêneca e Burrus. A mudança de qualidade do governo ocorre com a morte de Burrus e a afastamento de Sêneca do poder, levando ao período considerado como um mau governo, quando Nero teria sua administração voltada aos vícios por sua própria vontade e pela influência negativa de Tigelino. A expressão quinquennium neronis, cunhada por Aurelius Victor, no século IV em sua obra De caesaribus (5, 2), e atribuída ao imperador Trajano, faz referência aos anos em que Nero exercendo um “bom governo” realiza grandes reformas na área urbana da cidade após o incêndio de 6442. Portanto, o quinquennium não se referiria originalmente ao período inicial do governo, nem mesmo ao governo como um todo. Esta idéia de um período de bom governo sob Nero perpassa praticamente todas as análises historiográficas contemporâneas. Passemos, então, a examinar algumas delas. O historiador J.C.C. Anderson escreve que o quinquennium em questão corresponde aos cinco anos finais de governo. Segundo ele: “It was in the last quinquennium that Nero found an unequalled opportunity of satisfying his craze for building. In the year 64 occurred the great fire which reduced a large part of the Rome to ashes, and the rest of the reign was occupied with the work of rebuilding the city on a round and Stately plan, and of constructing that uncommendable triumph of the architect’s skill, the Golden Palace, with all its marvels of art and luxury and picturesque surroundings.” 43

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Uma das críticas ao “mau governo” de Nero é, Segundo Scullard: “The rebuilding of Rome required money, and did Nero’s luxurious life, not mention a grandiose scheme to link. [..] He therefore imposed forced contributions on Italy and the provinces and seized what he could, not stopping short of putting to death six landowners in Africa who owned half the estates there, in order to appropriate their land”. Cf. SCULLARD, H.H. From the Grachi to Nero. Routledge Taylor & Francis Group. 2001 p. 310. 43 ANDERSON, J.C.C. “Trajan on the Quinquennium Neronis”. Historia, Band XXVIII/3. Franz Steiner Verlag GmbH. Wiesbaten. 1989. p. 177.

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Contudo, para pesquisadores como J.G.F. Hind44 e M.K. Thornton45 os anos do “bom governo” de Nero foram os cinco anos intermediários (60 65 d.C), onde o princeps teria realizado as construções do porto de Óstia e da Domus Transitoria. No entanto, a alternativa mais usual é dada pela idéia que teriam sido os anos dignos de elogio seriam aqueles iniciais. O texto “De Caesaribus” de Aurelius Victor refere-se a “quiquennium tamen tantus fuit”. Influenciado por esta tradição hegemônica de interpretação, o tradutor apresenta o texto em francês como sendo “les cinq premières annès que son règne furent si glorieuses”46. T. E. J. Wiedeman, em um capítulo intitulado “Tiberius to Nero”, situado na prestigiosa The Cambridge Ancient History, discute a aplicação da expressão quinquennium neronis. Para o autor, o programa de melhorias na cidade de Roma através de inúmeras construções, durante o período pósincêndio de 64, foi de fato muito eficiente. Contudo, o autor ressalta que essa política de reconstrução da cidade sofreu forte oposição devido aos gastos suntuosos do princeps. Segundo ele “The Idea of Nero´s quinquennium is unlikely to have been invented in order to explain the excellence of Nero´s buildings, or the real (but marginal) military successes associate with Corbulo and other commanders. It was perhaps rather an attempt to explain why so many senators

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HIND, J.G.F. “The Enigma of Nero´s Quinquennium”. Historia, Band XXIV/3. Franz Steiner Verlag GmbH. Wiesbaten. 1988. p. 629. 45 THORNTON, M.K. “Nero´s Quinquennium: The Ostian connection”. Historia, Band XXXVIII/3. Franz Steiner Verlag GmbH. Wiesbaten. 1989. p. 119. 46 AURELIUS VICTOR. Livre des Césars. (Texte établi et traduit oar Pierre Dufraigne. Paris: Les Belles Lettres, 1975. O grifo é nosso.

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who latter reviled Nero as a monsters were prepared to support him for so many years” 47.

De qualquer forma, a historiografia sobre o principado neroniano concorda que “there is one and only one clear turning-point: it is, marked by the year 62, when the joint administration of Seneca and Burrus gave place to the sole rule of Nero”48. Ou seja, a fronteira entre bom e mau governo de Nero teria se consolidado após a morte de Burrus e o afastamento de Sêneca, que ocorrem em 62. Assim, aceitando essa divisão, de um “bom governo” de 54 a 62 e de um “mau governo” de 62 a 69, teríamos um quinquennium de nove anos. Rostovtzeff descreve que Nero ascendeu ao trono de forma irregular e reafirma que durante seu governo foi influenciado por Burrus e Sêneca, de uma parte, e pela sua mãe Agripina minor, de outra. No início de seu Principado, ocorre o assassinato de Britânico, seu meio-irmão (filho de Cláudio com Messalina e herdeiro potencial do trono) e uma seqüência de atentados terríveis, inclusive o assassinato de sua mãe Agripina minor que “tentou usá-lo como fantoche no poder”49. O imperador governa “perturbado por Sêneca e Burrus que o haviam educado e desejam orientá-lo como jovem”50. Com o afastamento de seus tutores, Nero entra em choque com a hostilidade e o desprezo dos que o cercam. Em suma, na visão deste autor, 47

WIEDEMANN, T. E. J. “Tiberius to Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 244. 48 ANDERSON, J.C.C. “Trajan on the Quinquennium Neronis”. Historia, Band XXVIII/3. Franz Steiner Verlag GmbH. Wiesbaten. 1989. p. 177. 49 ROSTOVTZEFF, Michael Ivanovitch. História de Roma. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p. 195 50 Ibidem. p. 198.

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teria sido um governo marcado pelo terror e o massacre de todos os suspeitos de não simpatizar com ele ou com seus métodos de governo. Dentro dessa mesma lógica de interpretação da obra de Tácito, o autor Gugliemo Ferrero em uma obra publicada em 1947, intitulada História romana, nos oferece um capítulo dedicado ao governo de Nero e a chamada quarta guerra civil51. Segundo o autor, “a riqueza, o poder, as adulações despertaram rapidamente no jovem os maus instintos até então ocultos, sobretudo seu amor aos prazeres e seu caprichoso exotismo”52. As disputas envolvendo mãe e filho logo se converteram em um duelo de vida e morte. A autoridade de um princeps discreto e forte era agora, indispensável ao Estado; e Nero, por sua parte, só pensava em divertir-se (...). Mas Agripina era uma mulher enérgica e achava-se apoiada por um partido poderoso: como Nero se revoltasse e negligenciasse os seus deveres, Agripina aproximou-se de Britânico, para o qual se voltava, ademais, as esperanças da nobreza conservadora.53

Considerado pelo autor como medroso, fraco, indeciso e temerário da situação que a luta política com sua mãe havia provocado, o princeps recorre ao liberto Aniceto para que assassinasse sua mãe e lhe desse o poder do império. “Excitado, por sua vez, pelo exemplo de libertinagem que ele próprio favorecia, Nero não se conteve mais, e não aspirou outra coisa senão ser admirado como cantor. Os êxitos do palco pareceram-lhe infinitamente mais apreciados do que a glória militar. Mas a tradição era ainda muito poderosa. Os primeiros libelos contra Nero e a sua corte, assim como os primeiros processos de lesamajestade, datam desses anos (60- 62). A morte de Burro, seu prefeito do pretório, que fora um dos seus mestres e 51

Segundo o autor, as três primeiras guerras civis seriam aquelas que opuseram Mário e Sula, César e Pompeu, Otaviano e Marco Antônio, ainda na República. 52 FERRERO, Gugliemo. “O governo de Nero e a quarta guerra civil”. História romana. Trad. Brenno Silveira. Rio de Janeiro: Livraria Martins Editora. 1947. p. 221. 53 Ibidem. p. 221.

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mais sábios conselheiros, ocorrida em 62, piorou a situação. Burro foi substituído por Tigelino, personagem com o qual a história se mostrou talvez por demais severa, e que não valia muito mais que seu predecessor”.

Em suma, na visão de Gugliemo Ferrero, Nero aparece como um imperador covarde que fora manipulado pelas mulheres de sua corte, Agripina minor, Acte e Popéia. Quando ocorreu a morte de seus tutores, o imperador se libertou e passou a combater a tradição romana, sustentada por um senado fraco, com o auxílio do inescrupuloso Tigelino. Outra obra composta em meados do século XX e intitulada Os Césares, de autoria de Ivar Lissver, é composta pela história de todos os césares romanos pagãos, desde seus imediatos predecessores Mário, Sila, Pompeu e Crasso, até Constantino, o grande, primeiro imperador cristão, como também por uma discussão a respeito da biografia de Nero. Segundo o autor, “O imperador Trajano afirmará mais tarde que os cinco primeiros anos do reinado de Nero foram os mais felizes do império romano. Se esta asserção é verídica, Roma deve isto a Sêneca”54. Como podemos perceber, fica clara a influência de Sêneca nas ações do imperador, sendo que essas, graças ao filósofo, eram destinadas ao “bem público”. Aconselhando-se com Sêneca e Burrus, o imperador decidiu assassinar sua mãe, fato que possibilitou o aumento do poder de Sêneca e o efetivo controle sobre as ações do princeps. De fato, apoiando-se na idéia de um quinquennium feliz, Lissner reconhece que “de 54 a 59 d. C, isto é durante o primeiro terço de seu reinado que durou 54

LISSNER, Ivar. Nero. Os Césares. Trad. Oscar Mendes. Belo Horizonte: Editora Itatiaia. 1959. p. 143.

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catorze anos, observou Nero estritamente as regras da sabedoria, da prudência e da medida”55. Os crimes e as loucuras do imperador não datariam do início do seu reinado, quando estava sob a tutela de Sêneca. Em Os Imperadores loucos, de Michel Cazenave e Roland Auguet, são discutidas as representações do imperador Nero que seriam legadas pelas fontes que acabamos de apresentar, Tácito e Suetônio. Segundo os autores, sob o nome deste imperador foi construído por romancistas tendenciosos todo um imaginário de que o princeps seria um monstro, uma cabeça oca e barulhenta, um charlatão e um fantoche56. Contudo, o que realmente nos interessa é a idéia de um “imaginário” que vai sendo construído a respeito de Nero e que nos leva a lembrar dele sempre que se fala em incêndio, vaidade exacerbada, crimes violentos e matricídio. Neste livro os autores também reconhecem a existência do quinquennium Neronis, apresentando para o leitor um princeps influenciado por Sêneca, Burrus e Agripina minor. O assassinato de sua mãe, Agripina minor, marca o início do verdadeiro reinado de Nero. Sêneca perde o prestígio e não consegue mais conter o ímpeto do jovem imperador. Burrus é substituído, após sua morte em 62, por Tigelino, que passa a controlar o princeps. David Shotter, em um estudo intitulado Nero, desenvolve a crítica ao que ele denominou de “modern writters”57, ou seja, àqueles escritores que

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Ibidem. p. 144. AUGUET, Roland. CAZENAVE, Michel. “Os primeiros imperadores loucos”. In. Os imperadores loucos. Editora Inquérito.1995. p. 149. 57 Embora, o autor não explicite. cf. SHOTTER, David A. C. Nero. London: Routledge. 1997. p. 14. 56

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aplicaram o termo quinquennium neronis para os cinco primeiros anos do governo de Nero. Para ele, referindo-se ao historiador Aurelius Victor, o termo deveria ser aplicado aos cinco anos finais, quando o princeps realizou muitas atividades de construção de instalações e edifícios. Como vimos, Aurelius Victor não se referia a nenhuma data específica, mas sim à existência de um quinquennium. Segundo Scullard, Nero foi elevado ao poder aos dezesseis anos de idade graças às artimanhas inescrupulosas de sua mãe Agripina minor (nasceu em 15 de dezembro de 37 e foi proclamado princeps em 13 de outubro de 54). Sua carreira política foi marcada por disputas entre seus conselheiros, Burrus e Sêneca e sua mãe. Para este autor, após o assassinato de sua mãe, Nero “would be glad to free himself from the role of puppet-king”58. Nesse sentido, a imagem que o autor nos passa é a de um governante que era controlado pelas pessoas que estavam ao seu redor, porém que lutava, sem sucesso, para se libertar delas. Para Miriam Griffin, Tácito e Dião Cássio “agree that Seneca shared with Burrus the responsibility for Nero´s early reign”59, e que durante esses bons anos “these two men were responsible for the administration (…) they aimed however, at promoting the wellbeing of the empire, and least economic prosperity”60. Segundo a autora “Tacitus gives Seneca and Burrus credit for the excellent of the early reign, without mentioning either of them in 58

SCULLARD. H.H. From the Gracchi to Nero. London: Routledge, 2001. p. 305. GRIFFIN, Miriam. Seneca: A philosopher in politics. Oxford: Oxford University Press. 1992. p. 68. 60 Ibidem. p. 68. 59

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connection with imperials edicts or senatorial decrees, or showing any enthusiasm for such reforms as were introduced. (…) Tacitus was clearly deeply interested in Seneca; he regarded the death of Burrus early in 62 and Seneca’s consequent loss of power as the turning-point in the reign: the bonae artes in which they had encouraged Nero are now entirely replaced by male artes and schelera fostered by Tigellinus.” 61

Assim, é importante destacar que Nero, através da re-leitura de Tácito, é desenhado como um Imperador fantoche, sendo manipulado pelos seus conselheiros, por sua mãe e por último por Tigelino. Se esta realmente for à imagem que o autor quis passar ao leitor, estamos nos deparando com um princeps contrário a idéia de um pater patriae, ou seja, um governante que não governa, uma figura que, ao contrário do senhor do lar ou da pátria, é alguém que está sendo dirigido por outros, quando a idéia de dominus estava ligada justamente à posição daquele que governa a todos em sua casa.

61

Ibidem. p. 70.

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Capítulo 2 – O papel do Imperador e a Ordem Senhorial No capítulo anterior estudamos que as formas de julgamento de um governo imperial romano eram profundamente distintas daquelas que utilizamos atualmente. Hoje, por exemplo, assume predominância a noção de que o governo deve respeitar uma lógica liberal de igualdade entre seus cidadãos. No Império Romano, a gestão realizada pelo Imperador deveria respeitar a lógica tradicional da Ordem Senhorial, baseada em vínculos hierárquicos. É neste aspecto que concentramos nossa análise. A ordem senhorial está vinculada à domus, portanto a um domínio privado. Contudo, não se limitava a esta esfera. Nossa hipótese é que a ordem senhorial servia como uma medida para a avaliação dos governos imperiais. Nosso objetivo nesse capítulo é estudar se o papel do Imperador Nero foi orientado pela ordem senhorial. Para tanto, analisaremos a ordem senhorial e sua aplicação no principado e como essa lógica senhorial influenciou diretamente os limites do exercício do poder pelo imperador. De acordo com a ordem senhorial, o imperador deveria exercer o papel de senhor (dominus) de sua casa (domus Caesaris62), como também o papel de pater patriae, incorporando sob sua gestão todas as domus que compunham a respublica. O imperador seria, portanto, aquele paterfamilias, dominus da casa imperial. Como todas as casas estavam ligadas à casa imperial, as questões

62

Casa do César.

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envolvendo a casa do imperador, que nesse caso é Nero, estavam intrinsecamente ligadas às questões da respublica. Como vimos, a historiografia sobre o principado neroniano tende a desenhar Nero como um imperador fantoche, sendo controlado por pessoas internas ao consilium princepis. Assim, a interpretação mais recorrente seria aquela que considera o princeps Nero, em um primeiro momento, sendo mero fantoche das ações de Agripina minor, que através de suas artimanhas fez com que seu filho fosse aclamado imperador, e de Sêneca e Burrus, tutores do jovem imperador. Já em um segundo momento Nero teria sido (des)controlado por Tigelino, voltando-se para os vícios e a realização de um mau governo. Se esta realmente for a imagem que Tácito legou ao leitor, estamos nos deparando com um princeps contrário à idéia de um pater patriae, ou seja, um governante que, ao contrário do senhor do lar ou do centro de uma vasta rede de solidariedade, é alguém que está sendo dirigido por influências internas a corte. Assim, quando um imperador era controlado por outras pessoas internas ao consilium princepis e que exerciam o patronato do império, função que era própria do pater patriae, teríamos um princeps que contrariava o seu papel de pater, ou seja, teríamos uma casa imperial enfraquecida. Para Géza Alfödy, o exercício do poder dentro de uma domus romana era ditado pela figura do paterfamilias. Esse chefe de família, ao gozar do exercício ilimitado dos poderes no interior da casa, deveria garantir o pleno

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funcionamento desta casa, zelando pelo bem estar de todos e da justiça na relação entre seus membros. O paterfamilias era o homem da casa, o chefe de família na Roma Antiga. Sua função, como chefe dessa família, era a de zelar pelo bem estar desta e fazer prosperar a domus. O controle senhorial era tão abrangente que seus filhos não podiam assumir um matrimônio ou realizar qualquer negociação sem a autorização do pater. Segundo Paul Veyne: “O pai de família é um esposo, dono de patrimônio, senhor de escravos, patrono de libertos e clientes; por uma espécie de delegação que lhe faz a cidade, exerce o direito justiça sobre os seus filhos e filhas e esse conglomerado de poderes heterogêneos não saiu de uma unidade primeira”63.

Como podemos percerber nesse pequeno trecho extraído do texto O Império Romano de Paul Veyne, uma das atribuições do paterfamilias era a de patrono de libertos e clientes. Dentro dessa lógica, o pater era detentor de uma vasta rede de clientes, dentre eles ex-escravos (os liberti), que possuiam deveres de filho para com o ex-senhor, “cujo nome de família se tornou seu”64. Contudo, para Veyne, “o pai de família não deixou pouco a pouco de ser um monarca, pois nunca o foi”65, seus poderes apenas abrangiam sua domus composta por “Escravos domésticos ou ex-escravos agora libertos, o pai de família, sua esposa em justas bodas, dois ou três filhos e filhas compõe o pessoal de uma casa, ao qual devemos acrescentar algumas dezenas de homens livres: os “fiéis” ou “clientes” que a cada amanhecer vão desfilar na antecâmara

63

VEYNE, Paul. “O Império Romano” In: DUBY, G. & ARIÈS, P. (eds.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia das Letras, 1990. P. 81. 64 Ibidem. P. 97. 65 Ibidem. P. 81.

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de seu protetor ou “patrono” para lhe fazer uma rápida visita de homenagem.”66

Portanto, no âmbito da domus, a ordem senhorial era entendida diretamente como os direitos e os deveres do paterfamilias para com os membros que compunham a sua familia. Ou seja, a ordem senhorial estava ligada à potestas do pater, como o direito de decidir sobre a vida e a morte dos seus filhos e, ao mesmo tempo em que gozava do exercício pleno do poder, o chefe de família tinha para com os membros de sua casa deveres de proteção, pois deveria garantir a continuidade e a prosperidade de sua domus. Contudo, essa idéia de um soberano dentro da familia ou de uma domus nos traz um debate interessante. No parágrafo anterior, utilizamos os dois conceitos para descrever as atribuições de um paterfamilias. Hoje, quando falamos de nossas famílias estamos geralmente nos referindo aos membros consangüíneos ou aos membros que habitam a mesma casa? No âmbito do Império Romano esse debate é primordial para compreendermos o funcionamento da sociedade romana. Como era composta uma familia romana? Ou como era composta uma domus? Familia e domus possuíam o mesmo sentido para os romanos? Para J. A. Crook, a palavra familia era dificilmente usada fora do contexto doméstico. Segundo o autor os romanos possuíam uma “familia nuclear”, e esse núcleo era composto pelos parentes do paterfamilias, bem como por escravos e libertos. Segundo o autor, 66

Ibidem. p. 81.

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“The Roman household has its own individual cult on tutelary spirits, and for cult purposes it included slaves as well as the free members. In the second place, when the Romans talked about familia in connection with descent they usually meant the line of people with the same name”67

A familia romana era então composta por diversos descendentes com o mesmo nome. Contudo, cabe ressaltar que a autoridade desse núcleo familiar cabia à cabeça da familia, ao paterfamilias. Seu poder (potestas) sobre seus descendentes, escravos, libertos e sobre sua mulher, somente poderia ser quebrado quando este morresse. Segundo o autor “Patria potestas was lifelong. Those subject to it could have no property of their own, and their lives were almost wholly controlled by their paterfamilias. His potestas included the well-known ‘power of life and death’, which was undoubtedly a reality in Republican times. His household jurisdiction, with a family council, dealt with offences of its member that threatened the reputation of the family, and he could inflict chastisements and even death.” 68

Como podemos perceber, os poderes do paterfamilias eram supremos dentro de sua familia. Como exemplo, era direito do paterfamilias decidir se um recém nascido seria reconhecido como filho legitimo, e se caso não o fizesse, era também seu direito decidir sobre a vida da criança. Outro exemplo muito interessante é que os poderes do paterfamilias não eram limitados pelo cargo ocupado por um dos seus dependentes. “But in private life it mattered nothing that you might be forty years old or married or consul of the Roman people; if you were in potestate you owned nothing, whatever you acquired accrued automatically to you paterfamilias, you could make no gifts, and if you borrowed money to gift a dowry to you daughter is was a charge on your paterfamilias.” 69

67

CROOK, John. Law and life of Rome. Cornell University Press. Ithaca: New York. 1967. p. 98. Ibidem. p. 107. 69 Ibidem. p. 107. 68

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No momento da dissolução desse poder, que só ocorria com a morte do paterfamilias, o descendente mais velho era escolhido para herdar a potestas de seu pater. Cabe ressaltar que os herdeiros do paterfamilias poderiam ser tanto os filhos consangüíneos como os filhos adotivos. Caso a familia não tivesse nenhum herdeiro do sexo masculino a potestas passava para as mãos de outro membro da familia, independente da idade e do sexo, que passava a concentrar os poderes do paterfamilias (sui iuris)70. Diferentemente da visão jurídica sobre o conceito familia exposto por J. A. Crook, Richard Saller, em um capítulo intitulado “Familia and Domus: defining and representing the Roman family and household”, visa elucidar a compreensão romana de familia através da análise do vocabulário básico Latino e demonstrar como essa unidade social fundamental foi representada em importantes contextos legados pela literatura e pelo direito romano. Para o autor, os romanos concebiam diversos significados para familia. Segundo ele, “understanding the Roman conception of the family is a delicate task, encountering the problematic relation between words and patterns of social behavior”71. Ou seja, nas palavras do autor “If the Romans conceived of family and household variously according to context, each Roman had to construct his or her own family and household out of the kin and resources available, with the consequence that in the real world family and household came in innumerable shapes and sizes.” 72

70

“So women sui iuris did in practice, in our period, manage their own property and affairs”. Cf. CROOK, John. Law and life of Rome. Cornell University Press. Ithaca: New York. 1967. p. 113. 71 SALLER, Richard. Patriarchy, Property and Death in the Roman Family (Cambridge Studies in Population, Economy and Society in Past Time). Cambridge: Cambridge University Press, 1995. p. 74. 72 Ibidem, p. 74.

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Mas afinal, na visão de Saller, como era constituida uma familia romana? Utilizando-se do renomado Oxford Latin Dictionary, Saller define familia como: “All persons subject to the control of a man, whether relations, freedman or slaves, a household. b. PATER, MATER, FILIUS, FILIA [-familias]. 2, The slaves of a household. 3. A group of servants domiciled in one place. 4. A body of persons closely associated by blood or affinity, family. 5. A school (of philosophy, etc.). 6. (leg.) Estate (consisting of the household and household property).”73

Segundo o autor, a definição jurídica de familia, como exposta por J. A Crook, envolta no princípio de que o pater familias possuía dominium in domo, satisfazendo uma necessidade puramente econômica, ou seja, a familia como uma propriedade do paterfamilias não era utilizada fora do contexto jurídico. Para tanto, os romanos freqüentemente utilizavam o vocábulo domus para indicar a unidade familiar. Nas palavras do autor “In its sense of the people comprising the household establishment, domus comes close to one of the definitions of familia – that is, a man´s servile dependants – but normally there is some distinction. Whereas familia is frequently used for the group of slaves under a dominus, to the exclusion of the free members of the household, domus is often rather broader, including the wife, children, and others in the house.” 74

Em seu texto, podemos encontrar quatro definições para domus. Em uma tradução literal, poderíamos nos referir a domus como a casa em que se reside. Outra definição possível seria a de tradição, como o lugar em que se

73

Ibidem, p. 75. SALLER, Richard. Patriarchy, Property and Death in the Roman Family (Cambridge Studies in Population, Economy and Society in Past Time). Cambridge: Cambridge University Press, 1995. p. 81. 74

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cultuavam os antepassados e as tradições familiares, ou, também, a propriedade em si. Contudo, como nos mostra Saller, domus possuía um sentido muito mais amplo do que propriedade. “In Cicero´s comendationes freedman are assumed to be part of the recommended domus, and Seneca (Ep. 47.4) and Pliny write of the domus as a miniature res publica in which the slaves participate as citizens”75. Como podemos perceber o conceito familia era muitas vezes confundido com domus, visto que os membros de uma determinada familia (compreendida pelo pai de familia, mãe, filhos, filhas, sobrinhos, genros, noras, clientes, libertos e escravos) pertenciam à mesma domus. Como exemplo, Tácito se considerava membro da casa de Agrícola devido a seu casamento com a filha deste Cônsul (Agricola, XLVI). A casa imperial por sua vez não era somente compreendida pelos parentes do imperador. A domus Caesaris era, na verdade, uma casa composta por diversas domus ou familias. Assim, como exemplo, Germanicus, que era parte da família imperial, foi representado por Tácito como pater de sua própria domus, composta por Agrippina, seus filhos, e seus descendentes (Anais II, 84; IV, 68; IV, 40; VI, 24). No principado Neroniano essa concepção de família exposta por Saller pode ser facilmente identificada. Nascido sob o nome Lucius Domitius Ahenobarbus em 15 de Dezembro de 37 d.C, o futuro princeps Nero, filho de Gnaeus Domitius Ahenobarbus e Agripina minor (irmã do Imperador 75

Ibidem. p. 82.

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Calígula), foi adotado pelo Imperador Cláudio, quando este se casou com sua mãe. Assim, como podemos perceber, Nero ao ser adotado por Cláudio passou a pertencer a domus Caesaris, sob o poder do paterfamilias, o imperador Cláudio. Com a ascensão de Nero ao poder, Agripina minor passa a concentrar um enorme prestígio em suas mãos, já que ela havia feito seu filho imperador. A perda de prestígio de Agripina minor e o enfraquecimento do seu poder pessoal, reforçado pela devoção do prefeito da guarda pretoriana, que havia sido investido por ela, ao princeps Nero, e a retirada do liberto Pallas da administração76, direcionaram as atitudes de Agrippina no sentido de recuperar esse poder perdido. Agripina passou então a ameaçar o jovem imperador dizendo que seu irmão “Britânico já estava em idade competente, e era o verdadeiro e legítimo sucessor do império, o qual Nero só agora possuía, como intruso e adotivo, para ultrajar sua mãe” (Anais XIII, 14, 2). Como descendente legítimo de Cláudio, o jovem Britânico foi assassinado durante as comemorações das festas de Saturno. O plano foi servir ao jovem com uma bebida muito quente, já provada pelos degustadores. Ao misturar essa bebida com água para abrandar a temperatura, os enviados de Nero adicionaram veneno na mistura e Britânico e veio a falecer (Anais XIII, 15 e 16).

76

Como veremos adiante, o enfraquecimento de Agripina ocorreu progressivamente com a eliminação de seus protegidos.

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Como podemos perceber, uma das estratégias de manutenção do poder imperial era a política de “extermínio” dos possíveis concorrentes, inclusive os concorrentes internos à domus Caesaris. Segundo Tácito, após o assassinato de Germânico, filho de Cláudio, Nero proferiu essas palavras: “Que tendo uma vez perdido o auxílio de seu irmão, toda a sua confiança estava agora na República; e por isto com toda a razão se persuadia de que os padres e o povo seriam cada vez mais constantes em amar o seu príncipe, o único que restava da família destinada para o império.” (Anais XIII, 17)

Para Tácito, Agripina minor procurou eliminar todos os membros (patres) das casas mais importantes do império que poderiam almejar a condição de princeps. Para o historiador, o início do governo neroniano é testemunha a morte de Júnio Silano que, ao contrário do inexperiente imperador, era visto como um concorrente porque fosse “um homem maduro pelos anos, probo e sem mancha, que fosse ilustre, e, o que ainda era então mui considerado, fosse também, descendente da família de Augusto” (Anais XIII, 1, 1). Segundo Syme, referindo-se a Tácito, “it was widely held that a man of mature years was surely preferable to a mere boy like Nero”77. Como Silano era bisneto de Augusto, “esta foi a causa de sua morte” (Anais XIII, 1, 1). Com a morte de Burrus e o afastamento de Sêneca em 62, Nero passou a ser controlado, na narrativa de Tácito, por um eqüestre chamado Tigelino. Como vimos, a partir desse momento ocorre uma mudança de “qualidade” no julgamento do governo de Nero, já que este imperador teria se voltado aos 77

SYME, Ronald. Tacitus. London: Oxford University Press, 1967. p. 261.

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vícios e a realização de um governo autoritário. Como resultado desse governo autoritário, Nero aumentou a política de extermínio dos seus concorrentes, eliminando as mais tradicionais domus do império, sofrendo forte oposição dos membros das casas senatoriais, como a conspiração que proveio da casa de Pisão (Anais XV, 48), no ano de 65, e a revolta de Gaius Iulius Vindex (Anais XV, 74), até que em 68 d.C. foi deposto e obrigado a suicidar (infelizmente a narrativa taciteana dos Anais que correspondem a parte do ano 66 e aos anos de 67 e 68 se perdeu). Assim, Nero ao assumir o poder passou a concentrar a potestas do paterfamilias da domus Caesaris. Contudo, como foi demonstrado, Nero não exerceu as atribuições de um pater, ou seja, não utilizou sua potestas para ordenar sua domus. Ao invés de ser o paterfamilias da domus com maior prestígio da respublica, o jovem imperador foi controlado por seus tutores e por sua mãe. Para se libertar da influência de Agripina e enfrentar as domus concorrentes, Nero se utilizou da coerção na tentativa de ratificar a sua potestas, que é um direito do pater. Durante a conspiração pisoniana, podemos observar a aliança de determinadas casas senatoriais para com a casa de Pisão, no intuito de substituir a domus Caesaris (sob a tutela de Nero) por outra casa com maior prestígio. Esse fato pode ser explicado pela decorrente perda de apoio e prestígio do imperador, graças ao afastamento de Agripina minor do poder, a decorrente eliminação de importantes clientes que compunham a sua domus, à

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morte de Burrus e o afastamento de Sêneca do poder. A casa Imperial havia perdido bases importantes de sua sustentação. Para evitar que toda a domus de Pisão e de outros importantes senadores que foram mortos na conspiração fossem destruídas pela fúria do imperador, seus membros enfeitavam suas casas com louros e davam graças ao imperador que não havia sucumbido a tal atrocidade (Anais XV, 71). Contudo, cabe ressaltar a hipocrisia e a ironia de tal ato, visto que eles louvavam a vida de imperador para não sofrerem dos mesmos castigos que seus familiares e assim garantirem a continuação da domus. Como podemos perceber, as domus que compunham o império poderiam possuir um grande poder político, quando aliadas às outras domus. Contudo, é importante frisar que, segundo observamos na narrativa taciteana, essas domus podiam se articular independente do poder imperial, muitas vezes podendo enfrentar esse poder no intuito de substituí-lo. Essa articulação independente do poder real gerava um sistema de competição entre as domus que compunham a respublica, incluindo a domus Caesaris. Essa competição por honrarias e prestígio criava a necessidade da domus mais importante do império (domus Caesaris) criar estratégias de manutenção desse núcleo de poder, ou seja, a constante necessidade de afirmar seu poder frente aos outros núcleos de poderes que se formavam. Nos Anais, podemos observar diversas acusações e conspirações contra a figura do princeps. Durante o período de 54 a 62 d. C. podemos observar que

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das cinco acusações apresentadas por Tácito, foram três casos de injúrias contra a pessoa Nero (Anais XIII, 21; XIII, 23 e XIII, 48), uma acusação de lesa-majestade (Anais XIV, 48 - 49) e um caso de injúria contra senadores e sacerdotes (Anais XIV, 50). Essas acusações eram, em muitos casos, fruto de bajulações e intrigas que visavam o ganho da confiança do princeps e a conseqüente recompensa por ter delatado algum atentado à figura do imperador. Segundo David Shotter, durante o Alto Império, havia três fontes principais pelas quais a oposição política e pessoal ao imperador poderia vir à tona: a própria familia do princeps, a ordem senatorial e a Guarda Pretoriana.78 Assim, como podemos perceber, a necessidade de reafirmar o poder da domus Caesaris frente às outras domus, como a de Pisão, era uma estratégia indispensável à manutenção do poder imperial, visto que as acusações e as tentativas de substituição do núcleo de poder eram constantes. Como vimos, Nero foi aclamado imperador graças as artimanhas de Agripina minor e a morte de todos os outros descendentes de Augusto que poderiam fazer frente ao poder imperial. Durante o governo Neroniano podemos observar as constante intrigas internas à corte e que culmiraram em muitas mortes e exílio de diversas pessoas, graças à tentativa da manutenção do poder imperial. A presença de diversos grupos de poder político internos ao principado pode ser melhor observada após a queda de Nero. A guerra civil que 78

SHOTTER, David A. C. Nero. London: Routledge. 1997. p. 58.

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corresponde ao final do ano de 68 e ao ano de 69 d.C. é conhecida pela historiografia como o ano dos quatro imperadores. Ou seja, podemos observar o principal cargo do Estado Romano sendo ocupado por quatro imperadores (Galba, Otho, Vitélio e Vespasiano). Após a morte do princeps Nero, o jogo pelo poder político do império fica em aberto, gerando uma guerra civil que englobou vários grupos políticos com força suficiente para aclamar um imperador. Até esse momento podemos observar que a domus Caesaris era composta por inúmeras pessoas que não compartilhavam a consaguinidade. Como vimos, Nero era filho adotivo de Cláudio e foi aclamado imperador, embora no relato de Tácito os soldados estivessem indecisos e perguntavam muitas vezes por Britânico. “Mas não havendo pessoa alguma que mostrasse oposição, resolveram então aceitar o que lhes davam” (Anais XII, LXIX). Como paterfamilias da domus Ceasaris, podemos observar que Nero não atuou de acordo com a ordem senhorial, visto que era governado por sua mãe e por seus tutores. Suas atitudes mais autônomas dentro de sua domus se direcionaram, primeiramente, à eliminação de Agripina minor, uma estratégia arriscada, pois Nero amputaria um membro importante de sua domus – cabe destacar que Agripina minor possuia clientes ilustres e um prestígio enorme dentro do império – para a partir desse momento “assumir” o controle da respublica. Contudo, nosso jovem imperador continuou sendo controlado por Sêneca, Burrus e, posteriormente, por Tigelino.

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Assim, dentro da lógica da ordem senhorial, o ordenamento social de uma domus romana era realizado pelo paterfamilias. Como detentor da potestas sobre sua familia, esse chefe de família distribuiria os benefícios dentro de sua domus através do patronato. Era ele quem reconhecia como legítimos os fiilhos, tanto naturais como adotivos, quem concedia a permissão para o casamento e cedia a manumissão para os escravos. Contudo, esse chefe de família possuía uma dupla condição, ao mesmo tempo que sua potestas era superior a todos os membros de sua domus, este paterfamilias deveria oferecer proteção aos seus famíliares, clientes e escravos, com o intuito de garantir o pleno funcionamento e a continuidade da sua domus. No Principado, a ordem senhorial tinha como princípio que o Imperador fosse o pater patriae, e que sua jurisdição não abrangesse apenas a Urbs, mas que se estendesse sobre os domínios estrangeiros (Orbis). Como todos os títulos oficiais da res publica Romana e do Principado, a honra de ser chamado de pater patriae era conferida pelo Senado Romano. A honra era sujeita à aceitação pela pessoa homenageada, que poderia declinar. Suetônio registra no seu trabalho A vida dos doze Césares que Nero declinou quando a honra lhe foi oferecida durante o primeiro ano de seu reinado, por causa de sua juventude. O pater patriae devia oferecer todas as condições para que os órgãos componentes da res publica romana funcionassem. Eram eles, o Senado e suas magistraturas, as legiões, o pretório, as províncias. Portanto, a ordem senhorial

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aplicada no âmbito do principado estava diretamente direcionada às atribuições do Imperador. Essa passagem de Dião Cássio enumera algumas funções do Imperador: “Por causa destes títulos, procedem a ele a organização das tropas, fazem recolher os impostos, declaram a guerra e fazem a paz, comandam em todos os lugares e sempre, tanto como aliados romanos [...] Em virtude de seu poder censorial, indagam sobre a maneira de viver, sobre os hábitos, realizam censos [...] se eles se julgassem objeto de algum insulto, em atos e palavras, por mais leve que fosse, condenavam à morte, sem julgamento o autor, como um maldito.”79

Frank Frost Abbot, em seu livro A history and description of Roman political institutions, realiza a enumeração e a descrição das funções do Imperador. Segundo o autor, os poderes do princeps abragiam: “the right to supervise certain matters of a politico-religious character, to represent the state in its dealings with individuals and with other communities, to command the army and navy, to punish, to exercise civil and criminal jurisdiction, to issue proclamations or edicts, to call and preside the senate and the popular assemblies, and to supervise certain administrative matters”.80

Os poderes do princeps eram superiores a qualquer um da res publica romana. Segundo o autor, esse poder do Imperador era ilimitado e indiscutível. Para Abbot, o princeps buscava governar junto ao Senado, buscando presidir e escutar os conselhos sobre algumas das medidas a serem tomadas, contudo era a sua decisão que prevalecia . Em suas palavras: “When the emperor preside over the senate, his practice differed in one important particular from that of the republican presiding officer, in that he could propose, and ordinarily did propose, a define motion for adoption, 79

apud PINSKY, Jaime. Cem textos de história Antiga. São Paulo: Global Editora e Distribuidora Ltda., 1980. p. 97. 80 ABBOT, Frank Frost. A history and description of roman political institutions. Elibron Classics. Boston: Ginn & Company. 2006. p. 344.

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whereas in important matters the consul was expected merely to make a statement of the business in hand; but whether he was present or absent, the influence of the princeps controlled the decisions of the senate.”81

Para Géza Alfödy, em seu livro História social de Roma, os dois primeiros séculos do império constituíram a época mais florescente da história política e social de Roma. Foi nessa época que, aliada à emergência da casa imperial, o topo da pirâmide sofreu uma redefinição parcial das camadas sociais. Contudo, como nos mostra o autor, a economia rural permitiu a manutenção da dura estratificação da sociedade romana, demonstrando que a ordem social no Alto Império era semelhante à dos finais da República. Para ele, "a existência da monarquia imperial como novo enquadramento político e a integração das províncias contribuíram para reforçar ainda mais essa ordem social, sem modificar a base"82. A pessoa do imperador e a casa imperial situavam-se no topo da hierarquia social. Segundo ele: “O imperador não só detinha um poder total garantido por seus direitos constitucionais como também a sua posição pessoal era a da mais alta dignitas na sociedade romana: podia apelar para a sua auctoritas pessoal, a qual, segundo Augusto, lhe conferia, só por si, a superioridade sobre todos os outros homens (auctoritate omnibus praestiti), pois o imperador era a encarnação ideal de todas as antigas virtudes romanas, sendo as principais a virtus, a clementia, a iustitia e a pietas. O seu prestígio inigualável exprimia-se nos títulos imperiais (imperator Caesar Augustus, com a enumeração de todos os seus poderes e cargos), no traje e insígnias especiais e em todo o cerimonial que rodeava a sua pessoa, além do seu prestígio ser ainda reforçado pelo carisma religioso, que lhe assegurava as honras de culto e, no Oriente de expressão grega, uma deificação direta. O imperador era, ainda, o homem mais rico do império romano: dispunha do patrimonium Augusti, os bens da coroa imperial, e da sua própria res privada, os bens 81 82

Ibidem. p. 350. ALFÖLDY, Géza. Historia Social de Roma. Lisboa: Presença, 1989.p. 115.

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pessoais, quer uns quer outros constituídos propriedades rurais, minas e oficinas.” 83

por

Nesse quadro construído por Alfödy temos um imperador dotado de um poder ilimitado e, portanto detentor de uma autoridade incontestável e portador das maiores dignidades (prestígio) do império. Situado no topo da hierarquia social, o imperador ordenava a sociedade romana através das relações que estabelecia com as outras domus. Dentro desse esquema, as atividades públicas dos senadores foram transformadas cada vez mais em serviços prestados ao imperador. “Além disso, foi igualmente redefinida a hierarquia social no interior dessas duas ordens dominantes: a posição de um senador dentro de sua ordem já não era apenas determinada pela origem, fortuna e exercício de cargos tradicionais, mas dependia igualmente de ser ou não admitido a uma carreira de funcionário ao serviço do imperador”.84

Direcionado àqueles que, por não possuírem honra nem prestígio, eram detentores de um estatuto jurídico inferior, o princeps ordenava suas relações através do binômio patrono x cliente, ou seja, ao mesmo tempo em que oferecia proteção85 aos seus súditos recebia em troca o juramento de fidelidade e a prestação de culto. Somado a esse fator, a introdução pelo regime imperial de novas hierarquias não se limitou às ordens superiores; entre os escravos e os libertos se formou uma nova estrutura hierárquica com uma camada superior influente, dos servi e liberti imperiais.

83

Ibidem. p. 116. Ibidem. p. 119. 85 O imperador era, assim, também o defensor plebis, atitude que se manifestava através da distribuição de cereais e dinheiro à plebe e na organização de espetáculos de jogos públicos (panem et circensis, Juvenal, X, 81). 84

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Para Alfödy as posições sociais eram alteradas em razão das relações com o Imperador, sendo determinadas pelos vínculos assumidos pelos personagens destas relações (amicitia e/ou patronus X cliens). Assim, o fato da posição do imperador equivaler idealmente à maior grandeza possível faz dela medida absoluta da hierarquia, ao mesmo tempo em que determina as outras medidas. Segundo a historiadora Norma Musco Mendes, “pela tradição republicana, o título de princeps (o mais eminente cidadão do Estado) era dado a um cidadão que ocupasse uma posição de liderança e destaque na cidade, obtida pela consagração de sua popularidade, dignitas e auctoritas”86. Contudo, existe muita diferença entre a posição do princeps republicano e a posição de Otávio como princeps do Senado durante os anos iniciais do Império. Segundo a autora, a posição de Otávio se afastou da noção estóica de “primeiro entre os iguais”. Com a ascensão de Augusto ao poder, o título de princeps passa a ser sustentado por uma ideologia imperial “de um soberano universal, possuidor das virtudes estóicas (valor, piedade, justiça e clemência) que encontramos articuladas à pessoa de Otávio Augusto”87. Além de possuidor das virtudes estóicas, o princeps passa a acumular funções e honrarias públicas, como também cria novas funções e magistraturas urbanas que seriam distribuídas na forma de beneficia aos senadores. Assim,

86

MENDES. Norma Musco. “O sistema político no principado”. In: Gilvan Ventura da Silva; Norma Musco Mendes. (Org.). Repensando o Imperío Romano, perspectivas socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro: Mauad, p. 21-53. 2006. p. 26. 87 Ibidem. p. 39.

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ao receberem os benefícios do imperador, o soberano universal, esses homens se tornariam grandes devedores da gratidão desse soberano. Devido a esse processo o princeps eleva-se legitimamente acima dos seus iguais. Portanto, “nada mais coerente, portanto ao que considerá-lo o Pai da Pátria”88. Nas palavras da autora, “A auctoritas do príncipe era sustentada pelas mesmas noções que regulavam as relações entre patrono/ cliente. De início era entendida como um processo, ou seja, o desempenho de uma perpétua liderança militar, uma ação contínua como o maior benfeitor da res publica, não somente pela demonstração das suas virtudes (prudência, justiça, sabedoria, clemência, pietas, gravitas), pelas ações e realizações (méritis), como também por ser o mais rico.” 89

Assim, o benefícium gerado pelo imperador criava um débito (officium), o qual deveria ser repassado pela gratidão (gratia). Contudo, esta relação patronus x cliens entre o imperador e os outros patronus de inúmeras domus podia dificilmente ser em termos iguais, sendo que a vontade do imperador estava intrinsecamente ligada a fonte essencial do direito, que passou a ser representado pela figura do imperador. Portanto, como nos mostra a autora, a autoridade do princeps também era incontestável, tendo em vista que existia uma ideologia imperial que sustentava e legitimava esse poder. Concordando com essa idéia, para Moses Finley todas as decisões no Principado romano cabiam ao princeps – Quos principi plaucuit legis habet vigorem90. Ou seja, na sua concepção, na Roma sob os imperadores não havia política, pois embora existisse alguma discussão durante o Principado, o poder 88

Ibidem. p. 39. Ibidem. p. 40. 90 “O que o Principe decide tem a força de lei”. 89

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final e irrestrito de decisão em matérias de ação governamental repousava na figura de um só homem, não nos votantes nem mesmo nas centenas que compunham o Senado 91. Como podemos perceber, para Finley, o poder do princeps (auctoritas princps) era superior a qualquer uma no Principado. Embora, os romanos fossem contra a monarquia e a centralização do poder nas mãos de um Rei, o que inclusive foi uma das justificativas para o assassinato de Júlio César, a autoridade do princeps era incontestável. Portanto, apesar de existir o poder do Senado, embora este tenha sido absolvido na figura de Augusto, a auctoritas do imperador era incontestável, ou seja “uma imagem simplista do Principado como apenas uma monarquia absoluta travestida de roupagens republicanas” 92

. Portanto, a ordem senhorial no principado estava diretamente ligada aos

poderes do princeps, que eram superiores ao de qualquer outro dentro da res publica. O princeps deveria garantir o funcionamento da res publica através do patronato, ou seja, era de sua atribuição garantir o ordenamento das domus que compunham a sociedade. Contudo, esta visão de um poder centralizado e extremamente autoritário, refletido em um Estado patrimonialista é, a nosso ver, contraditória ao que nos é apresentado pelas fontes. Em Tácito, podemos observar a existência de um espaço público efetivo, composto por disputas por

91

FINLEY, Moses. I. A política no mundo antigo. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editoras, 1985. P. 68. 92 GUARINELLO, Norberto Luiz. JOLY, Fábio Duarte. “Ética e ambigüidade no Principado de Nero”. In: Ética e política no Mundo Antigo. Campinas: Unicamp, 2001. Pp. 133-152.

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poder e prestígio, através de um jogo político, do qual participavam diferentes grupos políticos como o Imperador, o Senado e a plebe. Nos Anais, podemos perceber que o imperador Nero consultou o Senado muitas vezes antes de tomar uma decisão, como no julgamento do processo de lesa-majestade por Antístio Sosiano (Anais XIV, 48-49). Neste episódio, o imperador acatou, mesmo contra sua vontade, a proposta do senador Clodius Thrasea Paetus que condenava o réu ao exílio. Nesta passagem, Antístio Sosiano foi submetido a julgamento por haver proferido uma sátira com versos injuriosos a Nero e a vários senadores. O senado se reuniu e pediu que o réu fosse julgado e condenado com toda severidade das leis. Contudo, o mesmo senado acatou a opinião de Clodius Thrasea Paetus que pedia uma sentença mais branda para que o princeps tivesse a fama de clemente e que, por seu exemplo em vida, servisse a que outros não o imitassem. Tomando parte da decisão do senado, o princeps escreveu seu parecer, contudo nada alterou da decisão do senado, deixando transparecer o seu ressentimento pelas palavras de Paetus, mantendo com o senado a decisão final. Outro caso que cabe citar é a disputa de poder e prestígio entre os senadores e o Imperador. Segundo Tácito, para esse grupo, o Senado não importava como instituição, ou seja, usavam de sua riqueza pessoal para obter prestígio e apoio político através de liberalidades que permitiam construir uma

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extensa rede de clientes dentro do Estado e à sua margem. Nas palavras do autor “Então as famílias ilustres e nobres deixaram-se levar pelo gosto da munificência, pois era permitido amar e ser amado pela plebe, pelos sócios e pelos reis. Quem se mostrasse opulento, com seus bens e sua casa, tornava-se ilustre pelo nome e pela clientela (Anais II, 55, 2-3)”

Essa disputa pode ser identificada durante a narrativa da realização dos jogos qüinqüenais promovidos por Nero em 60, quando alguns senadores censuraram a atitude do imperador que promoveu espetáculos para a plebe de Roma. O argumento dos senadores era que não cabia a Nero a realização desses espetáculos, e sim aos pretores, magistrados senatoriais, que costumavam construir teatros provisórios para a realização desses espetáculos (Anais XIV, 20). Contudo, o que se criticava, não era o fato do imperador organizar os jogos, mas sim, o monopólio que o imperador então assumia sobre a realização de divertimentos políticos, o que gerava o acúmulo de prestígio e o apoio político da plebe para um único nobre. Deste modo, podemos perceber que há uma divisão de poderes não apenas entre o Senado e o imperador, mas também uma concorrência por prestígio entre os diversos senadores e o imperador. Tácito nos mostra em um debate que foi levado ao conselho do imperador Nero a respeito da decisão do Senado de conceder aos patroni o direito de revogar a liberdade de seus libertos (Anais XIII, 26-28). Neste debate é dito que os liberti não respeitam mais seus patroni. Nas palavras de Tácito: 58

“Com efeito alguns com toda a indignação se queixavam ‘a liberdade havia dado aos libertos tal insolência, que apenas já tratavam como iguais os seus patronos; não faziam caso das suas decisões; chegavam até a levantar a mão para os maltratar; e ainda mesmo quando pediam perdão eram atrevidos. Que de examinar o liberto pelas costas da Campânia a vinte milhas de distância; e à exceção disto, eram iguais nos direitos. Deviam pois ter os patronos alguma jurisdição que não pudessem iludir; e nem os libertos se podiam também escandalizar de que se procurasse manter a sua liberdade por meio daquela mesma reverência que tinha servido para que eles a gozassem. Quanto aos que fossem verdadeiramente criminosos, com justiça, tornassem a cair na escravidão, a fim de que o medo coibisse aqueles para quem de nada valiam os benefícios’” (Anais XIII, 26,4).

Remetido esta posição do senado para o parecer do imperador, Tácito nos diz que surge um novo entendimento dado por um conselheiro – cujo status jurídico não é conhecido. Nas palavras de Tácito: “Que enfim, antes de conceder a liberdade, examinasse cada um se tinha justos motivos para isso; porém que, uma vez concedida nunca se devia revogar. Prevaleceu este parecer; e o César escreveu ao senado, dizendo-lhe, ‘que em particular indagasse maduramente as queixas que os patronos fizessem contra os libertos, mas que em geral nada derrogassem’. Passado pouco tempo se tirou da sua tia Domícia o liberto Páris, ilegalmente declarado cidadão; o que foi de grande vergonha para o príncipe, por cuja ordem se havia dado a sentença de sua liberdade” (Anais XIII, 27, 6-7).

Nero, segundo Tácito, ouviu as duas versões, a que era a favor da revogação e a que não era, e deliberou em favor da proposta mais sensata: “que em particular indagasse maduramente as queixas que os patronos fizessem contra os libertos, mas que em geral nada derrogassem” (Anais XIII, 27, 4). Nero preferiu não alterar os antigos costumes e a lei romana, já que um “grande número de cavaleiros e sacerdotes não tinham outra qualidade de

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origem” (Anais XIII, 27, 2). Porém, segundo Tácito, era possível que revogasse a liberdade daqueles libertos que “o patrono a não tivesse conferido com todas as formalidades” (Anais XIII, 27, 3), ou seja, a manumissão que fora concebida contrariando os costumes e as leis romanas. Neste episódio, então, temos uma situação em que Nero se contrapõe ao senado, prevalecendo seu entendimento contrariamente ao que pensava o senado. Neste caso, o imperador está instruindo que os nobres deveriam moderar o uso do poder que tinham as diversas domus de, através de ato privado, promover novos elementos que potencialmente poderiam compor o corpo cívico. Ou seja, a orientação imperial é que os senhores deveriam libertar só após muita ponderação. Após libertados, não cabia a uma domus reverter a condição de liberdade que já não lhe pertencia. Os escravos pertencem às suas domus. Mas os livres pertencem à res publica. Sendo assim, a promoção da liberdade cabe aos patres familias. E a sua reversão não lhes pertence, mas à res publica. Posteriormente, como nos mostra Tácito, apesar de Nero ter optado pelo conselho mais sensato, o imperador foi acusado de fraudar a condição jurídica do liberto Páris, que foi ilegalmente declarado ingenuus. Essa crítica de Tácito se insere no debate anterior, pois o imperador ao declarar que cada patronus deveria refletir a respeito dos méritos para se conceder a manumissão, e o escravo que a recebesse deveria ser recompensado pelo mérito, estava por mudar a condição jurídica de um liberto que, segundo

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Tácito, era um dos libertos que possuíam maior poder dentro do império, graças as suas bajulações. Tácito nos mostra que Nero ao interferir na domus de Domícia, declarando ingenuus um escravo que não pertencia a sua domus, o fazia como forma de abuso do poder imperial. Afinal, não cabia ao princeps a função de mudar o estamento de um liberto. Portanto, podemos perceber que o cerne da crítica Taciteana nesta passagem é o fato do imperador interferir nos negócios privados de outra domus, que nesse caso era controlada por Domícia. Após a morte do paterfamilias havia a possibilidade de outro indivíduo, independente do sexo e da idade, herdar a potestas de seu paterfamilias. Nesse caso, como podemos perceber, Domícia era independente de qualquer poder dentro de sua casa, afinal era ela sui iuris, ou seja, não estava submetida ao poder de um paterfamilias. Portanto, cabia a ela os negócios de sua domus. Mas, afinal, se o papel do imperador na “ordem senhorial” era o de pai da pátria e senhor de todas as casas do império, porque nos deparamos com uma crítica à interferência do imperador em outra domus? Se um dos papéis do imperador é o de senhor de todas as domus, porque o imperium era composto por outros patresfamilias e não somente um, o imperador? Como explicar que a posição mais alta do imperium era freqüentemente afrontada e substituída? O caso mais discutido dentre os historiadores do principado neroniano, e talvez o mais interessante envolvendo escravos e libertos (a nível privado), o

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senado e o princeps, ocorreu após o assassinato do prefeito de Roma, Pedânio Segundo por um dos seus escravos (Anais XIV, 52). Esse fato gerou grande interesse na população romana, visto que, a aplicação da lei para tal crime era a de que toda a familia que estivesse sob o mesmo teto do senhor assassinado – no caso, um total de 400 escravos – fosse levada ao suplício. Dentro do senado, Tácito descreve que existiam diferentes pareceres, uns que se opunham à aplicação de uma lei tão severa e, em maior número, aqueles que defendiam a aplicação total da pena. A população se revolta contra esta sentença e o imperador proclama um edito para garantir sua execução, mobilizando soldados para que a decisão do senado fosse cumprida. Neste momento, um senador, Cingonius Varro, propõe que os libertos, cuja função era a de proteger seu patronus, deveriam ser também punidos, mas com o exílio. Nero se opõe a esta proposta, determinando que nada se retirasse ou acrescentasse da pena. Neste caso, se por um lado a ação do imperador ocorre no sentido de legitimar e fazer aplicar a decisão tomada pelo senado, nota-se uma vez mais que podia o imperador limitar estas decisões. Mas esta atuação do imperador só era vista como legítima quando este atuava como um fiador da ordem pública. Durante o senatusconsultum, um dos defensores da aplicação da lei, C. Cássio proferiu o seguinte pronunciamento: “Em todo o tempo os nossos maiores desconfiavam do caráter dos escravos, ainda quando eles nasciam dentro de nossas terras ou das nossas casas, e tomavam logo com a sua primeira educação amor aos seus senhores; agora porém que admitimos entre nós, por assim dizer, todas as nações, que tem diferentes costumes, diversas religiões, ou

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que talvez não têm nenhuma, como poderemos reprimir esta numerosa mistura de gentes, se não for por estímulos do medo? Dizem-nos, que morrerão muitos inocentes; estou por isso: porém quando algum exército cobarde volta cara ao inimigo, e todo ele é dizimado, faz-se por ventura, alguma escolha entre os fracos e os valentes? Todos os grandes exemplos sempre trazem consigo alguma coisa de injusto para este ou para aquele particular; mas são sacrifícios necessários para a conservação do bem público” (Anais XIV, 44, 4).

Um dos modelos de controle dessa população escrava dentro das domus aristocráticas romanas era através da coersão e do medo. Quando esse modelo sofria algum tipo de intervenção, como no caso de Pedânio Segundo, o medo passava para os aristocratas que possuiam em suas domus uma quantidade expressiva de escravos. Assim, um problema privado, que era o assassinato de um senhor por seu escravo, passava a ser uma questão de utilidade publica (utilitas publica). Ou seja, quando a preservação do estado era superior aos interesses particulares cabia uma intervenção externa à domus. Portanto, a aplicação de um julgamento senatorial com a interveniência do imperador para fazer cumprir esta decisão se fazia necessária para a manutenção do “bem público”. Tácito também menciona que após a proclamação de C. Cássio e deliberada a questão, visto que ninguém se atrevia a contrariar o voto do senador, a população se manifestou armada de tochas e pedras ameaçando os executores da sentença. Apesar dos protestos da multidão, o princeps acatou a decisão do senado e baixou um edito pelo qual se faria cumprir a sentença de morte para os 400 escravos, sem acrescentar nada a antiga lei (Anais XIV, 45).

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Segundo Fábio Duarte Joly, referindo-se a esse debate expresso por Tácito: “Tácito incorpora, portanto, elementos do debate político acerca da natureza do Principado na discussão das relações escravistas, isto é, o modelo de controle escravista acima descrito está vinculado a uma determinada compreensão do papel do poder imperial na sociedade romana”.93

Essa preocupação de Tácito também pode ser interpretada como uma fórmula pela qual o imperador deveria fazer com que o interesse público se sobreponha aos interesses privados. Fazendo um paralelo com o episódio anteriormente citado, podemos perceber que Tácito nos transmite uma idéia de que as relações escravistas dentro das domus aristocráticas se encontravam em tensão, o que deixa transparecer a idéia de que cabia ao princeps, ou ao Estado, o efetivo controle dessas relações, seja pela coerção ou pela troca de benefícios. Ou seja, nas palavras de Fábio Joly, Como forma de controle, a escravidão aparece como uma relação de dependência cuja manutenção oscila entre o emprego da violência e da coerção legal e o recurso da cooptação por meio do benefício, como a concessão da liberdade. No primeiro caso, o Estado é alçado como o principal agente; no segundo, o dominus tem uma função preponderante. 94

É nesse sentido que o discurso de Tácito pode ser interpretado pelo que Fábio Joly chamou de “metáfora da escravidão”. Cabia ao pater patriae o efetivo controle e manutenção da res publica e aos senadores o efetivo controle das ações desse soberano. Afinal, a idéia era de um governo em conjunto entre o princeps e o senatus. Para os indivíduos que o bem maior era 93

JOLY, Fábio Duarte. Tácito e a Metáfora da Escravidão: Um Estudo de Cultura Política Romana. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2004. p. 92. 94 Ibidem. p. 105.

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os interesses privados, Tácito os qualifica de “escravos”, pois o acúmulo de benefícios estava acima da utilidade pública. Pois, segundo Tácito, só existe liberdade quando não se obedece a outrem. Esse episódio também deixa transparecer a idéia de que é insuficiente analisarmos a política romana durante o principado através da dicotomia poder pessoal do imperador e a perda de poder efetivo pelo Senado. Pelo contrário, como observamos nas passagens anteriormente citadas, os interesses de ambos os pólos estavam constantemente inter-relacionados em um jogo político em busca de consensos. Dentro dessa lógica, os poderes do Imperador não eram ilimitados e sua vontade não era incontestável. A necessidade de afirmar seu poder pessoal e o prestígio de sua domus colocava o princeps em uma posição delicada perante os patres das domus mais importantes do imperium. Esse núcleo de poder estava constantemente inserido no jogo de disputa por prestígio. Era necessário, portanto, estabelecer estratégias, seja através vínculos de amizade interpessoais com os patres, na tentativa de elevar o poder e o prestígio de sua domus, seja através da coerção. Vimos também que uma domus importante poderia perder prestígio caso os membros mais poderosos e os clientes fossem se desvinculando da sua esfera de poder. Assim, o enfraquecimento de uma domus poderia acarretar no aumento de poder de outra domus concorrente. Contudo, cabe ressaltar que uma disputa entre as domus necessitava de uma série de cálculos pessoais dos

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grupos aliados. Para a substituição da domus Caesaris, como exemplo, essas factiones (compostas por diversas domus independentes do poder imperial) deveriam entrar em consenso sobre quem seria o próximo imperador. Era, portanto, um sistema de alianças interpessoais que buscava a promoção do poder pessoal, mas ainda assim baseada numa ação que articulava as diversas domus que conspiravam contra o governante. Deste modo, percebe-se que não poderia haver poder pessoal se não houvesse uma rede de alianças que sustentasse este poder. Podemos perceber também que o não exercício do papel de paterfamilias pelo imperador fazia com que este não conseguisse exercer o controle sobre os cargos administrativos. Foi o que ocorreu, no caso específico de Nero, com o controle do império por seu preceptor ou pelos prefeitos da guarda Pretoriana ou pela sua mãe. Ao longo do governo de Nero, a casa imperial perde prestígio e outras casas começam a surgir como possíveis novas casas imperiais. Com a perda de prestígio, Nero promove uma política de “extermínio” dos patres descendentes de Augusto e das domus que poderiam fazer frente ao poder imperial. Cabe assim estudar a “ordem imperial” e como esse sistema constituído por redes de competição entre as domus poderia alterar essa “ordem”.

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Capítulo 3 – Patronato e Governo Imperial Este capítulo tem como objetivo apresentar como o patronato exercido pelo princeps poderia modificar a ordem imperial. Como vimos anteriormente, ao imperador era destinado o papel de principal patrono do império. Era ele quem concentrava a maior quantidade de benefícios a serem distribuídos no seio da sociedade romana. Portanto, cabia aos outros agentes estabelecer estratégias para obterem uma maior aproximação para com o princeps. Segundo Fábio Duarte Joly, “Mais do que os poderes constitucionais do imperador, valeria a distribuição de benefícios imperiais às elites senatorial e eqüestre por meio de redes de patronato e clientela, que asseguravam a extensão do prestígio social do imperador a todas as partes do império. A corte imperial seria o locus privilegiado onde se daria essa interação entre imperador e aristocracia, fornecendo inclusive um modelo 95 para organização das demais casas nobres de Roma.

Como nos mostra Joly, cabia ao princeps fornecer um modelo, mesmo que criticado pelas fontes, para a organização das demais domus da elite romana. Nesta passagem, fica clara a importância do patronato como elemento ordenador dessa sociedade. O imperador como a fonte superior de benefícios distribuiria favores e prestígios sociais aos agentes mais próximos do centro de sua zona de influência, que nesse caso é a corte. Assim, como foi afirmado anteriormente, temos uma sociedade composta pelo princeps, os amici caesaris, por uma elite (senatorial e 95

JOLY, Fábio Duarte. “A escravidão no centro do poder: observações acerca da família Caesaris”. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, Janeiro/ Fevereiro/ Março de 2007 Vol. 4 Ano IV.nº 1. 2008.

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eqüestre), dividida em diversas domus. Estas domus por sua vez estavam aliadas a uma parcela enorme de clientes, que também constituíam suas próprias domus, compostas por seus clientes e por seus escravos. Além das domus, temos a presença de diversos libertos imperiais, como Pallas, que possuíam poderes extraordinários. Estes libertos controlavam redes extensas de clientela que se desenvolviam em razão dos favores que estes libertos poderiam gerar em nome do imperador. Há ainda outras redes de clientela que se formam a partir da casa imperial, mas que não estão sob o controle direto do imperador. Este é o caso de algumas mulheres, como Júlia, esposa de Augusto, Messalina, esposa de Cláudio e Agrippina, esposa de Cláudio e mãe de Nero. Portanto, primeiramente, antes de adentrarmos no debate a respeito do patronato exercido pelo Imperador, devemos destacar o que entendemos por “ordem imperial”. Este conceito busca auxiliar na compreensão sobre a forma pela qual as diversas domus que compunham a sociedade romana se ordenavam, hierarquizavam-se, e atuavam junto, ou paralelamente ao Estado romano. Nossa hipótese é que esta ordenação se dava em razão da existência de uma posição superior a todas as casas, que era a do imperador, e que o imperador poderia gerar uma maior ou menos coesão destas casas em torno de si. Caso esta coesão se tornasse baixa demais, a posição do imperador era colocada em risco e, consequentemente, toda a ordenação social também era abalada. Exigia-se, assim, o surgimento de um novo imperador. Chamamos,

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deste modo, de ordem imperial todos os elementos relativos à ordenação social, sua hierarquia e redes de solidariedade constituídas pelo conjunto das domus em interação com a casa imperial. Como podemos perceber através da leitura dos Anais, as casas senatoriais se articulavam através de redes de amizade e solidariedade, interferindo nas decisões do Estado e muitas vezes adquirindo tanto prestígio que se tornavam obstáculos frente ao poder imperial. Para tanto, é fundamental debater o modo como as domus interagiam com o poder imperial. Em suma, uma de nossas indagações neste capítulo é: o que ordenava a sociedade romana no século I? Sêneca descreve a sociedade romana como verdadeiro “caos”. Segundo o filósofo, esse “caos” só poderia ser eliminado através da ordem imposta ou pela força ou pela virtude. Como nos mostra em seu livro De clementia, o Estado era indissociável da figura do governante. Dirigindo-se a Nero, escreve que "és a alma do estado e o Estado é teu corpo" (De Clementia I, 5,1). O imperador é detentor de poderes extraordinários e deve manter a ordem social que está sujeita à fortuna, pois, segundo o filósofo, o estado só existe onde há ordem pública. No De clementia, Sêneca descreve que o princeps deveria voltar-se diretamente às reivindicações da plebe por três motivos: primeiro, porque a plebs era vista como uma massa inconstante e, por este motivo, disposta a qualquer tipo de ação, violenta ou não; segundo, como protetor da ordem

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pública, era dever do princeps evitar qualquer desordem social ou política; e em terceiro, como Roma era considerada centro do poder imperial, o soberano deveria, assim, manter o equilíbrio social, pois esta “cidade terá deixado de dominar no mesmo momento em que tiver deixado de prestar obediência” (De Clem. III, II, 2). Assim, para o filósofo era fundamental manter a ordem pública, e a ordem, nesta conjuntura, era representada pela figura do Imperador. Porém, cabe ressaltar que ordem imperial não se confunde com o poder imperial. A figura do imperador é o elemento ordenador desta, podendo em muitos casos perturbar a ordem vigente. Na historiografia temos duas formas básicas de compreender a organização social romana, sua hierarquia e ordenação. Uma delas foi alcunhada de “primitivista”. Para Paul Veyne, em seu texto incluído na obra História da vida privada, a sociedade romana é desenhada como um verdadeiro “caos” gerado pela defesa de interesses particulares. Segundo o autor, a realidade política romana era baseada no cooptação: “o clube que era o Senado decidia se um homem tinha o particular perfil que o tornava admissível em seu seio e traria sua cota ao prestígio coletivo que os membros desse clube dividiam entre si” 96

.

96

VEYNE, Paul. “O Império Romano” In: DUBY, G. & ARIÈS, P. (eds.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia das Letras, 1990. P. 103.

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Contudo, para Veyne, essa cooptação não era desempenhada diretamente pelo corpo de senadores; passava por uma das numerosas redes de clientelismo político. Sendo assim, as funções públicas eram tratadas com dignidades privadas e o acesso a tais dignidades passava por um elo de fidelidade privada, que funcionava como elemento de perpetuação desse sistema, visto que era realizado por indivíduos escolhidos tanto pelo Senado, como pelo Imperador. Segundo o autor, desde o início do império, cabia ao imperador nomear todas as dignidades - consulado ou simples grau de capitão – e esse ato comportava para o eleito o dever moral de deixar um legado ao soberano benfeitor (patrono). “E como toda nomeação se fazia por recomendação de ‘patronos’ bem vistos na corte, as recomendações (sufragia) eram vendidas ou pelo menos pagas” 97. Como nos mostra Paul Veyne, a fronteira entre o que é público e o que é privado era praticamente inexistente, tendo em vista que a política e o acesso as magistraturas era realizado através da defesa de interesses privados. Assim, os senadores ao serem indicados pelo Imperador recebiam um beneficium do soberano, reconhecendo este como seu patronus. Como protegidos do imperador, os senadores possuíam um dever moral para com o seu patrono. Géza Alfödy descreve que a sociedade romana era dividida em duas camadas, a camada superior e a camada inferior. Para o autor, a estratificação

97

Ibidem. p. 106.

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desta sociedade era marcada pela oposição entre ricos - pobres, grandes pequenos, ilustres – obscuros e nobres - pessoas vulgares. Em suas palavras: “Podemos distinguir quatro critérios principais de inclusão nos escalões superiores, aproximadamente correspondentes aos do Élio Arístides: ser rico, desempenhar cargos superiores e assim deter o Poder, gozar de prestígio social e, principalmente – pois a riqueza, as funções sociais elevadas e o prestígio social a tal equivaliam -, ser membro da ordo dirigente, ordem privilegiada, e corporativamente organizada. Quem satisfizesse todas essas condições pertencia efetiva e plenamente aos escóis da sociedade, ou seja – para além da casa imperial -, o ordo senatorius, o ordo equester e o ordo decurionum das diferentes 98 cidades”.

Contudo, o elemento econômico não era suficiente para distinguir as camadas sociais. Para ele, a posse de terras era decisiva na distinção entre ricos e pobres. Porém, Alfödy também reconhece que somente a riqueza não inseria um determinado indivíduo em uma ordo superior, como os libertos ricos, que por sua vez, mesmo adquirindo riqueza nem sempre reuniam todas essas condições anteriormente expostas, como o prestígio social. O estatuto da plebe, em oposição às camadas superiores, era marcado pela falta de poder político, exclusão das funções públicas superiores, baixo prestígio social e uma existência fora dos grupos privilegiados. Porém, para o autor, entre os fatores essenciais para distinguir a oposição entre as camadas inferiores e as camadas superiores estavam o nascimento e a situação jurídica do indivíduo. A posição social atingida por uma família era geralmente hereditária e não era derivada da sua situação econômica. Mesmo assim, ter fortuna era importante para as ordens

98

ALFÖLDY, Géza. Historia Social de Roma. Lisboa: Presença, 1989. p. 122.

72

superiores. As famílias da ordem senatorial muitas vezes foram ajudadas financeiramente

pelos

imperadores

com

o

intuito

de

promover

deliberadamente uma condição financeira adequada para as ordens sociais. 99 A posição social do indivíduo ainda dependia consideravelmente de seu estatuto jurídico. Segundo Alfödy: “À exceção dos lugares subalternos, os cargos estaduais, bem como os cargos administrativos das cidades organizadas como municípios ou colônias, estavam reservados para os cidadãos romanos; só eles que podiam ser nomeados para os cargos relativamente prestigiosos nas legiões romanas e apenas eles gozavam de certos privilégios do direito privado, como por exemplo, a transmissão de bens por testamento legal. O que não quer dizer que a cidadania romana trouxesse obrigatoriamente fortuna, influência e prestígio, mas de qualquer modo os privilégios do cidadão e do não cidadão (peregrinus) 100 estavam regra geral bem demarcados”.

Dentro desse esquema descrito acima, as sociedades antigas seriam muito diferentes das sociedades modernas, já que não seriam marcadas apenas por uma racionalidade econômica e por um individualismo por demais exacerbado. A lógica que regia essas sociedades antigas estaria baseada em critérios de distinções sociais da honra, principalmente através do acúmulo prestígio, a qualquer custo. Assim, a hierarquia social não se resumiria à capacidade dos indivíduos acumularem recursos materiais, mas em distinções estamentais fundamentadas pelo estatuto jurídico de cada indivíduo. Essa tendência historiográfica foi qualificada como “primitivista”.

99

“Depois de ter distribuído ao povo quatrocentos sestércios por cabeça, estabeleceu para os senadores mais nobres, porém sem fortunas, um ordenado anual que montava, para alguns, até cem mil sestércios” (Suetônio, vita Neronis, X). 100 ALFÖLDY, Géza. Historia Social de Roma. Lisboa: Presença, 1989. p. 127.

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Outra tendência de compreensão da hierarquia das sociedades antigas ficou conhecida como os “modernistas”. Reúnem-se sob esta qualificação aqueles autores que criaram um modelo de interpretação das sociedades antigas como sendo regidas por uma racionalidade muito próxima das sociedades modernas. Assim, a hierarquia dessas sociedades seria marcada por diferenças estabelecidas pela capacidade de cada indivíduo acumular os benefícios socialmente produzidos.101 Na historiografia atual, as interpretações que dão mais ênfase ao que nos separa do mundo antigo têm predominado com relação a estas ditas modernistas. Por esta razão, passaremos a estudar quais perspectivas de análise têm sido construídas contemporaneamente a partir deste debate. Para Fábio Faversani102, nas interpretações mais tradicionais, existem limites muito bem demarcados nos modelos de interpretação da sociedade romana que enfatizam essa “ordem” como fruto de divisões entre classes e estamentos. Mais recentemente, contudo, têm prevalecido interpretações que tomam por pressuposto que a figura do imperador é o elemento fundamental para a ordenação social. A alternativa, segundo o autor, surgiu através dos debates e da contribuição de Moses Finley, Peter Garnsey, Andrew WallaceHandrill, entre outros pesquisadores que “tem trabalhado com o propósito de 101

Este debate entre “primitivistas” e “modernistas” e as limitações impostas pela utilização dos conceitos de classe e estamento são debatidas por FAVERSANI, F. A pobreza no Satyricon de Petrônio. 1995. Dissertação (Mestrado em História econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Estadual de São Paula, Universidade Estadual de São Paulo, São Paulo, 1995 e FAVERSANI, F. “Trimalchio, classe social e estamento”. Revista de História. USP, São Paulo, n. 134, p. 7-18, 1996a. 102 FAVERSANI, Fábio. “Trimalchio, classe social e estamento”. Revista de História. USP, São Paulo, n. 134, p. 7-18, 1996a.

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apreender a sociedade tornando chave o uso de conceitos como o de patronato”103. Segundo ele, “Para esses autores, o fundamental seria apreender como os agentes sociais pertencentes às elites são capazes de, fazendo uso de sua riqueza e prestígio, colocar sob sujeição outros agentes sociais. Com isso, teríamos a formação de uma elite que, por meio das relações de patronato, colocarse-ia acima dos demais agentes e interferiria nas decisões do Estado”104.

Segundo Andrew Wallace- Handrill em seu texto “The imperial court”, publicado como capítulo na prestigiosa The Cambridge Ancient History, a corte imperial romana funcionava à imagem de nosso sistema solar. O sol seria o imperador, fonte de toda a energia (benefícium), e as casas senatoriais seriam os planetas que circundavam a esfera solar, e as casas provinciais seriam representadas pelos satélites planetários. Contudo, dentro desse sistema, a energia proveniente do imperador não se propaga no vácuo, mas sim, através de mediadores envolvidos em grandes redes de solidariedades (relação patrono x cliente). Portanto, através desse modelo: “os benefícios produzidos pela sociedade estariam concentrados nas mãos do imperador, que os distribuiria por intermédio de uma rede de dependentes e casas. Quanto mais próximos ao Imperador, maior a chance de os mediadores absorverem benefícios de forma direta ou se apropriarem de parte das vantagens que eram encarregados de repassar a outros, ou ainda, extrair benefícios de forma direta ou se apropriarem de parte das vantagens que eram encarregados de repassar a outros ou, ainda, extrair benefícios daqueles que deviam o acesso ao Imperador à 105 sua intermediação.”

103

FAVERSANI, Fábio. “As relações interpessoais sob o Império Romano: uma discussão da contribuição teórica da escola de Cambridge para o estudo da sociedade romana”. In__Interação social, reciprocidade e profetismo no Mundo Antigo. Vitória da Conquista: Edições UESB. 2004. 104 Ibidem p. 20. 105 Ibidem p. 37.

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Como podemos perceber, a inovação trazida por esse modelo de interpretação é que o patronato passaria a assumir a centralidade nas análises sociais. As interações seriam a chave para compreender a hierarquização e a formação de grupos sociais. A busca pela absorção de uma parcela maior de benefícios era refletida na disputa entre as domus senatoriais por uma maior aproximação com a casa imperial e, assim, com a maior quantidade de beneficia, cuja fonte exclusiva era a domus Caesaris. Para Renata Lopez Venturini, o patronato se apresentava como um sistema marcado pela ambigüidade e pela flexibilidade. Ambigüidade na relação patrono x cliente, em função da diversidade social que a envolvia, e flexibilidade no acesso para o conhecimento de pessoas influentes no interior da sociedade romana, pois o cliente dependia, muitas vezes, da apresentação de um patrono para fazer parte de um determinado círculo político, e esse circulo era composto por redes interpessoais de relação entre os agentes sociais. 106 Para S.N. Eisenstadt, referindo-se às relações interpessoais “These relations are usually defined in terms of mutual intimacy, of moral and emotional obligations, stressing above all trust and empathy, and sometimes the sharing of common `pure´ pristine values, as well as some equality. In the relations of friendship, this mutual trust is consistently based on the relative equality of the participants in this relationship, while patron-client relations, entail

106

VENTURINI, Renata Lopes Biazotto. “Amizade e política em Roma: o patronato na época imperial”. Acta Scientiarum, Maringá, v. 23, n. 1, p. 215-222. 2001.

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hierarchical differences between the patron and his protégé, 107 his ‘client’.”

Assim,

a

amicitia

estaria

destinada

apenas

aqueles

que

compartilhassem a mesma obrigação moral, como o bem público, ou àqueles que demonstrassem certo nível de igualdade entre si. David Konstan, em livro intitulado A amizade no mundo clássico, analisa a história do conceito amizade, começando com os poemas épicos de Homero e concluindo com o império cristão dos séculos IV e V d.C. Para Konstan, convém estudarmos os diferentes significados do conceito amizade tendo em vista que a amizade é “modelada socialmente” por numerosos fatores, tais como a classe social ou a idade. Segundo o autor, “Determinar os parâmetros da amizade no mundo antigo, então, é fundamentalmente uma tarefa filológica, que deve começar pela identificação do vocabulário sobre a amizade e pela especificação de suas conexões, tanto com os termos que denotam outros vínculos em grego ou latim, com o 108 léxico moderno” .

Como vimos anteriormente, as interações sociais ajudaram a estruturar a sociedade romana no alto império. As redes de solidariedade fundadas na política de patronato estabeleciam vínculos interpessoais entre os agentes sociais, vinculando-os às diversas domus senatoriais e à domus Caesaris. Baseadas na fides, essas relações no mundo clássico são entendidas essencialmente como uma relação pessoal fundada em afeição e generosidade.

107

EISENSTADT, S. N. Patrons, cliens and friends – (Themes in the social sciences). Cambridge University Press. New York: 1999. p. 3. 108 KONSTAN, David. A amizade no mundo clássico. Trad. Marcia Epstein Fiker. São Paulo: Odysseus Editora, 2005. p.12.

77

A reciprocidade não é obrigatória. Contudo, deixar de retribuir um benefício recebido faz com que a relação não se estabeleça. O “bom” patronus, assim, distribuiria os benefícios aos seus amici ou seus clientes através da lógica da reciprocidade, sem esperar pela gratidão, e o “bom” cliens receberia seus beneficia através dos seus méritos e não através das bajulações. Contudo, dialogando com Syme, o autor nos mostra que “A coesão das facções políticas romanas dava-se menos pela unidade de princípios do que pelo interesse mútuo e por serviços mútuos (officia), seja entre os socialmente iguais na forma de uma aliança, seja de superiores a inferiores, em uma forma tradicional e quase feudal de clientela: em uma avaliação favorável, o laço era chamado 109 de amicitia, de outro modo, factio”.

Assim, interpretada de um modo mais amplo como uma relação pessoal assimétrica, que envolve expectativas de intercâmbios recíprocos com um potencial para a exploração, o patronato certamente desempenhava, um papel importante na vida social romana. Seja para a constituição de redes clientelares baseadas na amicitia ou nas factiones, que estavam também inseridas nesse jogo de disputa por mais prestígio social. O qual tinha o princeps como fonte primária de todo beneficium. Segundo Konstan, “Os laços pessoais dentro da aristocracia e entre os candidatos políticos e seus seguidores na República romana supriram novos contextos para a amizade; sob o Império, as condições novamente se alteraram, à medida que as relações verticais dentro da nobreza tornaram-se 110 hierárquicas de um modo mais aberto”.

109

Apud. KONSTAN, David. A amizade no mundo clássico. Trad. Marcia Epstein Fiker. São Paulo: Odysseus Editora, 2005. p. 4. 110 Ibidem. p. 209.

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A aproximação para com o princeps passou a ser a principal via de ascensão social. O estabelecimento de vínculos com o imperador poderia resultar, por exemplo, na ascensão de um liberto com poderes políticos e sociais extraordinários, inclusive a capacidade de exercer o patronato e gerir uma extensa rede de clientes. Àqueles que não compartilhavam dos meios que proporcionavam a ascensão social, esse processo poderia acarretar na formação de factiones. Portanto, estamos diante da criação de laços fundados sobre relações pessoais que se manifestaram, sobretudo, na instituição do patronato. Assim, as redes de clientela controladas pelo imperador seriam fontes de promoção social e aquelas independentes do princeps seriam factiones, ao menos até o momento que elas gerassem um novo imperador... Assim, as domus senatoriais estariam então unidas à casa imperial através de um elemento de ligação moral (fides), ou através das bajulações. O imperador ordenaria essas relações através do patronato, que como conseqüência, era um elemento essencial para a manutenção da “ordem imperial”. Em suma, segundo Wallace-Hadrill: “O sistema político romano em todos os tempos demonstrou algum tipo de direito regional na representação no governo. Entretanto, o acesso era mediado através de indivíduos. Foi essa inacessibilidade ao centro, exceto através de círculos pessoais, que gerou o poder do patronato, e foi através do exercício deste poder que o patronato promoveu a integração social sem limites e 111 assegurou o controle social”.

111

Apud. VENTURINI, Renata Lopes Biazotto. “Amizade e política em Roma: o patronato na época imperial”. Acta Scientiarum, Maringá, v. 23, n. 1, p. 215-222. 2001.

79

Para Ronald Syme, cabia ao princeps e aos seus amici o controle do acesso a todas as posições de honra nas carreiras senatoriais. Para o autor, durante a República, o nascimento em um berço de nobreza, o serviço militar e a distinção no conhecimento das leis e na oratória, eram as condições de acesso a uma importante magistratura. Após a revolução política, a arena de disputa por prestígio e honrarias continua a mesma, porém com uma particularidade, a lealdade e o serviço ao patrono e líder do partido de César passavam a ser essenciais para a promoção pessoal112. Para o autor “Senatorial rank and promotion to the consulate were not the only favors in the hands of the party-dynasts. There were priesthoods and the patriciate, administrative positions and provincial commands”113

“The princes appointed his own legates”114. Essas escolhas por parte do princeps abriram uma nova maneira de ascender socialmente. Os legados de Augusto concentravam um enorme prestígio em suas mãos e eram importantes mediadores desse poder, muitas vezes servindo de catalisadores para alianças e promoções pessoais. Esse sistema criou uma grande peculiaridade. As regras para esse jogo político eram claras, “when the princeps offended, declares in due solemnity that he revokes his favour, the loss of amicitia marks the end of a courtier’s career, and often of his life”115. E, segundo Syme, “political competition was

112

SYME, Ronald. The Roman revolution. Oxford University Press. 1939. p. 369 – 386. Ibidem, p. 381. 114 Ibidem, p. 383. 115 Ibidem, p. 385. 113

80

sterilized and regulated through a pervasive system of patronage and nepotism”116. Contudo, se todas as posições sociais derivam das relações com o Imperador, como explicar o caso de Clodius Thrasea Paetus117 (Anais XIII, 49; XIV, 12; XIV, 48; XV, 20; XV, 24; XVI, 21) no relato de Tácito? Como podemos perceber através da análise da narrativa taciteana, o fato da posição do Imperador equivaler idealmente à maior grandeza possível faz dela uma medida absoluta da hierarquia, mas não determina todas as outras medidas. As pessoas tinham riqueza, honra e constituíam redes de relações independentes do poder do Imperador. Cabe, assim, estudar essas redes de competição. Outro problema de difícil solução para esse modelo são as conspirações visando a derrubar o poder do imperador, e como esse sol (domus Caesaris) era constantemente apagado e substituído por outra domus. Cabe, assim, indagar a respeito da importância e da atuação do patronato na vida política romana sem que se parta do pressuposto de que o império representou uma ordem unipolar. Nossa hipótese é que as instabilidades políticas, a que estavam sujeitos os imperadores, davam-se em razão das estreitas relações com as domus que compunham a elite romana. Quando os primeiros concediam certos favores a uns e não a outros, isto era avaliado por cada uma das casas. Caso a 116

Ibidem, p. 386. “Thrasea Paetus, Who came from northern Italy, Said much of which Tacitus would clearly have approved, particularly when He was attacking corruption in government or the bending of the laws […] For Thrasea, the deification of Poppaea and her infant daughter in AD 65 were as significant departures from tradition as Nero´s murder of his mother” cf. SHOTTER, David A. C. Nero. London: Routledge. 1997. p. 60. 117

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concessão de favores fosse valorada como injusta, algumas casas poderiam se articular para substituir o imperador, levando ao poder alguém que lhes favorecesse. Por esta via, as instabilidades poderiam atingir níveis críticos, levando a conspirações que acabariam com a morte de alguns imperadores ou, com a perseguição e mesmo destruição de muitas domus que se envolvessem nestas conspirações. De um modo ou de outro, as redes de patronato podem gerar alternativamente muitos benefícios para uma domus ou sua completa ruína.

Análise do patronato e o governo imperial nos Anais, de Tácito

Para Tácito, o estabelecimento do Principado é representado como uma forma de governo fundada na concessão de benefícios entre os diversos grupos sociais como a plebe, o exército e, principalmente, a aristocracia. Utilizando-se de severos critérios de moralidade, Tácito tece observações críticas sobre a conduta moral e política no Principado. O autor deixa claro qual o objetivo da sua obra: “Não é meu intento referir senão as opiniões que se fizeram mais notáveis ou pela sua decência ou pela sua insigne baixeza: porque creio ser o principal objeto dos Anais por em evidência as grandes virtudes, assim como revelar todos os discursos e ações vergonhosas, para que ao menos, o receio da posteridade acautele os outros de caírem nas mesmas infâmias”. (Anais, III, 44)

No decorrer de sua obra, podemos perceber que parte dessas “ações vergonhosas” era a estratégia utilizada pelos senadores para receber benefícios e honrarias do princeps, estratégia esta calcada na subserviência e na adulação 82

desenfreada de vários membros do Senado para com o Imperador e, como reflexo da concorrência entre os aduladores, um número cada vez maior delatores fazendo parte da corte neroniana. Segundo o historiador, a aristocracia representada em suas obras renunciaria voluntariamente ao seu poder político em troca de honras e riquezas, visando à estabilidade políticosocial, comportamento que Tácito qualifica de “escravidão” (Anais, I, 81). Na discussão anterior, pudemos observar o papel do imperador como elemento ordenador de uma vasta rede de relações interpessoais. O bom princeps, investido do título de pater patriae, seria o detentor de grande parte dos benefícios e, portanto, patrono maior de todas as redes clientelares que se formassem. Dentro dessa lógica de funcionamento da sociedade romana no principado, as candidaturas e alianças políticas se faziam por meio da recomendação de um indivíduo à carreira pública. Tratava-se de redes de relação de caráter pessoal que dependia de um “patrono”. Como nos mostra Tácito em sua narrativa sobre o governo do imperador Tibério: “Umas vezes, calando os nomes dos candidatos, mandava fazer uma relação da origem de cada um, de sua vida, e número de campanhas, para assim os dar a conhecer: outras vezes, deixando esse método, exortava os mesmos candidatos a que não perturbassem os comícios com suas petições e intrigas, porque ele só se encarregava de os recomendar: outras vezes publicava que não haviam outros pretendentes senão aqueles de quem remetera os nomes para os cônsules: dizia porém “que outros quaisquer podiam pretender, contanto que tivessem consideração e merecimentos”. Contudo, tais expressões na sua boca eram todas aparentes, não tinham realidade, e eram eminentemente insidiosas; porque quanto mais trabalhava por enfeitá-las com as cores brilhantes da liberdade, tanto mais apressado corria a pôr em prática uma pesada escravidão”. (Anais, I, 81)

83

É interessante notar como a proximidade com o imperador facilitava a promoção social e o ganho de riquezas. No principado neroniano nos deparamos com a influência sobre o princeps de Sêneca, Burrus, Agripina e Tigelino dentro da narrativa taciteana e o conseqüente poder exercido por esses personagens. Em Anais XIII, 6, Tácito relata o episódio da invasão dos Partos na Armênia e, como o jovem princeps possuía apenas 17 anos, o historiador nos mostra a preocupação que era sussurrada (rumores) nas casas de que: “como seria possível que um príncipe, que apenas contava dezessete anos de idade, se pudesse haver com tão graves negócios, ou pudesse desviá-los de si? Que confiança podia haver um jovem mancebo governado por uma mulher? Ou como era de esperar que os seus dois mestres pudessem dirigir as batalhas, os cercos das cidades, e todas as demais operações militares?” (Anais XIII, 6, 2)

Nesta passagem podemos perceber que os rumores que circulavam eram dirigidos à critica da posição subalterna do princeps, que era governado por uma mulher, Agripina minor, e por seus tutores (magistri). Nessa crítica transparece o conflito interno à domus Caesaris, onde havia diversos patroni que agiam no lugar do princeps, e como conseqüência, governavam o império gerando inclusive conflitos internos. Essa aproximação com o imperador legava a Agripina minor e a Sêneca controlar enormes quantidades de benefícios e a capacidade de fazer com que seus protegidos ascendessem socialmente. Segundo Theresa K. Roper “It is apparent from this analysis of patronage under Nero how little control the Princeps himself experienced over

84

appointments to imperial positions. Apart from a few isolated occasions he seems to have left the job of felling the necessary posts to his mother and his advisor. This factor, taken in conjunction with Tigellinus previous record of political afflictions with Agrippina and through her with Seneca, makes it much more plausible that the responsibility for Tigellinus´ elevation to praefectus vigilum belongs to Agrippina or to Seneca rather than Nero”.118

Como vimos anteriormente Tigelino é o personagem que marca a mudança de qualidade do governo neroniano, sendo desenhado como principal influenciador dos vícios e maldades do princeps e o antagonista do estóico e virtuoso Sêneca. Theresa K. Roper nos mostra que a ascensão de Tigelino se deu graças ao seu relacionamento com Sêneca e Agripina minor, personagens importantes que compunham o consilium princeps. Pois, segundo a autora, referindo-se aos anos que Nero se encontrava sobre a influência de sua mãe e de seu tutor, “during this period it was Agrippina and Seneca, not Nero, who controlled the majority of imperial appointments”119. Como demonstra Theresa K. Roper, existe uma série de fatos que nos mostram que entre Tigelino e Sêneca não existia esse antagonismo político. Segundo a autora, a relação entre Sêneca e Tigelino remonta possivelmente ao governo de Cláudio, sendo Agripina a principal articuladora dessa ligação. Concordando com essa idéia, Wiedemann descreve que Tigelino deveu sua ascensão política a Sêneca, e que a interpretação dada à relação desses dois personagens como uma disputa de poder e prestígio é somente

118

ROPER, Theresa K. “Nero Seneca and Tigellinus”. Historia, Band XXIV/3. Franz Steiner Verlag GmbH. Wiesbaten. 1979. p. 349. 119 Ibidem. p. 348.

85

uma tentativa de desenhar a transição entre o “bom governo”, durante os primeiros anos, e o “mau governo”, sob a tutela de Tigelino120. De fato podemos observar diversas passagens em que Tácito relata o poder exercido pelo amici Caesaris. Sobre a influência de Agripina minor, além da passagem anteriormente citada, encontramos mais duas, a primeira (Anais XIII, 5) quando Tácito descreve que a mãe do princeps, mostra-se contrária a decisões do Senado, que havia recebido de volta “toda a sua antiga jurisdição” (Anais XIII, 4, 2), por tomar decisões contrárias àquelas dos tempos de Cláudio. Ainda que não tenha conseguido reverter esta decisão do Senado, Agripina promoveu através de seu filho a mudança do local de reunião deste conselho. O senado passou a se reunir na casa de Nero, onde Agripina podia ocultamente ouvir os debates dos patres. Nesta mesma passagem, Tácito relata que Agripina se aproveitou deste ambiente doméstico para atuar como co-regente. O historiador latino relata que Agripina, ao saber que os embaixadores Armênios seriam recebidos pelo princeps, pretendeu “sentar-se no mesmo trono do imperador, e presidir com ele aquela cerimônia” (Anais XIII, 5, 2). Isto teria sido executado se Sêneca “não tivesse aconselhado o príncipe que saísse imediatamente ao encontro da mãe, que já se avizinhava” (Anais XIII, 5, 2). Assim, Nero pode parecer que dava mostras de amor filial e se livrou de se mostrar submetido ao poder da mãe.

120

WIEDEMANN, T. E. J. “Tiberius to Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 249.

86

Outra passagem interessante relatada por Tácito que nos mostra a influência de Agripina minor ocorre no ano de 55 d.C., quando a mãe do jovem princeps é acusada de conspirar contra Nero, planejando se casar com Rubélio Plauto, “descendente de Augusto por linha feminina” (Anais XIII, 19, 3), e “conquistar a suprema autoridade” (Anais XIII, 19, 3). Contudo, antes de adentrarmos nessa narrativa, cabe ressaltar que segundo Tácito, o principal objetivo de Agripina minor era fazer mais um imperador - o primeiro havia sido Nero - e, através desse processo, retomar seu antigo poder e prestígio social. A pretensa conspiração fora delatada a Nero pelo liberto Páris121. O princeps tomado de furor exigiu que sua mãe fosse trazida a sua presença, e que fosse tirado “o comando das coortes a Burro, como criatura de Agripina minor e que provavelmente estaria por ela” (Anais XIII, 20). Agripina, após a apresentar sua defesa e comprovar que era inocente, consegue não só punir seus acusadores, mas ainda beneficiar seus amigos que se mostraram fiéis no momento em que era acusada. Assim, a proximidade com o imperador podia gerar não apenas vantagens, mas também punições severas. Para Momigliano, “there is no doubt that Agrippina at first enjoyed a kind of co-regency had not the definite status and the clear legal form which the co-regency of Tiberius and Augustus”122. Para confirmar essa idéia, o autor demonstra, através da cunhagem das moedas e de inscrições, que Agripina

121

A delação de conspirações contra a figura do princeps era uma estratégia muito utilizada pelos agentes sociais para obtenção de beneficium. 122 MOMIGLIANO, Arnaldo. “Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. First Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 708.

87

possuía uma posição muito proeminente dentro da respublica. Nas moedas, Agripina aparece nas representações cunhadas nas moedas em posição de perfeita igualdade com seu filho e, em muitos casos, acompanhada da legenda “Augusta Mater Augusti”. A evidência epigráfica apresentada por Momigliano é uma inscrição descoberta em Achaea: “procurator Caesaris et Augustae Agrippinae”123, que se referia a Agripina como Augusta. Como podemos observar na narrativa dos Anais, as mulheres da casa dos Júlio-Cláudio eram abertamente envolvidas no patronato, muitas vezes sendo os principais agentes das relações da domus Caesaris124. Contudo, mulheres envolvidas nas relações de patronato não eram simplesmente, por um lado, produtos do sistema. De Augusto a Nero, a corte Imperial é caracterizada pelas violentas intrigas que periodicamente emergiam com a erupção de conflitos maiores entre grupos em competição; em quase todos esses conflitos as mulheres tinham um papel central125. Como não reconhecer os papéis de Messalina, Agripina minor e Popéia para citar algumas mulheres que tiveram participação de destaque em grupos que apoiaram ou se opuseram aos Imperadores.126

123

Cf. MOMIGLIANO, Arnaldo. “Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. First Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 708. 124 “Agrippina’s power was advertised on this coinage which bore confronting busts of herself and Nero on the obverse, with the legend Agripp(ina) Aug(usta) divi Claud(ii uxor) Neronis Caes(eris) mater” cf. SCULLARD, H.H. From the Grachi to Nero. Routledge Taylor & Francis Group. 2001 p. 305. 125 WALLACE-HADRILL, Andrew. The Imperial Court. In: BOWMAN, A. K., CHAMPLIN, E. & LINTOTT, A. The Cambrigde Ancient History. 2 nd edition. Vol. X: The Augustan Empire, 43 B.C. – A.D. 69. Cambridge University Press, 1996, p. 306. 126 ARAÚJO, Fábio de Oliveira. Nas entrelinhas da Antiguidade: Tácito e as relações interpessoais entre Imperadores e súditos. (Monografia de Bacharelado). Mariana: UFOP. 2005, p. 39.

88

Sobre o patronato exercido pelos amici Caesaris, Miriam Griffin, em uma obra dedicada ao filósofo Sêneca, estabelece algumas considerações. Segundo a autora: “An amicus had only the force of his personality and his popularity with the public to give him influence over the Princeps, whose power was absolute, but Seneca had in addition, the moral advantage of have been Nero´s tutor for five years, and Burrus, as sole prefect of the Praetorian Guard, had powerful means of persuasions in his control. Yet Agrippina could compete with both: she had the moral influence of a mother and king-maker, and she was daughter of Germanicus Caesar to whom the praetorians were passionately loyal”127.

Nesta passagem fica claro que os amici Caesaris poderiam atuar com muita influência ao lado do princeps. A autora também foca em um assunto muito importante: a disputa entre Sêneca, Burrus e Agripina pelo controle do princeps. Para Griffin, até o dia 13 de outubro de 54 d.C., (dia da ascensão de Nero ao poder) Sêneca e Burrus estavam sobre a influência de Agripina, ou seja, eram dependentes do seu patronato128. Afinal, Agripina seria a principal articuladora da volta de Sêneca do exílio e Burrus, o seu legado na guarda pretoriana. Essa influência só foi quebrada, segundo a autora, no momento da ascensão de Nero, onde a mãe do imperador passou a conflitar com os tutores do jovem princeps, que queriam emancipá-lo do poder e da influência de Agripina.

127

GRIFFIN, Miriam. Seneca: A Philosopher in Politics. Oxford United Press. 1992. p. 78. “Seneca and Burrus were dependents of Agrippina and exercised what patronage she permitted them, or could permitted them” cf. GRIFFIN, Miriam. Seneca: A Philosopher in Politics. Oxford United Press. 1992. p. 82. 128

89

Sêneca, por sua vez, se aproveitou da sua situação social privilegiada e exerceu o patronato, legando aos seus clientes e amigos posições muito proeminentes dentro da res publica. Como nos mostra Miriam Griffin “His brother Gallio became suffect consul in 55. His nephew Lucan was called from study in Athens to assume the quaestorship five years before legal age. His brother-inlaw Pompeius legate to Lower Germany. His successor in 57 was Divus Avitus, a likely protégé of Burrus […] finally, we can probably include in the period of Seneca´s greatest power the appointment of his close friend Annaeus Serenus as praefectus vigilium. Serenus during his tenure of the post, in which he either preceded or succeeded Tigellinus who held it before praetorian prefect in 62”129.

Wiedemann, refererindo-se aos anos em que Sêneca e Burrus possuíam influência sobre o princeps, afirma que “during these years, Seneca and Burrus seem to have used their influence to appoint associates to positions of honour and power”130. De fato, o autor demonstra que os tutores de Nero conseguiram colocar pessoas de sua confiança em posições-chave dentro da respublica, o que acarretou no aumento de prestígio dos patronos. Afinal, o cunhado de Sêneca foi incumbido de comandar o exército na Germânia inferior (e ao final do seu mandato foi substituído por um protegido de Burrus), além de outras atitudes envolvendo o patronato e que já foram descritas acima. Outro assunto muito discutido no âmbito do principado neroniano diz respeito à atuação dos libertos dentro da corte. Segundo Momigliano, Nero chocou a aristocracia com o vasto número de libertos, especialmente advindos

129

Ibidem, p. 88. WIEDEMANN, T. E. J. “Tiberius to Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 245. 130

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do oriente, fazendo parte de sua corte. Contudo, a crítica não se resume apenas à aplicação dos libertos nos negócios do império, mas também aos cargos elevados que assumiam. Como exemplo, o autor nos mostra que Nero investiu libertos de origem oriental na prefeitura do Egito, inclusive um deles era filho de uma enfermeira do princeps, e Nymphidus Sabinus, filho de um cortesão de origem grega, que compartilhou do cargo de prefeito da guarda pretoriana com Tigelino131. A aproximação com o imperador propiciava imensos poderes para seus amici mais íntimos e seus libertos. Esses amici além de gozarem de uma posição social privilegiada eram importantes patronos para a ascensão social de seus clientes, inclusive facilitavam a aproximação para com o princeps. Mas como se dava essa aproximação com o centro de poder? Tácito descreve em uma passagem como deveria ser a relação entre um patronus e seus clientes. Segundo ele, contando uma história trágica de amor entre Octávio Sagita, tribuno do povo, “perdido de amor por Pôncia, mulher casada, não só comprou à força de dinheiro o adultério, porém obteve ainda que abandonasse o marido” (Anais XIII, 44, 1). Contudo, por força do paterfamilias ou pelo interesse de que outro pretendente mais rico surgisse, Pôncia iludia Octávio com suas promessas e nada cumpria. O tribuno implorou por mais uma noite com a amada para aliviar o seu amor, e com o consentimento de Pôncia o encontro foi marcado. O amante entrou no quarto

131

MOMIGLIANO, Arnaldo. “Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. First Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 727.

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acompanhado de um liberto que carregava consigo um punhal, e Octávio matou Pôncia. Depois de relatada a morte de Pôncia, as suspeitas sobre quem era o assassino recaíram sob Octávio, que havia passado a noite com a amada. Porém, “O liberto querendo salvar o seu patrono, declarou que, para vingá-lo, ele só cometera o delito; e comovia a muita gente com este magnífico exemplo de tão nobre lealdade, até a escrava, melhorando da ferida, descobriu o verdadeiro matador” (Anais XIII, 44, 4).

A admiração pelo liberto que emerge do relato de Tácito não está vinculada obviamente com o respeito deste indivíduo à verdade, nem com o funcionamento da justiça. Por que então ele é digno de elogio? Sendo um liberto, seu compromisso primeiro não é com a respublica, mas com a domus. Sendo assim, assumir a culpa que era de seu patrono é digno de um liberto. Outra estratégia de relação com um patrono, e a mais criticada por Tácito, é através das adulações. Segundo Fábio Joly, em seu livro intitulado “A Metáfora da Escravidão em Tácito”, as adulações desenfreadas à figura do Imperador são o principal motivo da subserviência do poder do Senado em relação ao poder do Imperador. O autor, valendo-se da “metáfora da escravidão”132, realiza a análise da obra taciteana tendo em vista a ambivalência entre a libertas e seruitas no âmbito do principado. Segundo ele: Essa ambivalência pode ser observada no emprego que faz da metáfora da escravidão, que tanto serve para caracterizar a renúncia, como para criticar o monopólio do poder pelo imperador, como no trecho que se segue, em que Tácito 132

JOLY, Fábio Duarte. Tácito e a Metáfora da Escravidão: Um Estudo de Cultura Política Romana. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2004.

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equipara o regime instaurado por Augusto a uma escravidão: “já sem encontrar oposição, porque os mais altivos tinham morrido nos combates e proscrições, e o resto da nobreza, na proporção em que era disposta à escravidão, se acrescentava, com a nova ordem das coisas, em honras e riquezas e preferiam a segurança do presente aos perigos do passado” (Anais, I, 2)133.

Para Tácito, o monopólio do poder por parte do Imperador permitiu a supressão da liberdade de expressão dentro do principado (libertas). Contudo, a repressão da libertas veio acompanhada da supressão do ambitus (conflito) e, como conseqüência, o estabelecimento da ordem. Como nos mostra o historiador latino, uma das estratégias de ascensão social era através das delações, visando à absorção de beneficia do princeps. Essa estratégia é apresentada nos Anais durante a narrativa do ano de 55 d.C. Neste ano, Pallas e Burrus foram acusados de conspirarem para transmitir o império a Cornélio Sula, “homem muito ilustre, e parente de Cláudio; e de quem fora genro por ter se casado com sua filha Antônia” (Anais XIII, 23, 1). O delator dessa possível conspiração era “um tal de Peto, já mui famoso por pelas arrematações que fazia dos bens dos condenados, e então plenamente reconhecido como falsário” (Anais XIII, 23, 1). Levada a julgamento, o delator foi sentenciado com um desterro rigoroso, fato que, segundo Tácito “não causou porém tamanha alegria a inocência de Palas como gerou o aborrecimento a sua muita soberba” (Anais XIII, 23, 2) e Burrus apesar de ser um dos acusados atuou como juiz nesta causa.

133

Ibidem, p. 116.

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Tácito nos mostra o processo pelo qual o acusado Peto havia adquirido sua fortuna, afinal ele é reconhecido por Tácito como um falsário em busca da arrematação dos bens dos condenados. Outro fator interessante é que o liberto Pallas e o prefeito da Guarda Pretoriana Burrus são privilegiados no julgamento contra a figura do imperador. Burrus como acusado foi incumbido de arbitrar ao seu favor e Pallas, como um liberto arrogante e muito poderoso, somente pode reiterar a sua situação perante o círculo de poder do princeps. Como podemos perceber, o fato de Burrus e Pallas pertencerem à domus Caesaris, ou seja, possuírem um papel muito proeminente dentro do império devido à sua aproximação com o imperador, possibilitou que esses acusados fossem extremamente favorecidos durante o julgamento. Outro ponto importante é que essas delações feitas através de intrigas e sussurros, inclusive contra personagens muito influentes dentro do império, visavam à promoção social do delator, além de ser um meio muito prático de combater e derrubar um poder superior ao seu. Outra estratégia de aproximação para com o imperador é descrita por Tácito no ano de 58 d.C. Segundo o historiador, “Óton, ou porque o muito amor o fizesse indiscreto, ou para melhor inflamar os desejos do príncipe, não cessava de elogiar a formosura e a elegância (de sua esposa) Popéia” (Anais XIII, 46, 1). Portanto, como podemos observar, a estratégia de “inflamar os desejos do príncipe” através da “propaganda” das habilidades de sua esposa

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tinha como objetivo estreitar a relação e o valimento de Óton para com Nero, afinal eles iriam gozar dos prazeres da mesma mulher134. Como resultado, Óton foi privado de qualquer familiaridade com o princeps, foi incumbido ao cargo de governador da Lusitânia e posteriormente sua esposa Popéia se casaria com o princeps. O casamento de Popéia com Nero só poderia ser consumado após o divórcio do princeps com Octávia, o que ocorreu após as mortes de Burrus, de Plauto e de Sila, - esses dois últimos foram assassinados por motivo de conservação da respublica (Anais XIV, 59, 4) – quando Nero passou a contar com o apoio de Tigelino, e sentiu-se seguro graças à eliminação dos concorrentes ao cargo de princeps e a constante adulação dos senadores e dos patres. Segundo Tácito, “Nero, tanto que viu o decreto dos padres em que os seus maiores crimes eram elogiados como magníficas virtudes, repudiou imediatamente Octávia, acusando-a de estéril, e passou logo a casar-se com Popéia” (Anais XIV, 60, 1).

Contudo, apesar das constantes bajulações e da eliminação de possíveis concorrentes ao poder, as atitudes de Nero levaram ao surgimento de constantes murmurações advindas de grupos populares e de clientes de Octávia, que estavam compadecidos desta que havia assistido ao assassinato

134

Para Wiedemann “it was said that the emperor asked his friend Marcus Silvius Otho to marry Poppea so that Nero could visit her secretly” cf. WIEDEMANN, T. E. J. “Tiberius to Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 247. O fato de Otho aceitar essa proposta do imperador é claramente um exemplo de estratégia para a aproximação para com o princeps.

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de seu pai Cláudio, seu irmão Britânico e que repudiavam as atitudes do imperador com relação a sua esposa. A plebe ciente das artimanhas que levaram o divórcio de Nero derrubou as estátuas de Popéia e enfeitou as estátuas de Octávia. Essa manifestação encheu de temores o princeps, que percebeu o “Grande risco que estivera por causa dos clientes e escravos de Octávia, que debaixo do nome do povo cometeram em plena paz atentados, apenas praticáveis em guerras civis. E também contra ele príncipe, aquelas mesmas armas se tinham dirigido, e só faltava um chefe, que facilmente aparece logo que tais comoções principiam” (Anais XIV, 61,4).

Nessa passagem fica clara a disputa interna à domus Caesaris. Nero, ao repudiar Octávia e expor a públicas desgraças uma mulher muito digna, sofreu com as ameaças que poderiam levar a uma coalizão das diversas domus aliadas à causa de Octávia. Esta seria uma séria ameaça ao poder imperial, uma vez que como lembra Tácito, para que tal divisão interna a sua casa se transformasse em conspiração, bastava que surgisse um novo imperador. Tácito deixa claro que os clientes e escravos de Octávia estavam prontos para a “guerra” contra o imperador. Voltando à nossa reflexão no segundo capítulo deste trabalho, vimos que os clientes e escravos que compunham uma determinada domus não eram indivíduos desvinculados de qualquer tipo de relação social. Os clientes compunham suas próprias domus com seus clientes e escravos – cabe lembrar o episódio do assassinato de Pedânio Secundo, onde Tácito nos mostra que a plebe se manifestou contrária à sentença de morte dos escravos e libertos, visto que muitos desses acusados 96

possuíam familiares e amigos fora da domus de Pedânio. Portanto, Tácito nos mostra nessa passagem que existia uma rede de relações que partia de dentro da domus Caesaris e que já visava à substituição desse poder imperial. Porém carecia do surgimento de um chefe que, segundo o historiador, “facilmente aparece logo que tais comoções principiam” (Anais XIV, LXI, 4). O jogo político nessa passagem é o seguinte: as atitudes do imperador e a bajulação desenfreada do Senado faziam com que Nero confiasse na obtenção de um novo consenso mesmo repudiando sua esposa sem qualquer razão digna. No entanto, há uma reação que leva à contestação do consenso que seria a base do poder imperial. Mas, para a constituição de um novo consenso era necessária a articulação das domus contrárias ao poder imperial (factio) na busca de modificar essa “ordem imperial” e constituir uma “nova ordem”. Após a narrativa da morte de Octávia, Tácito relata que os senadores decretaram ofertas em todos os templos. Fato que, segundo Tácito, “Quero relatar para aqueles que lerem deste tempo, todos os escritos por mim, ou por todos aqueles que o príncipe ordenou assassínios ou desterros sempre se mandaram dar graças aos deuses: de maneira que aquilo, que antigamente era sinal de públicas fortunas, só veio a ser depois o símbolo de públicas desgraças. Contudo nunca deixarei ainda de referir qualquer outro senatus-consulto que se ia fazer notável ou por alguma nova espécie de adulação, ou por algum exemplo de excessiva paciência” (Anais XIV, 44, 1).

Através dessa idéia, a adulação desenfreada em busca de benefícios do princeps aparece como escravidão voluntária, de modo que com esta concepção o historiador sugere que a conseqüente perda de poder por parte do

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Senado e a centralização política pelo imperador (dominatio) não é apenas o resultado da dominação e coerção impostas pelo princeps, mas, em grande parte, constituída por opção da própria aristocracia. Tácito, assim, reafirma o consenso como base para o poder imperial. No entanto, os conflitos internos à domus Caesaris e a presença de uma domus senatorial com um brilho semelhante à do Imperador poderia conturbar a ordem vigente e colocar em risco o próprio poder do imperador. Isto pode ocorrer tanto pela

elevação de uma

casa senatorial quanto pelo

enfraquecimento da casa imperial. O episódio de Octávia é esclarecedor neste sentido ao mostrar que a crise da casa imperial não necessariamente leva à sua queda. É necessário que outra casa se apresente para suplantá-la. É importante destacar, dentro desse sistema, o papel do patronato dentro dessas redes de solidariedade. Como vimos no capítulo anterior, uma das estratégias de enfraquecimento de uma determinada domus era a eliminação dos principais clientes ou familiares. Nero, utilizando-se desta estratégia, minou as bases de poder de Agripina minor, como o liberto Pallas, cliente de Agripina minor, e o ganho da confiança de Burrus, prefeito da guarda pretoriana que ascendeu graças a ela.135 Tácito relata que após o afastamento de Agripina minor dos negócios do império que “O palácio de Agripina converteu-se imediatamente em um vasto deserto: ninguém a consolava, e ninguém ia a ver, à 135

Tácito escreve em um episódio que Agripina é acusada de conspirar contra Nero: “mas lembrou de tirar o comando das coortes a Burro, como criatura de Agripina, e que provavelmente estaria por ela” (Anais XIII, XX,)

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exceção de poucas mulheres, que não se sabe se o faziam por amizade ou por ódio”. (Anais XIII, 19, 1)

Como nos mostra Veyne, as domus mais prestigiosas de Roma conviviam no dia-a-dia com inúmeros clientes que passavam para homenagear e pedir mais benefícios para seu patrono. Uma domus sem clientes era uma domus sem prestígio136. Assim, como podemos perceber, para Tácito a idéia de que o patronato regia a sociedade romana desde a pequena domus até a domus Caesaris estava presente. Como vimos, o historiador relata a perda de prestígio de Agripina minor dizendo que ela está à frente de uma domus sem clientes. Contudo, o que é muito presente em sua narrativa são as críticas quanto às formas utilizadas para a manutenção desse poder, como a compra da lealdade dos clientes. Com a perda de prestígio de Agripina minor, Nero passa a articular o assassinato de sua mãe. Ele sabe que, sem ser prestigiada por ele, sua mãe poderia conspirar para o surgimento de uma nova casa imperial que lhe reabilitasse. Julgando que sua mãe Agripina minor era perigosa demais, em qualquer parte que estivesse, formula um plano para matá-la “hesitando apenas quanto ao modo, se a ferro ou por outra violência” (Anais. XV, 3). Nero, então, ordena a construção de uma nau, que artificiosamente se pudesse desmantelar, deixando sua mãe aos acasos e que, se ela morresse num

136

VEYNE, Paul. “O Império Romano” In: DUBY, G. & ARIÈS, P. (eds.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia das Letras, 1990. P. 81.

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naufrágio, ninguém poderia julgar como um crime a obra dos ventos e das ondas. Porém, como julga Tácito, “para que talvez mais se evidenciasse o crime, proporcionaram os deuses uma noite clara e estrelada e um mar tranqüilo” (Anais, XIV, 5) - O fato de os deuses estarem proporcionando uma noite clara era um sinal de reprovação das atitudes de Nero, principalmente a de matar a sua mãe - Quando a nau se afastou da terra, o teto ruiu, porém o barco não cedeu, até que os remeiros resolveram se inclinar para um lado e submergir o barco. Acerrônia, uma pessoa da intimidade de Agripina minor, clamava que seria a mãe do príncipe. Identificada falsamente, foi atingida com remos e instrumentos navais que o acaso fornecia. Agripina minor, que estava calada e por tanto se fazia menos conhecida, foi socorrida com apenas um ferimento no ombro. Ansioso em saber o resultado do estratagema, Nero recebeu a notícia de que sua mãe havia escapado levemente ferida. “Ficando meio morto de pavor, e clamando que ela não podia estar um momento sem deixar de vingarse, a todos perguntava o que faria nesse caso” (Anais, XIV, 7). Após consultar Sêneca e Burrus, o princeps decidiu assassinar sua mãe antes que ela pudesse expor seu naufrágio aos soldados e ao senado. Segundo Tácito, Foram eles (Sêneca e Burrus) por conseqüência imediatamente chamados, e não é coisa certa já dantes estavam no segredo. Por muito tempo estiveram no silêncio, e também se não sabe se com receios de darem algum conselho que não fosse bem aceito, ou porque as coisas já tinham chegado a tal ponto que Nero ou sua mãe haviam de morrer (Anais, XIV, 7).

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Aniceto137, um liberto de Nero, sem hesitar reclamou para si a consumação do crime. A justificativa era de que Agripina minor teria enviado um dos seus libertos para assassinar o imperador. Agindo em prol da “manutenção” da “ordem imperial”, Nero ordenou o crime e após sua consumação exclamou “que só naquele dia tomava posse do poder e que este lhe fora dado pelo liberto” (Anais, XIV, 7). Agripina minor foi assassinada em casa no ano de 59. No dia que foram decretadas, pelo Senado, as preces públicas, Tácito narra que os centuriões vieram reanimar o príncipe com as primeiras adulações, “porque apertando-lhe as mãos lhe deram os parabéns por haver escapado de um perigo tão imprevisto, e dos atentados da mãe” (Anais, XIV, 10). Depois disso os seus amigos foram aos templos dar graças aos deuses e os municípios mais próximos da Campânia entraram a fazer adulações públicas a pessoa do imperador, “fazendo sacrifícios, e enviando deputações” (Anais, XIV, X). “Contudo, pela notável baixeza dos principais senadores se decretou o darem-se ações de graças em todos os templos; que as festas de Minerva, tempo em que se fingia ter-se descoberto a conspiração, fossem celebradas com espetáculos e jogos anuais; que no senado se dedicasse uma estátua de ouro a esta deusa, e ao seu lado se pusesse a do príncipe; e que o dia natalício de Agripina se contasse para o futuro em o número dos dias infelizes”. (Anais, XIV, 12)

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Aniceto foi paedagogus de Nero. cf. WIEDEMANN, T. E. J. “Tiberius to Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 247.

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Assim, Nero, que antes era tomado por terrores, foi “absolvido” pelo Senado, que preferiu bajular o jovem imperador em busca de beneficia ao invés de punir o matricídio de acordo com as leis e os costumes romanos138. Outra estratégia de manutenção do poder imperial seria através da política de “extermínio” dos possíveis concorrentes. Segundo Tácito, após o assassinato de Germânico, filho de Cláudio, Nero proferiu essas palavras: “Que tendo uma vez perdido o auxílio de seu irmão, toda a sua confiança estava agora na República; e por isto com toda a razão se persuadia de que os padres e o povo seriam cada vez mais constantes em amar o seu príncipe, o único que restava da família destinada para o império.” (Anais XIII, 17)

Os conflitos visando à manutenção do poder imperial eram constantes, e a necessidade de (re)afirmação desse poder era imprescindível, seja através do patronato, visando a troca de beneficia, ou através da coerção. Vejamos, pois, algumas conspirações contra Nero, com o intuito de analisar as alianças entre os conspiradores e as estratégias adotadas, tanto por Nero, como pelos conspiradores. No ano de 65, foi tramada a conspiração de Pisão (Anais XV, 48-74) cujo objetivo era destituir Nero do poder. Delatada a conjuração e seus participantes, inúmeras sentenças foram proclamadas, dentre elas, por exemplo, as de Pláucio Laterano e Súbrio Flávio (Anais XV, 47), que foram decapitados; e a de Sêneca (Anais XV, 60 – 65), constrangido ao suicídio. 138

“Agrippina´s killing may have brought an end to the quinquennium Neronis, but it made little difference to Nero´s popularity. While Thrasea Paetus walked into the Senate in disgust, other senators accepted the explanation given by Nero and Seneca”. cf. WIEDEMANN, T. E. J. “Tiberius to Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 248.

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Morreram ainda Sulpício Ásper e Fênio Rufo (Anais XV, XLVIII); Vestino (Anais XV, 49); Aneu Lucano139, Senecion, Quinciano, Cevino (Anais XV, 70), Petrônio (Anais XVI, 19); além de outros centuriões (Anais XV, 48)140. Quanto a Pisão, este senador abriu as veias antes mesmo de ter sido constrangido por Nero (Anais XV, 59). Houve um total de dezenove mortos e treze exilados. Realizando um balanço geral dessa conspiração, percebemos que a maioria das condenações capitais é decorrente da culpabilidade dos indivíduos na conspiração pisoniana. Assim, decorre que Nero ministrou a justiça com certo grau de integridade, pois, como podemos perceber na narrativa taciteana, a maioria das mortes visava “à manutenção da ordem pública”, ou seja, era em decorrência da preservação do poder imperial a que Nero se expôs. Segundo Tácito, a conspiração pisoniana foi um reflexo das “maldades do príncipe, sobre a total decadência do império, e o quanto se fazia preciso eleger outro chefe que salvasse o Estado” (Anais XV, 50, 1). Portanto, podemos verificar nesse processo que a ocorrência de muitas mortes e uma crescente contestação ao poder de Nero, sendo cada vez mais presente a possibilidade de seu assassinato. Um ponto importante a ser notado é que, considerando algumas conspirações contra o Imperador, podemos apontar alguns limites do patronato 139

Segundo Tácito, esse conspirador queria se vingar do princeps por ofuscar a glória de seus talentos poéticos (Anais, XV, 49). 140 “The knights numbered five, among whom was Claudius Senecio who had been one of the intimate friends of Nero” cf. MOMIGLIANO, Arnaldo. “Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. First Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 728.

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como uma explicação para o funcionamento do governo romano. O homem que esfaqueou Calígula e muito dos homens que formaram a conspiração Pisoniana contra Nero não deixaram de receber seus benefícios por parte do Imperador, mas mesmo assim conspiraram contra ele. Cabe lembrar que um dos conspiradores Pisonianos era um cônsul designado enquanto outros eram familiares do princeps (Anais XV, 48-51) e que um dos torturadores, o prefeito da guarda pretoriana, Faenius Rufus (Anais XV, 50), foi descoberto como um dos conspiradores. No ano de 66 d.C., uma conspiração foi descoberta em Beneventum. O líder dessa conspiração era Annius Vinicianus, que foi executado, tinha como objetivo substituir Nero pelo general Corbulão. Segundo Wiedemann, existe uma ligação entre o acusado e Annius Pollio, envolvido na conspiração pisoniana. Segundo o autor, esses dois envolvidos em conspirações contra Nero seriam irmãos141. Esse fato serve para ilustrar nossa hipótese de que as domus se articulavam independentes do poder imperial, formando em muitos casos factiones. Como os dois envolvidos nessas tentativas de substituição do núcleo de poder comandado por Nero pertenciam à mesma domus, podemos inferir que esta domus fazia parte de algum núcleo de resistência contra Nero. Cabe ressaltar que essa conspiração que proveio de Beneventum teve como um dos principais conspiradores o general Corbulão, investido por Nero

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WIEDEMANN, T. E. J. “Tiberius to Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 254

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e que havia feito uma ótima campanha contra os Armênios e, segundo Wiedemann, era patrono e sogro de Annius Pollio.142 Durante a primavera de 68 d.C., Gaius Iulius Vindex, descendente de Reis na Aquitania, filho de um Senador romano143 (que provavelmente ascendeu durante o governo de Cláudio) e um legado de César na província144, reuniu algumas tropas na região da Gália com o intuito de substituir o princeps. Segundo Wiedemann, durante a revolta capitaneada por Vindex, o conspirador articulou uma extensa rede de correspondências referindo-se a Nero como Ahenobarbus, ou seja, como alguém que não pertence à domus Caesaris145. Cabe ressaltar que Vindex era legado do imperador na Gália e, portanto, era favorecido por esse poder que contestava. Outro reflexo dessa rede de competição por prestígio e a conseqüente ação para a manutenção do poder imperial pode ser observado no ano de 55 d.C., quando Tácito relata que Paulinio Pompeio e L. Veto, generais encarregados da manutenção da ordem na Germânia, ocuparam-se de acabar a construção de um dique para conter o Reno. Esse dique, quando completo permitiria que as tropas romanas que embarcassem no mediterrâneo chegassem até o oceano, livres de toda fadiga das marchas por terra.

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“He had been legatus of the fifth legion in Corbulo´s Armenian campaign and the husband of one of Corbulo´s daughter”. cf. WIEDEMANN, T. E. J. “Tiberius to Nero”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 254. 143 HORNBLOWER, Simon & SPAWFORT, Antony (eds.). The Oxford Classical Dictionary. 3rd ed. Oxford: Oxford University Press, 1996. 144 WIEDEMANN, T. E. J. “From Nero to Vespasian”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 257. 145 Ibidem, loc. cit.

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Contudo, uma obra daquela magnitude acarretou ciúmes no legado da Bélgica, Élio Gracilis, que ameaçou os generais dizendo: “que não fizesse passar as suas legiões para um governo alheio, nem aparentemente se mostrasse querer ganhar a boa vontade das Gálias, porque daria com isto terríveis suspeitas ao imperador” (Anais XIII, 53, 3).

As terríveis suspeitas ao imperador poderiam ser traduzidas como o acúmulo de uma enorme quantidade de prestígio pessoal e a conseqüente estratégia de manutenção do poder imperial, ou seja, a eliminação da domus concorrente. O que, segundo Tácito, “por semelhantes motivos tantas vezes se tem malogrado os mais nobres projetos” (Anais XIII, 53, 3). O fim do principado neroniano é marcado pela aclamação de Galba como Caesar por suas tropas em Nova Cartago, entre os dias dois e três do mês de abril de 68 d.C. Galba imediatamente recusou o título, contudo aceitou o título de “Legado do Senado e do Povo Romano”. No início desse levante, Galba sofreu forte oposição dos governadores aliados ao partido de Nero, que foram sumariamente executados. Contudo, absorvendo o apoio do questor Caecina Alienus (que ganhou o governo da Bética), de Marcus Salvius Otho, governador da Lusitânia, e de mais três outros governadores que controlavam províncias produtoras de metais preciosos, Galba conseguiu reunir um poderoso partido para enfrentar César. Essa aliança entre as domus contrárias ao poder imperial pode ser facilmente exemplificada pelo caso de Marcus Salvius Otho. Como vimos anteriormente, Otho foi acusado de favorecer o adultério de Nero com Popéia 106

e, como conseqüência, adquirir favores imperiais. Como resultado dessa trama, Otho foi enviado para a Lusitânia como encarregado da província, e sua esposa se casou com Nero. Com a morte de Popéia “Otho had not to lose from Nero´s overthrow, and much to gain”146 . Otho escolheu seguir o partido de Galba. Portanto, fazendo um resumo de nossa reflexão, os indivíduos estavam inseridos em um sistema de relações pessoais regidos pela lógica do patronato. Essas extensas redes perpassavam, não somente o indivíduo, mas também as domus que eram compostas por muitos agentes sociais, que também estavam inseridos nesse jogo de poder. O acúmulo de prestigio de certa domus poderia ser realizado de diversas formas diferentes. Como vimos, o patronato exercido pelo imperador, as bajulações, as estratégias de casamento, e a aliança com diversas domus, inclusive contra o poder do princeps são descritas por Tácito como estratégias de ascensão social. Portanto, a “ordem imperial” era realizada através de conflitos envolvendo as domus que compunham a respublica. Contudo, como foi exposto em nossa análise, essas domus poderiam (e o fizeram) articular-se independentemente desse poder imperial, muitas vezes sobrepondo-o, através do controle das ações desse governante, ou até mesmo substituindo-o. Portanto, cabia ao imperador gerir essas redes de clientelismo através das suas

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WIEDEMANN, T. E. J. “From Nero to Vespasian”. In: Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. p. 258.

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estratégias, patronato ou coerção, tendo em vista que os “maus” imperadores são criados a partir de más práticas políticas para com a sociedade, e não somente em categorias ou critérios de julgamento criados pelas fontes. Quanto a essa idéia, David Shotter nos oferece uma visão interessante. Segundo o autor, nos anos iniciais do governo de Nero, o imperador apresentou a tendência de direcionar todas as atenções imperiais a favor dos patres que possuíam as famílias mais tradicionais, isto é, desde o principado de Augusto147. Para o autor, “Tacitus noted a growing tendency on the senate´s part to indulge empty flattery and it showed an unwillingness to take decisions that might run counter to the wishes of the princeps. Although such tendencies continued in Nero´s reign, there are clear signs in the earlier years at least of a general contentment among senators”148

E acrescenta que “At first, the senate, too, remained broadly content through Seneca´s studied insistence on the ‘Augustan ideal’ as the model to be embraced by the young princeps under his charge”149. As atitudes do imperador, como o assassinato de sua mãe e o repúdio ao seu casamento com Octávia, rompiam com “a essential element of his title to be Claudius’ successor”150, contribuindo para que as críticas populares começassem a emergir na sociedade. Somado a esses acontecimentos, o princeps estava perdendo, uma a uma, bases importantes de sustentação do seu governo – Agripina, Octávia, Burrus e Sêneca.

147

SHOTTER, David A. C. Nero. London: Routledge. 1997. p. 18. Ibidem, p. 18. 149 Ibidem, p. 58. 150 Ibidem, p. 23. 148

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Aliado a esse fator, Shotter ressalta que a perda de prestígio do imperador frente ao senado se dava graças às crescentes atitudes tirânicas e absolutistas do princeps151. “Nero´s reaction to reverse a policy of favoring the older nobility which had characterized the earlier part of the reign; instead, he appears to have placed in senior commands men whose social backgrounds might tempt them less to see themselves as potential rivals for Nero´s power. While many such men were not wanting in energy, they may have lacked the auctoritas to maintain control when the stability started to slip – a task made more difficult by Nero´s evident failure to pay his armies the kind of attentions had been characteristic of most of his predecessors”152.

Assim, voltando à epígrafe dessa monografia: “De todas as coisas humanas nada há de tão instável e tão pouco seguro como a fama do poder, quando esse não tem forças próprias com o que se sustentar” (Anais XIII, 19)153, podemos perceber que Tácito descreve a instabilidade com a qual as domus conviviam. A amizade com o César é um método incerto para quem visa à ascensão social, difícil de alcançar, fácil de perder e limitado pelas próprias chances de sobrevivência do César. Este ponto se aplica também aos amici Caesaris. Contrariamente, podemos observar que as factiones não eram tão coesas e podia haver fendas, sendo assim não podemos considerar essas conspirações como algo concreto e certo. Pois, a lealdade e amizade poderiam

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“As we have seen, contemporary coinage displayed the princeps as under Jupiter´s guardianship and as the vice-gerent of the Sun”. cf. SHOTTER, David A. C. Nero. London: Routledge. 1997. p. 65. 152 Ibidem, p. 67. 153 “Nihil rerum mortalium tam instabile ac fluxum est quam fama potentiae non sua vi nixa[e]”

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evaporar a qualquer momento. Depende de quem tem mais a oferecer e o quanto se confia na fidelidade dos envolvidos.

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Conclusão A “ordem imperial” não se dava somente através da força, da autoridade ou do patronato exercido pelo princeps. Existiam muitas outras questões e cálculos a serem pensados, tendo em vista que estamos nos deparando com uma sociedade composta por inúmeras domus que competiam entre si e que encerravam em seu interior disputas internas, tendo como maior objetivo a aproximação para com a domus Caesaris ou a constituição de uma alternativa a ela. Esses conflitos teriam que ser arbitrados pelo imperador, elemento de coesão e de consenso entre as inúmeras factiones que surgiam no seio da respublica. Uma domus Caesaris enfraquecida era uma avenida aberta para a discórdia e a sempre iminente guerra civil. Contrariamente, essa domus poderia, através do patronato, estabelecer vínculos de ligação moral e aumentar o seu poder. Lembrando que uma domus sem clientes era uma domus enfraquecida. No relato de Tácito, simplesmente favorecer a outros não era, contudo, garantia de fidelidade. Nas diversas conspirações, domus que receberam a atenção imperial conspiraram para a sua substituição. Como vimos, Nero, nos anos iniciais conseguiu administrar esse jogo político, seja pelo controle exercido por seus tutores, ou pelas concessões às elites mais tradicionais que compunham o império, ou, ainda, pela fraqueza demonstrada pelo Senado frente ao poder imperial. Contudo, não conseguiu

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arbitrar nos negócios no interior de sua própria domus. Esta estava imersa em disputas pessoais envolvendo o controle do imperador. A partir do momento em que as bases importantes de sustentação da domus Caesaris começam a ruir, temos em cena um princeps enfraquecido e que se torna alvo para contestações e conspirações. Porém, como vimos, o partido de Nero ainda se mostra forte perante as factiones que começam a aparecer. Conseguindo, em muitos casos, estabelecer políticas de manutenção do núcleo de poder e de extermínio de seus concorrentes. Outro elemento importante é que essas factiones eram compostas muitas vezes por membros que usufruíram do beneficium do princeps, inclusive tendo como conspiradores importantes personalidades da vida pública, como Cônsules, cavaleiros e Senadores. Esta presença maciça de indivíduos que ascenderam socialmente graças ao patronato exercido por Nero nos oferece uma pista a respeito do jogo político pela disputa de um lugar mais elevado socialmente. As domus constantemente elaboravam estratégias de ascensão social. E uma dessas estratégias era se aliar a uma factio que visava substituir o núcleo de poder. Essas estratégias que geralmente envolviam elementos de bajulações e intrigas são os temperos da narrativa de Tácito. As bajulações poderiam ser um meio de fácil acesso ao beneficium imperial, contudo foram amplamente criticadas por Tácito. O mau patrono, aquele que estabelecia suas relações

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através da bajulação, pautaria suas escolhas tendo os olhos voltados para longe dos merecedores. Outra estratégia seria aquela em que as domus conflitavam entre elas através de sussurros e delações. Afinal, eliminar um concorrente importante poderia ser sua porta de acesso aos favores do princeps. Ao contrário, esse sistema possibilitou que os méritos ficassem escondidos no seio da corte. Ter uma domus com muito prestígio passava significar um afrontamento contra a domus Caesaris. Portanto, “patronato e governo imperial” são figuras gêmeas de uma mesma carta. Para Tácito, o governo imperial é indissociável da política do patronato exercido pelo imperador. Cabia ao princeps estabelecer estratégias de gerenciamento dessas redes clientelares, seja através do patronato ou da coerção, com o intuito de manter a “ordem imperial”. Afinal, sua casa era a mais proeminente da respublica, e ele, como pater, era incumbido do papel de maior patrono das redes clientelares. Inversamente, ao mesmo tempo em que esta domus Caesaris se mostrasse fraca, poderia ser enfrentada e substituída por outra domus.

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Monografia de Bacharelado apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto, sendo avaliadores os seguintes professores:

Prof. Fábio Faversani Orientador

Prof. Celso Taveira

Prof. Fábio Duarte Joly

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