Belém na Bienal: história da arte contemporânea a partir da projeção nacional de artistas locais (p. 86-97)

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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos Universidade Federal do Pará Belém, 15 a 18 de junho de 2015

A map of Terra Firma Peru, Amazoneland…, 1732

Volume 1 Cidade & cultura

PPHIST/Universidade Federal do Pará PPGHIS/Universidade Federal do Maranhão PPGH/Universidade Federal do Amazonas ISBN 978-85-61586-84-3

Ficha Catalográfica

Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos / Cidade e cultura. Rafael Chambouleyron (Org.). Belém: Editora Açaí, volume 1, 2015. 217p. ISBN: 978-85-61586-84-3 1. História – Cultura - Cidade. 2. Espaço citadino - Cultura. 3. Amazônia – Cidade - Amazônia. 4. História. CDD. 23. Ed. 359.9976

Apresentação Apresentamos os Anais do II Seminário de História em Estudos Amazônicos, realizado em Belém, de 15 a 18 de junho de 2015. O primeiro Seminário foi realizado em São Luís, em 2013, fruto do esforço conjunto dos programas de pós-graduação em História da Universidade Federal do Maranhão e da Universidade Federal do Pará, aos quais se junta agora o da Universidade Federal do Amazonas. Neste ano, o SHEA congregou docentes e discentes das três instituições, resultando na apresentação de mais de cem trabalhos, aqui publicados, organizados em sete volumes, cada um referente a um Simpósio Temático. O objetivo é reforçar os laços entre as pós-graduações de instituições amazônicas, que historicamente, compartilham trajetórias comuns.

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Sumário BARÃO DE MARAJÓ: UM INTENDENTE ENTRE A MONARQUIA E A REPÚBLICA Anna Carolina de Abreu Coelho ...............................................................................4 “ALUGA-SE”: O COMÉRCIO SEXUAL NA IMPRENSA MANAUARA NA DÉCADA DE 90 Bárbara Rebeka Gomes de Lira .............................................................................. 15 “PARALLELO DAS UTILIDADES DA NOVA MACHINA DA NAVEGAÇÃO”: A MÁQUINA RELÓGIO DE JOÃO FRANCISCO MADUREIRA PARÁ NO RIO DE JANEIRO E A NAVEGAÇÃO DOS RIOS DA AMAZÔNIA NO SÉCULO XIX (1825 – 1834) Bruno Carlos Oliveira Neves .................................................................................. 25 ENTRELINHAS DOS CÓDIGOS MUNICIPAIS DE POSTURAS DE MANÁOS NA SEGUNDA PARTE DO SÉCULO XIX E PRIMEIRA PARTE DO XX Bruno Miranda Braga ............................................................................................... 35 BREVE CRONOLOGIA DO TEMA AMAZÔNIA NAS ESCOLAS DE SAMBA EM BELÉM DO PARÁ E NO RIO DE JANEIRO NAS DÉCADAS DE 1970 E 1980 Cláudia Suely dos Anjos Palheta ............................................................................. 46 VILA DE CASTANHAL: MEMÓRIAS DO PASSADO ATRAVÉS DA ESCRITA DO CÔNEGO LEITÃO Edivando da Silva Costa........................................................................................... 53 A CIDADE SE DIVERTE: BELÉM DO PARÁ E OS FESTEJOS JUNINOS NOS ANOS DE 1950 Elielton Benedito Castro Gomes ............................................................................ 64 “QUE SE PODEM VER, MAS NÃO DESCREVER DEVIDAMENTE”: A CIDADE DE BELÉM/PA DO TEMPO DE ANTONIO LOPES MENDES (1883) Franciane Gama Lacerda ......................................................................................... 74 1

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BELÉM NA BIENAL: HISTÓRIA DA ARTE CONTEMPORÂNEA A PARTIR DA PROJEÇÃO NACIONAL DE ARTISTAS LOCAIS Gil Vieira Costa ......................................................................................................... 86 “ONDE OS TAMBORES TOCAM MAIS ALTO”: AS REPRESENTAÇÕES DE CODÓ E DOS POVOS DE TERREIROS EM DOCUMENTÁRIOS Jéssica Cristina Aguiar Ribeiro ................................................................................ 98 MANTENEDORES DA (DES)ORDEM: UMA VISÃO CONTRADITÓRIA DA POLÍCIA EM BELÉM (1897-1905) João Arnaldo Machado Gomes ............................................................................ 108 A “DESCOBERTA” DA VIGIA NO SÉCULO XVII: ESTUDOS E FRAGMENTOS José Renato Carneiro do Nascimento.................................................................. 118 TRÂNSITO DE ARTEFATOS E ESPÉCIES NO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI DE 1870 A 1903 Josiane Melo Agenor Sarraf Pacheco Nelson Rodrigues Sanjad .......................................................................................126 PRAÇA DO CARMO E SEU LEGADO SOCIAL, HISTÓRICO E CULTURAL PARA A CIDADE DE BELÉM DO PARÁ Lucivaldo Baia Costa ..............................................................................................140 A “INVENÇÃO” DE AJURUTEUA: DESENVOLVIMENTO VERSUS NATUREZA EM BRAGANÇA/PA (1970-1996) Marcus Vinicius Cunha Oliveira ...........................................................................152 ENTRE CÁRCERES: A CRIMINALIDADE E OS PAPÉIS DE GÊNERO Paula Dantas.............................................................................................................162 PALÁCIO ANTÔNIO LEMOS: SÍMBOLO DO PODER, LUGAR DA MEMÓRIA Rosa Arraes ..............................................................................................................170 2

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OS VENDEDORES AMBULANTES ENTRE TRABALHO, PATRÕES E A ORDEM (BELÉM: 1880-1950) Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo ........................................................176 O ENSINO SUPERIOR NO MARANHÃO E A PRESENÇA DAS MULHERES NAS DÉCADAS DE 1940/70 NOS CURSOS DE FARMÁCIA E ODONTOLOGIA Tatiane da Silva Sales ..............................................................................................188 AUGUSTO MONTENEGRO E AS ARTES APLICADAS NO PARÁ Thaïs Zumero Toscano ..........................................................................................199 A CIDADE E A GUERRA: A CAPITAL PARAENSE DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Tunai Rehm ..............................................................................................................207

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BARÃO DE MARAJÓ: UM INTENDENTE ENTRE A MONARQUIA E A REPÚBLICA Anna Carolina de Abreu Coelho1 Resumo O artigo analisa a inserção do Barão de Marajó, um político atuante desde 1855, no regime republicano. Essa reorientação política se dá em um contexto das ressignificações urbanas da republica sobre a cidade imperial. Palavras-chave: Barão de Marajó- Cidade- Memória Um novo deputado contou estatefato algumas palavras do ex-imperador Dom Pedro. Eu me lembro que em sua última viagem, ele disse sobre isso (ideias republicanas e deste gênero dentre a juventude brasileira) ao Barão de Marajó, jornalista brasileiro, que passou muito tempo na França, e que outrora defendeu a causa liberal : « se eu não fosse o imperador, eu seria republicano » Não seria curioso de saber se no momento, Dom Pedro pensa da mesma forma.2

Esta curiosa nota publicada no jornal francês Le Matin, em 1890, um ano após a proclamação da República, mostra que esse tema era uma preocupação presente no círculo de amizade do monarca brasileiro. Desde o início das viagens de D. Pedro II, em 1871, ao mesmo tempo em que se fortalecia sua imagem como “imperador-cidadão” o regime começava a dar sinais da crise, que culminou com a queda da monarquia e advento da república em 1889, fato que obrigou o imperador e sua família a seguir para o exílio na Europa. 3 Nesse contexto da crise imperial, observamos a iniciativa dos intelectuais brasileiros para apresentar uma imagem positiva do império na Exposição Universal de Paris, sendo que os amazônicos esforçavam-se ainda mais, pois além da preocupação com a imagem em âmbito internacional, se preocupavam também com a inserção nacional. A Exposição Universal de Paris (1889) foi o último suspiro da monarquia brasileira, pouco depois, alguns expositores como

Doutoranda em História PPHIST/UFPA e bolsista da FAPESPA Le Matin. Paris, 10 de out. de 1890. 3 SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 1 2

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Eduardo Prado, Santa-Anna Nery e Barão de Marajó iam ao encontro do imperador exilado em Lisboa.4 Nesse sentido, o jornal Gazeta de Notícias fez uma série de matérias para informar seus leitores sobre esse momento de transição política. Algumas reportagens falavam sobre o apoio recebido pelo imperador por seus amigos portugueses e brasileiros, entre eles Gama e Abreu, os convidados evitavam o tema do exílio, conversando com D. Pedro II sobre as viagens, os assuntos acadêmicos, as conferências, a poesia e a educação: Do repórter: Notas soltas O imperador conversa, com sobra, sobre viagens com o sr. Barão de Marajó - Não acha, barão, que o Tejo lembra a estrada de Nápoles a Constantinopla!?pergunta ele. E continuando -Visitou a Ásia Menor? - Ubi troja fuit5 - citou o imperador eruditamente -Não imperial senhor - responde o Sr. Barão Mas a conversa prolonga-se: -Gosta de ciências naturais, Barão? -Saiba vossa majestade que sou perdido pela geologia, porque se prende com todas as ciências e, sobretudo porque dá pasto á fantasia... -Isso é que é mau!- replica sorrindo o imperador Aparece o delicado poeta brasileiro, o secretário da legação nesta corte: -Adeus seu Luis, adeus- diz-lhe o Sr. D. Pedro - Então como vai a poesia? Tem feito muitos versos? O poeta agradece e responde: -Alguns, majestade. Por desfastio... - Essas horas são boas, são boas. 6 “Enquanto conversávamos tinham chegado três vapores, nos quais iam, a fim de cumprimentar o imperador, entre outras pessoas o Conde e Barão de Nioac, Barão de Aguiar de Andrade, Barão de Penedo, Barão de Marajó, Sebastião Guimarães, Dr. Menezes Vieira, Santa-Anna Nery, Conde de Barral, Luis Guimarães, pessoal da Embaixada do Brasil, Visconde de Melicio, Barão de Matosinhos, Visconde de São Joaquim, Eduardo Prado, Dr. Forbes e Paulo Portoalegre, o Cônsul brasileiro em Lisboa, que respeitosamente, se curvou perante o imperador e lhe beijou a mão. Sua Majestade recebeu a todos com cordialidade, e demorou-se conversando particularmente, primeiro com o Sr. Conde de Nioac, e depois com o Sr. Barão Aguiar de Andrade”. Gazeta de Notícias. 22 de dezembro de 1889.p.2 5 O imperador cita o poeta Virgílio, a expressão significa: onde existiu Tróia. 6 Gazeta de Notícias. 22 de dezembro de 1889. p.2. 4

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Neste documento percebemos o quão próximo do circulo monárquico estava o Barão de Marajó. Porém, a integração do Barão de Marajó a Republica não foi uma unanimidade. Dessa forma, a escolha feita pelo governador Lauro Sodré para o cargo de intendente gerou polêmica e surpresa em alguns republicanos históricos que foram preteridos. Conforme noticiou o jornal O Democrata,7 o Dr. Basílio, candidato a vaga de intendente, não suportou ser preterido pelo governador, pois pertencia ao partido republicano antes do fim da monarquia, por isso acabou pedindo exoneração do cargo que ocupava no Conselho Municipal; outro desgostoso foi o Sr. Magno de Araújo, um republicano histórico atuante desde o antigo Clube Republicano, que também pediu afastamento. 8 O próprio articulista do jornal não entendeu a escolha do governador para o cargo de intendente, pois o Barão de Marajó teria aceitado o cargo com “certa repugnância e muita insistência”, além disso, era amigo de D. Pedro II e do rei de Portugal: Não obstante tantas razões, cada qual mais valiosa, o jovem governador pô-lo a margem, nomeando para o cargo de intendente o ilustre Barão de Marajó, que outrora corria raposas magras nas caçadas com o rei de Portugal e, (ilegível) depois de 15 de novembro de 1889, tomou o incomodo de saber da saúde do velho imperador. Porque motivo foi preterido o Dr. Basílio? Não desaprovo a política manhosa, seguida pelo meu jovem amigo, contra a opinião do feroz Aristides Lobo, (...) tanto o jovem governador como o instalador José Paes entendeu que o ilustre Barão de Marajó tem mais pulso (foi a frase de que se serviu o chefe radical) do que o Dr. Basílio, para dirigir os negócios do município. É sabido que o Barão de Marajó aceitou o cargo com uma certa repugnância e só depois de muito rogado, ao passo que o Dr. Basílio não deixava de dar a entender que não levaria bem sua preterição.9

O mesmo jornal publicou uma opinião diferente, de outro articulista, que acreditava ter sido correta a decisão de Lauro Sodré, porque o Barão de Marajó era: “vinho de outra pipa. É enérgico, alto engenheiro, probo, ilustrado, rico e muito viajado”.10 Inferimos que Lauro Sodré tinha afinidades com o Barão de Marajó, que eram a crença no urbanismo e na educação como fatores essenciais para o desenvolvimento do Pará, além da semelhança na formação de ambos. O Democrata. Belém, 25 de outubro de 1890. p.1. O Democrata. Belém, 25 de outubro de 1890. p.1. 9 O Democrata. Belém, 25 de outubro de 1890.p.1. 10 O Democrata. Belém, 25 de outubro de 1890.p.1. 7 8

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Lauro Sodré foi aluno do Lyceu Paraense, onde o Barão de Marajó foi lente de Matemática. Bacharelou-se em Ciências Físicas e Matemática, pela Escola Militar, em 1883, ano em que retornou ao Pará entusiasmado pelas ideias republicanas, tendo por companheiros Paes de Carvalho e Justo Chermont.11Sodré possuía uma formação muito parecida com a do Barão de Marajó, que também foi militar, estudou Matemática e pertenceu ao partido Liberal, que agregava as opiniões mais radicais no período imperial. Como sabemos, o Barão sempre foi democrata e defendia ferozmente a descentralização, mesmo que custasse a separação da Amazônia (Pará e Amazonas) do restante do país. 12 É possível que o Barão de Marajó fosse uma referencia para Lauro Sodré, como era para Ignácio de Moura, que sempre se referia a ele em suas obras. Além do livro De Belém a São João do Araguaia, ocorre menção no Catálogo da Primeira Série de uma Galeria Histórica (organizado entre outros por Ignácio Moura) e na Exposição artística e industrial do Lyceu Benjamin Constant. Nessa ultima obra, Moura lembra-se dos esforços do Barão de Marajó e do vogal Pereira Guimarães, em embelezar a Praça Saldanha Marinho, local escolhido para a Exposição do Lyceu, que antes de 1894, possuía um aspecto “desolador e triste” devido a grama que crescia com uma “liberdade selvagem”. 13 As afinidades entre o Barão de Marajó e Lauro Sodré também estavam ligadas a educação e a cultura. De acordo com William Gaia, no primeiro mandado de Lauro Sodré ocorreram diversas ações voltadas para a educação e as artes como a criação do Lyceu de Artes e Officio Benjamin Constant, que era uma instituição voltada para o ensino profissional, com aulas noturnas para atender os trabalhadores. 14 Outra ação foi a reforma dos institutos de educação como: o Lyceu Paraense, a Escola Normal e o Instituto Paraense de Artífices. Além da criação da Sociedade Propagadora de Ensino. 15 A preocupação com a educação sempre foi presente na vida política e intelectual do Barão de Marajó. Muitas de suas ações visavam expandir a IHGP. Catálogo da Primeira série de uma galeria histórica. Belém: Imprensa Official do Pará, 1918.p.16. 12 ABREU, José Coelho da Gama. A Amazônia: as províncias do Pará e Amazonas e o governo central do Brazil. Lisboa. Typographia Minerva, 1883. 13 MOURA, Ignácio de. A Exposição artística e industrial do Lyceu Benjamin Constant. Belem: Typographia do Diário Official, 1895.p.13-14. 14 FARIAS, William Gaia. O Alvorecer da República no Pará (1886-1897). Belém: Açaí, 2008. p.59-72. 15 FARIAS, William Gaia. O Alvorecer da República no Pará (1886-1897). Belém: Açaí, 2008. p.59-72. 11

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educação pública para os menos favorecidos e incluíam o investimento na formação dos professores como uma das medidas para aprimorar os métodos de ensino: “Entre as tentativas feitas modernamente para melhorar o estado da instrução publica, uma das que melhores resultados tem dado é a criação da Escola Normal, pois que os modernos professores instruídos nesta escola muito se avantajam aos antigos”.16 As propostas para melhoria do ensino foram intensificadas no período republicano, que criou novas instituições. O Barão de Marajó participou desse processo fazendo parte da Sociedade Propagadora do Ensino, uma associação criada em novembro de 1891, que tinha o objetivo de divulgar o ensino prático e teórico, sobretudo aos trabalhadores. Além do criador e sócio benemérito Lauro Sodré, possuía cerca de 200 sócios que contribuíam mensalmente 1$000 réis. 17 A primeira diretoria da Sociedade Propagadora de Ensino foi composta por: Pereira Guimarães, Alexandre Tavares, Vicente Couto, Gentil Bittencourt, Ó de Almeida, Henrique Santa Rosa, Vasconcelos Drumond, Victor Bezerra, João Gualberto da Costa e Cunha, Leandro Campos, Visconde de São Domingos, Ignácio Nogueira, George Carlos Wiegandt, Raimundo Espindola, Antonio Marçal, Pedro Chermont, Alvares da Costa, Octaviano Paiva Júnior, Elias Vianna, José Castro Figueiredo, Egidio Leão Salles, Manoel Antonio de Castro, Raymundo Alves da Cunha, Candido Moura e o Barão de Marajó. 18 Em 1893, Lauro Sodré e Barão de Marajó participaram da Sociedade de Estudos Paraenses, esta sociedade foi fundada por Lauro Sodré e tinha como presidente o Barão de Marajó. A Sociedade de Estudos Paraenses se interessava por questões relacionadas às letras e as ciências, buscando “solução para trazer qualquer desenvolvimento a futurosa Amazônia” e publicava uma revista para divulgar o trabalho dos intelectuais do estado.19 Eram sócios: o Barão de Guajará, Dr. Tocantins, Carlos Novaes, Passos de Miranda, José Veríssimo, Lopes Netto, Santa-Anna Nery, Bertino de Miranda, entre outros.20 A Amazonia: As províncias do Pará e Amazonas e o governo central do Brazil. Lisboa: Tipografia Minerva, 1883.p. 29. 17 MOURA, Ignácio de. A Exposição artística e industrial do Lyceu Benjamin Constant. Belem: Typographia do Diário official, 1895. 18 MOURA, Ignácio de. A Exposição artística e industrial do Lyceu Benjamin Constant. Belem: Typographia do Diário official, 1895. 19 MOURA, Ignácio de. A Exposição artística e industrial do Lyceu Benjamin Constant. Belem: Typographia do Diário Official, 1895.p.44. 20 MOURA, Ignácio de. A Exposição artística e industrial do Lyceu Benjamin Constant. Belem: Typographia do Diário Official, 1895.p.44. 16

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Foi uma tendência por parte das antigas elites monarquistas a filiação ao novo regime, talvez por isso a nota do Le Matin sugeriu que o próprio D. Pedro faria o mesmo se não fosse imperador. Brito Aranha, biografo do Barão de Marajó, comentou a respeito da integração da antiga nobreza a República, mencionando, como explicação plausível, a resposta do Barão de Jaguará quando indagado sobre sua inserção no novo regime: Qualquer, porém que seja a fé monárquica e a simpatia que inspire a causa do imperador, não há a desconhecer que é impossível a restauração da monarquia. O partido que nas atuais circunstancias se organizasse com esse intuito seria um partido de visionários ou sebastianistas. Mas, com a queda da monarquia, teria desaparecido o partido conservador?Não. Podemos ser tão bons conservadores na republica como fomos na monarquia.21

Nobres, como o Barão de Jaguará, acreditavam ser impossível a continuidade da monarquia, assim, os antigos nobres tinham que se adaptar aos novos tempos. Nesse sentido, Brito Aranha escreveu sobre a integração do Barão de Marajó ao regime republicano como um cumprimento dos deveres cívicos: (...) tão relevante e tão desinteressadamente foi nesse exercício que o ex-imperador D. Pedro II o galardoou então concedendo-lhe o título de Barão de Marajó. Posto que dedicado a esse chefe de estado, que o honrava com sua amizade particular, quando o Brasil entrou em novo regime e estabeleceu a nova ordem das coisas, Gama Abreu respeitou a vontade dos seus compatrícios e não perdeu a simpatia e a consideração deles, porque o vimos entrar, com votação lisonjeira nos trabalhos legislativos da sua província e dedicar-lhes o seu valor intelectual com sincera e patriótica adesão. Não se esquecia nunca do cumprimento dos seus deveres cívicos. 22

Alguns monarquistas não tiveram a mesma sorte da inclusão no governo republicano e sofreram repreensões, como foi o caso de Santa-Anna Nery. Ele e outros jornalistas foram acusados de estarem envolvidos no atentado contra o presidente Prudente de Moraes sendo desterrados para Fernando de Noronha. Mesmo assim, o propagandista tentou se filiar ao novo regime,

ARANHA, Pedro W. de Brito. Factos e homens do meu tempo: memorias de um jornalista. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1908.p.130. 22 ARANHA, Pedro W. de Brito. Factos e homens do meu tempo: memorias de um jornalista. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1908.p.128. 21

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chegando a participar da obra coletiva O Pará em 1900 e de associações regionais como a Sociedade de Estudos Amazônicos, como vimos anteriormente. 23 Para Nicolau Sevcenko, as novas elites republicanas, em seu afã modernizador, se empenharam em apagar o passado colonial e monárquico, como se o novo regime implicasse no cancelamento desse passado ligado às mazelas herdadas do colonialismo e à escravidão. A historiografia e arte exemplificam esse processo de busca por uma imagem de renovação, uma imagem positiva, por isso, iniciou-se um trabalho de apagamento e/ou ressignificação da memória nos patrimônios públicos, nos símbolos e na historiografia. 24 Dessa forma, a historiadora Magda Ricci mencionou que a escrita da história e, por conseguinte do livro didático, tornaram-se formas de remodelar e desconstruir o passado Imperial, assim a instrução pública foi um dos mecanismos eficazes para divulgar os ideais republicanos no estado do Pará.25 O próprio Barão de Marajó foi muito atuante nessa ressignificação da cidade e, por conseguinte, de desconstrução do passado imperial. Pois, estava muito engajado, ao lado de Lauro Sodré, nos diversos projetos do governo relacionados à educação. Além disso, o Barão teve uma significativa participação na criação do Monumento à República: O projeto do artista italiano Michele Sansebastiano foi vencedor, ele idealizou uma Marianne desarmada, como a Deusa Minerva, inspirando as qualidades da paz e serenidade junto às alegorias da História e do Progresso Nacional.26 Michele Sansebastiano inspirou-se nos ideais da Terceira Republica Francesa, que buscava uma relação com a Revolução de 1789 (da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão) negando a de 1793 (de Robespierre e do Terror). O júri paraense, no entanto, exigiu que fossem inseridas as insígnias

COELHO, Anna Carolina de Abreu. Santa-Anna Nery um propagandista “voluntário” da Amazônia (1883-1901), Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UFPA, Belém, 2007. 24 SEVCENKO, Nicolau. História da Vida Privada no Brasil; 3ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 25 RICCI, Magda. Os primeiros livros didáticos republicanos de História do Pará: o patriotismo e a construção da memória. In: HENRIQUE, Márcio Couto. Diálogos entre História e Educação. Belém: Açaí, 2014.p.17. 26 O concurso internacional para escolha do projeto artístico do Monumento a Republica foi lançado em 1891, quando o Barão de Marajó ocupava o cargo de Intendente. Ver: COELHO, Geraldo Mártires. O violino de Ingres. Leituras de História Cultural. Belém: Paka-Tatu, 2005.p.133. 23

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do barrete frígio e do gládio ligadas à representação da liberdade, ausentes no projeto original. 27 Segundo Tarcísio Moraes, a historiografia paraense no início do século XX estava a cargo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, entre os intelectuais mais atuantes estavam os engenheiros Henrique Santa Rosa, João de Palma Muniz e Ignácio Moura.28 Sendo essa instituição uma das mais atuantes para escolher ao que seriam lembrados ou esquecidos pela república. Nesse sentido, o Instituto Histórico e Geográfico do Pará, em 1818, organizou uma Galeria Histórica bastante eclética que incluía: sacerdotes (como Padre Antonio Vieira, Frei Caetano Brandão e Padre Prudêncio), Cientistas (como Ferreira Penna, José Veríssimo, Francisco da Silva Castro e Julio César Ribeiro de Souza), políticos (como Lauro Sodré e D. Pedro II), artistas (Carlos Gomes, Domenico d’ Angelis e Maurice Blaise), escritores (Juvenal Tavares e João de Deus do Rego), João Gonçalves Batista de Moura (pai de Ignácio Moura um dos organizadores) entre outras personalidades. Foi organizada também uma mostra de pintura e desenho com representações artísticas de cada um dos biografados.29 Para Aldrin Figueiredo, havia uma autoridade compartilhada entre a história e a pintura de entronizar como “santo” a imagem do herói da pátria. Figuravam na Galeria Histórica, vários monarquistas e entre eles o próprio ex-imperador D. Pedro II, a “nobreza da terra” foi vista na Galeria Histórica (1918) sob o perdão republicano. 30 Um exemplo dessa abordagem foi o Barão de Guajará, Antonio Domingos Raiol, político e historiador (autor da importante obra

COELHO, Geraldo Mártires. O violino de Ingres. Leituras de História Cultural. Belém: Paka-Tatu, 2005.p.130-137. 28 MORAES, Tarcisio Cardoso. A engenharia da história: natureza, modernidade e historiografia na Amazônia. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Belém, 2009. 29 A comissão organizadora da Galeria Histórica era formada por Ignácio Moura, M. Braga Ribeiro, A. Lassance Souza, A. Firmino Cardoso, Theodoro Braga e Adalberto Lassance Cunha. Ver: IHGP. Catálogo da Primeira série de uma galeria histórica. Belém: Imprensa Official do Pará, 1918. 30 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Eternos Modernos: uma historia social da arte e da literatura na Amazônia (1908-1929), Tese de Doutorado – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2001.p.149-150. 27

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Motins Políticos), que foi descrito por seu biografo como um antigo monarquista, que mesmo se retirando da vida pública não se opôs ao regime republicano. 31 Outro a ser lembrado foi o Barão de Marajó. Na biografia de Jayme Abreu o destaque do texto foi a atuação política, o que difere das primeiras biografias, analisadas no primeiro capítulo, que ressaltaram a atuação intelectual.32 O biografo enfocou a atuação política do Barão de Marajó durante o período republicano (como intendente, parlamentar e representante da comissão brasileira na Exposição Universal de Chicago) e sua atividade política durante o período imperial foi considerada audaciosa e à frente de seu tempo: Voltou então ao Pará, iniciando sua vida pública, pelo exercício do cargo de diretor da Repartição de Obras Públicas, empreendendo obras de vulto, entre as quais o Teatro da Paz. Filiado ao partido Liberal, fez parte da Assembleia Provincial, e em 1868 fez assento na Câmara dos Deputados. Com superior critério e aprovada honradez presidiu em épocas distintas as então províncias do Amazonas e do Pará. (...) Proclamada a Republica, arregimentou-se na legião do partido Republicano, sendo eleito intendente de Belém, cargo que exerceu até 1893, deixando de sua passagem no governo da Comuna, impagáveis traços de seu patriotismo e de seu alto tino administrativo. Depois, seguiu para os Estados Unidos da América do Norte como membro da grande comissão que representou o Brasil na Exposição de Chicago. O partido Republicano paraense, tendo em conta os serviços prestados ao Pará, o elegeu em duas legislaturas sucessivas senador estadual, ocupando o cargo de Vicepresidente do Senado. 33

Porém, Jayme Abreu não se esqueceu de mencionar a formação acadêmica e a produção intelectual do Barão de Marajó, sua formação em Filosofia e Matemática, o trabalho como lente do Lyceu Paraense e sua associação à Sociedade de Geografia de Lisboa. Jayme Abreu é o único a mencionar as comendas recebidas pelo biografado: da Ordem de Cristo (pelo Brasil) e Vila Viçosa, (por Portugal). É o único também o único dos biógrafos que divulgou a data de falecimento do Barão de Marajó, em 25 de novembro de 1906, na FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Eternos Modernos: uma historia social da arte e da literatura na Amazônia (1908-1929), Tese de Doutorado – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2001.p.149-150. 32 IHGP. Catálogo da Primeira série de uma galeria histórica. Belém: Imprensa Official do Pará, 1918.p.64-65. 33 IHGP. Catálogo da Primeira série de uma galeria histórica. Belém: Imprensa Official do Pará, 1918.p.64-65. 31

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cidade de Lisboa onde se encontrava para tratamento de saúde (a biografia escrita por Jayme Abreu foi publicada em 1918, as outras são mais antigas). 34 Fazia parte da Galeria Histórica uma série de pinturas representando os biografados. No caso do Barão de Marajó, seu retrato oficial foi pintado pelo artista francês Maurice Blaise. Blaise veio para Belém nos fins do século XIX e foi professor da Escola Normal, seus mais importantes trabalhos foram: o Brasão de Armas do Município de Belém e o Monumento aos Intendentes (inaugurado em 1906 no Bosque Municipal). 35 O próprio Blaise fez parte da Galeria Histórica, sendo lembrado como um artista jovem, talentosíssimo e modesto cujo nome figurava no Catálogo dos expositores do Salon em Paris: Maurice Blaise tem seu nome no Catálogo dos expositores do Salon em Paris, o que já é uma honra, porque de 6000 quadros na média apresentados anualmente para figurarem no Salon, apenas são escolhidos em número rigoroso de 2400.36

Além do desenho de Rafael Bordallo e da pintura de Maurice Blaise, o Barão de Marajó foi representado em um desenho, como uma homenagem do pintor e desenhista Rodolfo Bernardelli (1852-1931). Bernardelli nasceu em Guadalajara, no México, deixou seu país natal em 1866, passando pelo Chile e Argentina e fixando moradia no Rio Grande do Sul; depois se mudou para o Rio de Janeiro, onde frequentou, entre 1870 e 1876, aulas de escultura e de desenho de modelo vivo na Academia Imperial de Belas Artes. 37 Ele viveu alguns anos na Europa, estudando em Roma, retornou ao Brasil onde se tornou professor de escultura estatuária na Academia Imperial de Belas Artes, sendo também diretor da recém-criada Escola Nacional de Belas Artes. Deixou uma extensa produção, entre obras tumulares, monumentos comemorativos e bustos de personalidades. Entre suas obras mais relevantes executou as estátuas que ornamentam o prédio do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o Monumento a Carlos Gomes em Campinas, uma estátua de Dom Pedro I para o Museu Paulista da Universidade de São Paulo na cidade de São IHGP. Catálogo da Primeira série de uma galeria histórica. Belém: Imprensa Official do Pará, 1918.p.64-65. 35 IHGP. Catálogo da Primeira série de uma galeria histórica. Belém: Imprensa Official do Pará, 1918.p.65. 36 IHGP. Catálogo da Primeira série de uma galeria histórica. Belém: Imprensa Official do Pará, 1918.p.100. 37 VACCANI, Celita. Rodolpho Bernardelli - Vida artística e características de sua obra escultórica. Rio de Janeiro: s. edit., 1949. 34

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Paulo e uma estátua de Pedro Álvares Cabral, além do túmulo de Campos Salles, no cemitério da consolação. 38 Bernardelli dedicou-se a arte dedicada à memória dos grandes vultos históricos ligados a formação nacional como D. Pedro I, Carlos Gomes, Pedro Alvares Cabral e Campos Salles. As esculturas fúnebres também atestam esse gosto do artista pela conservação memorial. O desenho feito por Bernardelli do Barão de Marajó mostra o respeito por sua atuação política e intelectual, buscando conservar sua memória através da arte. Permaneceram muitas das lembranças da monarquia, como vimos na Galeria Histórica do IHGP e nos memoriais a D Pedro I (de Bernardelli), houve também um apagamento dessa memória. Exemplos dessa situação foram a mudanças nos nomes das ruas e as transformações sofridas por três grandes prédios que foram idealizados no período imperial e acabaram sendo resignificados pelos governos republicanos: o Paço Municipal, o bosque Municipal e o Teatro da Paz. Lembramos que Jaques Le Goff afirmava que a memória coletiva é mais do que uma conquista é um dos principais objetos de poder. 39 Nessa transição da monarquia para a república o Barão de Marajó conseguiu figurar na memória política como um dos vultos da historiografia republicana, mas com o apagamento da memória da cidade imperial sua atuação política neste período acabou sendo pouco lembrada.

VACCANI, Celita. Rodolpho Bernardelli - Vida artística e características de sua obra escultórica. Rio de Janeiro: s. edit., 1949. 39 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. UNICAMP, 1992, p.476. 38

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“ALUGA-SE”: O COMÉRCIO SEXUAL NA IMPRENSA MANAUARA NA DÉCADA DE 90 Bárbara Rebeka Gomes de Lira1 Resumo A presente comunicação tem como objetivo analisar as representações da prática do comércio sexual na cidade de Manaus, no final XX (1990-1998). Trata-se inicialmente de uma proposta de pesquisa, mas que inicia certas críticas e análises. Assim sendo, o texto consiste em analisar as representações do comércio sexual na imprensa, a fim de compreendermos os modos de retratação de tais trabalhadoras nos jornais, bem como as resistências e os conflitos vivenciados no cotidiano das profissionais do sexo do tempo presente. Nesta lógica de análise percebemos que a prostituição tem sido alvo de preconceitos, estereótipos e discriminações por diversos setores da sociedade e ao longo dos tempos diversas imagens foram construídas sobre essas mulheres, seus espaços e suas práticas, mas pouca visibilidade tem sido dada às lutas sociais dessas mulheres, suas reivindicações e lutas por melhores condições de vida e de trabalho. Em conformidade com esta proposta de investigação observamos as imagens construídas da prostituição e de prostitutas pelo jornal “A Crítica” e também os vestígios de movimento social de profissionais do sexo no período. Palavras chaves: Prostituição, Manaus, Imprensa, Comércio sexual, Trabalho. Apresentação O presente artigo surgiu a partir de uma conclusão de trabalho de Mestrado2, ali foram tratadas questões sobre a prostituição, tal trabalho se referia ao recorte temporal do final do século XIX até a primeira metade do XX, período este marcado pelas transformações urbanas, sociais, políticas e econômicas decorrentes do boom da borracha na cidade de Manaus. Apesar disto, as reflexões contidas no presente texto nasceram em conjunto com o Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas. E-mail: [email protected] 2 LIRA, Bárbara Rebeka Gomes de. A Difícil Vida Fácil: O mundo da prostituição e suas representações na cidade de Manaus. (1890-1925). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História Social. Manaus, AM. 2014. 1

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amadurecimento da pesquisa a partir das seguintes inquietações: E o que aconteceu as profissionais do sexo do final do século XX? Quais os desafios enfrentados por essas trabalhadoras? Quais mudanças foram conquistadas para as profissionais do sexo? Quais as contradições encontradas nesse ramo? Tais inquietações surgem ao observar as interferências médico-policiais na vida das prostitutas do início do século XX, e, em consequência disto, perguntei-me sobre o que aconteceu com essas mulheres em dias mais atuais. Após a pesquisa de mestrado, passei a observar e questionar sobre o cotidiano da prostituição no tempo presente, interessando-me primeiramente pelas representações construídas das trabalhadoras do sexo pela imprensa, pelas formas de divulgação do sexo pago em jornais e pela organização vivenciada por essas profissionais em busca de melhores condições de trabalho, por respeito e direitos trabalhistas. O tema “prostituição” carrega consigo uma série de contradições que se iniciam desde os nomes atribuídos às profissionais do sexo como pessoas de “vida fácil”, até as generalizações que diz ser “a profissão mais antiga do mundo”. Onde está a garantia de que a prostituição permite uma “vida fácil”? Partindo do pressuposto que em qualquer outra ocupação existem dificuldades e desafios, posso imaginar que com a prostituição não seja diferente. A década de 1990 representa um ano importante para as profissionais do sexo no Brasil, em anos anteriores, mais especificamente em 1987, na cidade do Rio de Janeiro, foi realizado o primeiro Encontro Nacional de Prostitutas, tendo como tema principal: a violência policial. O evento contou com a presença de mulheres de 11 estados brasileiros, dando início à Rede Nacional de Prostitutas.3 Dois anos depois, em 1989, foi realizado o segundo Encontro Nacional de Prostitutas, entre os debates, entraram em pauta: as fantasias sexuais, foram discutidas questões como, as formas de prevenção da propagação do vírus HIV/Aids. Nesse mesmo ano foram lançados manuais sobre a prevenção da doença direcionados para profissionais do sexo, travestis e michês. Fator que marcou a primeira parceria da Rede Brasileira de Prostitutas com o Programa Nacional de DST/Aids, do Ministério da Saúde. Já na década de 1990 a prostituição passou a ser debatido como tema de estudos, reportagens e discussões, tais debates, focados nas denúncias do tráfico de pessoas (crianças e mulheres). Para Marlene de Fáveri4, o destaque para o LEITE, Gabriela. Filha, mãe, avó e puta: A história de uma mulher que decidiu ser prostituta. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009, p. 190. 4 FÁVERI, Marlene de. As piriguetes de Floripa – práticas contemporâneas de propagandas de sexo pago. In: Fáveri, Marlene de; Silva, Janine Gomes & Pedro, Joana Maria. Prostituição em áreas urbanas: histórias do Tempo Presente. Florianópolis: Editora UDESC, 2010, p. 20. 3

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tema deu a visibilidade para as problemáticas da prostituição infanto-juvenil e do tráfico voltado para a exploração sexual, este passou a ser um tema associado à propagação da aids. Posteriormente a este recorte, a prostituição passa a ser tema de debates, noticiários, seriados, novelas e livros, com isto, as profissionais saíram da escuridão do anonimato e mostraram seus rostos à luz do dia, para revelarem que por trás dos estigmas existem mulheres, mães, filhas, e elas, assim como nós, constroem estratégias para própria sobrevivência. A cidade de Manaus e o comércio do sexo Na cidade de Manaus, o final do século XX representa um momento de um forte fluxo de pessoas na cidade, e estas, buscavam emprego no pólo industrial, contudo, apesar da grande quantidade de emprego, muitas destas pessoas não possuíam formação para o trabalho industrial e passavam a compor o número de desempregados na cidade.5 Neste período, mais exatamente a partir do ano de 1970, a cidade de Manaus, principalmente o centro, passou por transformações em decorrência da nova situação econômica da cidade proporcionada pela Zona Franca, dentre tais mudanças podemos destacar a ampliação da área central da cidade, que perdurou entre os anos de 1970 e 1980 e em decorrência disto constata-se que a dinâmica comercial da cidade foi duplamente organizada, sendo que uma, atenderia os ricos e a classe média, correspondendo aos shoppings e outras lojas. A outra, atenderia o restante da população, correspondendo a área central, ao porto e feiras situadas pelas ruas do centro da cidade.6 O jornal utilizado como fonte de investigação foi o “A Crítica”7, que vem a ser um jornal de grande circulação na cidade. No início da década de 1990, as notícias no jornal giravam em torno das novidades a respeito da Zona Franca, nota-se também que a década foi marcada pelo crescimento do empobrecimento e consequentemente, o crescimento da marginalidade e o aumento da violência na cidade, incluindo, violência sexual contra mulheres, SILVA, Patrícia Rodrigues. Disputando espaços, construindo sentidos: vivências, trabalhos e embates na área da Manaus Moderna. Manaus-AM 1967-2010. Tese de Doutorado. Universidade Pontifícia Católica de São Paulo. São Paulo, 2011, pp. 120-121. 6 FILHO, Vitor Ribeiro. A dinâmica recente da área central de Manaus. In: Oliveira, José Aldemir. (Org.). Cidades Brasileiras: Territorialidades, sustentabilidade e demandas sociais. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2009, v. I, pp. 61-62. 7 O jornal “A Crítica” passou a ter suas publicações periódicas no ano de 1949, foi fundado por Umberto Calderaro e hoje é um grupo de emissoras que contém 12 empresas, conhecida como a Rede Calderaro de Comunicação. 5

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assassinatos, roubos e alto consumo de drogas. É importante lembrar que não tomamos a imprensa como um reflexo de realidades passadas, mas sim como uma prática integrante da realidade social, que constroem pensamentos, ações, determinam papéis sociais e compartilham ideias e representações definidas por seus interesses (políticos, sociais e culturais). Afinal a imprensa demarca espaços, temas, conceitos, opiniões e generalizações. E sem esquecer dos anúncios publicitários, isto é, as partes selecionadas aos anunciantes e divulgação de serviços podem mostrar certos interesses comerciais e empresariais daquele contexto. 8 Na edição de janeiro de 1990, o jornal publicou uma nota sobre um crime ocorrido numa casa de prostituição chamada “sexo dos anjos” no município de Borba, tratava-se de um homem que havia sido assassinado por uma mulher que desejava voltar para a prostituição. O homem se chamava Gilson e a mulher Yara. Os dois eram companheiros e haviam se conhecido em uma casa de prostituição, ofício do qual exercia a mulher. Após meses a lado de Gilson, Yara desejava voltar à trabalhar na noite, não obtendo a aceitação do companheiro. Durante uma das viagens de Gilson, Yara o abandonou e seguiu com a sua escolha de trabalhar no comércio sexual. Segundo a nota do jornal “[...] toda a felicidade de Gilson acabou depois que Yara o abandonou. Ela teria deixado um bilhete ao amante, rompendo a união. Não negara que queria viver livre e independente. E pedia para que ele não a procurasse.”9 Observa-se que o jornal trata do homem como um “pobre” apaixonado que buscava dar um destino melhor para sua mulher, para Yara, por sua vez, foi reservado o papel de vilã, que não levou em consideração todo amor que tinha do dito homem e que preferiria viver na prostituição do que ter uma vida no lar. Gilson certamente não esperava pela reação de Yara por quem era loucamente apaixonado. Desejava ardentemente reconquistá-la e tirá-la da prostituição. Uma ironia do destino, pois Gilson conheceu Yara num cabaré, fez dela a sua mulher. Mas meses depois, não suportando viver dentro de uma casa, Yara voltou à prostituição, deixando o amante muito amargurado. 10

CRUZ, Heloisa de Faria e PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: conversas sobre História e Imprensa. In: Projeto História: revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. N.0. São Paulo: EDUC, 1981, pp. 258-262. 9 A Crítica, 28 de janeiro de 1990. Nota: Matou o amante para viver na prostituição. Disponível: Acervo da Biblioteca Pública do Estado do Amazonas. 10 Idem. 8

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Fica evidente na nota que a escolha de trabalhar com a prostituição foi da própria Yara, não foi o destino que ali a colocou, e sim uma mulher que decidiu e escolheu os caminhos que tomaria na sua vida. O jornal por sua vez, reconhece apenas a mulher como insensível e irônica. O desfecho de tudo ocorreu à noite de sábado retrasado, quando Gilson alcoolizado, implorou para que Yara voltasse para casa. Jurava que não podia viver sem ela. Fez enfim, um dramalhão. Nada a sensibilizou. Muito pelo contrário, a mulher o tratou com desdém e ironia, deixando o homem enfurecido, ao ponto dele tentar retirá-la à força do salão, Yara reagiu, aplicando-lhe duas facadas, sendo presa em flagrante.11

Margareth Rago12 constatou que a prostituição se tornou um tema de preocupação entre médicos, juristas, criminologistas e jornalistas desde meados do século XIX, em meio às transformações urbanas e industriais que ocorriam na cidade. Essa preocupação era voltada para a moralidade pública que objetivava a padronização e controle do comportamento da mulher. As representações sobre a imagem da prostituta eram produzidas em duas vertentes, uma na prostituta “vítima” de suas condições econômicas e da “femme fatale”, que era associada à figura da “cortesã”, ou seja, a mulher vilã, como o descrito na nota acima, pode-se observar claramente que a imagem de vilã foi atribuída à Yara, não só pelo fato de ter assassinado seu ex-companheiro, mas também pela sua escolha de continuar a trabalhar no comércio sexual. Segundo a socióloga Elisiane Pasini: “A prostituição deve ser considerada como um trabalho qualquer pois, afinal, mantém a lógica capitalista, sim, a prostituição é uma transação comercial. Com isto, esse grupo critica tanto os escritos como o senso comum, que tratou a prostituta como vítima e/ou marginal social”13, como foi referida a mulher pelo jornal citado. Posteriormente, já na edição de 16 de fevereiro de 1990 notamos a publicação de uma nota que falava sobre a falta de segurança nos portos da cidade, “O ataque constante dos “barrigas-d’água”, roubando não só as embarcações, como também os passageiros”. A nota ainda falava dos demais assaltos que ocorriam na escadaria dos Remédios, e chamava atenção para a prática do exploração de menores, segundo o jornal: Idem. Rago, Margareth. Os prazeres da noite. Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). São Paulo: Paz e Terra, 2008, pp. 21-41. 13 PASINI, Elisiane. Prostituição e a liberdade do corpo. CLAM – AMB – 15.04.05. Disponível em: http://www.clam.org.br/pdf/Elisiane.pdf, p. 3. 11 12

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A prostituição é também explorada por garotas de 14 anos em diante, que fogem de casa, para tentar ganhar a vida vendendo o corpo. A concorrência é grande e muitas vezes as brigas acontecem e uma mata a colega para não perder o parceiro. 14

Neste momento, faz-se necessário esclarecer que prostituição e lenocínio são práticas distintas. Lenocínio trata da prática de facilitar, promover e/ou induzir a exploração sexual de pessoas, bem como agenciar e manter casa de prostituição. O lenocínio é apontado no Código Penal brasileiro, assim o tráfico de mulheres. Portanto, induzir, facilitar, tirar proveito, agenciar ou manter casa de prostituição estão previstos nos artigos 227 à 232. A prostituição, por sua vez, é uma profissão que promove o sustento de homens e mulheres e pode ser escolhida por qualquer adulto tido como capaz, não sendo ilegal no Brasil. É importante enfatizar também que apesar do Código Penal brasileiro ter sua redação datada em 1940, o Capítulo V intitulado “Do lenocínio e do tráfico de mulheres” teve sua primeira redação datada no ano de 2005 e posteriormente foi revogada em 2009 pela lei número 12.015, de 7 de agosto de 2009. Segundo o preâmbulo da lei: Altera o título VI da parte Especial do Decreto Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1949 – Código Penal, e o art. 1º da Lei nº. 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal e revoga a Lei nº. 2.252, de 1º de julho de 1954, que trata de corrupção de menores.15

Fica claro, que a legislação brasileira na década de 1990 tratou de questões como a exploração de menores e o tráfico de mulheres de forma não aprofundada, sendo exposta apenas na Lei nº. 8.072, de 25 de julho de 1990, que considera crime hediondo, isto é, de extrema gravidade, “VIII favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável”16. Contudo, os debates sobre questões

A Crítica, 16 de fevereiro de 1990. Nota: Falta de segurança nos portos atrai marginais. Disponível: Acervo da Biblioteca Pública do Estado do Amazonas. 15 Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12015.htm#art2. Acesso em: 15 de abril de 2015. Para ver Código Penal brasileiro: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm 16 Lei nº. 8.072, de 25 de julho de 1990. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8072compilada.htm. Dispõe sobre os 14

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de reconhecimento da profissão ganharam forças na década de 1990 e representa certo avanço para as profissionais do sexo no Brasil, principalmente no que diz respeito a debates e eventos organizados por profissionais da área. O livro da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), trata do reconhecimento de determinada ocupação/profissão, não estabelecendo relações de emprego, seria mais um registro da existência de determinadas profissões. A primeira versão foi apresentada em 1982 e desde lá passa por atualizações. Aproximadamente nos anos 200017 iniciaram-se os debates e decisões a respeito das alterações na nova versão da CBO, sob a coordenação do Ministério do Trabalho e Emprego, dessa vez incluindo outros setores da sociedade que atuavam a favor das lutas dos diretos de profissionais do sexo, após isto, dois anos depois, surge a inclusão da categoria n. 5198 – 05 – Profissionais do sexo.18 No ano de 1987, na cidade do Rio de Janeiro, foi realizado o primeiro Encontro Nacional de Prostitutas, e teve como tema a “violência policial” e contou com a participação de mulheres de onze estados brasileiros, este evento marcou o início da Rede Nacional de Prostitutas. Dois anos depois, em 1989, foi realizado o segundo Encontro Nacional de Prostitutas, entre os debates, entraram em pauta: as fantasias sexuais, foram discutidas questões como, as formas de prevenção da propagação do vírus HIV/Aids. Nesse mesmo ano foram lançados manuais sobre a prevenção da doença direcionados para profissionais do sexo, travestis e michês. Fator que marcou a primeira parceria

crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. 17 RODRIGUES, Marlene Teixeira. A prostituição no Brasil contemporâneo: Um trabalho como outro qualquer? In: Revista Katálysis. Florianópolis: Vol. 12. N.1. p. 68-76/jan./jun. 2009, p. 70. 18 Item IV – Competências: 1 – Demostrar capacidade de persuasão; 2- Demostrar capacidade de expressão gestual; 3 - Demostrar capacidade de realizar fantasias eróticas; 4 – agir com honestidade; 5 – Demonstrar paciência; 6 – Planejar o futuro; 7 – Prestar solidariedade aos companheiros; 8 – Ouvir atentamente (saber ouvir); 9 - Demostrar capacidade lúdica; 10 – Respeitar o silêncio do cliente; 11 - Demostrar capacidade de comunicação em língua estrangeira; 12- Demonstrar ética profissional; 13 – Manter sigilo profissional; 14 – Respeitar código de não cortejar companheiro de colegas de trabalho; 15 – Proporcionar prazer; 16 – Cuidar da higiene pessoal; 17 – Conquistar o cliente. Disponível em: www.mtecbo.gov.br/.

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da Rede Brasileira de Prostitutas com o Programa Nacional de DST/Aids, do Ministério da Saúde.19 A década de 1990 também representa um período de crescimento das redes de organização de profissionais do sexo pelo Brasil, nesse ano, foram realizados outros encontros estaduais e regionais, também foram lançadas campanhas de prevenção às DST’s, e novas associações de prostitutas foram criadas em vários estados brasileiros, entre eles, o Rio Grande do Sul, Paraná, Sergipe, Ceará, Pará e Rio de Janeiro.20 Na edição de 20 de fevereiro de 1990, jornal “A Crítica” publicou uma nota sobre a formação de uma associação de prostitutas na cidade de Governador Valadares no estado de Minas Gerais. “Batizada como Associação das Damas da Noite, a entidade pretende reunir as prostitutas da região e já tem assembleia marcada para homologar o nome da presidente eleita, Adelaide Santos.”21 De acordo com o relato da presidente da associação, o principal objetivo da entidade será a orientação das filiadas em relação aos perigos das doenças sexualmente transmissíveis, sendo a Aids uma das grandes preocupações da década de 90. Segundo a presidente, o principal objetivo da entidade será a educação de suas filiadas sobre os perigos das doenças sexuais e, sobretudo, sobre a prevenção à Aids, que elas só conhecem através das campanhas na TV recomendando o uso de camisinhas. - A maioria de nós não sabe como se pega a Aids e seus sintomas enquanto as mulheres adquirem novos direitos, as chamadas, nas de vida fácil, também queremos os nossos sem discriminação – disse Adelaide Santos. 22

A cidade de Manaus, por sua vez, teve a fundação de uma associação em 16 de março de 2008, o grupo foi denominado “As Amazonas – Associação das prostitutas e ex-prostitutas do Amazonas”, que entre outras coisas, trabalham por reconhecimento, direitos e também o trabalho de prevenção e conscientização para os cuidados com a saúde. Neste último quesito, notamos outro ponto importante: a necessidade de devemos lembrar que o direito à saúde deveria ser um direito de todos, inclusive à saúde das mulheres, e com isto, não podemos fechar os olhos para os preconceitos que mulheres prostitutas passam, inclusive em clínicas e hospitais. Gabriela Leite, em uma entrevista falava sobre a falta de recursos para a rede de organização das LEITE, Gabriela. Filha, mãe, avó e puta: A história de uma mulher que decidiu ser prostituta. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009, pp. 146-147. 20 Informações disponíveis no site: www.redeprostitutas.org.br. 21 A Crítica, 20 de fevereiro de 1990. Nota: Damas da noite terão associação. Disponível: Acervo Biblioteca Pública do Estado do Amazonas. 22 Idem. 19

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profissionais do sexo, sendo o único financiamento do Ministério da saúde para a Aids: Não queremos mais o financiamento do Ministério da Saúde para a Aids. Por que o único financiamento que sempre nos deram foi para a Aids e nós não queremos isso, por que prostituta é mulher e não tem doença só da cintura pra baixo, saúde da mulher é saúde da mulher. Não queremos, não participamos mais de nenhuma...é uma decisão política...de nenhum edital do Ministério da Saúde, não queremos isso, enquanto a questão for só Aids. O dia que se pensar na mulher como mulher nós voltamos a conversar.23

Gabriela Leite falava sobre a necessidade de ampliar visões a respeito das questões da saúde, e na medida em que o próprio Estado restringe o apoio para as questões da Aids, ele (o Estado) segrega e legitima a velha imagem construída de que as prostitutas só adoecem de doenças venéreas. Como foi observado em meu trabalho anterior sobre prostituição no final do século XIX e início do XX, o discurso médico na tentativa de elaborar um saber sobre a prostituição construiu um discurso que apenas associava a prática às doenças venéreas e endossava a falha de caráter e imoralidade dessas mulheres. 24 De certa forma, conseguimos observar a permanência de um discurso de “associação” da prostituição às doenças venéreas, o que no início do século XX figurava-se na imagem da “sífilis”, no final do mesmo século será a Aids. Conclusão Segundo a socióloga Elisiane Pasini: “A prostituição deve ser considerada como um trabalho qualquer pois, afinal, mantém a lógica capitalista, sim, a prostituição é uma transação comercial. Com isto, esse grupo (de feministas liberais ou contratualistas) critica tanto os escritos como o senso comum, que tratou a prostituta como vítima e/ou marginal social”.25 Destaco a compreensão da prostituição como um trabalho - o fruto de escolhas de sujeitos que não são apenas “vítimas da vida”- como sempre costumamos ver suas representações em jornais e documentos oficiais.

Entrevista com Gabriela Leite feita em 2013, para as cenas extras do documentário “Um Beijo para Gabriela”. Disponível em www.umbeijoparagabriela.com e www.youtube.com/watch?v=sISSYTGViJc 24 LIRA, Bárbara Rebeka Gomes de. A Difícil Vida Fácil: O mundo da prostituição e suas representações na cidade de Manaus. (1890-1925). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História Social. Manaus, AM. 2014. 25 PASINI, Elisiane. Op. Cit., p. 3. 23

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Precisamos ampliar nossas visões para conseguirmos enxergar esses sujeitos como “ativos” e escritores de suas próprias histórias. Gabriela Leita falou sobre esta questão de escolha: “O mundo não é feito de vítimas. Todo mundo negocia. Alguns negociam bem, outros mal. Mas cada um sabe, o mínimo que seja, quanto vale aquilo que quer. E sabe até onde vai para conseguir o que quer. Com a prostituta não é diferente”.26 Através destas duas citações, chamo a atenção para a necessidade de mais pesquisas nesse campo. A lacuna na historiografia local sobre o comércio sexual manauara ainda é evidente, ainda mais no que se trata de uma nova abordagem em relação as profissionais do sexo. Notamos, a partir de como foi tratado neste trabalho que as mulheres prostitutas ainda são tratadas como um “mal” necessário ou vítimas, seja na imprensa, na mídia e até em trabalhos acadêmicos. Deste modo, uma das propostas deste texto é convidar o leitor à reflexão. Refletir que as profissionais do sexo são mulheres trabalhadoras e não vítimas, e que, assim como qualquer outro trabalhador, elaboram estratégias de sobrevivência, sociabilidades e resistência, nos fazendo perceber que não podemos esquecer que muitas mulheres e homens trabalham no comércio sexual sem direitos e garantias, mas continuam lutando a cada dia através de entidades e associações.

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LEITE, Gabriela. Op. Cit., p. 190. 24

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“PARALLELO DAS UTILIDADES DA NOVA MACHINA DA NAVEGAÇÃO”: A MÁQUINA RELÓGIO DE JOÃO FRANCISCO MADUREIRA PARÁ NO RIO DE JANEIRO E A NAVEGAÇÃO DOS RIOS DA AMAZÔNIA NO SÉCULO XIX (1825 – 1834) Bruno Carlos Oliveira Neves1 Resumo No delicado momento político de consolidação do Império do Brasil após a outorga da constituição de 1824, e em meio aos dois projetos no Primeiro Reinado, um subordinado à Inglaterra, e outro de maior autonomia em relação aos ingleses, o inventor paraense João Francisco Madureira Pará chega de Lisboa, em 1825, disposto a colocar em prática o seu maior invento; A Máquina–relógio e revolucionar a navegação dos rios brasileiros. A abordagem feita pela historiografia clássica no que tange ao Primeiro Reinado o caracteriza como apenas um período de transição entre a proclamação da independência e o dia 07 de abril de 1831, dia da verdadeira libertação do país, com a derrota de d. Pedro I frente aos princípios liberais, o que consolida a autonomia brasileira2. Desta forma, os fatos políticos que levaram a abdicação são apresentados com uma fraca conexão, na antiga visão de causa e efeito. Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira3. Deixou-se de ver este período como o momento em que o “edifício legal e político do império foi montado, quando as instituições se reergueram sob novos prismas, e novos marcos temporais foram inventados”. Exemplo disso é a outorga da Constituição de 1824, que colocou os poderes políticos criados a partir da independência em tensão permanente, pois isto envolvia a “disputa pela soberania e pela representação da nação”4, colocando em lados opostos aqueles que entendiam que a soberania estava nas mãos dos deputados, como representantes do povo PPHIST/Universidade Federal do Pará. PRADO JUNIOR, Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos, 11ª Ed., São Paulo, Brasiliense, 1979, p.44. 3 RIBEIRO, Gladys Sabina, e PEREIRA, Vantuil, O Primeiro Reinado em revisão, In. O Brasil Imperial, volume I: 1808-1831/Organização Keila Grinberg e Ricardo Salles. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 4 Idem. 1 2

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e aqueles que viam o Imperador, aclamado pelo povo como o primeiro representante da nação. Isso tudo, dizia respeito ao equilíbrio dos poderes, do quanto eles tinham de autonomia e quando eles poderiam intervir nas decisões um do outro. Ainda segundo Ribeiro e Pereira, chama atenção o fato de que esta noção de soberania se aplicava igualmente a outros aspectos da política imperial, como o econômico, as relações internacionais e aos tratados. Neste sentido, temos dois projetos no Primeiro Reinado, um subordinado à Inglaterra, e outro que buscava uma maior autonomia em relação aos ingleses5. Por fim, mas não menos importante, temos uma relação entre a política e o cotidiano, pois a população estava longe do perfil de “massa de manobra” como muitas vezes foi chamada, não estando a reboque das camadas dirigentes6. O povo foi ator político fundamental no cenário do Primeiro Reinado, seja por meio de revoltas e burburinhos nas ruas, ou usando os mecanismos formais, tais como as representações, queixas e petições. Em meio ao complicado cenário político do Primeiro Reinado, encontramos o inventor paraense João Francisco de Madureira Pará, o criador da primeira tipografia na província do Grão-Pará em 1821 desembarcou na cidade do Rio de Janeiro em 1825, retornando de Portugal, para onde tinha viajado no final de 1821 com o intuito de se especializar na operação e funcionamento de sua tipografia. Madureira Pará, depois de morar quatro anos em Lisboa, retornou ao Brasil com novas ideias e um novo, e grandioso invento; uma nova máquina para a navegação que pudesse fazer os barcos navegarem sem o auxilio de vento, da força do homem ou do vapor. Decidido a interromper seus trabalhos como tipografo, talvez pelo fato de ter tido conhecimento da implantação da tipografia de Fillipe Patroni, Madureira Pará, quando chegou a Lisboa em 1821, foi apresentado ao Rei d. João VI, pelo Conde de Villa Flor, deste contato com o Rei, conseguiu favores que o possibilitaram pôr em prática o seu grande projeto, e como foi solicitado pelo Rei, fez um requerimento para a Junta do Comercio Português registrando em 1822 as peças que comporiam a sua máquina7. Após isso fabricou um modelo de uma embarcação, que foi experimentada na quinta do Marquês de Fronteiras, com grande público presente, além do Doutor

Ibidem. PRADO JUNIOR, Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos, 11ª Ed., São Paulo, Brasiliense, 1979, p.48. 7 BARATA, Manuel. Formação Histórica do Pará. Belém: Obras reunidas, Universidade Federal do Pará, 1973. 5 6

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Clemente Alves de Oliveira Mendes e Almeida, que era o encarregado dos negócios do Brasil no Reino, sendo este quem lhe prestou a devida atenção e proteção e convidou várias pessoas de saber para assistir o experimento8. Foi neste momento, quando parecia que Madureira Pará iria colher os louros de mais um invento bem sucedido em Portugal, que o Brasil tornou-se independente em setembro de 1822 e menos de um ano depois, em agosto de 1823, o Grão-Pará adere a independência brasileira, fazendo com que muitos brasileiros e paraenses que estavam no reino passassem por dificuldades e precisassem recorrer a coroa portuguesa para conseguir retornar aos locais de origem9. Com Madureira Pará não foi diferente, de repente ele se viu sem o auxílio financeiro que recebia de sua província e pela falta de dinheiro, acabou tendo que se mudar para uma região distante de Lisboa10. No ano de 1824, por indicação de um amigo inglês que o auxilia financeiramente, Madureira Pará é procurado por um dos membros da Sociedade das Barcas de Vapor da Inglaterra, que o convida para apresentar seu modelo para os outros membros da Sociedade, este inglês promete e assegura a Madureira Pará um prêmio no valor de 400 mil libras esterlinas, prêmio proposto pela Sociedade ao inventor de uma maquina que melhorasse a navegação, e também que Madureira Pará seria admitido como membro da Sociedade e que teria uma participação nos lucros advindos dos barcos que utilizassem a sua máquina11. João Francisco de Madureira Pará declina da oferta inglesa, pois já tem um novo objetivo em mente. Ele mantém contato com o seu irmão, José Francisco de Madureira, Capitão da Marinha do Brasil, que consegue trazê-lo de volta de Portugal, entretanto, ele não voltará ao Pará, desembarcando em 1825 no Rio de Janeiro, já tendo conhecimento da constituição de 1824, em especial da parte que trata de inventos e inventores, precisamente o inciso XXIV do artigo 179 que diz: “Os inventores terão a propriedade das suas descobertas, ou das suas producções. A Lei lhes assegurará um privilegio exclusivo temporario, ou lhes remunerará em resarcimento da perda, que hajam de soffrer pela vulgarisação”. Nestas poucas linhas a Constituição Imperial de 1824 antecipa em mais de cinquenta anos o que viria a ser chamado de “Propriedade Industrial” que só será discutida em um congresso internacional, Jornal Ástrea, 10 de julho de 1830. Hemeroteca Nacional Digital Subscripção e soccorros aos emigrados do Brasil por ordem de sua magestade imperial e real o senhor d. João VI. Lisboa. Impressão Régia. 1827. 10 CUNHA, Raymundo Cyriaco Alves Da. Paraenses Ilustres. 3º edição, Conselho estadual de Cultura. Coleção “História do Pará”, Belém, Pará, 1970. 11 CUNHA, Raymundo Cyriaco Alves Da. Paraenses Ilustres. 3º edição, Conselho estadual de Cultura. Coleção “História do Pará”, Belém, Pará, 1970. 8 9

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realizado em Paris no ano de 187812. Assim o objetivo de Madureira Pará é garantir para si a propriedade exclusiva de sua invenção, o que não aconteceria se tivesse aceitado a proposta inglesa e também busca a proteção do Imperador d. Pedro I para conseguir todos os meios necessários para a realização de seu invento, agora denominado de Máquina - Relógio. Quase que em segredo, outro objetivo de Madureira Pará é fazer com que os barcos movidos pela Máquina – Relógio fossem utilizados na navegação dos rios da Amazônia, já que, segundo ele, a difícil navegação dos rios do Grão-Pará, em especial do Amazonas foi a inspiração para a criação de seu invento, como ele mesmo relata: Levado dos soffrimentos que via experimentarem os Índios do Pará, na rude navegação do Amazonas, feitas à remo, por isso que as altas mattas que bordão aquele rio, não deixão girar os ventos, para auxiliar as vellas, emprehendeu o Supplicante o vasto projeto de huma machina que pudesse fazer a navegação sem o auxilio dos ventos, e da força do homem. (Astrea, 10/jul/1830, p.4)

Inicia-se assim este segundo momento da vida de João Francisco de Madureira Pará, ele que já tinha inventado e colocado em funcionamento uma tipografia no GrãoPará em 182113, buscou a partir de 1825, concretizar seu invento mais grandioso na capital do Império do Brasil. Entretanto suas ideias e sua forte convicção na viabilidade de seu invento, fez com que ele fosse inserido no complicado sistema político do Primeiro Reinado, e que lhe garantiu um rol de opositores que farão de tudo para execrá-lo e irão perseguilo com o objetivo de não deixar que ele termine a sua obra. Parte disso advindo de sua relação, e da proclamada proteção, com Imperador d. Pedro I, que via na Máquina – Relógio uma possível solução para a economia, em especial no transporte de produtos agrícolas e a navegação no Brasil, e também um possível uso militar na Guerra Cisplatina, que ocorre quase que ao mesmo tempo da chegada de Madureira Pará ao Brasil. A partir da análise feita em um grande número de fontes, sendo a maior parte em jornais do século XIX, pertencentes à Hemeroteca Nacional Digital, criada pela Fundação Biblioteca Nacional, além dos livros escritos por Madureira Pará, esta pesquisa busca refletir sobre a relação entre o contexto político do ROSAS, Roberto. A Constituição de 1824 e a propriedade industrial, in: Revista de Informação Legislativa, janeiro a março. 1974. 13 Neves, Bruno C. O. DO DESPOTISMO DESMASCARADO À VERDADE DENODADA: A TIPOGRAFIA DE JOÃO FRANCISCO DE MADUREIRA PARÁ E A GÊNESE DA IMPRENSA NO GRÃO-PARÁ NO SÉCULO XIX (1808 – 1825). Monografia, Universidade Federal do Pará, 2014. 12

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Primeiro Reinado e suas relações com o cotidiano e o mundo dos inventores, estudando o caso da Máquina - Relógio de João Francisco de Madureira Pará, suas relações com o Imperador e com a política imperial. Ao nos debruçarmos sobre a história deste invento, e como tal inovação foi relatada e apresentada pelo próprio autor e pela imprensa do Rio de Janeiro, é possível se ter uma melhor noção da maneira pela qual esta sociedade definia a ciência e criação de suas tecnologias nos termos, já elencados pelo Historiador francês Jacques Le Goff14, de progresso científico e reação contrária ao mesmo, e que será grande gerador de conflitos entre a forte convicção de João Francisco Madureira Pará, os políticos aliados à Inglaterra, e outros inventores brasileiros temerosos sobre as suas próprias invenções e com certa inveja acerca do apoio recebido por Madureira Pará do Império15. Por outro lado, ao estudarmos as inovações técnicas em escala mundial, a partir da Segunda Revolução Industrial, teremos um quadro de como estas mentes criativas se relacionavam com a intensa demanda por soluções dos problemas tecnológicos deste momento histórico, tais como: infraestrutura urbana, uma política de saneamento básico e mecanização e transporte da produção agrícola brasileira e navegação dos rios e as guerras por território, demonstrando que o século XIX é onde o progresso tem suas bases mais firmes, segundo Le Goff a partir dos ideais definidos inicialmente pela Revolução Francesa, e relacionadas com o sucesso da Revolução Industrial, desenvolveram-se os progressos técnicos e científicos que possibilitaram a melhoria na segurança, bem-estar e de conforto, ao menos para a elite ocidental. Em certa medida, almeja-se uma análise da invenção de Madureira Pará, a Máquina – Relógio, como testemunho de uma época, em especial o período que vai de 1825 até 1834. Entender os elementos, tanto os mecânicos quanto os sociais, para ao mesmo tempo obter uma definição acerca da visão de ciência e técnica de Madureira Pará e do uso de sua invenção para a sociedade. Demonstrando como a ciência da época foi engajada nos problemas do cotidiano, e naturalmente, influenciada pela sua diversidade de formas e significados. LE GOFF, Jaques, História e memória. 5° edição, Campinas – SP: Editora da Unicamp, 2003. 15 Em 1828, o inventor e intelectual carioca Venâncio da Silva Velho iniciou uma campanha nos jornais contra Madureira Pará em que se diz o verdadeiro inventor da Máquina – Relógio. Logos os dois começaram uma intensa briga via jornais acerca de quem é o “verdadeiro” inventor, que culminou no escrito de Venâncio da Silva Velho, chamado “A verdade combatendo a ilusão” e no de Madureira Pará chamado “A Verdade Triunfante”. 14

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O grande valor da história das invenções não se destaca apenas pela eficácia dos resultados, mas, sobretudo, pela forma como estes apresentavam soluções para problemas, sendo dotados de uma definição e função específica. O historiador francês Jean Delumeau16 já dizia ao descrever o progresso técnico do Renascimento que “as invenções precisam do apoio de um público que exerça uma pressão fecunda sobre os técnicos” e para entender as questões sociais, políticas e técnicas do invento de Madureira Pará, devemos primeiro entender o momento político vivido pelo Império Brasileiro no Primeiro Reinado no momento da chegada de João Francisco de Madureira Pará na cidade do Rio de Janeiro. Segundo Ribeiro e Pereira, teria havido três ondas políticas no Primeiro Reinado17, a primeira começou com o anuncio do Constitucionalismo vindo da cidade do Porto em 1820 e durou até 1824 com a outorga da Constituição por d. Pedro I. Em 1826 tem inicio a segunda onda com a reabertura do Parlamento e o começo de uma discussão acerca de uma legislação realmente “brasileira” e os embates políticos acerca da Guerra da Cisplatina, tendo como pano de fundo uma intensa movimentação popular que buscava o reconhecimento, o respeito e a ampliação de seus direitos e a criação e circulação de jornais e panfletos, alguns ditos “incendiários”. A união destes fatores colocou fim à segunda onda em 1831, com a abdicação, fato que iniciou à terceira onda. É na “falsa calmaria” que existe entre a primeira e a segunda onda, mais especificamente em 1825, que João Francisco de Madureira Pará chegou ao Brasil e foi com a sua Máquina – Relógio que tentou sobreviver ao mar revolto da política imperial, pois foi neste momento, na segunda onda política, que cresceram as contestações nas ruas e o conflito político entre a Camâra e o imperador d. Pedro, do qual Madureira Pará era “protegido”, na figura do Marquês de Paranaguá18. Suas relações iniciais, feitas por intermédio de seu irmão já mostram quais serão e como serão as suas relações políticas no Rio de Janeiro, seus feitos como inventor o levam a ser um dos fundadores da SAIN, DELUMEAU, A Civilização do Renascimento, Ed. Editorial Estampa, col. Imprensa Universitária, n.ºs 37 e 38, 2 vols., Lisboa 1984. 17 RIBEIRO, Gladys Sabina, e PEREIRA, Vantuil, O Primeiro Reinado em revisão, In. O Brasil Imperial, volume I: 1808-1831/Organização Keila Grinberg e Ricardo Salles. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. P. 143 18 Francisco Vilela Barbosa, primeiro visconde com grandeza e marquês de Paranaguá, (Rio de Janeiro, 20 de novembro de 1769 — 11 de setembro de 1846). Foi ministro da Marinha, de 17 de novembro de 1823 a 16 de janeiro de 1827, de 4 de dezembro de 1829 a 18 de março de 1831, de 5 a 7 de abril de 1831, de 24 de março de 1841 a 26 de agosto de 1842, de 13 de setembro de 1842 a 20 de janeiro de 1843, ministro da Guerra e senador do Império do Brasil de 1826 a 1846. 16

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Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional19 no ano de 1827 para promover todos os ramos da produção. Segundo a historiadora Lúcia Guimarães no Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889), o órgão tinha grande prestígio junto aos altos escalões do governo. Tal fato demonstra a posição de Madureira Pará no que diz respeito à sua visão acerca das ciências e invenções, e como ele estava engajado no progresso do Brasil. Os dois pesquisadores que mais se aprofundaram em relação à vida de João Francisco de Madureira Pará são Manuel Barata20 e Raymundo Cyriaco21. Barata, utilizando fontes oficiais como ofícios e decretos, faz um grande apanhado da vida de Madureira desde seu nascimento em Belém, passando pela criação da tipografia e sua viagem para Portugal, até o embargo da obra da máquina-relógio, feito pela Regência Imperial em 1831. É Manuel Barata que nos oferece valiosas informações sobre a feitura da Máquina-Relógio, informando que “esta invenção de Madureira custou ao governo, pela repartição da marinha, desde 1825 até dezembro de 1829, a soma 230: 328$028, sem contar com o valor do Navio em que se deve assentar a mesma machina”. E continua: “informando Madureira ao governo que, para a conclusão dessa obra era preciso despender-se ainda a quantia de 120:000$000, consumindo mais quase um ano de trabalho”, mandou-se suspender as obras e pedir que Madureira Pará prestasse contas do gasto feito na obra. E Barata finaliza dizendo que Madureira Pará não prestou contas do gasto junto ao governo. Já Raymundo Cyriaco, em seu livro “Paraenses Ilustres” conta a história da vida de Madureira Pará até a sua morte e é neste livro que encontramos as primeiras referencias aos livros escritos por ele que são; “O Despotismo

Em sua fundação foi amparada pelo Ministério dos Negócios do Império, tinha como Protetor Perpétuo o Imperador, e seus primeiros estatutos declaravam que um de seus objetivos era "adquirir projetos, máquinas, modelos e inventos que pudessem contribuir para o aumento e a prosperidade da indústria nacional deste Império". Depois foi administrada pelo Ministério da Agricultura, Comércio e Obras, e a partir de 1860 passou a ser um órgão consultivo do Estado, concedendo prêmios para projetos inovadores na área das ciências agrícolas e naturais. Em seus quadros havia políticos e cientistas que se dedicavam à pesquisa de soluções para os problemas econômicos do país. Para popularizar as novas técnicas agrícolas publicou uma revista, O Auxiliador da Indústria Nacional, entre 1833 e 1892, e era editada mensalmente. 20 BARATA, Manuel. Formação histórica do Pará: obras reunidas. Belém: Universidade Federal do Pará, 1973. 376 p. il. Edição comemorativa do sesquicentenário da adesão do Pará a independência política do Brasil. 21 CUNHA, Raymundo Cyriaco Alves Da. Paraenses Ilustres. 3º edição, Conselho estadual de Cultura. Coleção “História do Pará”, Belém, Pará, 1970. 19

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Desmascarado ou A Verdade Denodada22”, “Paralelo da nova maquina de navegação23” e “Refutação da projetada companhia inglesa24”. O autor descreve o segundo grande invento de Madureira Pará: a MáquinaRelógio e todo o processo de sua criação desde a sua viagem para Portugal até a sua ida para o Rio de Janeiro, apesar da confusão que faz ao utilizar algumas fontes, principalmente em relação às datas de determinados acontecimentos, como no caso da “morte” de Madureira Pará que, mesmo dando detalhes da morte do inventor, ele não diz em que ano o mesmo morreu. Nesta mesma obra, Cunha descreve a grave oposição feita por Madureira Pará já na cidade do Rio de Janeiro, sobre a criação da Sociedade Promotora da Agricultura, Colonização, Construção de Embarcações, Comissões e Indústria Paraense na cidade de Belém. Dispondo de capitais mistos brasileiros e estrangeiros, a sociedade chegou a conseguir, em 1º de fevereiro de 1834, mediante tratativas com o governo imperial, feitas por Joaquim José Siqueira, conseguiu um privilégio exclusivo de dez anos para a navegação dos rios do Grão-Pará. Entretanto, na lógica do sistema representativo vigente no período imperial brasileiro, um privilégio desse tipo precisava ser aprovado pelo Parlamento antes de entrar em prática, razão pela qual entrou em discussão, na Câmara dos Deputados, na sessão de 06 de maio de 1834. Na sessão de 22 de julho de 1834, um deputado afirmou que "os paraenses" eram contrários às pretensões de Joaquim José Siqueira, representante da Sociedade, por esse ser, na realidade, um mero "testa de ferro" dos interesses ingleses na região amazônica, no que foi coadjuvado pelo requerimento de um cidadão daquela província, contrário ao privilégio em discussão25. O cidadão citado é João Francisco de Madureira Pará e o seu requerimento se transforma em um livro chamado; Refutação da projectada Companhia Inglesa iniciada pelo decreto da regência de 1º de fevereiro de 1834, pelo patriota paraense João Francisco de Madureira Pará no ano de 1834 e, sendo este o último livro escrito

PARÁ, João Francisco de Madureira. O Despotismo desmascarado ou a verdade denodada. 1822. 23 PARÁ, João Francisco de Madureira. Parallelo das utilidades da nova machina da navegação, da invenção de João Francisco de Madureira Pará a despeito da navegação ordinária, e da de vapor Três volumes. Rio de Janeiro, Na Typographia de Lessa & Pereira, 1830. 24 PARÁ, João Francisco de Madureira. Refutação da projectada Companhia Inglesa iniciada pelo decreto da regência de 1º de fevereiro de 1834, pelo patriota paraense João Francisco de Madureira Pará. Rio de Janeiro, Typographia Nacional. 1834. 25 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 22 de julho de 1834, p. 132-134. 22

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por ele, o ano de 1834 acaba por ser adotado como o ano da morte de João Francisco de Madureira Pará. Neste sentido, escrever sobre a vida de João Francisco de Madureira Pará e o seu invento é, em um sentido mais restrito, ver que sua invenção pode ser encarada como detentora de um valor simbólico, uma idéia ou concepção para ser aplicada em problemas pontuais. Um remédio ou instrumento, mesmo que para nossos olhos possa parecer, inicialmente, sem qualquer sentido, mas que deve ser interpretado a partir do ponto de vista de seu tempo, pertencente a uma determinada visão científica. Neste sentido, o invento assim como seu inventor são sujeitos de um processo histórico e político amplo, que circulam as máquinas, a ciência e seus usos e desusos pela sociedade, e devemos com isso observar a justificativa não apenas do invento como também da ideia que ele traz. Esta pesquisa tem como proposta avaliar não somente as dificuldades enfrentadas por João Francisco de Madureira Pará no período de invenção e criação da Máquina – Relógio na segunda década do século XIX, de 1825 até 1834 como também mostrar por meio das fontes, todo o conflito gerado em suas relações com a política imperial e também com outros inventores que fazem oposição a ele e à sua forte convicção na viabilidade de seu invento. Para isso a pesquisa será feitas em jornais cariocas, de alguns outros estados como o Pará, e até de outros países, pois é no Rio de Janeiro, que Madureira Pará vai viver de 1825 até a sua morte. E onde podemos ver que, mesmo tendo a proteção do Imperador d. Pedro I e dinheiro, serão grandes os problemas e dificuldades enfrentadas por ele em suas relações com a sociedade carioca e demonstrar como ele se tornou um importante personagem da época. Para isso, a metodologia empregada será um estudo de caso, tendo como foco este momento da vida de João Francisco de Madureira Pará. Esta metodologia se explica pela relação de sua vida com os momentos históricos principais da província do Rio de Janeiro. O Estudo de Caso enquanto modalidade de pesquisa prevê uma análise profunda e exaustiva de um ou poucos objetos, de maneira a permitir o seu conhecimento amplo e detalhado. De acordo com Becker26, o termo teve sua origem em pesquisas na área da Medicina e Psicologia e tornou-se uma das principais modalidades de análise das ciências sociais. A possibilidade de vislumbrar o todo ou boa parte de uma realidade ou objeto através do Estudo de Caso ocorre pela potencialidade dessa modalidade de pesquisa em trabalhar com dados descritivos de forma complexa

BECKER, Howard S. Métodos de pesquisas em ciências sociais. Tradução de Marco Estevão e Renato Aguiar. 4.ed. São Paulo: Hucitec, 1999. 26

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e contextualizada. Como sublinhou Ventura27 “o estudo de caso como modalidade de pesquisa é entendido como uma metodologia ou como a escolha de um objeto de estudo definido pelo interesse em casos individuais”. Desta forma, focando em um momento da vida de determinado individuo podemos desfazer a falsa oposição entre indivíduo e sociedade. O indivíduo não existe só. Ele só existe em uma rede de relações sociais diversificadas. Na vida de um indivíduo, convergem fatos e forças sociais, assim como o indivíduo, suas ideias, representações e imaginário convergem para o contexto social ao qual ele pertence. Isto permite então a abordagem histórica pelo foco num indivíduo que não é necessariamente ilustre ou conhecido, exatamente porque ele não é ilustre ou conhecido. Pode-se igualmente examinar a maneira pela quais as crises pessoais de um indivíduo complexo refletem as tensões de uma época, e como as soluções pessoais do conflito fazem eco, se apropriam ou se impregnam às transformações de uma cultura. Assim, o indivíduo é, ao mesmo tempo, ator crítico e produto de sua época, seu percurso iluminando a história por dois ângulos distintos. Um explícito, pela iniciativa voluntária do observador que propõe uma análise da sociedade na qual o personagem está inscrito. O outro, implícito, avaliado no percurso do personagem que ilustra, por sua vez, as tensões, conflitos e contradições de um tempo, todos essenciais para a compreensão do período. Neste caso, o indivíduo encarna, ele mesmo, tais tensões. Assim, nos deparamos com uma questão ainda mais complicada: de que forma reconstruir a trajetória de um sujeito? Através de pistas, de sua obra, de relatos orais de terceiros, de entrevistas, da literatura, da sociedade em que viveu, do espaço e do tempo em que o sujeito pertenceu? Muitos são os caminhos para se chegar à reconstrução parcial (ou que deseja ser total) de uma trajetória pessoal.

VENTURA, Magda Maria. O Estudo de Caso como modalidade de pesquisa. Revista SOCERJ. Rio de Janeiro, Socerj, setembro/outubro de 2007, n.20(5), p. 383-386. 27

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ENTRELINHAS DOS CÓDIGOS MUNICIPAIS DE POSTURAS DE MANÁOS NA SEGUNDA PARTE DO SÉCULO XIX, E PRIMEIRA PARTE DO XX1 Bruno Miranda Braga2 Resumo Este trabalho discorre sobre as proibições e restrições contidas nas entrelinhas dos Códigos de Posturas de Manáos sancionados no decorrer do século XIX, e primeira parte do XX. Vemos que entre a cidade mostrada nos postais e fotografias, e a cidade que existia, havia um limite do que realmente era belo e moderno para então. Mas o considerado não belo, moderno ou civilizado, existia e resistia a recomposição do espaço. Grandes prédios vão aparecer na então Manáos. Era preciso resignificar, modernizar Manáos surgirá assim, os Códigos Municipais de Posturas estabelecendo a conduta correta, a postura, que se deveria exercer para aprimorar a cidade e deixá-la em ordem. Palavra da vez: ordem, uma cidade antes de tudo deveria ter ordem que levaria ao progresso, sim, esse ideal de ordem é tipicamente positivista, que estava muito em voga no Brasil e no mundo nesse período. Palavras-chaves: Manaus, Cotidiano, Códigos de Posturas. A luta do governo pela disciplina urbana, e a resistência da população local Era preciso resignificar, modernizar Manáos. O governo começará a travar uma luta entre os habitantes que de alguma forma permaneciam com características mais nativas que modernas, e, se embasaram em diversas correntes e pensamentos sejam científicos ou políticos que vogavam na época para levar adiante sua ideia modernizadora. Assim surgiram entre as Leis, Decretos e Regulamentos, os Códigos Municipais de Posturas que se trata de uma Legislação que dita como deveria ser as sociabilidades. Os códigos estabeleciam a conduta correta, a postura, que se deveria estabelecer para Este texto é parte do Capitulo 01 da minha Dissertação que está em andamento. Mestrando em História Social no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas – PPGH UFAM. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior –CAPES. Linha de Pesquisa: Cultura e Representação. 1 2

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aprimorar a cidade e deixá-la em ordem. Palavra da vez: ordem, uma cidade antes de tudo deveria ter ordem que levaria ao progresso, sim, esse ideal de ordem é tipicamente positivista, que estava muito em voga no Brasil e no mundo nesse período. Os códigos tratavam de questões das mais diferentes problemáticas ligadas sempre ao ideal maior de cidade disciplinar. Michel Foucault analisa o discurso da disciplina e historiciza sua utilização. Para este teórico, o discurso é o que se pode ou não fazer em determinado momento histórico. Foucault se utiliza de Walhausen para afirmar que “a correta disciplina” é uma arte do “bom adestramento”3, nisso: O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”, ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las, procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até as singularidades necessárias e suficientes. “Adestra” as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais – pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos combinatórios. [...].4

Logo, ao utilizar os Códigos de Posturas, o governo pretendia enquadrar, repreender, quem não estava no perfil da cidade ideal. Em outro texto chamado Governamentabilidade, Foucault discorre sobre a relação entre segurança, população e governo. Governar um Estado significa, segundo ele, ter em relação aos habitantes, as riquezas, os comportamentos individuais e coletivos, e estabelecer uma forma de vigilância, de controle tão atenta quanto à “do pai de uma família. Tudo em um bom governo” é feito para o “bem comum e a salvação de todos”, mas esse é apenas em discurso. Assim, a população e seus interesses “aparecem como sujeito de necessidades”, e também como um objeto nas mãos do governo.5 Os códigos não submetiam todos ao seu domínio, porém, eles separavam e analisavam diferencialmente as infrações que ocorriam no cotidiano da cidade alegando sempre para o conforto e segurança pública em seus discursos. Devemos atentar que tais infrações não eram grandes delitos como hoje nos assolam, mas para a época eram coisas gravíssimas como ofensas a moral e fatos que impediam o aformoseamento citadino. Os códigos de FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Trad. de Raquel Ramalhete. Petrópolis – Rio de Janeiro: Vozes, 1987, p. 143. 4 Id., 1987, p. 143 – grifos meus. 5 Ver: FOUCAULT, Michel. A Governamentabilidade. In: Microfísica do Poder. Org. e trad. de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 277 et. Seq. 3

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Manáos aplicavam penas de prisão e multas a serem pagas em valores muitas vezes altos. De acordo com Antônio José Souto Loureiro, o Código de Posturas de Manáos mais antigo, data de 1838, ou seja, ainda na primeira metade do século XIX, já começava a haver restrições. Neste Código, São tratados, em vinte e quatro artigos, assuntos diversos como a obrigatoriedade de consultar o arruador, para a construção de prédios, a capinação das ruas, as cercas dos terrenos, a necessidade de licença para estabelecer lojas, armazéns, tabernas, botequins, casa de pasto, tabuleiros e canoas; o controle de pesos e medidas; a compra e venda de café, pelo peso de quarenta libras; a compra e venda de farinha, polvilho, carimã, pelos padrões da Câmara [...], proibição de vozerios, injúrias e obscenidades nas ruas, controle da elefantíase, proibição de soltar fogos e salvas, sem autorização do juiz de paz; a proibição de porcos nas ruas e outras6.

O segundo Código Municipal de Postura, conforme Loureiro é mais complexo e foi feito em 1872, este sim compreende o espaço temporal que embasa meu trabalho. Esse documento é bem preciso e claro em seus ideais: quer melhorar a cidade, seus hábitos e seus habitantes. Na seção POSTURAS, na Lei Nº 247 de 1 de junho de 1872, o título 1 é bem expressivo e objetivo: “Aformoseamento e regularidade da cidade e subúrbios.7 Nos códigos 1 e 2, trata sobre como devem ser as edificações dentro dos limites da cidade. Descreve sobre a construção dos muros, como deveriam dar-se sua área, altura, perímetro, base, dentro da malha urbana. Vale destacar que quem estabelecia estes números era a Câmara Municipal. O terceiro artigo, para esta pesquisa é bem esclarecedor e ataca diretamente os índios: Art. 3 – Fica proibido d’ora em diante, nas ruas dos Remédios, Boa Vista, Espírito Santo, Marcílio Dias, Flores, Imperador, Brasileira, Manáos até o Aterro, Henrique Martins, Cinco de Setembro, S. Vicente, Independência e Travessas que lhe são correspondentes, e em todas as Praças, a edificação de casas cobertas de palhas¸ sob LOUREIRO, Antônio. HERRÁN, Jorge. Manáos. Manaus: Videolar/Rede A Crítica, 2001. CD-ROM – grifos meus. Com relação a este primeiro código não vou me prolongar, uma vez que o recorte temporal desta pesquisa é a segunda metade do século XIX, e o código é de 1838. 7 COLLEÇÃO DAS LEIS DA PROVÍNCIA DO AMAZONAS – Tomo XX – Parte I. LEI Nº 247 – De 1 de Junho de 1872: Promulgar o Código de Posturas Municipaes da Cidade de Manáos: Typographia do Amazonas, 1872 – Acervo: Biblioteca do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas – IGHA. 6

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Cidade e Cultura pena de demolir-se a obra por conta de quem a fizer e sujeito a multa de trinta mil réis ou oito dias de prisão.8

Este artigo proíbe que as edificações sejam cobertas com palhas. A palha além de ser um material pobre, sem requinte e barato, está associado a cultura indígena visto que desde anterior a colonização, as moradias indígenas, as ocas, malocas utilizavam para se cobrir palhas, e em Manaus não poderia ser diferente. Há duas imagens (fotografias) que figuram bem as moradias que faziam parte da cidade Manáos.

Figura 01: Moradia tapuia, Manáos 1865.

Figura 02: Uma família tapuia à porta de sua casa numa rua de Manaus.

Ambas as fotografias são de autoria de Albert Frisch, do ano 1865.9 Atentemos que o código é de 1872, ou seja, até antes de ser promulgado o código, eram comuns nos espaços da cidade a existência dessas moradias (Típica moradia de barro, taipa e palha comum naquela época.). Esse fotógrafo, alemão, mostra a excentricidade das moradias da região, se comparadas às Idem, 1872, p. 108 – grifos meus. Frisch, fotógrafo alemão, foi segundo dados da Fundação da Biblioteca Nacional, foi o primeiro fotógrafo a realizar imagens de índios no Amazonas. Quem o contratou foi o litógrafo sueco suíço Georges Leuzinger, para coletar dados, sobre a região. Em 1867, na Exposição Universal de Paris as suas imagens foram citadas. Além de aspectos de fauna e flora, fotografou como vemos nessas imagens moradias típicas de Manaus à época. Contudo, ele fotografou aquilo que lhe chamou à atenção, coisas exóticas, que não faziam parte de seu cotidiano, ele quis encantar os seus com essas imagens que mostram outras, diferentes formas de habitação. Ver mais em: htpp://www.forumfoto.org.br/es/tag/albert-frisch/. Acesso em 25/02/2013. 8

9Albert

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europeias. Vale perceber também o tipo social que compunha a sociabilidade da época, é uma família tapuia, que eram dentre muitas outras significações, são tidos como os “mestiços de índios”. Na figura 01 vemos a moradia na sua complexidade coberta de palhas, entornada de árvores, uma pequena plantação em seu quintal, sem paredes. Na figura 02, segundo Frisch, temos uma família tapuia à porta de sua casa em uma rua de Manaus. Essa moradia típica era constituída de barro, taipa, que é a parede feita de barro socado entre tábuas e ripas, é, a palha. Segundo Dias eram comuns esse tipo de moradia naquela época. Francisca Deusa Sena da Costa, nos diz que “a condenação do uso da palha levou a população pobre, e mesmo os proprietários de cortiços, a substitui-la pelo zinco ou alumínios”.10 O importante é perceber o poder simbólico da palha, não é que ela representasse o pobre em si, porém “ela carregava consigo o pecado de trazer à memória toda uma civilização que se buscava desterrar: a indígena”.11 As casas ainda lembravam o passado da cidade de Manaus, e esse passado precisava ser abolido; tudo que fizesse lembrar a Manaus Aldeia, aos poucos era menosprezado e tido como atrasado e incivil. A civilização de palha erguida na Amazônia – resultado da experiência milenar e coletiva dos povos indígenas – faz parte de um passado que a ideologia dominante teima em considerar “atrasado”, “bárbaro” e “não histórico”, embora ele tenha contribuído com soluções inteligentes e criativas nas várias formas de se aprimorar e de habitar o espaço amazônico [...], queima-se a “tapera dos Manaus” para construir a “Paris dos Trópicos” [...], mesmo se esse processo é realizado em detrimento da qualidade de vida.12

Vemos a quem se dirigia exatamente este artigo do Código de 1872, aos índios que habitavam a cidade e, constituíam-se verdadeiros obstáculos para a manutenção da ordem urbana na Manáos projetada. Acabar com tudo que lembrava a esta cultura era objetivo primordial, Manáos crescia, se modernizava, não poderia estar ligada ao “atraso”. No Artigo 10, lemos:

10COSTA,

Francisca Deusa Sena da. Quando Viver Ameaça à Ordem Urbana: Trabalhadores Urbanos em Manaus (1890-1915). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica – PUC – SP –, Dissertação de Mestrado, 1997, p. 94. 11Id., 1997, p. 94. 12FREIRE, José Ribamar Bessa. Manáos, Barés e Tarumãs. In: Revista Amazônia em Cadernos. Números 2 e 3. Manaus: Museu Amazônico, 1993/1999, p.p. 169, 170 39

Cidade e Cultura Art. 10 – A câmara mandará fazer, em livro próprio, o lançamento do nome das ruas e praças d’esta cidade, de conformidade com os já adaptados; bem como a numeração de todas as casas. Aquele que alterar ou destruir de qualquer modo os nomes e números das ruas, praças e casas, será multado em cinco mil réis ou dois dias de prisão e o dobro na reincidência13.

Desde a época da Amazônia Colônia de Portugal, a troca de nomes de ruas, praças, cidades e etc., era prática constante. Ao se mudar nomes de locais, visase estabelecer uma nova história, uma nova identidade para aquele local. Essa mudança também pretende enaltecer os “grandes” e seus feitos. Começa a aparecer nomes de ex-políticos locais em vista de formar uma história “oficial ou celebrativa “e memorizar seus feitos. Quando aos nomes de indígenas ou de tribos, é uma entre as diversas formas de mostrar algo que passou, remeter ao passado distante que Manáos foi outrora. O título II, trata do “Commodo e segurança pública”. Descreve como deve ser a edificação de paredes, muros, proíbe que portas e janelas se abram para fora, proíbe canos nos telhados, não permite em ruas, praças e portos a conservação de volumes, também proíbe pessoas transitarem pelos passeios das casas com tais volumes. Proíbe cravar pregos, argolas ou estacas nos cais e rampas da cidade para amarrar embarcações; proíbe fábricas de fogos artificiais, dentro da cidade, proíbe apitar ou usar sinais das patrulhas e rondas, exceto em casos de pedir socorro, também era proibido apagar a luz ou quebrar vidros dos lampiões da iluminação pública. Não era permitido sequer soltar nas ruas da cidade o fogo de artifício denominado “busca-pés”. Art. 36 –É proibido assoalhar-se a roupas ás janelas, ruas e praças, armar cordas para estendê-las nos mesmos lugares, bem como lavá-las nos igarapés que cortam esta cidade, e só poderá fazer-se nos lugares que para isso forem designados pela câmara municipal. Os contraventores pagarão cinco mil réis de multa ou dois dias de prisão e o dobro na reincidência14.

Roupas em varais e sobre as janelas, com essa proibição procura-se acabar com um antigo costume que perdurava desde os temos coloniais. Essa restrição também visava acabar com uma personagem citadina bem visada no cotidiano manauara do período: as lavadeiras que nos igarapés iam lavar e alvejar as roupas COLLEÇÃO DAS LEIS DA PROVINCIA DO AMAZONAS... 1872, p. 110 – ACERVO: BIBLIOTECA DO IGHA 14 COLLEÇÃO DAS LEIS DA PROVINCIA DO AMAZONAS... 1872, p. 116. ACERVO: BIBLIOTECA DO IGHA 13

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das damas e dos senhores da elite local. As lavadeiras ao transitarem pela cidade com grandes trouxas de roupas, incomodavam, atrapalhavam, interferiam no belo, no encantador que Manáos expelia nesse momento. 15

Figura 06: Lavadeiras no Largo da Saudade. Fonte: Álbum do Amazonas, Manaus 1901-1902 (Acervo Particular)

O historiador Mário Ypiranga Monteiro, nos mostra que o “problema” com as lavadeiras é antigo. O mesmo saliente que com a “evolução” da cidade de Manáos, as lavadeiras lhe davam com roupas de tudo e de todos, e mostra como o discurso do governo foi articulado para conseguir impelir as mesmas do perímetro urbano. As causas apontadas pelo governo transitam por razões sanitárias, de saúde, à medida que se proliferam doenças nos seus senhores, etc.16

Trabalhando com a categoria de permanências históricos, esse ato de estender roupas em janelas, hoje em nossos dias é um hábito comum em alguns locais da cidade, essencialmente nas periferias. 16 O autor é um memorialista que está resgatando a lembrança da cidade e, problematiza a atuação das lavadeiras que estavam trazendo um retrocesso a “evolução da cidade”. Ler mais em. MONTEIRO, Mário Ypiranga. “Fundação de Manaus”. 4ª ed. Manaus: Ed. Metro cúbico, 1994, p. 135 et seq. 15

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Cidade e Cultura Art. 37 – Ninguém poderá disparar armas de fogo dentro da cidade e subúrbios; bem como flechas. Ao contraventor a multa de cinco mil réis, sendo de dia, de dez mil réis sendo de noite e o dobro da reincidência.17

Chegamos em mais um artigo que procura excluir e impedir a manifestação da cultura indígena: atirar flechas no perímetro urbano. Arco e flecha, assim como as palhas constituíam-se típicos característicos e seu uso era imperativo nos meios indígenas.18 Com esse artigo, vemos como imperava um discurso de que os índios eram uma “horda de selvagens” e romper com sua cultura era uma forma de se auto proteger uma vez que seria perigoso, pois os índios andavam “armados” com suas flechas e poderiam atirar em quem se achasse em meio ao cotidiano das ruas e praças da cidade de Manáos. O Título III disserta sobre a Limpeza Pública, o título IV também, o Artigo 60 fala sobre os crimes fraudulentos, das pessoas que são vistas vendendo objetos falsos. O Artigo 75 trata de duas restrições que são talvez específicas para os índios: Art. 75 – É proibido andar seminu ou indecentemente vestido pelas ruas, praças e estradas da cidade, tomar banho nu, lavar roupa e animais no seu litoral e igarapés, que a cortam, ou próximo das fontes que fornecem agua para consumo público. Pena de dez mil réis de multa ou três dias de prisão.19

Devemos ter em mente o que esse artigo quer dizer em suas entrelinhas: é proibido andar seminu. Em nenhum momento se lê nu, os que nos leva a ver que os índios não andavam mais nus, despidos, por completos, porém, para os conceitos de civilização imperantes neste período, andar descalço, sem blusa ou com o traje incompleto, já era considerado ofensivo e imoral. Os índios, com certeza não usavam o traje passeio completo, em virtude de suas cultuas peculiares e é claro, do clima, típico das regiões tropicais com elevadas temperaturas. Com relação a proibição de tomar banhos nus, vê-se como davase as práticas de higiene na cidade, vale ressaltar que o banho em igarapés fazia referência a acabar com antigos hábitos e costumes numa vez que: COLLEÇÃO DAS LEIS DA PROVINCIA DO AMAZONAS... 1872, p. 116 – grifos meus – ACERVO: BIBLIOTECA DO IGHA. 18 Eles tinham seus arcos e flechas, mas a municipalidade levava a crer que eles utilizavam seus instrumentos de forma perigosa. Vale ressaltar que muitos nem mais os utilizavam, por agora utilizarem “outros meios” para o fim do arco e flecha. 19 COLLEÇÃO DAS LEIS DA PROVINCIA DO AMAZONAS... 1872, p. 126 – grifos meus – ACERVO: BIBLIOTECA DO IGHA 17

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As novas condições de vida urbana, impostas pela classe dirigente, excluem das vistas públicas a presença das lavadeiras, que exerciam sua atividade às margens dos igarapés, os banhos diários e lavagem de animais, a canoa como meio de transporte urbano. Foram necessárias medidas desta natureza, impostas pelo capital, para poder reformar, ou mesmo anular os antigos costumes e hábitos, que os regulamentos e os códigos não tiveram força para realizar.20

Assim, os códigos queriam romper com algo que contrariava o ideal almejado, uma vez que eles restringiam a muitos de não exercerem sua prática social à medida que ditava como deveria se dar o viver social cotidiano de Manaus. Porém, devemos visualizar que se há a uma proibição numa legislação, é porque uma prática está sendo feita. Logo, além de querer romper costumes, a municipalidade, tendia a querer esconder algo que estava sendo realizado. Outro Código de Posturas Municipais da Cidade de Manáos que utilizo é o de 1875, neste o importante é perceber que permanecem as mesmas cláusulas e artigos do de 1872, porém em alguns incisos há aumento na multa. O mesmo também trata do cômodo e segurança pública, da salubridade, das ofensas a moral pública, dos jogos e escravos, dos animais, do funcionamento do mercado público e etc. Em 1893, a Lei Nº 23 de 6 de maio, promulga o Código Municipal de Manaus21. Esse código é bem mais complexo que os dois anteriores, porém segue com o mesmo objetivo: romper com o feio e sujo, incivil e fortalecer o belo, limpo, civilizado; este utiliza de uma linguagem mais sofisticada e trata de assuntos mais detalhados possíveis como a metragem de muros e cores de casas. Tudo isso porque nesse período, a Província do Amazonas está sob a administração do maranhense Eduardo Ribeiro, um engenheiro militar que idealizara transformar radicalmente Manáos em sua gestão que vai de 1892 a 1896.22 Para figurar essa precisão que o Código de 1893 regia, cito esse fragmento: Art. 2º–Os proprietários quando tiverem de pedir alinhamento para novos prédios, deverão apresentar o desenho respectivo do qual, depois de aprovado, não poderão afastar-se sob pena de multa de 30$000 réis ou seis dias de prisão, além de serem

DIAS, Edneia Mascarenhas. A Ilusão do Fausto: Manaus 1890-1920. Manaus: valer, 2007, p. 50 21 LEI Nº 23 de 6 de maio DE 1893 – PROMULGA O CÓDIGO MUNICIPAL DE MANÁOS, INTENDÊNCIA MUNICIPAL, MANÁOS, 1983 – ACERVO: BIBLIOTECA DO IGHA. 22 Eduardo Ribeiro, possuía formação em engenharia, era militar, possivelmente ligado ao positivismo e sua crença no progresso a partir da ciência e da ordem. 20

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Cidade e Cultura obrigados a demolir a sua custa o que não tiver sido feito de acordo com o mesmo desenho.23

Com este artigo visualizamos a complexidade deste Código, bem como sua rigidez. Isso porque até a promulgação deste código ainda imperava em Manaus uma arquitetura pouco agradável aos olhos das elites, e isso não acabara com a promulgação deste código. O importante é perceber que assim como os demais, O Código Municipal de Manaus, de 1893, fornece as indicações de uma cidade pensada como “moderna”. Ele não é apenas um instrumento de ação sobre o espaço; é também um artifício para a consecução de uma nova sociedade. Por um lado, restringia posturas e hábitos indesejáveis; por outro, estimulava atitudes mais apropriadas a uma “cidade sonhada” e adequada ao “progresso” e à ordem pretendidos.24

Não devemos ser ingênuos em acreditar que tais códigos ajudaram quem não estava nos padrões estabelecidos a se enquadrar no sistema objetivado, mas visualizar que o pretendido era expulsar, afastar para longe quem não estava nos parâmetros expostos. Também não devemos acreditar que quem não se enquadrava aceitou o pressuposto e rapidamente alterou seu modo de vida para estar como previa a legislação. Não, houve resistências e lutas entre as classes envolvidas nesse processo de modernização da cidade. Por fim, para meu uso neste trabalho fiz a leitura da Lei Nº 1059 25 de 22 de outubro de 1920, que promulga o Código de Posturas do Município de Manáos. Este, ao contrário dos anteriores é de um novo século, o século XX, é bastante complexo e bem esclarecedor. Não ataca mais a cultura em seu rigor, uma vez que em 1920, Manáos “pouco” tinha de indígena em seus costumes. 26 O Código de Posturas de 1920 trata em suma de problemas ligados a questões citadinas de corporação, relata como se deve estabelecer as indústrias, CODIGO MUNICIPAL DE MANÁOS ... 1983, p. 03. DAOU, Ana Maria. A Belle Époque Amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 35 25 LEI Nº 1059 de 22 de outubro DE 1920 – PROMULGA O CODIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE MANÁOS, INTENDENCIA MUNICIPAL, MANÁOS, 1920. ACERVO: BIBLIOTECA DO IGHA. 26 Porque, neste momento, além do elemento indígena, a cidade tornou-se demasiada cosmopolita com outras etnias, estrangeiros como ingleses, franceses, sírio-libaneses, japoneses, além dos já portugueses. No centro, os mais ricos, comerciantes/brancos, embelezaram a cidade, mas ainda se vê elementos nativos na gastronomia principalmente, como veremos adiante nessa monografia. 23 24

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como devem ser distribuídos, leite, telefonia e água encanada, como deve ser o abatimento de animais no Mercado Municipal, como se deve dar a higiene no interior das indústrias, a produção pesqueira, os estábulos e as estrebarias dentre outros. Em suma, pretendo mostrar que as Posturas são restrições ao pobre 27, visto que: [...] As proibições, com penas de multas e prisões, transformaram-se em medidas eficazes, no processo “civilizatório”. Elas regulam o estabelecimento de quiosques nas ruas, até punição para quem jogar entulho nos igarapés; despejar lixo a céu aberto nas ruas; conservar águas estagnadas ou lixo nos quintais das casas, oficinas, tabernas, casas de pasto e hotéis; deixar gado vacum e cavalar vagando pelas ruas e praças, fazer de porcos nas vias públicas; tomar banhos nos igarapés. 28

Assim, pretendia-se excluir quem não estivesse dentro da lógica idealizada: uma cidade limpa, bonita, ordenada e civilizada. Mas a aceitação não foi linear, muito menos singular. A tática como diz a teoria de Certeau, age na lógica do poder dominante, nesse período os excluídos ao se revoltarem não iriam brigar ou guerrear com o poder proprietário, mas agir conforme sua lógica, resignificando a seu favor o que lhe era imposto em tais regimentos.

27Pobres,

aqui são vistos não sendo apenas os vulneráveis sociais, mas também, os trabalhadores, estivadores, as prostitutas, os caboclos e principalmente os índios, assim sua exclusão tornou-se necessária para levar adiante o plano de embelezamento citadino. Esses artífices da história da cidade, foram restritos de habitar a urbe central, pois eram diferentes, agiam diferente. E os códigos pretendiam estabelecer um padrão de racionalidade europeia. 28 DIAS, op. cit., p. 123. 45

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BREVE CRONOLOGIA DO TEMA AMAZÔNIA NAS ESCOLAS DE SAMBA EM BELÉM DO PARÁ E NO RIO DE JANEIRO NAS DÉCADAS DE 1970 E 1980 Cláudia Suely dos Anjos Palheta1 Resumo Este artigo apresenta uma breve exposição do tema Amazônia presente nos desfiles carnavalescos ocorridos nas décadas de 1970 e 1980, em escolas de samba Belém do Pará e do Rio de Janeiro destacando a alegorização da região, na criação desses desfiles, revelada em narrativas de enredos, letras de sambaenredos e imagens de carros alegóricos. Palavras-chave: Escolas de samba, Alegorição, Amazônia. A alegorização2 de mitos e míticas amazônicas se revela em diversos desfiles carnavalescos em escolas de samba em Belém do Pará e no Rio de janeiro. O gigantismo atribuído à região nos primeiros relatos feitos às cortes de Espanha e Portugal, a percepção dos viajantes sobre fascínios e assombros do lugar estão presentes nos desfiles desde que estes passaram a ter os enredos como

Doutoranda do PPHIST/UFPA, onde desenvolve a tese “Amazônias Desfiladas: a alegorização da Amazônia nos desfiles das escolas de samba em Belém do Pará e no Rio de Janeiro”, da qual este artigo é parte integrante. 2 A concepção de ‘alegoria amazônica’, tem apoio em BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Edição e tradução: João Barrento. 2. Ed. – Belo horizonte, MG: Autêntica Editora, 2013 e sua colocação de que “alegoria é uma relação convencional entre uma imagem significante e o seu significado”; no conceito de conversão semiótica onde a arte modifica, constrói e reconstrói sentidos, inventando e reinventado símbolos em criações de realidades” LOUREIRO, João de Jesus Paes. A conversão semiótica: na arte e na cultura. Belém: EDUFPA, 2007; nos mundos inventados pela arte em DANTO, Arthur C. A transfiguração do lugar comum. São Paulo: Cosacnaif, 2005; no espírito independente da forma alegórica que “fala por si mesmo, iluminando-se, ilustrando-se e declarando-se, a tal ponto que até o autor dela recebe revelações inesperadas e insuspeitas” em PAREYSON, Luigi. Estética. Teoria da formatividade. Trad.: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993. 1

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organizadores e norteadores de suas concepções, o que aconteceu a partir 1939, no Rio de Janeiro3 e a partir de 1957 em Belém4. A opção de concentrar esta apresentação nas duas cidades se justifica por ser o Rio de Janeiro, a cidade fundadora e maior expressão dos carnavais das escolas de samba do Brasil e por Belém, por ser a capital da região amazônica que há mais tempo realiza desfiles de escolas de samba. Esta escolha também tem como propósito a percepção e análise das formas como a Amazônia é imaginada no carnaval da região e no carnaval de fora dela, procurando perceber as abordagens predominantes nos espetáculos carnavalescos das duas cidades. No Rio de Janeiro, a década de 1970 começou com a Portela chegando a seu 19º título do carnaval carioca com o enredo “Lendas e mistérios da Amazônia”5, mesmo título de enredo anterior apresentado em Belém pela Universidade do Samba Boêmios da Campina, em 1964. Os versos do samba portelense levaram para a Avenida Presidente Vargas (RJ), uma narrativa sobre a Amazônia, que apresentava uma justificativa mitológica para o nascimento do rio-mar: “Dizem que os astros se amaram / E não puderam se casar / A lua apaixonada chorou tanto / Que de seu pranto nasceu rio e o mar”. Segue valorizando a lenda das mulheres guerreiras que deram nome ao rio, antes chamado de Santa Maria de Mar Dulce e Rio de S. Francisco6 nos versos “Quando chegava a primavera / a estação das flores / Havia uma festa de amores / Era tradição das Amazonas / Mulheres guerreiras / Aquele ambiente de alegria / Só terminava ao raiar do dia”. A “metáfora fundadora hiperbólica das amazonas” 7 consagrou a Portela campeã e voltou à cena inúmeras vezes, como será visto neste estudo. Em 1975, também foram realizados “O mundo fantástico do uirapuru” da Mocidade Independente de Padre Miguel (RJ) e “Macunaíma, herói de nossa gente” enredo em que a Portela (RJ) uniu referências da obra literária de Mário de Andrade e da película cinematográfica de Joaquim Pedro de Andrade na construção imagética de seu desfile, mostrando o quanto a intertextualidade de linguagens se faz presente construção dos desfiles carnavalescos. Fechando MUSSA, Alberto e SIMAS, Luiz A. Samba de enredo: história e arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 4 OLIVEIRA, Alfredo. Carnaval paraense. Belém: Secult, 2006. 5 O Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela foi fundado em 1935. O enredo “Lendas e Mistérios da Amazônia” foi desenvolvido pelos carnavalescos Clóvis Bornay e Arnaldo Pederneiras e o samba enredo composto por Catoni, Jabolô e Valtenir. Fonte: http://www.portelaweb.com.br 6 XIMENES, Romero. Amazônia: a hipérbole e o pretexto. Dissertação apresentada ao programa de mestrado do departamento de antropologia da UFPA, 2000. 7 XIMENES, Romero. Op., cit. 3

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a década, em 1979 a Estação Primeira de Mangueira (RJ) trouxe “Avatar! E a selva transformou-se em ouro”, atribuindo à natureza e à cultura cacaueira o verdadeiro eldorado da floresta. Nesta década, em 1973, os desfiles das escolas de samba do Rio começaram a ser transmitidos pela televisão a cores. Em 1975, a Unidos de São Carlos8 criou o enredo cujo samba estabeleceu um inesquecível elo de união entre os sambistas cariocas e paraenses – “A Festa do Círio de Nazaré”, e seus versos “No mês de outubro / Em Belém do Pará / São dias de alegria e muita fé / Começa com intensa romaria matinal / O Círio de Nazaré”9. O samba tornou-se hino no Rio de Janeiro e em Belém do Pará, ultrapassou os limites dos desfiles carnavalescos, passou a ser cantado todos os anos no cortejo artístico “O Auto do Círio” encenado nas ruas do bairro da Cidade Velha, desde 1993, na sexta-feira que antecede o Círio de Nazaré e ultrapassou os limites dos territórios do sagrado e do profano ao ser cantado pelo coral das mil vozes durante a procissão da Trasladação e do Círio de Nazaré de 2014, fato presenciado por esta pesquisadora. Em Belém da década de 1970, o Quem São Eles10 mergulhou profundamente na criação de enredos amazônicos: “Marajó, ilhas e maravilhas”, em 1974; “Cobra Norato”, pesadelo amazônico, em 1976; “Largo de Nazaré”, fantasias do passado, em 1977; “Theatro da Paz”; em 1978 e “Delírio Amazônico”; em 1979, sendo campeão do carnaval em todos eles. O samba-enredo de 1974 narrava o nascimento da Ilha do Marajó “Antigamente / Não havia noite / Não havia dia / Nem o verbo amar / Não havia nada / Nessa madrugada do meu rio-mar / Até que o sol virou boto / Pois sobre o rio desceu / Fecundou a lua / No leito da pororoca / E Marajó nasceu / No leito da pororoca / Olha, olha a ilha / No leito da pororoca / Maravilha no mar/ No leito da pororoca / Quem São Eles canta / No leito da pororoca / Vendo o povo cantar” A abordagem do Quem São Eles também é com ênfase no mito, mas enquanto na narrativa da Portela a lua se apaixonava pelo sol, o “Marajó” do Quem São Eles, nasce do encontro da lua com o Boto. O Rancho Não Posso me Amofiná11 trouxe “Batuque, uma jóia da literatura paraense”, em 1970; “Jurunas relembra pai do campo na figura Fundada em 1955. Em 1983 passou a ser Estácio de Sá. Autoria de Aderbal Moreira, Dario Marciano e Nilo (Esmera) Mendes 10 O império do Samba Quem São Eles foi fundado em 1946. O enredo “Marajó, ilhas e maravilhas” foi desenvolvido pelo carnavalesco Fernando Luiz Pessoa e o samba foi composto por Waldemar Henrique e João de Jesus Paes Loureiro. 11 Gremio Recreativo Jurunense Rancho Não posso me Amofiná”, fundado em 1934, é a escola de samba paraense mais antiga de Belém. 8 9

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Coronel Macambira”, em 1976 e “Minha namorada Belém”, em 1977. A Embaixada do Império Pedreirense12, “Transamazônica, a rodovia do futuro” em 1971 e “Palácios, vultos e monumentos de Belém”, em 1978. O Boêmios da Campina13, em 1975, “O muiraquitã e as amazonas”, com samba de Paulo André e Ruy Barata que inicia como se estivesse justamente escrevendo a carta que revela a existência e o fascínio das Amazonas: Senhor meu rei / do que eu sei agora vou contar / meu valor não desmereça / nem permita que eu me esqueça de paginar / Muiraquitã, sendo pedra tinha verde cor / verde selva, verde vaga, toda verde verdejada de verde amor / guerreiro eu sou / juro que sou / mas quando vi não resisti / Muiraquitã luz da manhã debrucei-me nela / depois parti, mas vou voltar / quem deve amor, amor quer dar / por isso vou / vou voltar pro meu rio-mar / Tupã é quem manda no mundo / no homem quem manda é cunhã / quem manda no samba é campina do verde do Muiraquitã.

A década de 1980 trouxe acontecimentos intensos para o Brasil. Manifestações em prol das eleições diretas, eleição do cacique Mário Juruna como deputado, a luta dos Txukahamãe pelo território do Xingu. A inflação era galopante, o cruzeiro virou cruzado e novo cruzado, a seca no nordeste foi implacável, o Amapá virou Estado, Chico Mendes foi assassinado, Fernando Collor de Mello foi eleito presidente pelo voto direto. Parte desse cenário virou enredo de escola de samba e ainda que muitas escolas de samba tomassem o caminho das críticas e da política para a criação de seus enredos, a Amazônia não saiu das passarelas, bem ao contrário, passou a ser configurada também com posturas política de reivindicações e posicionamentos como fez a Mocidade Independente de Padre Miguel (RJ), em 1983, com o enredo “Como era verde o meu Xingu”. O samba-enredo tinha aspecto de canto de lamentação sobre a situação do Xingu, um paraíso invadido e destruído em Emoldurado em poesias / Como era verde o meu Xingu / Sua fauna, que beleza /Onde encantava o Uirapuru /Palmeiras, carnaúbas seringais /Cerrados, florestas e matagais /Oh, sublime natureza / Abençoada pelo nosso criador / Quando o verde era mais verde / E o índio era o senhor /Kaiamurá, kalapalo e kajurú / Cantavam os deuses livres do verde Xingu / Oh Morena / Morada do sol e da lua /Oh morena /O Paraíso onde a vida continua /Quando o homem branco aqui chegou / Trazendo a cruel destruição / A felicidade sucumbiu / Em nome da civilização14. Embaixada de Samba do Império Pedreirense, fundada em 1958 Universidade do Samba Boêmios da Campina fundada em 1952 14 Samba de Paulinho Mocidade, Dico da Viola, Tiãozinho, Dico da Viola e Adil 12 13

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Esse lamento se estendeu para o enredo da mesma Mocidade de Padre Miguel (RJ), em “Tupinicópolis”, de 1987, que apresentava o sonho de levar a civilização às comunidades indígenas sem que estas perdessem seus valores tradicionais como nos versos “Vejam quanta alegria vem aí / É uma cidade a sorrir / Parece que estou sonhando / Com tanta felicidade/ Vendo a Mocidade desfilando /Contagiando a cidade / E a oca virou taba / A taba virou metrópole / Eis aqui e grande Tupinicópolis”15. Os carros alegóricos da Mocidade uniram a visualidade predominante de tribos indígenas brasileiras aos aspectos predominantes de uma metrópole, numa mistura imagética de mundos em que a tribo absorvia aspectos de metrópole e a metrópole era tribo. Marcada pelo gosto recente de liberdade de expressão, por reivindicações e instabilidades financeiras, a década de 1980 também marcou fortemente o carnaval de escolas de samba de Belém, como o momento em que as escolas se apegaram ao luxo dos desfiles cariocas vistos a cores e ao vivo na televisão. Nesta década, o Boêmios da Campina, uma das mais tradicionais escolas de Belém, fundada em 1952 realizou, em 1985, o seu último desfile de carnaval, mas ainda hoje é assunto de rodas de bamba que, com um misto de saudade e sonho, dividem sua imaginação a respeito de como estaria o carnaval se o Boêmios ainda desfilasse, e em acreditar na sua volta ao carnaval. Em 1982, no bairro da Pedreira foi fundado o Acadêmicos do Samba da Pedreira, fazendo em 1985 o mais marcante de todos os seus desfiles com o enredo “Sonho Cabano”, com samba cantado por Fafá de Belém exaltando a caraterística lutadora desse povo, no verso “paraense quando quer não tem dono nem senhor”16. Em 1983, no bairro do Guamá, foi fundado o Grêmio Recreativo Guamaense “Arco-íris”, a escola de samba que importou as características luxuosas do carnaval carioca para Belém e mesmo que só tenha existido na década de 1980, deixou marcas e opiniões controversas de que sua existência tenha sido o melhor ou o pior do carnaval de Belém. O Arco-íris provocou mudanças significativas na visualidade, seus enredos tinham uma espécie de realidade local globalizada, uma Amazônia que parecia ser vista a partir de olhos estrangeiros. Alguns diziam que o Arco-íris era como uma escola de samba do Rio de Janeiro desfilando em Belém, uma fala elogiosa por parte de alguns e irônica por parte de outros que acusavam a escola de trazer cópias de desenhos da Beija-flor de Nilópolis na bagagem de Joãozinho Trinta, que participava da criação carnavalesca do Arco-íris. A escola estreou campeã em 1983 com o 15 16

Samba de Gibi, Chico Cabeleira, Nino Batera e J. Muinhos Samba de Alfredo Oliveira e Paulo André Barata. 50

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enredo “Um grande coração chamado Brasil” cujo samba ainda ecoa nas mais atuais rodas de samba ‘Pinta sete, sete cores no meu coração / Vem comigo meu bem no Arco-íris / Colorir a multidão’17. O ano de estreia do Arco-íris não contou com a presença do Rancho e nem do Quem São Eles. Em 1984, o enredo do Arco-íris foi “Do resplendor de Roma Pagã ao fascínio de Belém do Pará”; em 1985 “Da magia dos reinos de Bagdá ao reino de Iara”; em 1987 “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, em 1989 a escola fez a sua última apresentação com “Brasil, o Pará e teu futuro”. Diferentes do aspecto global apresentado pelo Arco-íris, o Império do Samba Quem São Eles e Rancho, apresentaram verdadeiras enxurradas de enredos valorizando a cultura amazônica, como “Kuarup, sonho de uma noite encantada”, em 1981; “Eldorado”, em 1982; “Waldemar Henrique, o canto da Amazônia”, em 1985; “Paidégua”, em 1986; e “Preamar da Cultura popular”, em 1989 (Quem São Eles); “Museu Paraense Emilio Goeldi”, em 1980; “Tuyá, pequeno índio guardião da floresta renascida” em 1981 e “Dança das Folhas na cidade das mangueiras”, em 1982 (Rancho). Bechara Gaby, em entrevista concedida a mim, em 15 de dezembro de 2012, disse que o primeiro enredo em que trabalhou para o Rancho “Tempo de criança” de 1979, não era dele, mas fora campeão e ganhou a confiança de diretoria e da comunidade ranchista, o que lhe permitiu total liberdade para fazer o enredo que queria a partir de então e por isso decidiu “agora eu vou fazer a minha arte, que sempre foi amazônida”. A Embaixada do Império Pedreirense esteve ausente de alguns desfiles na década de 1980, participando apenas em 1983, 1984, 1985 e 1986, mas nenhum desses enredos era diretamente sobre a Amazônia. Mas, além de Acadêmicos e Arco-íris, a partir de 1985, a Mocidade Olariense de Icoaraci subiu para o grupo especial das escolas de samba de Belém e alguns de seus enredos como “Em frente ao sol” de 1985; “Esse rio é minha rua”, de 1986 e “Olha aí, o boto”, de 1988, também tinham a Amazônia como foco. A conturbada década de 1980 é referida pelos sambistas de Belém como a “época de ouro do carnaval paraense”, um tempo em que a Avenida Doca de Souza Franco era passarela do desfile, tempo em que a classe média fazia questão de desfilar, tempo em que o prefeito da cidade e o governador do Estado acompanhavam todo o desfile, que começava ás 20 horas do sábado gordo e só terminava na manhã do domingo, tempo em que as escolas levavam até três mil brincantes e até oito carros alegóricos. O melhor tempo.

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Os desfiles das escolas de samba de Belém continuam acontecendo, mas algumas pessoas que viveram intensamente a sua “Idade do Ouro” 18, e depois dela se retiraram, hoje costumam dizer com autoridade, que o carnaval paraense acabou nos “anos oitenta”. Já os que atravessaram o tempo e continuam no carnaval, acreditam no retorno do momento glorioso a cada novo ciclo de produção do carnaval, no renascimento a partir dos processos criadores do carnaval. O desfile carnavalesco é um evento único19. O tempo linear de um desfile é de até 60 minutos, em Belém do Pará e até 82 minutos, no Rio de Janeiro. Percebendo que a Amazônia vem sendo tema dos desfiles desde o início da história das escolas de samba, há 8720 anos, vemos que a temática Amazônia já faz parte da história dos desfiles de escolas de samba. O carnaval “ilumina a ousadia da invenção, permite associar elementos heterogêneos, [...] permite olhar o universo com novos olhos, compreender até que ponto é relativo tudo o que existe, e portanto permite compreender a possibilidade de uma ordem totalmente diferente do mundo”. 21 Para a criação carnavalesca das escolas de samba nenhum tema é pequeno demais que não possa ser engradecido e nenhum tema é gigante demais que não caiba na imaginação dos que com ele se envolvem e os convertem em enredos, sambas e alegorias. Na Amazônia, os enredos podem estar em minúsculas orquídeas coloridas ou na grandiosidade de suas águas, podem estar no povo que dança desfraldando saias floridas ou no povo do fundo dos rios e das matas que de lá podem sair para ‘fecundar a lua’ e fazer nascer um novo mundo desfilado em carnaval.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 1996. Na cidade do Rio de Janeiro, há o desfile das campeãs, que acontece no sábado seguinte a apuração do resultado na quarta-feira de cinzas. O chamamos de evento único é o desfile competitivo. 20 A Deixa Falar fundada em 1928 é considerada a primeira escola de samba. Fonte: FERREIRA, Felipe. O livro de ouro do carnaval brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. 21 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo-Brasília: Edunb, 1999. 18 19

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VILA DE CASTANHAL: MEMÓRIAS DO PASSADO ATRAVÉS DA ESCRITA DO CÔNEGO LEITÃO Edivando da Silva Costa1 Resumo O presente trabalho desenvolve uma reflexão acerca dos anos inicias da vila de Castanhal, tendo como fonte de análise o Livro de Tombo da Igreja Matriz de São José em Castanhal – Pará, entre os anos de 1911 a 1922. Os registros versam sobre as muitas memórias construídas pelo padre Luis Leitão, desde a sua saída do Ceará até o momento em que se instala no Pará, com as funções sacerdotais e o ofício de professor. Os registros deixados no livro de Tombo nos permitiram pensar as diversas relações sociais construídas na vila de Castanhal, bem como os conflitos e interesses políticos na região. Portanto, trata-se de um exercício de recuperação da memória como forma de reconstruir a história da sociedade de Castanhal nos seus primeiros tempos. Palavras-chave: Memória. Cônego Luis Leitão. Castanhal/PA. Segundo as primeiras impressões extraídas do Livro de Tombo 2, o lugar onde surgiu Castanhal “era um local inóspito, que estava em processo de colonização, e que o apresentava mata virgem, na qual andavam os caçadores em busca de caça de tatus e pacas”.3 Desde então, alguns empregados e empreiteiros do serviço da abertura do leito da estrada foram se fixando na região,4 tendo início o processo de constituição do povoamento da região. Com base na leitura de Relatórios dos governadores paraenses do final do século Graduado em História pela Universidade Federal do Pará. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia, UFPA. Professor efetivo da Secretaria Estadual de Educação/PA. 2 Livro de Tombo número 1 da Paróquia de São José de Castanhal, 1911. Consta em sua página de abertura a autorização do Arcebispo de Belém, D. Santino ao Reverendíssimo Padre Marcos Santiago, escrivão da Comarca Eclesiástica a abrir, numerar, rubricar e encerrar o livro que servirá de Livro de Tombo da freguesia de São José de Castanhal em 26 de março de 1911. Em suas condições materiais o livro encontra-se muito danificado, pois se trata de algo produzido no início do século XX, com suas páginas já amareladas e desgastadas. 3 Livro de tombo da freguesia de São José de Castanhal, 1911- 1922 p. 5. 4 Livro de tombo da freguesia de São José de Castanhal, 1911- 1922 p. 1. 1

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XIX, Lacerda aponta que as primeiras informações sobre o atual município de Castanhal estavam relacionadas à colocação dos primeiros trilhos da Estrada de ferro de Bragança5, com a derrubada das matas por onde deveria passar a viaférrea. Os primeiros esforços no sentido de colonizar a área centravam-se na necessidade de encontrar mão de obra para ocupar e desenvolver a região, e os registros do Cônego Leitão indica que “imigrantes europeus — espanhóis e italianos —, aqui estiveram estabelecidos sem sucesso”.6 Diante das aspirações iniciais de colonização frustradas passou-se a incentivar a vinda de migrantes nacionais. Nunes aponta que “a presença de nordestinos nos núcleos colônias agrícolas se intensifica, principalmente a partir de 1877 em razão da estiagem que atingiu o Ceará naquele ano o que motivou o deslocamento de uma grande quantidade de cearenses para a Amazônia”.7

LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará. Faces da sobrevivência (1889/1916), Belém, 2010, p. 305. 6 Livro de tombo da freguesia de São José de Castanhal, 1911- 1922 p. 1. 7 NUNES. Francivaldo Alves. Migração Nordestina e a luta pela terra na Amazônia da segunda metade do século XIX. In: Usos do passado. XII encontro regional de história – ANPUH -, Rio de Janeiro, 2006, p.4. É importante ressaltar que a migração na Amazônia brasileira tem atraído a atenção alguns estudiosos. Sobre a zona bragantina e as transformações trazidas pela construção da Estrada de Ferro Belém-Bragança, há uma vasta bibliografia. Ver por exemplo o trabalho de CRUZ. Ernesto. A estrada de Ferro de Bragança: visão social, econômica e política. Belém, 1995; MUNIZ, João de Palma. Estado do Grão-Pará. Imigração e Colonização. História e Estatística 16161619. Belém: Imprensa Oficial do Estado do Pará, 1916; NUNES, Francivaldo Alves. A trajetória do imigrante nordestino na cidade de Belém (1877 – 1889). Belém, Monografia de Conclusão de Curso (História), Universidade Federal do Pará, 1999; PENTEADO, Antônio Rocha. Problemas de colonização e de uso da terra na região Bragantina do Estado do Pará. Belém: Universidade Federal do Pará, 1967; LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889-1916). Editora Açaí. Belém, 2010. GUIMARÃES E CARUJO. História do povo castanhalense. História Antiga, História Moderna e os que fazem Castanhal de Hoje. Castanhal: Shamaballah, 1984. As produções ora citadas destacam principalmente o surgimento dos núcleos coloniais que se desenvolvem a partir da instalação dos trilhos da estrada de ferro Belém-Bragança, contribuindo para a política de colonização e povoamento da região. SOUZA. Marlene Lopes. O desmonte da maravilha de ferro, a extinção da Estrada de Ferro de Bragança. 1996. Monografia de História da Ufpa. 5

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Memórias registradas dos tempos do Ceará, e da migração ao Pará De acordo com o que foi registrado no livro de Tombo da Freguesia de São José, Cônego Luis Leitão chegou à Vila de Castanhal em 1900. Entretanto, a memória deixada pelo padre nos remete a um período anterior à sua estadia em Castanhal. Com efeito, tal como destaca Pierre Nora, os “lugares”, constituemse de um jogo da memória e da história, no qual é preciso ter “vontade de memória”, manter vivo, em contrapartida a intervenção da história, que cerca, delimita com o registro. “Lugares mistos, híbridos e mutantes, intimamente enlaçados de vida e de morte, de tempo e de eternidade; num espiral do coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado, do imóvel e do móvel”. 8 Constituise então, que a memória traz em si a ideia de algo que não é organizado, prédeterminado, que segue padrões rígidos e cronológicos, mas que parte da premissa dos lugares como campos de transformações e passíveis de mudanças. Assim, fica registrado que, de origem nordestina, o Padre Luis Leitão, vivia no interior do Ceará, mais precisamente em Canindé. De acordo com suas memórias “no ano de 1900 houve enorme seca que devastou os sertões do Estado, impondo o êxodo aos filhos do Nordeste e que de preferência procuravam a Amazônia”. 9 Segundo Lacerda, o padre Luis Leitão, ainda no Ceará, “se colocava no papel de requerer auxílio junto ao governo do estado do Pará pelos flagelados da seca”.10 Portanto, podemos pensar em uma trajetória com intencionalidades pessoais e políticas, e isto se percebe nas relações que o padre busca construir com as autoridades locais a qual podemos constatar a partir das memórias por ele deixadas no livro de tombo. De acordo com o que deixou registrado, desde a sua partida do Ceará, o padre Luis Leitão, diz já ter a intenção de se instalar em Castanhal. Desse modo, assim escreve: “convém não esquecer que já lhe ocupava o espírito a vida em Castanhal, lugar que já conhecia por informações”. 11 Se a vinda de Luis Leitão para a Amazônia não o enquadra como um retirante fugindo da seca, o mesmo não se supõe com a maioria de nordestinos que para cá vieram, pois, as constantes migrações que ocorreram do Nordeste para o Norte foram alternativas encontradas para a resolução de problemas NORA, Pierre. Entre memória e história. A problemática dos lugares, 1984. Tradução: Yara Aun Khoury. In: Projeto História. São Paulo: Educ, nº 10, dez, 1993. 9 Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal – PA. 1911 – 1922, p. 2. 10 LACERDA, Franciane Gama. “Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889/1916)”. Editora Açaí. Belém. 2010. p. 190. 11 Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal – PA. 2011 1922, p. 3. 8

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pelos quais passavam essas duas regiões. Segundo Lacerda, “para o governador do Ceará, a retirada dos cearenses flagelados pela seca significava apenas uma alternativa temporária e que tão logo a situação se revertesse ocorreria pronto regresso à terra natal”.12 Em mensagem escrita pelo governador do Ceará, Pedro Augusto Borges, no relatório de presidente, percebemos a migração dos sertanejos para a Amazônia como uma das saídas para resolver os problemas que atingiam o Ceará, pois “sem meios de socorrer a população assediada pela fome e abatida pela incruel incerteza do seu próprio destino, a providencia salvadora era a emigração para o Pará e Amazonas. 13 Ao chegarem à Amazônia, os cearenses, por exemplo, se constituiriam como a solução mais viável para a colonização da região dentro dos planos do governo paraense e, podemos dizer que, o Padre Luis Leitão, estabeleceu importante influência nesse contexto. A isto nos remonta uma memória deixada pelo Cônego a qual nos informa que ao chegar ao Pará “uma das primeiras medidas tomadas foi a de procurar o então governador, o Dr. José Paes de Carvalho e, junto a ele, pedir auxílio para a vinda de conterrâneos seus para este estado”.14 Pelo que expressa no Livro de Tombo, percebe-se que ele entendia que era uma oportunidade crucial para muitos sertanejos que sofriam as agruras da seca, ou que não tinham terra para plantar tendo assim que recorrer à migração para o Pará. Isto acontecia pelo fato de que o Padre sabia que os esforços empreendidos pelo governador de colonizar a região com braços estrangeiros tinham sido frustrados. Em seus escritos, Cônego Leitão lembra que de acordo com o Dr. José Paes de Carvalho “nenhum resultado produziu a emigração espanhola e italiana, e que a seca veio a tempo de trazer o braço nacional que seria mais útil em seu plano de colonização”.15 Ao mesmo tempo, estas relações com os poderes públicos paraenses, especialmente com o governador do Pará, Paes de Carvalho, sugerem as relações políticas tecidas pelo Cônego Luis Leitão e a constituição de uma imagem de líder de alguns dos migrantes que chegavam do Ceará. Embora conforme vimos acima o governador do Ceará, Pedro Borges, compreendesse a migração dos cearenses como provisórias, o mesmo parece não ter sido as mesmas ideias dos políticos paraenses, pois “o Dr. Paes de LACERDA, Franciane Gama. Entre o sertão e a floresta: natureza, cultura e experiências sociais de migrantes cearenses na Amazônia (1889-1916). 2006. p. 18. 13 Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa do Ceará pelo presidente do Estado, Pedro Augusto Borges em 1901, p. 29. 14 Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal – PA. 19111922, p. 2. 15 Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal – PA, 1911 – 1922, p. 3 12

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Carvalho resolveu custear o transporte de imigrantes cearenses” e ao chegaram “facilitava-os a entrega de lotes, ferramentas para a lavoura e o sustento para seis meses”. Diante desse quadro muitos migrantes tinham a possibilidade de se tornarem colonos, e os escritos deixados pelo padre nos levam a deduzir que eles foram os principais responsáveis pela ocupação e dinamismo da região. Em uma de suas memórias, é possível encontrar referências a esta questão: “em passeio pela colônia, o Dr. Paes de Carvalho voltou admirado e satisfeito, pois a imagem de toda estrada central e travessas, as árvores colossais estavam sendo substituídas por plantações de mandioca, arroz, milho, feijão, etc.” 16 Lacerda nos indica que “as visitas do governador nas cidades, vilas, povoados e núcleos coloniais era uma espécie de reconhecimento das localidades do Pará a fim de desenvolvê-lo, sobretudo por meio da agricultura”,17 mas igualmente para manter um controle sobre estas. No que se refere à migração, percebemos pelos relatórios dos governadores e pelos relatos do Cônego Luis Leitão o fato de que a substituição do então governador José Paes de Carvalho por Augusto Montenegro em 1901, parece não ter alterado o quadro de política de boa vizinhança com os cearenses, pois para o governador do Ceará “a simpatia e solidariedade dos governadores deveriam se estender no acolhimento dos filhos infortunados do Ceará com sua mão protetora e amiga”. 18 E ao que tudo indica, tal iniciativa foi posta em prática pelo novo governador, a isto em seus registros Padre Luis Leitão informa que “compreendedor das coisas e interessado pela prosperidade da sua terra, fez revogar a lei desobrigando o colono da dívida e entregou-lhe o terreno gratuito por título definitivo, tornando-o mais zeloso e cultivador como proprietário”.19 Que medos poderiam passar pelo governo do Ceará ao perceber que muitos migrantes estabelecidos no Pará, talvez não pretendessem mais retornar? Como ficaria a lavoura no Ceará quando as chuvas se fizessem presente novamente, depois da longa estiagem? E, depois de ter chegado ao Pará e recebido terras os colonos iriam preferir se manter no Pará, ou retornar para a sua terra natal? Estes questionamentos aqui não serão respondidos, visto que não é nosso foco. No entanto, sua importância se dá no sentido de perceber o jogo de interesses Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal – PA, 1911 – 1922. p. 3 17 LACERDA, Franciane Gama. “Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889/1916).” Editora Açaí. Belém. 2010. p. 313. 18 Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa do Ceará pelo presidente do Estado, Pedro Augusto Borges em 1901, p. 29. 19 Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal – PA, 1911 – 1922. p. 4. 16

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a que os migrantes estavam submetidos tanto pelas autoridades do Ceará como pelas do Pará, pois, de indesejáveis nos centros urbanos de Fortaleza, por exemplo, por vezes, tornavam-se bem-vindos para a colonização do Pará. Igualmente, estes questionamentos sugerem também a questão da decisão individual, de cada migrante em relação à decisão de sai do Ceará e se dirigir ao Pará, a exemplo da trajetória do próprio cônego Leitão. De certo é que a política implantada pelos governadores paraenses, ao investir na vinda de cearenses ao Pará, estava surtindo efeitos positivos, como sugerem os registros de Cônego Leitão: “a substituição dos colonos europeus pelos cearenses aumentou a vida agrícola desta localidade, cujo comércio tornou-se próspero, e as colônias adjacentes à Castanhal cresceram e exportaram grande quantidade de cereais graças ao braço cearense”. 20 Ainda, relembrando-se de suas atividades, Cônego Leitão registra no Livro de Tombo que em uma de suas conversas com o governador do Pará, Paes de Carvalho, ocorreu um convite para que ele exercesse a função de diretor da colônia Inhanetama, já que toda aquela gente — colonos cearenses — “precisaria de alguém que os animasse e os conduzisse bem na colônia”. Tal atividade seria, na ótica do padre, bem remunerada, mas que “não poderia exercer o cargo devido ao fato de não estar de acordo com sua condição de sacerdote”. Diante de tal ponderação, ficou acordado que Cônego Leitão “iria exercer o cargo de professor da colônia José de Alencar, desde que o governador Dr. Paes de Carvalho, telegrafasse ao Excelentíssimo Sr. Bispo do Pará D. Antonio Castilhos Brandão, pedindo autorização para se utilizar dos seus serviços que exigia a disciplina eclesiástica”.21 Assim, além da colonização e desenvolvimento da região, a educação parece ter sido um outro problema que figurou nas ações do governador José Paes de Carvalho. Nesse contexto, como professor e depois como diretor do grupo escolar de Castanhal, Cônego Leitão teve grande participação, demonstrando uma postura política, intelectual e religiosa, com ligações fortes e estreitas com as autoridades locais. Em relação à educação Lacerda chama a atenção para o fato de que o governador José Paes de Carvalho “além incentivador da vinda de migrantes e da implementação de núcleos colônias no Pará, possuía especial atenção à educação, principalmente ao ensino profissionalizante, como forma de estimulo à moralização dos

Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal – PA, 1911 – 1922. p. 4. 21 Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal – PA, 1911 – 1922. p. 5. 20

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costumes”. 22 Diante disso, pode-se pensar no Cônego Luis Leitão como importante para os anseios civilizadores da República em uma pequena vila do interior da Amazônia a partir de suas práticas educativas que deveria implementar por meio da escola neste espaço. Um possível diálogo, narrado pelo Padre Luis Leitão, entre ele e o governador Paes de Carvalho, pretende sugerir que existia afinidade entre eles. Desse modo, se tomamos como referência estes registros entendemos que existia uma consonância de ideias políticas e religiosas na condução da política a ser executada na região. Assim, Cônego Leitão quer deixar entrever que ele era reconhecido pelas autoridades como o profissional mais preparado para atuar na instrução formal da Vila Castanhal. Dessa forma assim registra um encontro seu com o governador Paes de Carvalho em finais do século XIX: Lá estivemos na maior intimidade. Nesta ocasião me disse Excelentíssimo governador, que muito prezava de um padre que animasse os colonos cearenses a se conduzirem bem nas colônias (...). Ficou, então, assentado que iria exercer o cargo de professor... 23

Desses primeiros passos dados por Cônego Leitão, percebemos que era o início de uma postura influente que irá transitar na freguesia de Castanhal. Assim, compreendemos pelo que ele deixou registrado no Livro de Tombo, que desde sua vinda do Ceará, acompanhado de políticos de prestígios até sua constante presença no Palácio do Governo ia se consolidando como uma figura marcante e ativa no cotidiano da região e percebe-se a relação estreita entre o religioso e os representantes do Estado. Nesse processo é importante destacar também a forte influência que o padre terá na educação local, ao exercer o posto de professor primário da colônia, possivelmente adotando uma postura educativa nos moldes do catolicismo e porque não de acordo com os interesses dos governantes. Aliás, é pertinente salientar que se tratava de uma questão básica, isto é, era necessário conduzir e orientar os colonos que chegavam aos núcleos coloniais e pequenos povoados que se formavam às margens da Estrada de Ferro de Bragança, como Castanhal, pois se à primeira vista estes trabalhadores pareciam ser essenciais nos projetos de colonização da região, por outro lado, poderiam se tornar “perigosos” ou “desnecessários”, caso não se enquadrassem na política do governo. LACERDA, Franciane Gama. Educação para o trabalho e para a civilização no Pará da virada do século XIX para o XX. Faculdade de História/UFPA. PIBID/CAPES. Belém. 2010. p.4. 23 Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal – PA, 1911 – 1922. p. 4. 22

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A escrita da educação enunciada por Cônego Leitão evidencia a relação próxima e a parceria existente entre o Estado e Igreja no fazer educacional de Castanhal. Esta relação destaca-se, nas entrelinhas de seu discurso, quando assim escreve: “aceitei a nomeação de professor da colônia referida, para onde me transportei, residindo em um chaleth de propriedade do governo estadual”.24 Memórias das relações com a Igreja e com o Estado As atividades públicas de Cônego Leitão têm início assim em Castanhal desde a época de sua chegada ao Pará em 1900, seja em suas visitas ao Governador do Estado, ou como professor na colônia de José de Alencar (núcleo colonial próximo de Castanhal), e depois na Vila de Castanhal. Suas narrativas sugerem uma constante interferência na vida cotidiana de muitos moradores do pequeno povoado de Castanhal no início do século XX. Podemos perceber um pouco de seu papel político e na vida da comunidade a partir, por exemplo, de sua narrativa sobre a organização da “visita pastoral” do Bispo da diocese, D. Antonio Brandão à freguesia de Castanhal. Embora, não apareça datada esta visita, de acordo com o livro História da Igreja na Amazônia, sabemos que D. Antônio Manuel Castilho Brandão foi bispo diocesano do Pará entre 1895 e 1901.25 Segundo relata em seus escritos, Cônego Leitão recebeu um telegrama de D. Antonio Brandão, que estava “desejoso” de vir a Castanhal. Assim, conforme indica no Livro de Tombo, ele encarregou-se, então, de dirigir-se ao “povo” de Castanhal e de preparar a recepção ao bispo. De acordo com seu registro “em pronta resposta, o povo acenou positivamente ao apelo do Cônego Leitão e o Bispo teve carinhosa recepção e hospedagem condignas”. 26 Assim, diante dessa narrativa uma das impressões que se extraem da análise do Livro de Tombo é que nos escritos de Cônego Leitão havia uma preocupação com os modos da população local, principalmente no trato com as autoridades. Seu relato quer deixar entrever que antes de sua presença em Castanhal, a visita do mesmo bispo, não fora muito calorosa por parte dos moradores. Cônego Leitão informa que “se dirigiu ao povo, a fim de que fizessem carinhosa recepção a D. Antonio Brandão, pois se tratava de um príncipe da Igreja Católica e seria uma Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal – PA, 1911 – 1922. p. 5. 25 HOORNAERT, Eduardo (Coordenador). História da Igreja na Amazônia. Petrópolis, 1992, p. 414. 26 Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal – PA, 1911 – 1922. p. 6. 24

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forma de se retratarem da visita anterior a qual não tinham recebido bem o bispo”. 27 De “espírito acanhado e baldo de conhecimento” 28 eram as características atribuídas à população de Castanhal por Cônego Leitão. Segundo ele, tais moradores não sabiam receber suas visitas, ou acolher as pessoas que vinham de fora. É importante salientar que aqui se trata de como Cônego Leitão compreende os moradores da vila, e não tomamos tal afirmação como uma verdade, do que realmente acontecia, mas as tomamos a partir do olhar do sacerdote. Entretanto, a partir dessas informações podemos apontar alguns questionamentos, sobre estas impressões, tais como: que parâmetros eram utilizados pelo padre para avaliar o conhecimento das pessoas? Quais as motivações dos moradores em não receber bem os representantes da Igreja Católica, como o bispo? De certo é que as impressões deixadas pelo padre não se circunscreviam apenas aos moradores locais, mas também aos seus correligionários do oficio religioso. Tal fato pode ser compreendido no momento em que o padre Cônego Leitão é designado a exercer o ofício religioso em Belém o qual fica por dois anos, terminando suas atividades na capital em 31 de dezembro de 1902. Tal empreitada teve início quando “o Bispo aproveitando a visita pastoral na colônia de Castanhal fez o convite ao padre” para assumir a missão de “conhecer o movimento” da Freguezia de Nazareth, já que o vigário de lá, “monsenhor Amâncio de Miranda, se encontrava muito doente”. 29 Ao que tudo indica, houve certa resistência por parte do padre que não queria sair de Castanhal, pois em seus registros escritos consta que se tratava de “grande honra, mas que logo rejeitou, porque bem compreendia o ódio que ia acarretar com o clero nativista que não sofreria isto com bom humor”. Sem aceitar a recusa de Cônego Leitão, de acordo com o que deixa registrado o Bispo “tratou de nomeá-lo Pro-pároco e, após a morte de Monsenhor Miranda, foi convertido em vigário de Nazaré”. Conta-nos o padre, em suas memórias, que “nos dois anos que esteve em Nazaré sofreu perseguições por parte do Clero, que só aumentaram quando o Bispo D. Brandão foi removido para o Bispado de Alagoas, sua terra natal”. 30 Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal 1922. p. 6. 28 Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal 1922. p. 6. 29 Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal 1922. p. 7. 30 Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal 1922. p. 7. 27

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“Gatunos” foi o adjetivo utilizado pelo padre Cônego Leitão em seus registros de memória para qualificar os representes do clero da freguesia de Nazaré. Segundo suas anotações, “as lutas internas na administração da Igreja foram penosas contra os gatunos que faziam do cofre de Nazaré e de seus donativos, segura fonte de proventos pessoais”.31 Se de um lado as acusações de Cônego Leitão contra os “padres de Nazaré” eram fortes, e talvez tenham desgostado a muitas pessoas, por outro lado elas também sugerem os conflitos e as disputas de poder no interior da igreja. As atividades de Luis Leitão na freguesia de Nazaré duraram até o dia 31 de dezembro de 1902, por ordem do bispo D. Francisco do Rego Maia (19021905). Segundo escreve o padre, “em visita pastoral à Castanhal o bispo celebrou os Sacramentos na propriedade do padre porque não havia Igreja no local”. Mesmo distante de Castanhal, ao que tudo indica as influências do padre continuavam fortes na região, isto porque ao voltar para Belém, o bispo tratou de comunicar seu retorno para a região. Assim descreve no Livro de Tombo: “o coronel Felippe Sampaio, amigo íntimo de D. Francisco, conseguiu deste a volta para Castanhal, onde deveria residir e que ao passo de sabedor das coisas fui até o senador e intendente Antonio Lemos, que tratou de me nomear professor municipal nessa vila”. 32 Os relatos do padre são aqui elucidativos principalmente no que se refere a suas influências junto às autoridades políticas paraense, assim foi com o Coronel Fellipe Sampaio, ao que tudo indica pessoa influente no meio político, e também a figura do intendente Antonio Lemos33, um dos mais destacados políticos da história do Pará. De modos que o Cônego Leitão soube tirar partido de tais autoridades e assim conseguir regressar a Castanhal, onde passa a residir e atuar como professor, cargo público que lhe manteria a partir de 1902. Portanto, o regresso do Cônego a Castanhal, designado a exercer funções religiosas e educacionais, demonstra a habilidade usada de exercer influências na região, desenvolvendo a sua capacidade de articulação junto às lideranças políticas, agora também no trato com as atividades educacionais. Liderança esta que nos pareceu não existir em Belém, quando de sua presença como padre da igreja de Nazaré. De fato, uma coisa era a sua influência política e religiosa na Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal – PA, 1911 – 1922. p. 7. 32 Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal – PA, 1911 – 1922. p. 8 e 9. 33 Para o conhecimento da atuação e importância política do intendente Antônio Lemos, ver SARGES, Maria Nazaré dos Santos. Memórias do "velho" intendente Antônio Lemos 1869-1973. Belém: Paka-Tatu, 2002; SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzido a Belle-Époque. Belém: Paka-Tatu, 2000. 31

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região da Estrada de Ferro de Bragança, mais especificamente nas áreas de Castanhal e nas colônias próximas, formada em sua maioria por migrantes cearenses, seus conterrâneos, outra coisa era construir um espaço político em uma cidade como Belém, capital do estado. Não podemos esquecer que nesse momento, início do século XX, Belém era um espaço mais desenvolvido – em pleno vigor da economia da borracha34 -, ocupado por outros sujeitos políticos e intelectuais que possuíam diferentes motivações, ao passo que o padre tinha que dividir esse espaço com outras pessoas, daí porque ele afirma enfrentar diversos conflitos. Assim, talvez sua insatisfação em Belém, se devesse ao fato da perda de sua influência e do papel político que vivenciava, na pequena vila de Castanhal. Depreende-se, por seu relato, que o melhor caminho a seguir era tomar os rumos de volta à Castanhal onde ele poderia exercer sem grandes transtornos a condução de seus projetos. Ao reiniciar suas atividades em Castanhal, o Cônego Leitão escreve em suas memórias que a cargo do Excelentíssimo senhor Bispo D. Francisco, “se fazia necessário em Castanhal a edificação de uma Igreja, ao passo de que a edificação de um templo já dominava o seu espírito, logo que houvesse oportunidade”.35 Portanto, tratava-se de um projeto que traria inúmeros significados e importância no cotidiano de Castanhal, a construção de um símbolo de poder e influência, trazendo em si um referencial de ideias e valores impregnados, importantes para população católica da vila, que era a maioria como se percebe no Livro de Tombo.

Sobre a questão ver: SANTOS, Roberto Araújo de Oliveira. História econômica da Amazônia: 1800-1920. São Paulo: T. A. Queiroz, 1980; WEINSTEIN, Barbara. A Borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: Hucitec/EdUSP, 1993. SARGES, Maria de Nazaré. “Riquezas, Tributos e Mercado de Trabalho em Belém (1890-1910)”. In: FIGUEIREDO, Aldrin Moura de & ALVES, Moema Bacelar (orgs.). Tesouros da memória: história e patrimônio no Grão-Pará. Belém: Ministério da Fazenda – Gerência de Administração no Pará/ Museu de Arte de Belém, 2009, pp.181191; LACERDA, Franciane Gama. “Reclamações do povo: luta por direitos na cidade, seringais e núcleos coloniais da Amazônia brasileira (séculos XIX e XX)”. Projeto História n. 33 (dez. 2006), pp. 63-82. 35 Livro de Tombo da Paróquia de São José, do município de Castanhal – PA, 1911 – 1926. Fl. 9. 34

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A CIDADE SE DIVERTE: BELÉM DO PARÁ E OS FESTEJOS JUNINOS NOS ANOS DE 1950 Elielton Benedito Castro Gomes1 Resumo O presente texto, resultado de pesquisas em jornais que circulavam na capital paraense em meados do século XX, em especial na década de 1950, pretende analisar, por meio das notícias e convites, presentes em suas páginas, as festas de São João em Belém do Pará. Buscaremos compreender qual a relação destas festas com as transformações socioculturais vividas pela população local. Ao apresentar parte do cenário das formas de festejar à época, procuramos compreender o alcance e a forma assumida pelos cronistas e redatores da imprensa paraense no julgamento dessa prática cultural popular realizada em Belém do Pará. Palavras-chave: Belém, Festa junina, Imprensa. Introdução Entre os principais festejos populares realizados na capital paraense na segunda metade do século XX, encontrava-se o carnaval, os festejos juninos e a festa do círio de Nossa Senhora Nazaré. Essas festas, corriqueiramente divulgadas pela imprensa local, se destacavam nas páginas dos periódicos da cidade, tendo, cada vez mais, espaços significativos nas gazetas que circulavam em Belém. Desde pelo menos a segunda década do século XX, a partir da remodelação em que a imprensa nacional vivenciou, onde passou a conhecer e a utilizar diversos processos de inovações tecnológicas que permitiram o uso de uma diversidade de ilustrações como charges, caricaturas e fotografias, bem como a presença de crônicas e cenas do dia a dia (festas, cinema e teatro), fez com que esses fossem “tempos de expansão da grande imprensa”, na qual a pluralidade Mestrando em História Social da Amazônia, na Linha de Pesquisa “Trabalho, Cultura e Etnicidade”, pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará – UFPA, bolsista CAPES, sob orientação do Prof. Dr. Antonio Maurício Dias da Costa. Integrante do Grupo de Pesquisa “História, Cultura e Meios de Comunicação”. E-mail: [email protected] 1

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de temática, principalmente os acontecimentos dos cenários urbanos, que viviam um intenso processo de modernização, se faziam presentes 2. Sobre toda inovação em que a imprensa nacional vivenciou nas primeiras décadas do século XX, Leonardo Afonso Pereira observa que o jornalismo passou a ser, então, “um poderoso e eficaz meio de comunicação de certa parcela da sociedade” e quase sempre era composto por jornalistas, políticos e literatos, que ao escreverem nas páginas dos periódicos, deveriam obedecer aos códigos particulares a eles impostos, por exemplo, apresentar “um texto leve e um texto acessível: era preciso ainda trazer, nas folhas, aqueles temas de interesse do maior número de seus possíveis compradores”, tendo em vista tratar de assuntos que eram de importância dos consumidores e “fora do mundo das letras”, como as festas da Penha, os jogos e o carnaval, convertidos em grandes temas jornalísticos e literários3. Diante disso, como afirma Valéria Guimarães, nesse período uma das principais características dos jornais que circulavam, principalmente no eixo Rio de Janeiro – São Paulo, ao tratar dos acontecimentos do dia a dia, em forma de crônicas, era “o recurso da ficção para tornar a noticia a um só tempo mais interessante ao leitor”4. Em Belém do Pará, nos anos de 1950, a prática apresentada acima, por Leonardo Affonso Pereira e por Valéria Guimarães, intensificou-se. Os jornais e revistas produzidos na capital como, por exemplo, a Revista Amazônia e os jornais O Liberal, Folha do Norte, A Província do Pará, Folha Vespertina e O Estado do Pará, entre outros, traziam em suas páginas a “fórmula” do texto “claro e acessível”. Os anos de 1950 foi também o período em que houve um crescimento do número e diversificação dos meios de comunicação no Brasil, dando destaque para o rádio, sendo o responsável pelas inovações de estilos (fama e ascensão social) e práticas cotidianas no âmbito urbano. Esses meios de comunicação tiveram papeis importantíssimos nas formas de se festar em Belém do Pará, nos anos de 1950, onde, além da intensificação Sobre esse processo de transformação em que a imprensa nacional passou a partir do início do século passado, consultar: ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. Imprensa a serviço do progresso. In: MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tania Regina de (Orgs.). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, pp. 84-102. 3 Sobre isso, ver: PEREIRA, Leonardo. Sobre confetes, chuteiras e cadáveres: a massificação cultural no Rio de Janeiro de Lima Barreto. Projeto História, São Paulo, v. 14, p. 231-241, fev. 1997. 4 GUIMARÃES, Valéria. Os dramas da cidade nos jornais de São Paulo na passagem para o século XX. Rev. Bras. Hist. vol.27. n. 53. São Paulo, Jan./June 2007. 2

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das propagandas nas folhas de jornais e revistas da cidade, outros elementos estavam presentes como, por exemplo, as divulgações de eventos culturais e festivos que ocorreriam na capital5, o que “assinala a importância atribuída pela opinião pública aos lazeres públicos e de massa” 6. Belém do Pará: breve cartografia festiva A cidade de Belém do Pará, capital paraense, possui um universo cultural riquíssimo, que invade os variados ambientes de lazer e sociabilidade (ruas, praças, feiras, bosques, escolas, clubes dançantes e esportivos), onde as relações sociais são intensas, relações essas que “tendem a abranger, no meio urbano, por exemplo, as relações entre grupos de vizinhança e poder público, entre promotores de eventos e políticos, autoridades religiosas, agentes dos meios de comunicação, entre outros”7. Os anos de 1950 foram de profundas transformações para a capital paraense, pois se intensificava com o processo migratório, campo-cidade, a ocupação e urbanização de terras que compõem, em sua maioria, os atuais bairros periféricos Belém. Esses migrantes foram importantíssimos diante das mudanças socioculturais que, desde então, Belém do Pará passa a viver. De acordo com Carmem Izabel Rodrigues, essas áreas periféricas que, nos finais dos anos 40 e durante os anos de 1950, passaram por intenso processo de urbanização tornaram-se “espaços de estabelecimento e circulação de moradores das áreas ribeirinhas situadas próximas a Belém, especialmente das cidades e localidades estabelecidas no rio Guamá e Tocantins e seus afluentes”8. O etnógrafo e folclorista baiano Edison Carneiro, em visita a capital paraense na segunda metade do século XX, assim a apresenta:

Deixo claro que essas publicações relacionadas a eventos culturais realizados na cidade faziam parte, desde pelo menos o início do século XX, das páginas dos periódicos do estado. No entanto, a partir do final da primeira metade desse século essas propagandas se intensificaram, ganhando espaço maior na imprensa local. 6 COSTA, Antonio Maurício; GOMES, Elielton. A “quadra joanina” na imprensa, nos clubes e nos terreiros da Belém nos anos de 1950: “tradição interiorana” e espaço urbano. Cadernos de Pesquisa do CDHIS, Uberlândia, v.24, n.1, jan./jun. 2011, pp. 197. 7 COSTA, Antonio Maurício Dias da. Festa de santo na cidade: notas sobre uma pesquisa etnográfica na periferia de Belém, Pará, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 6, n. 1, jan.- abr, pp. 198. 2011. 8 RODRIGUES, Carmem Izabel. Vem do bairro do Jurunas: sociabilidade e construção de identidades em espaço urbano. Belém: Editora do NAEA, 2008, pp. 77. 5

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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos Os bairros, Sacramenta, Pedreira, Telégrafo sem Fio, Cremação, Condor, com sua sistematização de ruas: no dos Jurunas, tribos indígenas, Tupinambás, Timbiras, Parecis, Mundurucus; no do Marco (da Légua), as vitórias brasileiras na guerra do Paraguai, Lomas Valentinas, Humaytá, Peribebuí, Chaco; no de Nazaré, figuras da República, Deodoro, Ruy Barbosa, Quintino Bocayuva, Benjamin Constant... A Praça Batista Campos, em que a prefeitura transformou o antigo parque; a “vila” da Barca, pescadores e marítimos vivendo sôbre a água em casa de madeira arrancada a navios encalhados; a miniatura da floresta amazônica no Bosque Rodrigues Alves... A arborização de mangueiras... Travessas, alamedas, passagens, como a da Volta do Tripa...9

Os espaços apresentados acima por Edison Carneiro transpassavam a cidade de Belém do Pará – do centro ao subúrbio – onde eram diversificados os ambientes de lazer e sociabilidade. Diante do processo de urbanização e modernização das cidades, algumas áreas desenvolveram-se expressivamente em relação às outras. A prostituição, principalmente nas áreas de baixada das cidades, em especial no caso de Belém do Pará, intensificouse. Poderiam ser vistas as prostitutas, mais ou menos refinadas, circulando entre os frequentadores das regiões boêmias de Belém, sobretudo no bairro da Condor 10. Esse bairro, em conjunto com dois outros bairros vizinhos (Guamá e Jurunas), apresentava vasta opção de divertimento, principalmente aos seus moradores. No primeiro (Condor), também conhecido como o bairro da boêmia e da prostituição, poderiam ser encontradas figuras da “malandragem” romântica e seresteira de Belém, indivíduos “craques” na arte da dança, principalmente no merengue11.

CARNEIRO, Edison. A conquista da Amazônia. [Rio de Janeiro]: Ministério da Viação e Obras Públicas; Serviço de Documentação, 1956. (Coleção Mauá). p. 41. 10 O nome Condor surgiu diante da presença de uma companhia aérea alemã, durante os anos 1920 e 1930, instaladas nessa área litorânea da cidade (rio Guamá), no local que hoje se encontra a praça Princesa Izabel, ao lado do Palácio dos Bares. Sobre isso, consultar: RODRIGUES, Carmem Izabel, Op. cit., 2008. 11 Ver: DA COSTA, Tony Leão. Arte engajada e boemia desinteressada. In: DA COSTA, Tony Leão. Música do Norte: intelectuais, artistas populares, tradição e modernidade na formação da “MPB” no Pará (anos 1960 e 1970). 2008. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2008. p. 59. 9

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O bairro do Jurunas, o qual, diante da diversidade cultural, religiosa e festiva, foi afetuosamente chamado por seus moradores como o “Bairro da Folia” 12, sendo um dos mais antigos da capital paraense. Esse bairro, de acordo com Carmem Izabel Rodrigues13, não dorme, pois é um bairro, que diante do grande número de moradores, muitos ribeirinhos e de outras localizações do Estado do Pará, é, desde pelo menos a segunda metade do século XX, um dos mais movimentados, sendo por conta dos portos – entrada e saída de elementos que compõe uma das principais feiras da cidade, a que leva o nome do bairro – ou por conta do universo festivo que esse apresenta. O bairro do Guamá, também formado por ribeirinhos, principalmente aqueles que se encontravam nas proximidades da capital paraense, é um bairro, apontado hoje por seus moradores, como um verdadeiro “caldeirão cultural”, pois as práticas populares (religiosidade de matriz africana, quadrilhas, boibumbás, clubes e sedes dançantes) eram e ainda são intensas. Para José Dias Junior, essa diversidade cultural, presente no bairro do Guamá até mesmo nos dias de hoje, foi herdade, principalmente, dos migrantes (nordestinos e ribeirinhos) que habitaram o bairro desde o inicio do século XX14. Talvez, o fato de os bairros do Jurunas, Guamá e Condor estarem localizados nas proximidades do rio, locais onde a circulação de moradores das áreas ribeirinhas era constante, tenha proporcionado, com o intenso processo migratório do campo para a capital, durante os anos de 1950, esse aumento populacional15. Além disso, esse processo pode também ser considerado como Segundo Carmem Izabel Rodrigues, o termo “Bairro da Folia” serviu, por muito tempo, para definir um dos bairros mais festivos da cidade, o Jurunas. Ver: RODRIGUES, Carmem Izabel, Op. cit., 2008, p. 131. 13 RODRIGUES, Carmem Izabel. Vem do Bairro do Jurunas: sociabilidade e construção de identidades entre ribeirinhos em Belém – Pa. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006, pp. 104. 14 DIAS JUNIOR, José. Cultura Popular no Guamá: Um estudo sobre o boi bumbá e outras práticas culturais em um bairro de periferia de Belém. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Belém, 2009, pp. 45. 15 Como muitas outras cidades localizadas na região amazônica, a de Belém do Pará, surgida entre as águas dos rios Guajará e Guamá traz, em sua estrutura, um número significativo de portos, empresas e empresas-portos, sendo esses dirigidos pelo Estado ou por instituições privadas e que tiveram uma importância crucial na dinâmica econômico-espacial da cidade e na vida de seus moradores, principalmente dos migrantes que foram se fixando próximo a essas áreas durante o processo de urbanização da cidade no século passado. Sobre isso, consultar: RODRIGUES, Carmem Izabel. À beira do Guamá... um bairro em movimento. In: VIEIRA JUNIOR, 12

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o principal motivo de (re) significação da paisagem urbana, cultural e social de Belém durante a década de 50, pois também se intensificava a aproximação cultural entre os dois mundos – urbano e rural – “numa miríade de costumes capazes de responder pela nova lógica urbana a partir de então.” 16. Os bairros mais centrais da cidade como, Batista Campos, Nazaré, Campina, São Braz e parte do Reduto, também contribuíram significativamente para a expansão do universo cultural belenense durante meados do século XX. Nesses bairros era encontrado outro lado da boemia da cidade, ou seja, eram presentes bares, cafés, boates e outros recintos de lazer glamurizados, quase sempre, pela imprensa paraense de meados do século passado. Esses bairros ofereciam, aos moradores e visitantes, suposta melhor condição de vida, em razão dos processos de embelezamento, urbanização e “civilização”, derivados do auge da economia gomífera, desde a segunda metade do século XIX, e também pela Bela Época17. Festa Junina, Lazer e Sociabilidade em Belém nos anos de 1950. (...) muitas fogueiras encheram de fumaça os olhos brejeiros das cabrochas do subúrbio. Os foguetinhos estouraram na perna de muito gaiato. Os copos de aluá, as cuias de mingáu, os pratos de cangica e pamonha circularam de mão em mão, até o cantar do galo da meia noite. E nos parques de diversões os bumbás enjambrados, de chifres pontudos, de fitas, de rabos de corda, pularam a valer, comandados com energias e disciplina por seus vaqueiros de chapéu com espelhinhos e lantejoulas18.

Antônio Otaviano; BELTRÃO, Jane Felipe (Orgs.). Conheça Belém, co-memore o Pará. Belém: EDUFPA, 2008. 16 DIAS JUNIOR, José. Grandes Projetos: tensões sociais e reboque do desenvolvimento. Anais do XXI Encontro Estadual de Hiistória – ANPUH-SP. Campinas. Setembro. 2012, p. 4. 17 Também conhecida como Belle Époque, foi, segundo Maria de Nazaré Sarges, um período no qual a capital paraense tornou-se um verdadeiro “canteiro de obras”, buscando atrelar a cidade aos modelos estéticos dos países europeus, o que “em parte se tornava possível graças ao aquecimento da economia produzido pela exportação do látex”. Durante um período significativo, a cidade de Belém ficou também conhecida como a “Paris na América” ou “Francesinha do Norte”, refletindo uma imagem civilizatória e de progresso. Consultar: SARGES, Maria de Nazaré. Memória do “velho” intendente: Antonio Lemos – 1869-1973. 1998. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998. 18 Quadra Festiva. Jornal A Província do Pará de 11 de junho de 1954, p. 17. 69

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Nos anos de 1950, os festejos juninos começam a tomar as páginas dos periódicos que circulavam na capital a partir de maio19, mais ou menos os dez dias que antecipa o mês dos sortilégios, dos banhos de cheiro cheirosos, das fogueiras e dos balões coloridos que embelezavam o céu da cidade, ou seja, o mês de junho. Era o encanto do mês que invadia as páginas dos jornais e revistas da cidade, bem como, diversos espaços dançantes de Belém, que aflorava os desejos das moças e rapazes que praticavam, com veemência, as supertições e crendices em busca de sorte, quase sempre, no amor. Mês dos banhos cheirosos feitos das cascas e raízes encontradas no âmago da Amazônia, dos trajes caipiras, dos “casamentos na roça”, dos bailes embalados pelos jazzes orquestras, pelos conjuntos de Pau e Corda e pelos sonoros; dos bumbás que embelezavam as praças, bosques, terreiros e clubes em busca do título de melhor do ano, o “mês da felicidade”, cheio de utopias, de sons, sabores, danças e cores. Na segunda metade do século XX, os locais de sociabilidade e de lazer ampliaram-se significativamente em Belém. Clubes recreativos e desportivos juntaramse aos que já existiam desde pelo menos a segunda década do século XX, expandindo expressivamente a opção de divertimento e recreação da vida cotidiana da população local. A imprensa paraense dos anos de 1950 apresenta, por meio dos anúncios de festas, a diversidade de clubes recreativos e desportivos 20 localizados no meio urbano belenense, distribuindo-se entre o subúrbio e a área nobre da cidade. Os localizados nas proximidades do rio e os de pontos afastados do centro de Belém eram apresentados pela imprensa como “clubes de subúrbio”, já os encontrados no centro da cidade ou em bairros considerados nobres recebiam a denominação de “clubes sociais”, “clubes aristocráticos” ou “clubes nobres”. Segundo Uassyr de Siqueira21, no finalzinho do século XIX e principalmente nos primeiros anos do século XX, com o processo de metropolização de algumas cidades do país, novos valores e estilos culturais emergiram, sendo a intensificação de clubes sociais e recreativos, nas cidades, um deles,

Nessas páginas, encontramos anúncios de casas de fogos de artifícios, lojas de tecidos, bebidas e artefatos presentes na quadra junina. 20 Denominação dada aos clubes que se dedicavam às aptidões físicas, visando competições entre os praticantes, proporcionando também entretenimento a eles. 21 SIQUEIRA, Uassyr. Clubes e sociedades dos trabalhadores do Bom Retiro: organização, lutas e lazer em um bairro paulistano (1915-1924). 2002. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002. 19

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possibilitando que os indivíduos gastassem seu tempo livre com atividades ligadas ao lazer, principalmente com a prática da dança. Diante do processo de modernização e urbanização de algumas regiões do Brasil, os clubes sociais e recreativos, principalmente aqueles localizados nos subúrbios, traziam “uma maneira de integrar os recém-chegados à cidade e fazê-los sentir-se mais em casa”. Segundo Peter Burke, “a existência desses clubes, em muitos dos quais membros de diferentes classes sociais se encontravam regularmente face a face, ajudou a criar uma cultura mais democrática do que até então existente”22. Entre os diversos clubes existentes no meio urbano belenense os que mais se destacavam nos anúncios das festas juninas na década de 1950 eram: São Domingo (Jurunas), Imperial Esporte Clube (Jurunas), Esporte Clube Norte Brasileiro (Cremação), Leblon Esporte Clube (São Braz), Assembleia Paraense (Campina), Delta Clube (Nazaré), Automóvel Clube (Campina), Azas Esporte Clube (Nazaré), Palace Teatro (Campina), Cedro Esporte Clube (Campina), Tropical Clube (Campina), Parque Atlético Clube (Marco), Clube do Remo (Nazaré), Amazônia Clube (Campina), Paissandu Esporte Clube (Nazaré). Além dos clubes recreativos e desportivos, outros ambientes de lazer e sociabilidade existiam na cidade. As residências, ruas, bosques, praças e escolas, durante os festejos juninos, eram também espaços de entretimento e lazer. Sobre isso, matérias publicadas no jornal O Liberal em junho de 1954 apontam que: À noite, teremos os aluás, munguzás, rapazes, moças e velhos passando de compadre, comadre, noivas, primos, etc., enquanto nos parques veremos os bumbas e pássaros na sua exibição folclórica23 (grifo meu). As praças da 1ª Zona Aérea realizarão hoje, no hangar_amarelo da Base, em Val_de_Cães, uma big “festa na roça”, que promete muita animação e que começará às 21 horas de hoje e irá até o sol raiar24 (grifo meu). Para encerrar a quadra de festejos juninos, a turma de Nazaré resolveu efetuar hoje, na residência da Sra. Núbia Toscano, à rua Domingos Marreiros, esquina da

BURKE, Peter. A história social dos clubes. Folha de São Paulo, São Paulo, fev. 2002. Seção Mais Autores. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2013. 23 Fogueira de São João.. O Liberal, 22 jun. 1954. 24 Uma Festa na Roça. O Liberal, 26 jun. 1954. 22

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Cidade e Cultura Wandenkolk, uma festa típica, para a qual os preparativos correram a capricho25 (grifo meu).

Em três momentos distintos e em âmbitos diferentes, as festas juninas descritas anteriormente apresentam uma diversidade de elementos significativos que compõem esse momento festivo. Percebe-se que as festas realizadas em parques, praças e bosques buscavam comemorar um São João o qual, como observa Luciana Chianca, idealiza a vida do homem do campo, já que “é durante ela que essas representações são vividas e encenadas pela totalidade da cidade”26. Em consonância com as fontes apresentadas anteriormente, Chianca 27 diz ainda que a festa junina – além de ser vista como um momento de grande efervescência da cidade, no qual os brincantes, mesmo que inconscientemente, idealizam o passado do homem interiorano, visto como “dotado de traços positivos como a ingenuidade e o bom coração (...), considerado “mais puro” que o da capital” – é vista também como uma festa familiar, não no sentido dado às comemorações natalinas, restritas a parentes, mas sim uma festa que, de uma forma ou de outra, se estende aos amigos e vizinhos. A notícia que ocupou a metade da 8ª página do jornal O Liberal, publicada em 24 de junho 1958, intitulada “Petizadas dos grupos volta a festejar noite de São João”, apresenta-nos o retorno da “velha tradição”, que reside em comemorarem-se os festejos juninos nos grupos escolares da capital paraense, comemoração essa que, segundo a imprensa, “fôra abandonada pelo governo anterior”. Nessa noite, os grupos escolares Vilhena Alves, Floriano Peixoto, Barão do Rio Branco, Pinto Marques e Dr. Freitas transformaram-se em grandes arraiais juninos. O então governador da época, Magalhães Barata, visitou os estabelecimentos de ensino durante as comemorações a São João. Alunos e alunas, professoras, famílias dos alunos, convidados e até mesmo o governador do Estado, general Magalhães Barata viveram à noite de ontem instantes de ternas emoções nas festas juninas realizadas em cinco grupos da capital do Estado, sob o patrocínio da Secretaria de Educação e Cultura. A querida e antiga tradição das festas juninas nos estabelecimentos escolares, inexplicavelmente suprimida na administração passada, foi agora reavivada graças a uma recomendação do governador do Estado à Secretaria de Educação. E os espetáculos da noite de ontem quando os grupos se apresentaram festivamente

Festejos Juninos. O Liberal, 30 jun. 1954. CHIANCA, Luciana. Para onde vai a cidade? Festa junina em Natal/RN. Vivência, Natal, v. 13, p. 60, jan.-jun. 1999. 27 CHIANCA, Luciana. Chama que não se apaga. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 4, n.45, p. 23, jun. 2009. 25 26

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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos engalanados e a criançada a brincar inocentemente, diversões sadias e puras foram uma demonstração de que o ato do governador, determinado à volta das comemorações, veio corresponder em cheio aos desejos da família paraense28.

Diante do que ora é apresentado, percebe-se que as festas juninas ganharam um caráter “oficial”, vinculado ao discurso político vigente, tendo em vista a garantia de lucro ante sua produção. Assumia-se um discurso de preservação da cultura regional e da importância dela para a população local, havendo um forte entrelaçamento da política com as questões culturais. Além disso, as “antigas tradições” transformaram-se e foram substituídas por novos padrões socioculturais, muitas vezes funcionando como alavancas para uma intensa relação de interesse político. As festas realizadas nesses ambientes de sociabilidade e lazer contavam com a animação de grupos de “pau e corda”, “Jazzes Orquestras”, Bois Bumbás, Cordões de Pássaros e as famosas Pick-up’s, que tocavam variados ritmos musicais, animando as noites dos brincantes. Entre esses ritmos, os que se destacavam nos anúncios das festas juninas presentes na imprensa paraense durante a década de 1950 foram: Grupo de Jazz Orquestra Batutas do Ritmo, que tinha no seu comando a pessoa de Sarito; Grupo de Jazz Orquestra Martelo de Ouro, liderado por Vinícios; Jazz Internacional, coordenado pelo Professor Candoca, também conhecido como o “Mago da Viola”; Jazz Vitoria, liderado por Raul Silva; e Jazz Marajoara, tendo à frente o maestro Oliveira da Paz. Além desses grupos, as festas realizadas nos ambientes recreativos da cidade também eram animadas pelos Bois Bumbás e Cordões de Pássaros, os quais, mesmo se apresentando em alguns clubes recreativos de Belém, ganhavam mais espaço nas festas e concursos realizados nas praças e bosques da cidade.

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Revivem escolares nos grupos ternas tradições de S. João. O Liberal, 25 jun. 1958. 73

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“QUE SE PODEM VER, MAS NÃO DESCREVER DEVIDAMENTE”: A CIDADE DE BELÉM/PA DO TEMPO DE ANTONIO LOPES MENDES (1883) Franciane Gama Lacerda1 Resumo A pesquisa toma como referência descrições do viajante português Antonio Lopes Mendes que visitou a cidade de Belém em 1883. Trata-se assim, de relacionarmos as impressões do viajante com outros registros escritos do mesmo momento acerca da cidade. Objetiva-se comparar tais impressões considerando que estas nos permitem entender o espaço da capital do Pará no início da década de 1880, bem como os sentidos que se dava ao espaço urbano naquele contexto. Palavras-chave: Belém/PA, século XIX, cidade. Considerações iniciais Em 1883, de passagem pela Província do Pará o viajante português, Antonio Lopes Mendes 2, afirmava, acerca da paisagem dessa região, possivelmente admirado pelo que via, que o “vaticínio de todos os geógrafos e viajantes que conhecem (…) estas paragens” era o de poder “ver, mas não descrever devidamente”.3 As impressões de Antonio Lopes Mendes talvez fossem fruto do seu interesse em anotar, descrever e enviar para a Sociedade de Geographia de Lisboa, da qual era membro, informações acerca dos lugares que visitava quando de sua viagem ao Brasil naquele ano. A cidade de Belém foi um desses espaços por ele visitado, num tempo em que essa capital, ainda não havia passado pelas reformas urbanas cuja ênfase se Faculdade de História/UFPA Sobre Antonio Lopes Mendes ver: TURAZZI, Maria Inez “Os estudos comparativos e os desenhos ‘imparciais e singelos’ de Antonio Lopes Mendes no Brasil (1882-1883)”. Boletim do Museu. Paraense. Emílio Goeldi. Ciências. Humanas. Belém, v. 9, n. 2, maio-ago. 2014, pp. 361-382. 3MENDES, Antonio Lopes. America Austral – Cartas escriptas da America nos annos de 1882 a 1883. In: Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa. Carta XXX. Santarém 23 de julho de [sic1893], p. 554. 1 2

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daria no governo do Intendente Municipal Antonio Lemos, conforme já demonstrou Sarges4. Desse modo, nesse texto, interessa-nos pensar alguns aspectos dessa cidade do tempo de Antonio Lopes Mendes, dando ênfase a constituição desse espaço e aos serviços de obras públicas que eram realizados pela presidência da Província naquele momento, às preocupações em torno de questões com as medidas higienistas, tomando como referência as descrições do viajante português, relatórios do Barão de Maracajú, Presidente da Província do Pará, e jornais do período aqui estudado. Trata-se assim relacionarmos as impressões de Antonio Lopes Mendes com outros registros escritos desse momento com o objetivo de compararmos tais impressões considerando que estas nos permitem entender o espaço da capital do Pará no início da década de 1880. Antes de adentrarmos na cidade de Belém de 1883, considera-se importante algumas informações sobre Antonio Lopes Mendes, cujas impressões acerca da cidade de Belém são alvo de nosso interesse aqui. A viagem de Antonio Lopes Mendes ao Brasil havia se iniciado em 28 de setembro de 1882 a bordo do vapor “Gallicia”, da Companhia do Pacífico, partia de Lisboa com destino à baia da Guanabara no Brasil. Antes mesmo de sua chegada à Província do Pará a viagem já era anunciada a exemplo de uma nota no jornal paraense O Liberal do Pará, de novembro 1882, intitulada “Exploração ao Amazonas”. A mesma nota, por meio do jornal Diário da Manhã, de Maceió, informava que o Sr. Mendes iria primeiro ao Rio de Janeiro assistir a uma “exposição etnográfica” que ali acontecia. Na ocasião também cumprimentaria uma comissão da Sociedade de Geografia de Lisboa que se achava na capital do império e igualmente o próprio Imperador do Brasil. O periódico ainda fazia questão de enfatizar que o Sr. Lopes Mendes iria a “sua custa empreender a exploração”.5 Tal informação talvez objetivasse legitimar o empreendimento de Lopes Mendes uma vez que ele próprio financiaria a viagem ao Brasil. De fato, o próprio viajante não deixou de registrar que faria tal viagem a América as suas “expensas”. Ao lado disso os cumprimentos ao imperador sugerem a relação desse homem das ciências com as autoridades brasileiras, de maneira especial com o Imperador D. Pedro II, que construía de si mesmo a imagem de um imperador moderno, amante das artes e das ciências6. Essa viagem ao Brasil resultou em SARGES, Maria de Nazaré. Riquezas produzindo a belle époque – Belém do Pará (18701910). Belém: Paka-Tatu, 2000. SARGES, Maria de Nazaré Memórias do Velho Intendente (1869-1973). Belém: Paka-Tatu, 2002. 5 O Liberal do Pará. Belém, 07 de novembro de 1882, p.2. 6 Sobre o Imperador Schwarcz enfatiza a imagem que ele construía de si mesmo: “Como um mecenas das artes, d. Pedro II enraizava sua imagem de governante. (…) D. Pedro 4

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uma publicação, composta por 52 cartas, publicadas, em 1893 por interesse da Sociedade de Geographia de Lisboa no trabalho “America Austral – Cartas escriptas da America nos annos de 1882 a 1883”. A cidade que Antonio Lopes Mendes viu Antonio Lopes Mendes descreve as águas do Guajará quando de sua chegada a Belém num quente junho de 1883 como “semeadas de embarcações de diversos tamanhos e feitios e limitadas ao ocidente por pequenas ilhas cobertas de verdura”. Naquele ano era Presidente da Província do Pará, o Barão de Maracajú, descrito por Mendes como um “militar brioso, cavalheiro e inteligente”. É possível que o Barão de Maracajú quisesse construir de si mesmo essa imagem, uma vez que naquele momento saudara Lopes Mendes com amabilidade e gentileza, insistindo inclusive para que o visitante ficasse hospedado no “palácio da presidência” 7. Por outro lado, naquele momento, o Barão de Maracajú preocupava-se em iniciar a construção da primeira ferrovia paraense, que de acordo com o que aconteceu em outros lugares do Brasil8 traria grandes mudanças para a vida das populações da Província do Pará. De fato, conforme enfatizou Silva o “impacto da locomotiva a vapor foi, com certeza, sensacional, e retratou o que havia de mais revolucionário dentre as conquistas da tecnologia do século XIX” 9. Assim, quando da passagem do viajante português pela cidade de Belém as atenções do era dado a novidades, gostava de estudar línguas e ciências exóticas, e a palavra progresso, para ele, vinculava-se à ciência e ao intelecto. (…) Poliglota, assíduo correspondente e sócio de várias instituições internacionais (…) mesmo antes de sair do país, d. Pedro II tinha junto ao trono uma biblioteca, um museu, além de um laboratório e seu famoso observatório astronômico”. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.234. http://www.usp.br/cje/anexos/pierre/asbarbasdoimperador_lilia_moritz_schwarcz.p df 7 MENDES, Antonio Lopes. America Austral – Cartas escriptas da America nos annos de 1882 a 1883. In: Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa. Carta XXIX 22 de julho de 1883, p.528. 8 Sobre impactos causados pela implementação das ferrovias ver o trabalho de Reis sobre a Estrada de Ferro de Baturité no Ceará. Cf. REIS, Ana Isabel Ribeiro Parente Cortez. O espaço a serviço do tempo: a Estrada de Ferro de Baturité e a invenção do Ceará. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza: 2015. 9 SILVA Geraldo Gomes. Arquitetura do Ferro no Brasil. São Paulo: Nobel, 1988, p. 34 76

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Presidente da Província se voltavam para o início da construção da Estrada de Ferro de Bragança, pensada por ele como um evento que colocaria o Pará nas sendas do desenvolvimento e como um dos “marcos do progresso e da civilização” 10. A implementação desses caminhos de ferro trazia consigo a proposta de povoamento e colonização das terras que margeavam a ferrovia, daí porque, logo quando se propagou no Pará, a construção da ferrovia, já se falava em descontos nas passagens de trens para os imigrantes que se dirigissem aos núcleos coloniais que deveriam ser formados naquela região11. Pode-se pensar que houve por parte do poder público paraense, uma insistência constante no sentido de se fazer valer um ambicioso projeto de colonização para a Zona Bragantina12. Deixemos a ferrovia do Barão de Maracajú e nos voltemos para a cidade de Belém que talvez Antonio Lopes Mendes não tivesse visto tão bem. Naquele momento, para além das embarcações que chamavam atenção do viajante a população de uma maneira geral e autoridades como o Presidente da Província se viam envolvidos com o medo de uma epidemia de varíola, que segundo registrou o Barão de Marcajú, levava os médicos a tomarem medidas higiênicas como vacinação, visitas domiciliares, e a criação de enfermarias. Além do “asseio, limpeza da cidade, das casas particulares e de edifícios públicos”. Ao mesmo tempo, o Presidente da Província afirmava que com o apoio das autoridades policiais lutava “contra os indigentes” 13. Desse modo, vemos aqui presentes duas práticas que demarcaram o contexto republicano de ordem e de progresso, mas que alguns anos antes já se faziam presente como uma forma de Pronunciamento do Barão de Maracajú, Presidente da Província do Pará, publicado n’O Liberal do Pará, Belém: 26 de junho de 1883, p.1. 11 “Todo o transporte de pessoas por conta do governo, dos colonos e suas bagagens, terão abatimento de 20%.” Art. 1º item 9, da Lei No. 658 de 31/10/1870, da Província do Pará. É comum encontrarmos em ofícios dirigidos à Secretaria de Obras Públicas Terra e Colonização do Pará um número razoável de solicitações de passagens gratuitas para imigrantes que deveriam se fixar às margens da Estrada de Ferro de Bragança. 12 A história do trabalho vivo que se petrificou nessas colossais obras de engenharia ainda está por ser escrita (...). Grande movimento de terra e de homens: a implantação das vias permanentes das estradas de ferro é um capítulo privilegiado do nascimento e morte de cidades, da dizimação de populações nativas, de processos migratórios e de colonização. HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp.127-128. 13 Falla com que o Exm. Sr. General Barão de Maracajú abrio a 2ª sessão da 23ª Legislatura da Província do Pará em 15 de fevereiro de 1883. Pará. Impresso na Typ. do Jornal da Tarde, 1883,p.11. 10

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disciplinar os moradores de Belém e como uma forma de enquadrar nos padrões civilizacionais os grupos menos favorecidos como os pedintes que circulavam pelas ruas da capital. Nesse contexto, entravam em ação as práticas higienistas constituídas pelo poder da polícia e da medicina. Isto nos sugere que tais preocupações de ordenamento urbano não foram somente característica da República, ma sim uma prática anterior, como pode se perceber pelas ações do Barão de Maracajú em Belém. Assim, um ano depois, o Barão de Maracajú, em um pronunciamento sobre os moradores pobres da cidade que “diariamente” percorriam as ruas implorando a “caridade pública” afirmava era pouco “lisonjeiro” para a capital do Pará o “espetáculo de ver-se crescido número de mendigos”14. Diante disso o Presidente da Província, afirmava que começava a pensar em um asilo para esse grupo que se voltaria para “aqueles que realmente” se achavam “impossibilitados de ganhar a vida por meio do trabalho”. 15 Nesse contexto como bem aponta Chalhoub, ainda que se referisse ao Rio de Janeiro da corte imperial, as classes pobres, não eram entendidas como perigosas “apenas porque poderiam oferecer problemas para organização do trabalho e a manutenção da ordem pública. Os pobres ofereciam também perigo de contágio”. Desse modo, “o perigo social representado pelos pobres aparecia no imaginário político brasileiro de finais do século XIX” 16. Talvez, isto explique as preocupações higienistas e civilizatórias do Barão de Maracajú em Belém, com o combate a ociosidade. Corroborando com tal pensamento o Barão de Maracajú considerava que um dos “maiores males” que se poderia ter era a “falta de repressão”. Desse modo, reclamava de que dentre os vários problemas que se tinha no controle da população estava justamente a

Pelo teor da fala do Barão de Maracajú não há como não associar tal pensamento ao trabalho clássico de Bresciani “Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da Pobreza”. A partir da leitura de vários literatos a exemplo de Victor Hugo, Baudelaire, Zola e Eugène Sue, a autora aponta preocupações semelhantes em Londres e Paris no século XIX, onde a multidão nas ruas é vista, segundo a autora, diante de “espanto, indignação, fascínio, medo”. BRESCIANI, Maria Stela. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 9. 15 Falla com que o Exm. Sr. General Visconde de Maracajú Presidente da Província do Pará, pretendia abrir a sessão extraordinária da respectiva Assembléa no dia 7 de janeiro de 1884. Pará, Diário de Noticias, 1884, p.82. 16 CHALHOUB, Sidney. A cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.29. 14

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“deficiência de comunicações e transportes” 17. Isso possivelmente explica algumas de suas motivações para que tanto se empenhasse na construção da ferrovia bragantina. Cercada por águas como notou Lopes Mendes, a cidade de Belém, tinha naquele momento e ainda tem hoje, uma grande conexão com os rios. Daí porque as constantes preocupações do Barão com o que denominou de “saúde do porto”. Segundo registrou Presidente da Província, o estado sanitário dos navios ancorados nos porto, apesar de manifestações de varíola em 1882 era “bom”. Nesse ano entre navios e vapores nacionais e estrangeiros haviam entrado no porto mais de 300 embarcações18. Desse modo dentre as obras públicas executadas na capital, estava o calçamento, aterro, arborização e serviço de esgoto de diversas ruas. Havia também o trabalho de nivelamento do cais da marinha. Tal obra teria previsão de término somente em 1885, pois implicava em “aterrar, calçar e arborizar a área” 19. Esses trabalhos sugerem certa preocupação com a urbanização da cidade, por meio de um serviço de saneamento, ainda que bastante incipiente e pelo nivelamento e pelo calçamento de ruas com paralelepípedos por meio da Secção de Obras Públicas. Sobre as ruas da capital paraense Antonio Lopes Mendes não deixou de registrar que as “principais” ruas de Belém eram “amplas e calçadas de paralelepípedos de granito do Rio de Janeiro e de calcário de Lisboa”. De acordo com seu relato Belém em 1883 tinha “quatorze espaçosas praças arborizadas, trinta e cinco ruas e muitas travessas” e “graciosas avenidas ou estradas” como a de “São José” (atual 16 de Novembro) que era “orlada de alterosas e verdejantes palmeiras imperiais e a formosa estrada ou Avenida Nazareth” 20. Tomando como referência os registros de Antonio Lopes Mendes e a “Falla” do Presidente da Província do ano de 1883, evidencia-se também o fato que as preocupações por parte dos poderes públicos com ordenamento das ruas não se voltava para toda a cidade, mas para áreas específicas próximas Falla com que o Exm. Sr. General Barão de Maracajú abrio a 2ª sessão da 23ª Legislatura da Província do Pará em 15 de fevereiro de 1883. Pará. Impresso na Typ. do Jornal da Tarde, 1883, p. 5. 18 Falla com que o Exm. Sr. General Barão de Maracajú abrio a 2ª sessão da 23ª Legislatura da Província do Pará em 15 de fevereiro de 1883. Pará. Impresso na Typ do Jornal da Tarde, 1883, p. 12. 19 Falla com que o Exm. Sr. General Barão de Maracajú abrio a 2ª sessão da 23ª Legislatura da Província do Pará em 15 de fevereiro de 1883. Pará. Impresso na Typ do Jornal da Tarde, 1883, p. 37. 20 MENDES, Antonio Lopes. America Austral – Cartas escriptas da America nos annos de 1882 a 1883. In: Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa. Carta XXIX 22 de julho de 1883, p.531. 17

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muitas vezes do próprio palácio do governo provincial, e da parte de comércio mais movimentada. Assim, o Barão de Maracajú informava que a Secção de Obras Públicas, organizava um projeto de “esgoto” e calçamento para as ruas Formosa (atual Rua 13 de Maio), do Largo do Palácio, Largo da Misericórdia (Atual Barão do Guajará), Travessa das Mercês, Rua de Belém, Rua S. Vicente (Atual Paes de Carvalho), dentre outras21. Não se pode perder de vista que muitas dessas obras tinham também uma preocupação higienista, na medida em que as autoridades sanitárias preocupavam-se com as epidemias e também com a circulação dos mais pobres pelas ruas da capital, conforme já apontamos. Desse modo, as preocupações com uma estética urbana da cidade de Belém, expressada aqui pelo nivelamento de ruas, aterramento, desobstrução de docas e de canos, e até mesmo arborização, não se voltava tão somente pata dotar a cidade de Belém da década de 1880 de melhores equipamentos urbanos de saneamento, mas também para um maior controle da população de maneira especial dos mais pobres. Pelo olhar de muitas dessas autoridades os grupos populares seriam o centro de problemas de toda ordem que iam da transmissão de doenças à vadiagem e à falta de interesse pelo trabalho, conforme vimos anteriormente com a fala do Barão de Maracajú diante da circulação de mendigos pelas ruas. Na verdade, Belém desse contexto experimenta também um aumento populacional em virtude dos negócios da borracha, da presença de migrantes nacionais e estrangeiros, o que possivelmente trazia para os moradores da cidade e para as autoridades locais novos problemas voltados para a circulação de pessoas, para o medo das epidemias e para serviços como o saneamento água e esgoto e limpeza das ruas. Reis Filho ao referir-se às cidades do século XIX enfatiza que o aumento da população que vivia nas cidades “exige uma reformulação técnica” voltada para “novos processos de transporte urbano” e igualmente para “amplos programas de saneamento, com construção de redes de esgotos e uma série de equipamentos desenvolvidos a partir de uma preocupação constante com a saúde pública”.22

Falla com que o Exm. Sr. General Barão de Maracajú abrio a 2ª sessão da 23ª Legislatura da Província do Pará em 15 de fevereiro de 1883. Pará. Impresso na Typ do Jornal da Tarde, 1883, p. 39. As denominações atuais das ruas são baseadas em Ernesto Cruz. Cf. CRUZ, Ernesto. Procissão dos Séculos: Vultos e Episódios da História do Pará [1952]. Belém: Imprensa Oficial do Estado, 1999, pp.84-87. 22 REIS FILHO, Nestor Goulart. “A Perspectiva do arquiteto sobre a cidade”. In: PECHMAN, Robert Moses (Org.). Olhares sobre a cidade. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994, p.177. 21

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Belém do tempo de Antonio Lopes Mendes, conforme registrado pelo viajante tinha cerca40 mil habitantes23, as questões ora apontadas não deixam de se vincular a esta cidade em virtude da paisagem urbana que vinha se constituindo na Província do Pará, pelo crescimento das exportações de borracha e por processos de migração. De fato, na década de 1880, os jornais paraenses não deixam de anunciar os principais produtos vendidos pela “praça” de Belém que eram a borracha, cacau, couros, óleos e castanha. Desses, a borracha já aparece como o principal. Ao mesmo tempo as notícias de migrantes cearenses envolvidos em confusões com a polícia, chegam às páginas dos periódicos da capital, sugerindo o crescimento desse grupo de pessoas na cidade24. Daí porque, nesse contexto, alinhar ruas e ordenar o espaço e a vida dos transeuntes era uma constante para as autoridades paraenses desse início de 1880. Ainda que houvesse uma preocupação com o alinhamento e melhoramento de algumas ruas da cidade de Belém, não se pode pensar nesse momento em um claro programa urbanístico para cidade. Para se ter uma ideia disso, num tempo em que a engenharia ganhava força como um campo de conhecimento importante para o desenvolvimento tecnológico daquele tempo, como a construção de ferrovias, a Secção de Obras Públicas, que deveria dar conta de administrar e planejar atividades para toda a província funcionava no “sótão do Palácio do governo”. Essa repartição tinha somente 10 empregados desses três eram engenheiros, um era desenhista e os demais um amanuense e alguns auxiliares. Não bastasse o número reduzido de empregados o diretor engenheiro José Felix Soares solicitava em 1883 “instrumentos necessários ao serviço da secção” 25·. Tais informações sugerem que a repartição talvez não tivesse tanta importância para a administração provincial naquele momento. Na verdade, se o olhar de Lopes Mendes, concebeu a cidade de Belém com largos com “frondosas mangueiras” “toda iluminada à gás”, com grande “movimento comercial” superado somente pelo Rio de Janeiro, com um porto “cheio de embarcações de todo gênero” além de ruas e cais também cheias de

MENDES, Antonio Lopes. America Austral – Cartas escriptas da America nos annos de 1882 a 1883. In: Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa. Carta XXIX 22 de julho de 1883, p.531. 24 Jornal da Tarde. Belém, 03 de junho de 1882, pp.1-2. 25 Falla com que o Exm. Sr. General Barão de Maracajú abrio a 2ª sessão da 23ª Legislatura da Província do Pará em 15 de fevereiro de 1883. Pará. Impresso na Typ do Jornal da Tarde, 1883, p. 36. 23

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“gente” 26, a vida cotidiana na capital paraense era repleta de complicações e de dificuldades. Modelar nesse sentido era os constantes problemas com a iluminação da cidade, sempre precária. Em 1882, o Jornal da Tarde, denunciava que “este serviço continuava a ser mal feito”. Segundo o periódico os oficiais da ronda noturna encontraram muitos combustores apagados e outros com “pouca luz”.27 O Barão de Maracajú afirmava que o serviço deixava tanto a desejar que se notava a falta de luz “tanto em casas particulares como em prédios públicos”. Segundo relatou no palácio provincial “faltava luz no bico dos candeeiros”. 28 Um ano depois desses pronunciamentos o Presidente da Província do Pará continuava a lamentar-se dos serviços de iluminação a gás. O Barão de Maracajú referia-se ao fato de que várias ruas da cidade “reclamavam iluminação”, até mesmo a ruas próximas ao palacete provincial. Além dessas a Travessa São Matheus (atual Padre Eutíquio), a Rua dos Tymbiras, a Rua do Conselheiro Furtado até a Travessa do Dr. Moraes, além de outras que já estavam “muito edificadas” eram ruas que necessitavam de melhor iluminação. Na ocasião os serviços de iluminação a gás da cidade eram vinculados à Companhia Gaz Light & Coke de Londres, que tinha como concessionária em Belém a Pará Gaz Comp. J. Limed29. As ruas citadas pelo Presidente da Província sugerem um crescimento da cidade para além do bairro da Campina e em direção a uma parte do que hoje é o Bairro de Batista Campos. Além dos serviços de iluminação, um problema que parecia preocupar a vida dos moradores da cidade era questão da limpeza das ruas e docas, da presença de lixo, sujeira, e mau cheiro pelas ruas da capital. É possível que estes problemas próprios da vida urbana e que com os quais a população convivia cotidianamente, colocassem em evidência as contradições das preocupações higienistas e sanitárias das autoridades e até mesmo dos saberes populares em relação às doenças30. De fato, se o governo provincial assegurava medidas MENDES, Antonio Lopes. America Austral – Cartas escriptas da America nos annos de 1882 a 1883. In: Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa. Carta XXIX 22 de julho de 1883, p.531. 27 Jornal da Tarde. Belém, 03 de junho de 1882, pp.1-2. 28 Falla com que o Exm. Sr. General Barão de Maracajú abrio a 2ª sessão da 23ª Legislatura da Província do Pará em 15 de fevereiro de 1883. Pará. Impresso na Typ do Jornal da Tarde, 1883, p.73. 29 Falla com que o Exm. Sr. General Visconde de Maracajú Presidente da Província do Pará, pretendia abrir a sessão extraordinaria da respectiva Assembléa no dia 7 de janeiro de 1884. Pará, Diário de Notícias, 1884, pp. 86 e 90. 30 Segundo Chalhoub referindo-se às epidemias no Rio de Janeiro “As ideias populares sobre como as doenças eram contraídas, e suas concepções sobre como procurar a cura 26

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profiláticas em relação às epidemias à movimentação do porto, é possível também que de outro lado o mau cheiro decorrente da sujeira, de animais mortos, talvez deixassem a população que circulava pelas mais movimentadas ruas da cidade amedrontada. Assim, por meio do poema “Jacaré no rio”, publicado em novembro de 1883 no jornal A Vida Paraense, podemos perceber um pouco disso. Ainda que a cena descrita pelo poeta não tenha de fato acontecido. Ainda que consideremos as querelas políticas que poderiam fazer parte das relações estabelecidas entre redatores e presidência da província, o poema não deixa de expressar algo sobre a mentalidade da população belenense de 1883, mesmo ano que Antonio Lopes Mendes passou pela cidade. O poema, cujo autor assinava como Ernesto Pampadour, é anunciado como uma “paródia à Rosa no mar”, de Gonçalves Dias. Passemos à “Jacaré no rio”: Por uma doca empestada, Enlameada, Divagava um jornalista; (…) Quando surge na maré Um jacaré De verdes algas coberto. (…) Vem a onda sobre o lixo, Vem o bicho; Foge a onda ele também; (…) N’isto a barrenta maré O Jacaré Para a terra traz consigo; (…) Era morto o desgraçado, (…) Perfume desconhecido Foi sentido E o jornalista fugia… Enquanto que a doca em roda Era toda Um cheiro de epidemia.31

Os versos, com teor cômico, não deixam de sugerir alguns problemas que eram compartilhados por uma parte dos moradores de Belém, que vivia nessa das moléstias, passaram a ser sistematicamente combatidas e consideradas falsas ilusórias pela comunidade médica. Em suma o modelo abstrato infeccionismo auxiliava na desqualificação dos saberes populares sobre doença e cura.” Cf. CHALHOUB Sidney. op.cit, p.173. 31 A Vida Paraense. Belém, 20 de novembro de 1883, p.3 83

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cidade em 1883. A tônica dos versos não deixa de ser a higiene e o medo das epidemias. De fato, nesse momento o próprio Antonio Lopes Mendes ao falar de Belém ainda que tentasse possivelmente ser discreto, acerca do que escrevia sobre a cidade não lhe escapou a impressão de uma cidade com “um certo desdém pelos elementos sanitários”, que segundo ele era o que permitia o “o desenvolvimento da terrível febre amarela”. Apesar disso ele conluia seu raciocínio afirmando que “a cidade pode reputar-se uma terra relativamente saudável” 32. Mas, para, além disso, as questões voltadas para a higiene como as suscitadas nos versos de Ernesto Pampadour, trazem à cena algumas contradições da vida urbana daquele contexto, expressa por meio do rio sujo com lixo e até mesmo pela presença, de um jacaré33, ainda que morto, num espaço por onde parecia circular muita gente. Desse modo, lama, lixo, água suja, algas esverdeadas, animais mortos, o mau cheiro e o medo das epidemias, compõem o dia a dia da população que passava pelas áreas do porto e mesmo por outras áreas da cidade cortadas por canais. O medo do jornalista dos versos talvez fosse de todos os moradores da cidade diante da constante ameaça de doenças, com as quais ainda não se sabia lidar. Ora, a própria fala de Antonio Lopes Mendes, não deixa de sinalizar um pouco disso quando o viajante, semelhante ao que pensavam muitos dos seus contemporâneos atribuía a “febre amarela”, à falta de medidas sanitárias, de higiene e não pela picada dos mosquitos transmissores infectados, como se conhece hoje34. Na verdade, lidar com as epidemias, com o aumento populacional, com a grande circulação de pessoas, com a ausência e controle da higiene eram experiências que as populações de Belém na década de 1880 precisavam a aprender a lidar.

32MENDES, Antonio

Lopes. America Austral – Cartas escriptas da America nos annos de 1882 a 1883. In: Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa. Carta XXIX 22 de julho de 1883, p.531 33 Nesse contexto os jacarés eram vistos como animais indesejáveis. David Vieira destaca que no Marajó os jacarés eram temidos e “odiados” pelos criadores de gado. De acordo com o autor o próprio governador do Pará Augusto Montenegro (19011909) “incentivava o extermínio de jacaré na ilha do Marajó”, em virtude dos ataques ao gado. Tais matanças muitas vezes levavam ao extermínio de grande número desses animais. Cf. VIEIRA, David Durval Jesus. A cidade e os “bichos”: poder público, sociedade e animais em Belém (1892-1917). Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará. Belém: 2015, pp. 60-61. 34 Sidney Chalhoub faz uma boa discussão acerca dos debates em torno da “febre amarela” no Rio de Janeiro Imperial. Cf. CHALHOUB, Sidney. Op.cit. pp. 60-96. 84

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Assim, falar desse momento da urbanização da cidade é também falar dessas experiências e ao mesmo tempo perceber conforme disse Lopes Mendes em relação à paisagem amazônica, que se trata de algo que ainda que possamos “ver”, não de pode “descrever devidamente”. Mesmo sem ser sua intenção, Antonio Lopes Mendes, pela leitura que fazemos hoje de sua obra, não deixa de expressar aqui a metáfora do próprio trabalho do historiador, que por meio das fontes adentra no passado, ainda que sem nunca descrevê-lo devidamente. Desse modo, quando se aproxima o ano de 2016 em que se comemoram os 400 anos da cidade de Belém, esse texto pode ser um uma pequena fresta para se olhar esta cidade quando do início da década de 1880, pode ser também uma caminho para se entender os muitos problemas dessa cidade no presente.

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BELÉM NA BIENAL: HISTÓRIA DA ARTE CONTEMPORÂNEA A PARTIR DA PROJEÇÃO NACIONAL DE ARTISTAS LOCAIS Gil Vieira Costa1 Resumo Neste artigo abordo a história da arte contemporânea tomando por base a cidade de Belém, a partir da participação de artistas provenientes da mesma em eventos do circuito nacional de arte. Investigo principalmente as participações em edições da Bienal Internacional de São Paulo, entre as décadas de 1960 e 1980. Busco identificar as características compartilhadas por esta produção e compreender as relações estabelecidas entre Belém e outros centros de produção e legitimação da arte contemporânea. Palavras-chave: História da arte contemporânea; Belém; Bienal de São Paulo. Caboclos na Bienal 06 de setembro de 2014. É inaugurada a 31ª Bienal Internacional de São Paulo – um dos eventos mais significativos do cenário brasileiro de arte contemporânea, de importância e projeção mundial. Divido minhas semanas entre as cidades de Belém, onde estudo, e Marabá, onde trabalho e moro há alguns meses. São Paulo é uma realidade longínqua, mas as imagens da Bienal não cessam de me alcançar por diversos meios. Uma dessas imagens é de um caboclo. Apesar de etnicamente negro, este é avermelhado como vísceras penduradas em um açougue. Contra o branco do pavilhão-açougue da Bienal, recorta-se esse homem-víscera. Ele é um busto, uma cabeça, um rosto – e nos encara. Não está só, outros seis o acompanham. Pintados por Éder Oliveira (1983), constituem a obra desse artista paraense (Figura 01). Encontrei-o em uma noite de novembro de 2014, em Belém, em um desses eventos noturnos que aglomeram gentes e humores de todo tipo. Nos cumprimentamos e conversamos amenidades. Intrigam-me a distância e as Doutorando em História pelo PPHIST/UFPA (Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará), em que desenvolve pesquisa sobre a história da arte contemporânea em Belém na década de 1970, sob a orientação do Prof. Dr. Aldrin Moura de Figueiredo. Professor de Artes Visuais na Unifesspa (Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará). 1

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diferenças entre esses dois Éder Oliveira que imagino perceber: a pessoa com quem interajo e de algum modo me identifico, e o artista contemporâneo em reconhecimento crescente no cenário nacional. De 2010 a 2012, Éder Oliveira participou de grandes exposições coletivas em Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ) e Vitória (ES). Em 2014 expôs como convidado da Bienal Internacional de São Paulo. É curioso que um jovem do interior do Pará (Nova Timboteua), “filho de professor primário e dona de casa”2, tenha se projetado no cenário nacional, pintando a partir de fotos dos cadernos policiais da grande imprensa. Intrigame que seu trabalho esteja em evidência ao dar voz e visão a parcelas de uma população cabocla, vítimas históricas de processos excludentes; intriga-me que o “pobrismo”3 e a revisão crítica da Amazônia sejam novas tendências artísticas. Figura 01: Painel de Éder Oliveira na 31ª Bienal Internacional de São Paulo, 2014

Fonte: Revista Veja, 10 de setembro de 2014, p. 120-121.

Apesar de desfrutar de um reconhecimento merecido enquanto artista, Éder Oliveira não me parece ter construído sua carreira de maneira autônoma e isolada. Seu sucesso me parece possível apenas dentro de um determinado contexto para a arte contemporânea no Brasil. Em Belém, uma moldura histórica que compreende a implementação de instituições de formação e circulação artística que remontam às décadas de 1960 e 1970 como, por exemplo, os cursos de Arquitetura e Educação Artística (posteriormente Artes Visuais) na UFPA (Universidade Federal do Pará). Por mais justo que seja seu êxito, ele é, aparentemente, fruto não só de sua qualidade artística, mas de uma Elvis Rocha, “Belas artes, mundo cão”, Revista Gotaz, n.º 3, Belém, Gotazkaen Estúdio, junho de 2013, p. 12. 3 Termo usado pejorativamente por Marcelo Marthe e Mario Mendes, “Pobrismo de butique”, Revista Veja, 10 de setembro de 2014, p. 120-121. 2

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conjuntura de fatores que compõem aquilo que chamarei de uma história da arte contemporânea em Belém – estreitamente interligada à história da arte contemporânea no Brasil e no mundo. Local, nacional, global Como investigar as relações estabelecidas entre a produção artística contemporânea proveniente de Belém e os circuitos nacional e global? Para estudar cidades como Belém, adoto a noção de “zona de contato”, que trago a partir de Mary Louise Pratt. Para esta autora, que se refere especificamente ao período colonial, as zonas de contato são “espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação”.4 O termo também evidencia as dimensões interativas e improvisadas dos encontros proporcionados pelo contato de sujeitos díspares, separados por descontinuidades históricas, geográficas e culturais. Quando me refiro ao mundo da produção artística em Belém nos anos 1970 como zona de contato, quero me reportar aos diversos fluxos de sujeitos e imaginários distintos que transpassaram a cidade naquele período, seja de maneira presencial ou pelos meios de comunicação. Parece bastante evidente que a arte contemporânea em Belém não se deu de modo desvinculado de outros centros; ao contrário, as relações, em geral assimétricas, podem ser percebidas e rastreadas para verificarmos as múltiplas influências e contatos. Falemos, então, das relações entre mestiçagens e tradições, ocorridas na produção imagética contemporânea de Belém. Por mestiçagem, evoco o conceito trabalhado por Serge Gruzinski, que designa misturas entre seres humanos, imaginários e formas de vida provenientes de diferentes realidades geográficas e históricas.5 Gruzinski usa ainda o conceito de hibridação para se referir aos processos de mistura que se desenvolvem dentro de uma mesma realidade histórico-geográfica (em uma civilização, por exemplo). Aplicando tal conceito às relações da arte contemporânea em Belém: por mestiçagens, entende-se o processo de conflito (ou, antes, de contato) entre imaginários de circuitos sociais distintos, que faz emergir formas simbólicas novas no campo da produção artística.

Mary Louise Pratt, Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação, tradução de Jézio Hernani Bonfim Gutierre, Bauru: EDUSC, 1999, p. 27. 5 Serge Gruzinski, O pensamento mestiço, tradução de Rosa Freire d’Aguiar, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 62. 4

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Uma maneira de examinar este tipo de relação é verificar a projeção dos artistas contemporâneos paraenses e suas obras em outros cenários artísticos. Tomarei, neste texto, a Bienal Internacional de São Paulo como objeto de estudo para buscar estes nomes. Também buscarei levantar dados em outros eventos do eixo Rio de Janeiro – São Paulo: as Bienais Nacionais e a Bienal Latinoamericana de São Paulo, e os Salões Nacionais de Artes Plásticas, promovidos pela Funarte (Fundação Nacional de Arte) no Rio de Janeiro. Arte e política: a produção brasileira nos circuitos internacionais Aquilo que chamamos de arte contemporânea, no panorama internacional, é em parte proveniente de contribuições latino-americanas – uma produção mestiça, que por isso mesmo levou a novos caminhos. Não sem razão, artistas brasileiros como Hélio Oiticica (1937-1980), Lygia Clark (1920-1988) e Cildo Meireles (1948), desde as décadas de 1960 e 1970 tem recebido reconhecimento em grandes centros artísticos mundiais. Hélio Oiticica, com a mistura de vivências e contextualizações próprias do “terceiro mundo” e posições próprias de uma tradição da história da arte euro-centrada, é desde muito cedo um paradigma do artista contemporâneo brasileiro (e, talvez, latino-americano) para o circuito de arte internacional. Posso adicionar dois outros nomes brasileiros paradigmáticos: o Cinema Novo – especialmente nas figuras de Nelson Pereira dos Santos (1928) e Glauber Rocha (1939-1981), que iniciou uma produção fílmica em que se escancara a precariedade social no contexto brasileiro e a necessidade de novas abordagens da linguagem artística para traduzi-la; e Sebastião Salgado (1944), fotógrafo que percorre os contextos sociais mais inóspitos, revelando por meio da dignidade da imagem fotográfica a experiência de pessoas inteiramente invisíveis às grandes metrópoles. Ambos se tornam referências internacionais a respeito da produção artística contemporânea (em um sentido mais amplo, é claro, que o do termo “arte contemporânea”) brasileira – o Cinema Novo ainda na década de 1960 e Sebastião Salgado a partir dos anos 1980. Aponto, portanto, um possível desejo internacional (dos grandes centros) pela imagem das periferias mundiais na produção artística: conjuntos de produções simbólicas que foram estudadas sob rótulos como “estética da fome”, “estética do lixo”, “estética da resistência”, “Terceiro Cinema”, entre outros6. Desnecessário dizer que esse imaginário a respeito dos contextos Para estudar essas abordagens conferir Ella Shohat e Robert Stam, Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação, tradução de Marcos Soares, São Paulo: Cosac Naify, 2006. 6

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periféricos, construído na relação dialógica (porém desigual) entre o Ocidente e seus Outros, privilegia certo tipo de imagens que pendem para o exotismo e a denúncia social. Tais relações são mais complexas do que me é permitido investigar nesse texto. Se a arte brasileira foi definida, na segunda metade do século 20, a partir de determinados modelos (elenquei os nomes de Hélio Oiticica, do Cinema Novo e de Sebastião Salgado, mas outras listas podem ser construídas de maneira mais sólida e referenciada), a arte contemporânea de Belém não parece ter sido consolidada predominantemente a partir dos mesmos parâmetros e intenções. Quero investigar se a vocação construtiva aliada às matrizes culturais não europeias, presentes na produção de Hélio Oiticica, por exemplo, se manifesta na arte em Belém, com o mesmo tipo de engajamento político explícito que pode ser encontrado em muitos artistas brasileiros que se projetaram naquele período7 (sem deixar de levar em consideração que o regime militar havia iniciado em 1964 e intensificado a repressão política no final de 1968). Outros caboclos nas Bienais Vejamos, a princípio, o conjunto de artistas paraenses participantes da Bienal Internacional de São Paulo, nos anos de 1967 a 1991, para em seguida detalharmos cada caso. Na IX Bienal (1967) temos a participação de Arnaldo Vieira e Ruy Meira, com duas obras cada. Na X Bienal (1969) temos a presença de três obras da dupla Paes Loureiro e Paulo Chaves Fernandes. Na XI Bienal (1971) estiveram Branco de Mello (com quatro obras) e Valdir Sarubbi (com Xumucuís, instalação composta por 25 peças de tamanhos variados). Na XII Bienal (1973) temos Osmar Pinheiro (com quatro obras) e novamente Valdir Sarubbi (com três instalações). Da XIII Bienal (1975) à XIX Bienal (1987) não há a presença de artistas provenientes do cenário artístico de Belém. Na XX Bienal (1989) há a participação de Emmanuel Nassar com oito obras de técnicas e dimensões variadas. Na XXI Bienal (1991) temos Osmar Pinheiro com uma série composta por inúmeras obras.8 Enquanto a transição dos anos 1960 para os 1970 traz a presença de artistas paraenses em quatro edições consecutivas (1967, 1969, 1971 e 1973), posteriormente há uma ausência acentuada durante sete edições (1975, 1977, Conferir, por exemplo, as obras Bólide 18: Cara de Cavalo (Hélio Oiticica, 1966), Tiradentes: totem-monumento ao preso político (Cildo Meireles, 1970) e as Situações com trouxas ensanguentadas (Artur Barrio, 1969-1970). 8 Conferir os catálogos das respectivas edições da Bienal Internacional de São Paulo. 7

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1979, 1981, 1983, 1985 e 1987), que só será superada com o reaparecimento desses artistas nas duas edições seguintes (1989 e 1991). Cabe fazer alguns esclarecimentos sobre a Bienal de São Paulo. Surgida em 1951, essa megaexposição passou por diversos momentos, seja na sua organização estrutural, seja nos meandros políticos em que estava inserida, seja nos seus objetivos ou mesmo nos seus processos de curadoria e seleção de artistas.9 Salta aos olhos o grande intervalo de ausência de artistas de Belém nas edições do evento. Note-se uma curiosidade, a de que os referidos artistas terão maior representatividade justamente no período dos “anos de chumbo” do regime militar. A produção artística no eixo Rio de Janeiro – São Paulo ganhava contornos políticos cada vez mais acentuados, entrando em choque com as diretrizes governistas. Haverá, inclusive, um boicote internacional de artistas dos mais diversos países durante a edição de 1969, por conta das atitudes repressivas de censura a artistas e exposições brasileiras, que farão esta edição se tornar conhecida como Bienal do Boicote. Uma maneira de preencher o vazio deixado pelas representações de países que aderiram ao boicote, assim como por artistas do próprio país, foi, certamente, a descentralização em busca de artistas de outras regiões fora do sudeste.10 O que nos faz indicar a hipótese da conveniência (para instituições culturais, como a Bienal, enquadradas em um sistema político como o regime militar) da arte contemporânea de Belém e de outras cidades brasileiras; mais especificamente a conveniência da produção de cunho regional/regionalista em detrimento da produção explicitamente politizada e contrária ao governo. Vale lembrar que nas quatro primeiras edições que indico nessa lista (1967, 1969, 1971 e 1973) a Bienal será frequentemente criticada pelo grande número de artistas aceitos, geralmente com uma quantidade pequena de obras. Outra questão é a realização das Bienais Nacionais, ou Pré-Bienais, que acontecem em 1970, 1972, 1974 e 1976, de maneira a orientar a seleção da representação brasileira para a Bienal Internacional.11 Conferir a esse respeito Francisco Alambert e Polyana Canhête, As bienais de São Paulo: da era do museu à era dos curadores (1951-2001), São Paulo: Boitempo, 2004. 10 Conferir a esse respeito Renata Zago, “As Bienais Nacionais de São Paulo: 1970-76”, Anais do 18º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas: transversalidade nas artes visuais, organização: Maria Virginia Gordilho Martins (Viga Gordilho) e Maria Herminia Olivera Hernández, Salvador: EDUFBA, 2009, p. 26162628. 11 Francisco Alambert e Polyana Canhête, As bienais de São Paulo: da era do museu à era dos curadores (1951-2001), São Paulo: Boitempo, 2004, p. 129. 9

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Tais eventos aconteciam por etapas, incialmente em cidades de cada região do país, para depois realizarem uma etapa em São Paulo. Em 1970 Belém sediou uma das etapas, que fez com que Valdir Sarubbi se projetasse com seus Xumucuís nos cenários nacional e internacional12 – fez também com que, de certa maneira, a produção artística na cidade fosse orientada em direção à “contemporaneidade”. Xumucuís se constituía de uma série de bastões que emitiam o som de água quando manipulados, objeto próprio de culturas indígenas (conhecido principalmente como “pau-de-chuva” na língua portuguesa) que Sarubbi reelabora e disponibiliza ao público da Bienal. Aqui podemos falar da conjunção entre uma prática estritamente contemporânea (a obra como processo interativo com o público, que envolve outros sentidos, além da visão) e matrizes culturais indígenas. Já nas edições de 1989 e 1991, quando os artistas de Belém reaparecem no evento, a lógica de seleção era completamente outra – era o momento chamado de “era dos curadores”, em que a regionalização já havia deixado de ser uma prioridade e o evento havia saído da crise alardeada por seus críticos. Emmanuel Nassar (Bienal de 1989) e Osmar Pinheiro (Bienal de 1991) já eram nomes consolidados, este último naquele momento residindo em São Paulo e vindo de temporada na Alemanha. Contudo, a relação entre a vocação construtiva e os elementos de identidade cultural amazônica parece estar presente em grande parte da produção que vai ganhar representatividade nacional. Para não pensarmos que os artistas contemporâneos de Belém não estiveram presentes no cenário nacional na transição entre os anos 1970 e 1980, cito aqui outro evento de grande porte: as edições do Salão Nacional de Artes Plásticas (SNAP), realizados pela Funarte – órgão criado em 1976, com uma política bastante voltada às regiões brasileiras. O SNAP passa a ser realizado, anualmente, a partir de 1978. Na primeira edição temos a presença de Valdir Sarubbi, que nesse ano também expõe a série Antiguos dueños de las flechas na Bienal Latinoamericana de São Paulo. No II SNAP (1979), temos a presença de Ruy Meira, recebendo Prêmio Aquisição. No III SNAP (1980), temos a presença de um júri do evento em Belém, e participam da exposição no Rio de Janeiro: Ruy Meira, Ronaldo Moraes Rego, Toscano Simões, Emmanuel Nassar e P.P. Conduru. No IV SNAP (1981) Osmar Pinheiro é convidado a levar uma

Ilton Ribeiro, As transformações no panorama artístico de Belém: 1960 e as repercussões nas obras de Valdir Sarubbi e Branco de Melo, Dissertação apresentada ao Mestrado em Artes da UFPA, Belém, 2011, p. 90. 12

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representação do Pará ao evento. No V SNAP (1982) temos ainda Ruy Meira e Mário Pinto Guimarães entre os selecionados.13 Políticas artísticas de identidade Se verificarmos o que há de peculiar e de comum a este grupo de artistas participantes de edições da Bienal de São Paulo, poderemos esboçar algumas hipóteses. Primeiro, a maioria passou pela Escola de Arquitetura da UFPA (Emmanuel Nassar, Osmar Pinheiro, Paulo Chaves Fernandes e Valdir Sarubbi, que não chegou a concluir o curso), que desde sua criação (1964) ocupou lugar de destaque na formação de artistas em Belém14, o que nos indica o modo como se deu na cidade a crescente especialização da atividade artística experimentada no século XX em todo o mundo (quando passa das academias de belas artes aos meandros universitários, adquirindo estatuto de saber científico). Segundo ponto: as características visuais e temáticas das obras. Predominam as preocupações formais de cunho construtivista e as preocupações temáticas de significação identitária amazônica. Esse tipo de “prática antropofágica” não é novo, e dá o tom geral da arte contemporânea brasileira legitimada e adotada internacionalmente naquele período, de certa maneira invertendo o chamado neocolonialismo cultural e reinterpretando os movimentos abstracionistas geométricos europeus, levando em consideração condições específicas do país. A diferença é que, na produção de Belém, o engajamento social e político parece estar vinculado à ideia de visibilização e cuidado com os grupos marginalizados e os problemas da região amazônica. Os grandes projetos incentivados pelos governos militares colocam a região como uma fronteira a ser conquistada, e isso parece alimentar um apego da produção artística local à ideia de defesa de uma “identidade cultural amazônica”. Se em 1967 Ruy Meira praticava um abstracionismo construtivista (Figura 02), mas sem referências específicas à alegorias identitárias amazônicas, as duas décadas seguintes apresentam uma guinada surpreendente. Lembremos da série dos tapumes (pinturas que faziam referência à arquitetura ribeirinha em madeira) que evidenciou o artista Osmar Pinheiro nacionalmente; ou da “estética da gambiarra” que projetou Emmanuel Nassar nessa mesma década Conferir Maria Angélica Meira, A arte do fazer: o artista Ruy Meira e as artes plásticas no Pará dos anos 1940 a 1980, Dissertação apresentada ao Mestrado Profissionalizante em Bens Culturais e Projetos Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2008, p. 130-131. 14 Conferir Acácio Sobral, Momentos iniciais do abstracionismo no Pará, Belém: IAP, 2002, p. 39-42. 13

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de 1980 (Figura 03), pintando serras, fios e maquinarias improvisadas como nas culturas ditas “populares”. Figura 02: sem título (Imantação?), Ruy Meira, Belém, 1967. Obra participante da IX Bienal Internacional de São Paulo, 1967.

Fonte: Rosana Bitar, Arte e transcendência: a obra de Ruy Meira, Belém: Estacon, 1991, p. 50.

Figura 03: A amizade, Emmanuel Nassar, Belém, 1989. Obra participante da XX Bienal Internacional de São Paulo, 1989.

Fonte: Catálogo Artistas Brasileiros na XX Bienal Internacional de São Paulo, 1989, p. 29.

Tais obras manipulam essa vocação construtiva junto com componentes de uma identidade nacional, talvez amazônica. A hipótese que levanto, observando a legitimação e projeção destes artistas no cenário nacional, é que nas décadas de 1970 e 1980 (principalmente nesta última) se estabeleceu certo parâmetro para definir a identidade artística brasileira, tendo por base (em maior ou menor 94

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grau) princípios do neoconcretismo, a partir do reconhecimento internacional deste movimento. Esta pesquisa ainda não permitiu que essa hipótese fosse investigada. Em outros casos, o elemento identitário regional é mais explícito, e mesmo mais regionalista, como nas obras de Valdir Sarubbi: em 1971 traz em Xumucuís os instrumentos indígenas, em 1973 trabalha com instalações (“ambientais”) recorrendo aos grafismos da cultura marajoara, em 1978 traz mapas aéreos da região combinados com símbolos, em Antiguos dueños de las flechas (Figura 04).15 Nesses casos, a “moderna tradição amazônica” se faz bastante visível, junto com suas sínteses identitárias: a Amazônia como “lugar”; a floresta latifoliada e úmida; e o caboclo amazônico como fonte de identidade.16 Figura 04: Antiguos dueños de las flechas (série), Valdir Sarubbi, Belém/São Paulo. Obra participante da I Bienal Latinoamericana de São Paulo, 1978.

Fonte: Catálogo I Bienal Latinoamericana de São Paulo: Mitos e Magia, 1978, p. 197.

Considerações finais O conjunto de obras e artistas atuando em Belém e com projeção no cenário nacional nos dá a ideia da construção da identidade artística amazônica, ou de uma ideologia imagética que lhe correspondesse. A noção de “identidade cultural” é bastante problemática, mas não raro tem sido utilizada para influenciar questões Nesta série o artista usa a técnica da aerofotogrametria junto com procedimentos plásticos convencionais. “Sobre estes mapas aéreos, Sarubbi assinalava aldeias indígenas que outrora ocupavam as beiras dos rios com pontos ou manchas vermelhas”. Conferir Rosana Bitar, Sarubbi, Belém: Estacon, 2002, p. 45-48. 16 Fábio Fonseca de Castro, Entre o mito e a fronteira: estudo sobre a figuração da Amazônia na produção artística contemporânea de Belém, Belém: Labor Editorial, 2011, p. 213-237. 15

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práticas (como o estabelecimento de políticas públicas). Quero pensar a noção de identidade cultural como produção, “algo que nunca está completo, que é sempre processual e sempre constituído no quadro, e não fora, da representação”.17 Portanto, quero pensar a identidade artística amazônica como fruto de um processo, o que é bastante óbvio. Por outro lado, busco estudar essa construção que, afinal, não é apenas fruto da auto-representação de grupos locais, mas sim da dialética entre representações construídas tanto dentro quanto fora das sociedades amazônicas. A noção de identidade cultural pode ser pensada “em termos de uma cultura indivisa mas partilhada, uma espécie de ‘verdadeiro modo de ser’ coletivo, oculto no seio de muitos outros ‘modos de ser’ mais superficiais ou impostos de forma artificial”18; por outro lado, também pode ser pensada como “um ‘tornar-se’ e não apenas um ‘ser’. (...) As identidades culturais vêm de algures, têm histórias. (...) também elas sofrem transformações constantes”.19 Desse segundo ponto de vista, esta noção não é uma “essência fixa, que existe inalterada aquém da história e da cultura”, mas sim “um posicionamento”.20 Penso que a construção da identidade artística amazônica passa pelos dois caminhos, mas muito mais pelo segundo. Ter consciência desse processo, experimentá-lo como posicionamento (e não como essência), é uma visão também indicada por Fábio Fonseca de Castro. A segunda metade do século XX traz aos grupos amazônicos uma necessidade cada vez maior de afirmação e diferenciação em relação aos grupos estrangeiros, cada vez mais próximos, já dentro das antigas fronteiras. A moderna tradição amazônica constitui uma nostalgia da Amazônia: um registro antes do fim, potencial ou ficcional, que a intelligentsia belemense preliba para esse lugar encantado, para sua cidade ou para si mesma. Se é alegórica é porque se escreve como vestígio, consciente de um não futuro (tanto como de um não passado) e de seu não ser iminente.21

Essa busca por uma identidade amazônica parece, de fato, ser o indício do engajamento ou comprometimento social requerido nos discursos dos artistas Stuart Hall, Identidade cultural e diáspora, Comunicação & Cultura, n.º 1, 2006, p. 21. Ibidem, p. 22. 19 Ibidem, p. 24. 20 Ibidem, p. 25. 21 Fábio Fonseca de Castro, Entre o mito e a fronteira: estudo sobre a figuração da Amazônia na produção artística contemporânea de Belém, Belém: Labor Editorial, 2011, p. 252. 17 18

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do período, empenhados contra o neocolonialismo cultural.22 A abertura a formas simbólicas e mesmo a sujeitos advindos dos grupos sociais periféricos (chamados de “arte popular” e “artistas populares”), parece bastante positiva do ponto de vista ético e político, após mais de um século de elitização e monopólio das práticas artísticas por grupos sociais específicos. Mas é necessário problematizá-la e investigá-la de maneira mais profunda, o que obviamente não cabe fazer neste texto. O discurso artístico de engajamento social com uma determinada ideia de Amazônia hoje está largamente difundido e legitimado nacionalmente (e talvez a presença de Éder Oliveira e suas pinturas na última Bienal de São Paulo seja uma consequência direta da produção artística da década de 1970). Por outro lado, não devemos ignorar que este discurso artístico parece cada vez mais ter sido uma resposta ao modelo de artista contemporâneo do Terceiro Mundo legitimado pelo cenário internacional. Essas mudanças no discurso sobre a imagem da Amazônia, por meio da arte, abrem caminho para pensarmos também na necessidade de mudanças nas próprias práticas do sistema de arte, já que ainda é uma demanda a cumprir a criação de práticas decolonizantes de formação artística e acessibilidade cultural à arte. A história da produção artística do passado recente, ainda que talvez não nos ofereça respostas, pelo menos pode nos oferecer novas perguntas.

Trato deste assunto em “Belém, neocolonialismo, história e historiografia da arte contemporânea brasileira”, no prelo, a ser publicado em Arte & Ensaios, Revista do PPGAV/UFRJ (Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro). 22

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“ONDE OS TAMBORES TOCAM MAIS ALTO”: AS REPRESENTAÇÕES DE CODÓ E DOS POVOS DE TERREIROS EM DOCUMENTÁRIOS Jéssica Cristina Aguiar Ribeiro1 Introdução Este texto é parte da dissertação de mestrado defendida pela Universidade Federal do Maranhão, no Programa de Pós graduação em História SocialPPGHIS-UFMA em fevereiro de 2015, que teve como título : O PERIGO DE UMA HISTÓRIA ÚNICA: a “invenção” de Codó - MA como terra da macumba (1950 a 1990), sob a orientação do professor doutor Josenildo Pereira de Jesus. Buscou-se na pesquisa identificar os começos da representação da cidade de Codó-Ma como “terra da macumba’ e mapear os estigmas dirigidos a pais e mães de santos. Assim, tal capítulo, que hora se apresenta como texto a ser apresentado no evento II Simpósio de História em Estudos Amazônicos é um esforço intelectual de dar visi/dizibilidade ao papel da mídia na construção e reforço de estigmas dirigidos a pais e mães de santos locais, bem como a divulgação da cidade como lugar de “macumba e grandes macumbeiros”, por isso, expõe-se, uma etnografia sobre dois documentários, um que fora exibido na cidade de Codó e outro de veiculação nacional, a saber, o primeiro “ Uma codorna me Contou” e o segundo, “ Domingo 10”, narrado por Marília Gabriela, onde pela primeira vez a cidade de Codó apareceu como “ capital da magia negra”. Bita do barão, macumba, estereótipos Bita do Barão é o pai de santo mais famoso da cidade de Codó, a bibliografia estudada revelou que as representações da cidade de Codó como lugar de macumba e de “grandes macumbeiros” se dá pelos trabalhos realizados por este pai de santo e sua divulgação na mídia, principalmente pela relação que ele estabelece com políticos, sobretudo José Sarney.

Doutoranda em História Social, no Programa de Pós-Graudação em História da Universidade Federal do Pará. 1

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Assim, para a análise acerca da relação entre Bita do Barão e a representação de Codó, toma-se por objeto de reflexão o documentário DOMINGO 10, exibido em 22 de maio de 1994, pela TV Bandeirantes nacional. Esse documentário marca a história do Bita do Barão na mídia nacional e a categorização de Codó, como “cidade da magia”, “da encantaria”, da “macumba”. O meu esforço será de fazer uma análise/descrição desse documentário me embasando não somente nele, mas em Ferretti 2, porque também o utilizou como fonte. O referido documentário foi dividido em blocos, visto que fazia parte de um programa, a parte que coube ao documentário sobre Codó, teve essa divisão. No primeiro bloco, Marília Gabriela descreve Codó como pequena cidade do Maranhão chamando-a de ‘capital da magia negra’ que tem mais terreiros que igrejas. Atentemo-nos, ao mesmo tempo em que a narradora chama a cidade de “pequena cidade do Maranhão”, ela assinala que ela tem um destaque em relação a outras, quando a coloca como “capital da magia negra”. As falas do início do documentário se amarram ao final, quando ela retoma essa categorização dicotômica: pequena cidade\ capital da magia negra. Vejamos: “A pequena cidade de Codó tem mais terreiros do que igrejas, aqui as forças do mal, quando chamadas, descem e não costumam falhar, e muito ‘político importante’ não dá um passo sem consultar os seus guias espirituais.” 3 Neste bloco foram apresentados depoimentos de codoenses falando que existem, na cidade, muitos feiticeiros e macumbeiros, os quais fazem serviços de bondade e de maldade para as pessoas. A narradora do programa prossegue dizendo: Tem um tal de Bita, famoso até no exterior [...] tem muita ‘brincadeira’ de macumba, noite e dia, para quem quiser brincar. Codó tem fama de ser a terra do feitiço, e que essa fama vem de forças que seu poder se origina do medo [...] existiam ali 149 terreiros de umbanda, candomblé e de Tambor de Mina4

Ao passo que ia narrando sobre a cidade e a “macumba e magia negra” a narração alternava-se com matérias organizadas por blocos, cada uma com um título que tinha o objetivo midiático sensacionalista. O bloco dois, chamado ‘Bem e Mal’ foi iniciado com a reportagem com a mãe de santo Antoninha, assim

Relato oral de Bita do Barão, em agosto de 2011. Documentário Domingo 10, 1994. 1bloco. 4 Documentário Domingo 10, 1994, op cit. 2 3

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descrita - “Mãe Antoninha é a mais antiga, do tempo que a polícia batia e prendia quem brincava com tambor [,...] ela faz segredo de tudo”. A respeito de si sublinhou “não sujo minha alma por causa de dinheiro, hoje em dia Satanás até tem medo de pecador.” Após o depoimento de mãe Antoninha a narração continua - “Em Codó bem e mal são faces da mesma moeda e que, ao contrário de outras cidades onde se diz só fazer o bem, alguns pais de santo não escondem que o som do tambor é capaz de tudo.”5 Os autores do documentário fizeram muita apelação para este aspecto, pois ao longo da narração a expressão “mal” e “trabalhos para o mal” apareciam frequentemente, e a maioria dos depoimentos colhidos tinham essa característica de destacar “maldade” em trabalhos realizados nos terreiros de Codó. Dado o poder de fazer circular ideias e conceitos que a mídia possui e, por conseguinte, a capacidade de influenciar a opinião pública, não é demasiado supor que tal documentário pautou a história da cidade de Codó como um lugar onde a religiosidade afro é realizada com o intuito maléfico deturpando o significado delas, ao sugerir aos expectadores que tudo que existe em Codó é “trabalhos de magia para o mal”. Nesse bloco foi apresentado o senhor Antônio, identificado como pai de santo de Codó. Segundo a narração, “seu Antônio trabalha na linha negra, com Exu, e que realiza despachos na encruzilhada ou no cemitério para ‘unir, separar, adoecer pessoas e faz uso de bonecos para enfeitiçar”6. O seu depoimento destacou-se por falar em “casos reais” onde houve a dita “magia negra”, sobretudo, porque um desses casos referia-se a Tancredo Neves. O narrador enfatizou: Existiram dois casos que muito se ouviu em Codó, mas as pessoas não se atreviam a comentar, um foi do caso de um empresário que mandou matar o cunhado, por meio de pais de santos que trabalhavam com magia negra, e depois do fato consumado, ele distribuiu alimentos pela cidade. [...] e o outro foi quando na cidade os tambores soaram dia e noite até Tancredo Neves morrer.7

Essa frase dita em 1994, ainda hoje é muito usada no cotidiano local e virou até “clichê” de identificação de pessoas de Codó, pois não é raro codoenses serem, em outros lugares, identificadas como citadinos “da terra da macumba, lugar onde os tambores tocaram alto quando Tancredo Neves morreu”. Documentário Domingo 10, 1994, op cit. Documentário Domingo 10, 1994, op cit. 7 Documentário Domingo 10, 1994, op cit. 5 6

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Após o depoimento de Antônio, foi apresentado o de Pai Aluísio, no qual vê-se imagens de um ritual feito pelo mesmo numa encruzilhada. Assim o descreve, “eu acendo uma vela para Iemanjá e outra para Exu [...] sou filho de santo de dona Antoninha e trabalho nas duas linhas, branca e preta”. Depois desse ritual, foi exibida outra matéria que começa na loja de Bita do Barão tendo como depoimento a senhora de nome Olga, que aparece na frente da loja de Bita do Barão falando: a macumba de Codó para fazê-la é preciso de sangue de gato ou cachorro preto, mas, se querem derrubar um comércio, fazem uma aplicação no animal e , se ele morrer, é ai que começa a macumba de Codó, a daqui mesmo, que não veio de fora8.

Ao finalizar a fala, a matéria continua com depoimentos de pessoas identificadas como padres, a narração ressaltou: Os de fora estranhavam, mas em Codó tudo é normal e, quando saímos daqui as pessoas que sabem de onde eles são tem medo da gente[...] em Codó é tudo normal essa mistura, tanto que os codoenses vão à missa e ao terreiro, procuraram Deus por caminhos com que nós não concordamos, mas fazer o que, só Deus pode decidir.

Depois disso, volta-se ao ponto que iniciou a matéria, o ritual da encruzilhada. Na narração/imagem, o Pai Aluísio é apresentado de modo “assustador”, e em transe falando “Estou recebendo as forças do mal, Exu não sai levando o meu anjo da guarda”. Enquanto o ritual está acontecendo, duas filhas de santos de Pai Aluísio aparecem rezando perto dele, mas logo entram em transe. Segundo a narradora, “as pombagiras desceram nas filhas de santo, porque Exu nunca vem só a uma encruzilhada”. No ritual mostrado, segundo a narração, Pai Aluísio recebeu primeiro Maria Lina, sua guia-chefe, “que prepara a bancada”, somente depois recebeu “Exu das Almas ou Caveira”. Depois são exibidas imagens dessa filha de santo em transe mordendo pescoço de uma galinha branca e engole o sangue. Depois de “mostrarem” o transe das filhas de santo de pai Aluísio, Olga aparece em transe, incorporada em pombagira. A narradora descreve esse tipo de incorporação se dá “na linha negra”. No outro bloco, chamada “Dança”, foi iniciado com um ritual para Ogum, liderada por Bita do Barão, o qual foi assim apresentado,

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Documentário Domingo 10, 1994, op cit. 101

Cidade e Cultura Bita é o pai de santo mais conhecido e temido de Codó, tem quase 500 filhos-desanto e que é muito procurado para trabalho de vingança e quando vê que o homem (Exu) faz mesmo, vai lá e faz, e que ele precisa de sangue de bode, de criação, que com isso consegue até a morte.9

A narração continuou dizendo que Bita “desconversou quando perguntado sobre o que todos sabem, da matança do bode e dos tambores que tocaram para Tancredo, mas que recebeu do ex-presidente Sarney até o título de comendador”. O narrador continuou dizendo: “Em Codó Bita na macumba é o presidente no Maranhão”. O fato de Bita não falar do caso foi interpretado como “desconversa”, ou seja, estava fugindo do tema, mas que “todos sabiam”, e ainda ao acrescentar que “tambores tocaram para Tancredo” como se fosse de conhecimento geral e que de fato ele o fez, só não quis foi assumir. Não foi por acaso que continuou desta maneira, já que a insinuação feita sobre a morte de Tancredo está ligada a trabalhos feitos por Bita, a mandos de Sarney, vice do presidente que veio a óbito, que teve como recompensa pelo ato “a Comenda”, o argumento usado se consagrou ao afirmar que “muito político importante não dá um passo sem consultar os seus guias espirituais”. Em seguida, foram exibidas imagens de Bita do Barão que diz em depoimento: “Sarney é muito amigo da religião, ele está sempre pedindo um axezinho para o santo e que não cai nunca, sempre sobe.” 10 A relação de Bita do Barão com a família Sarney depois desse documentário passou a ser muito enfatizada nas pesquisas acadêmicas e jornalísticas que se dedicaram ao tema do terecô de Codó, esse estereótipo de Bita ser o que faz “o axezinho” para José Sarney passou a ser falado, repetido, divulgado em muitos trabalhos.11 O trocadilho de “presidente da República” dito depois de “recebeu a comenda” e da “morte de Tancredo Neves” fora feito intencionalmente, pois um argumento usado atrás do outro foi um recurso midiático para dar o tom de verdade, pois as falas se encaixavam, da narração ao depoimento de Bita do Barão. Documentário Domingo 10, 1994, op cit. Documentário Domingo 10, 1994, op cit. 11 FERRETTI, Mundicarmo. Encantaria de “Barba Soeira”, Codó, capital da magia negra? / Mundicarmo Ferretti. - São Paulo: Siciliano, 2001; NUNES. Gleison Thiago. Religiosidade Afro-brasileira na cidade de Codó: O terecô e a comunidade remanescente de quilombo Santo Antônio dos Pretos. (Monografia apresentada no Departamento de História e Geografia do CESC-UEMA)., Caxias, 2010; PONTES, Veroneide Oliveira. A Igreja Católica e o Terecô em Codó: conflitos e resistências. Caxias, 2008 (Monografia apresentada no Departamento de História e Geografia do CESC-UEMA). 9

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Na frase final do documentário diz que : aqui em Codó ninguém sabe direito os limites entre o bem e o mal. Nos ritos bem e mal se misturam e se confundem, e essa gente simples se dá o direito de intervir na vida dos outros ou na história do próprio país”.

Indagando o fato de Codó, ser uma “pequena cidade do interior do Maranhão”, que tem gente “simples”, porém que “se dá o direito de intervir na vida dos outros ou na história do próprio país”, o fato que está nas entrelinhas é a morte de Tancredo, e a presidência passar a José Sarney, ou seja, um pai de santo de uma pequena cidade conseguiu mudar a vida de muita gente, inclusive a do “próprio país” por meio de trabalhos “de magia”. Toda essa construção simbólica feita neste documentário ajudou a criar estigmas e várias lendas sobre a cidade de Codó e a sua veiculação Brasil a fora. A esse respeito, vale sublinhar que a mídia coloca-se no lugar de exibidora de fatos, quando na verdade os cria, os formula, faz uma montagem de cenas e falas que juntas devem mostrar o que foi cuidadosamente pensado em salas de reunião de pauta, tal como esse documentário fora feito. Sublinha-se que o documentário narrado por Marília Gabriela, exibido pela TV Bandeirantes, fazendo ora insinuações, ora afirmações causou um impacto sobre a representação que ficou dessa “pequena cidade” na mídia. Outro documentário que trago para análise, é o UMA CODORNA ME CONTOU foi produzido e filmado por Cândido de Sousa em comemoração aos cem anos de fundação da cidade. Foi exibido no Maranhão, em 1996, pela extinta TV COCAIS, ainda hoje é utilizado em escolas e eventos políticos em Codó. O texto foi escrito por Alberto Rocque com a colaboração de João Machado e José Merval e a narração é de Acélio Trindade. Na capa do DVD consta a informação que esta produção foi baseada em pesquisas realizadas por Cândido de Sousa durante cinco anos e que as informações foram recolhidas de revistas, de jornais, e de relatos de dois historiadores locais - o senhor João Batista Machado e o senhor José Merval. Cândido de Sousa é que ele é um historiador diletante faminto por informações, e assim, um pesquisador incansável e amante da cidade de Codó, ele compila materiais sobre Codó há anos. A escolha deste documentário, deve-se ao fato de ser um material de pesquisa que potencializou representações relativas às práticas afro-religiosas da cidade e, também, porque ainda hoje é exibido durante as comemorações de aniversário da cidade. A partir de seu uso objetiva-se refletir acerca do impacto

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que ele provoca nos citadinos codoenses com a sua formulação e propagação de imagens e discursos relativos à Codó. O Documentário é constituído das seguintes partes: História, Habitantes, Economia, Política, Cultura. Por ser uma homenagem e propaganda de Codó começa ufaniscamente sublinhando - “Codó está de parabéns por tudo o que possui e pelos seus cem anos de lutas e tropeços, de trabalho e desenvolvimento”12. A respeito da história sublinha, Codó teve sua área habitada primeiro por índios barbados ou ubirajaras e guanarés, que lutaram contra estrangeiros que invadiam seu território para retirar madeira até serem exilados para outras regiões. (…) A cidade surgiu próximo ao local onde, em 1719, os índios atacaram missionários católicos e onde morreu o padre João Vilar, que viera da aldeia de São Miguel, para catequizá-los, a pedido dos guanarés13 .

Como se pode notar, este relato fortalece o argumento que a história de Codó se inicia com povos indígenas que resistiram a colonizadores europeus, fossem eles civis ou religiosos católicos que empreendiam missões para catequizá-los. Por meio de imagens de fotografias antigas da cidade narram a respeito de seus prédios, ruas e “monumentos históricos”, tal como Correios e Telégrafos. Em relação aos ícones destaca, “na bandeira do município estão ali representados os portugueses, os africanos, os indígenas, os franceses e as principais riquezas de Codó: minerais (gesso-cimento), arroz, babaçu e algodão.”14 Em relação a economia destaca a criação de animais, as “riquezas” minerais e naturais. Ainda sublinha a chegada de sírios e de libaneses, povos que se “dedicaram ao comércio”. Depois trata da “chegada dos negros à cidade”, contando a história de um fazendeiro que possuía escravos. E, então, começa a fazer a “amarração” de argumentos de como essa entrada de africanos na cidade motivou a criação e propagação do “folclore do tambor na cidade”. A respeito de religião, a narração enfatiza a vinda de missionários para catequizar índios; depois a de africanos para trabalharem como escravos nas fazendas de algodão, a de outros povos como sírios e libaneses, bem como outros estrangeiros fomentando na cidade uma diversidade de práticas religiosas assim narrada:

Documentário Uma Codorna me Contou, 1996. Documentário Uma Codorna me Contou, 1996. Op cit. 14 Documentário Uma Codorna me Contou, 1996. Op cit. 12 13

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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos a religião é, sem dúvida, destaque em Codó; a população está dividida entre o catolicismo, o protestantismo e a umbanda; aqui existe espaço para todos sem discriminação, já que todas as religiões têm por propósito servir a Deus.15

Em Codó, desde o século XIX, a religiosidade afro-brasileira sofre perseguição e preconceito, tal como indicam como Códigos de Posturas, Códigos Penais e, também, os documentos policiais e eclesiásticos.No final do século XX, ano de 1996, campanhas foram organizadas por catolicismo e protestantes com o propósito de acabarem com “o terecô em Codó” 16. Por isso, a maneira “romântica” de tratar acerca dos diferentes campos religiosos, feita pelo autor deste Documentário pode ser interpretada como uma “vontade de verdade” ao se considerar que a mídia pode influenciar a opinião pública por meio de imagens e discursos veiculados; embora, neste caso, isto não tenha ocorrido dada a permanência do preconceito com as experiências afro-religiosas codoenses, sobretudo, o Terecô. Mas, afinal seria interessante um documentário-comemorativo, falar em perseguição? Preconceito e discriminação? Então a escolha de falar as “coisas boas da cidade” levou o autor a “maquiar” essas relações e destacar o “espaço que todas as religiões têm na cidade”. Na parte final do documentário dedicada ao “folclore e cultura” 17 o autor sublinha que “a cidade de Codó é um lugar onde os tambores tocam mais alto, e seu povo é visto como supersticioso, místico”.18 O tambor, como já dito, quase sempre aparece na mídia e em livros, revistas, jornais, e monografias como símbolo da “religião que predomina em Codó”19. Para o autor do documentário as danças de macumba aparecem como: são folclore de Codó, elas se originaram dos festejos dos escravos em comemoração às fartas colheitas e que caíram na simpatia do povo e ganharam uma popularidade enorme, fazendo com que Codó ficasse conhecido como terra da macumba20

Segundo Durval Muniz de Albuquerque Júnior21, o folclore, bem como o discurso de “cultura popular” também fora inventado; o documentário uma Codorna me contou diferenciou-se do documentário Domingo 10 em muitos Documentário Uma Codorna me Contou, 1996. Op cit. Documentário Uma Codorna me Contou, 1996. Op cit. 17 Documentário Uma Codorna me Contou, 1996. Op cit. 18 Documentário Uma Codorna me Contou, 1996. Op cit. 19 Ferretti, op cit. 20 Documentário Uma Codorna me Contou, 1996. Op cit. 21 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). São Paulo: Intermeios, 2013. 15 16

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aspectos, mas sobretudo, na maneira como fora abordada o tema de religiosidade afro-brasileira, pois se no documentário exibido em rede nacional Codó apareceu como “ capital da magia negra”, e os pais e mães de santos como aqueles “ que faziam trabalho para o bem e para o mal”, como já dito, no exibido em nível de Estado e atualmente apenas localmente, a religiosidade afro fora apresentada como “folclore”, e os rituais, suas formas de cultos como “ danças de macumba”. Não obstante, o termo “macumba” volta a ser usado, mas neste documentário adquiriu outra conotação, o de “ dança” e não como “ritual para o mal”. Na busca de entender essa “mudança de representação” busquei ler Albuquerquer Junior22 que ao escrever sobre como se fabricam mitos, especialmente no que tange ao aspecto folclore destacou: Os mitos de origem para os estudos de folclore e cultura popular estiveram atrelados a duas tradições influenciadoras nos estudos de folclore nordestino. Uma de inspiração romântica, que estabeleceu a relação entre a cultura nacional e cultura popular, dando origem ao conceito de povo.

Assim, também enxergo outra instância que Albuquerque Junior 23 também acrescentou em seu texto, que o a “síndrome de resgate”, Cândido de Sousa, é um saudosista, um historiador apaixonado, ele escolheu cuidadosamente as fotos, os textos, as imagens a serem usadas no documentário, e tudo tinha a intenção de criar a ideia de “volta ao passado”, de “resgatar” o tempo que já se foi, para ele ser apresentado aos “novos” e reapresentado aos “velhos” citadinos. Sobre o conceito de “síndrome de resgate” cabe destacar: síndrome de resgate[...] existente nos estudos de cultura popular ou organizações de grupos e manifestações classificadas como folclóricas, onde imperam a noção de resgatar das tradições, sem ao menos se fazer a crítica à volta ao passado através de manifestações populares no presente, tidas e entendidas por aquele como seriam praticadas anteriormente. 24

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). Op cit. 23 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). Op cit. 24 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op cit. 22

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Então colocar como “folclore” essas práticas afro-religiosas tiveram essa característica, tanto de dar um lugar a elas no Documentário, ou seja, demarcalas, não deixar de mencioná-las, porque elas fazem parte da “história de Codó e de seus primeiros habitantes” como deixar transparecer que elas são aceitas por todos, porque são “danças”, são “folclore local”, que a história revela que começou como uma “comemoração dos escravos”. Por isso não poderiam ter sido esquecidas ou negligenciadas neste documentário. Portanto, ele se configura como um segundo olhar sobre uma mesma cidade, e se o primeiro fora feito pela mídia, o segundo também assim o fez, a mídia que se encarregou de criar estereótipos e de levar a “verdade sobre a pequena cidade do interior do Maranhão”, esta mesma mídia criou outro ponto de vista, também com o intuito de ser “verdadeiro”, e com intuito de dar legitimidade, uma vez que fora produzido por pesquisadores e jornalistas da própria cidade, e não alguém de fora. Se o documentário Domingo 10 desqualificou práticas religiosas, o Uma Codorna me contou trilhou o caminho de romanceia-las, sem deixar de desqualificar visto que também tende ao simplismo das práticas afro-religiosas, pois ao colocá-las como “folclore” também deslegitima-as enquanto religião. Considerações finais Pelo caminho trilhado de investigação, pode-se compreender que há sempre lutas representativas e de memórias, a mídia, os livros, os documentários, as várias fontes que foram pesquisadas, a partir das perguntas feitas a elas, mostraram que Codó vem ao longo dos anos sendo uma cidade simbólica, e que isto tem a ver com a visibilidade que há dos trabalhos feitos em terreiros de religião afro-brasileira existente nela, mas principalmente a “eficácia simbólica” atribuída a Bita do Barão. Assim, a representação de Codó como terra da macumba fora histórico, social e midiaticamente construído, mesmo considerando os inúmeros terreiros da cidade, a visibilidade de Bita do Barão nos trabalhos afro-religiosos, eles tornaram-se conhecidos pela mídia e não o oposto.

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MANTENEDORES DA (DES)ORDEM: UMA VISÃO CONTRADITÓRIA DA POLÍCIA EM BELÉM (1897-1905) João Arnaldo Machado Gomes1 Nenhum imperativo permeou de maneira tão incisiva a série de medidas modernizantes da capital paraense durante a intendência de Antônio Lemos do que as pretensões civilizatórias. Em vários cantos da cidade se observavam obras em execução que apontavam para esse objetivo, o que alguns historiadores chegam a dizer que não se tratava apenas de um desejo ou sonho do intendente, mas uma obsessão. Retraçar o perfil estrutural do centro urbano para se adequar aos moldes de cidades europeias como Paris e Londres, como mostram as fotografias do Álbum de Belém2, pareceu constituir o centro de suas preocupações mais imediatas ao tempo em que criava condições básicas para a manutenção dos negócios que se efetuavam com o crescente comércio da borracha. Para isso, constatou-se a necessidade de redefinição do corpo policial que precisava ser estruturado com urgência. Daí que em 1897, o Dr. José Ferreira Teixeira, Chefe da Segurança Pública, segundo Franciane Gama Lacerda, recorreu ao governador do Estado do Pará, Paes de Carvalho, apresentando-lhe um relatório referente àquele ano, explicando o papel da polícia como uma instituição que “previne ou faz cessar toda perturbação na economia da sociedade constituída e organizada”3, destacando o fato de que as ações policiais, para serem eficazes, dependiam, entre outras coisas, de um bom sistema penitenciário, discurso que deixou evidente para Lacerda um ideário civilizatório em que a ordem em Belém seria assegurada de maneira especial pelas ações da polícia. Por seu turno, Lemos implementaria também no corpo policial da cidade algumas modificações com o intuito de assegurar a ordem, como a criação, autorizada no final daquele mesmo ano, da Guarda Municipal que, além de funcionar como Mestrando em História Social da Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal do Pará. 2 Encomendado por Antônio Lemos ao jornalista Carlos Fernandes e ao fotógrafo Francisco Fidanza, o álbum, contendo fotos de bondes, prédios e do traçado urbano basicamente do centro de Belém, tinha como finalidade, segundo Maria de Nazaré Sarges, “registrar o sinal da civilização nos trópicos”, ao passo que mostrava, segundo Sarges ainda, uma realidade “artificial”, “descontextualizada” e “mimetizada”, nos moldes de uma cidade europeizada e sem referência que a caracterizasse como uma cidade amazônica. Memórias do Velho Intendente. Belém: Paka-Tatu. 2002, p. 107. 3 LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (18891920). Belém: Editora Açaí, 2010, p. 288. 1

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fiscalizadora das ruas, praças e jardins, ajudaria também na “aplicação de multas àqueles que transgredissem as novas posturas emanadas do poder municipal”.4 Pretendia-se, assim, assegurar-se a ordem na cidade por meio da presença de um corpo repressor constituído legalmente pelo Estado. Mas o que se vê a partir desse ano é um aumento preocupante na estatística da criminalidade que, para piorar, se “moderniza” com a sofisticação de antigas práticas combinadas à adição de outras novas introduzidas com a chegada de novos elementos sociais atraídos pela variedade de recursos que a ecomonia oferecia, elevando a responsabilidade das autoridades policiais. Latrocínios, homicídios, roubos de grande porte a comércios e bancos, estelionato e circulação de moeda falsificada, cujos processos de investigação terminavam por ser arquivados em virtude da falta de recursos materiais e técnicos necessários para sua conclusão, são exemplos de algumas categorias de crimes que parece ter sofrido mudança drástica dentro do processo de expansão social e econômica da cidade. Das ruas, os casos ganhavam espaço nas páginas dos noticiários dando subsídios para a construção textual de crônicas policiais que diariamente eram contadas sob laivos que variavam do dramático ao cômico com o fim de atrair a atenção dos leitores. Mas algo existia para além desse fim. Como sabemos, os jornais sempre foram mais que um empreendimento empresarial que precisam de um grande número de leitores para se manter e expandir. Seu fim último, dado a gênese tendenciosa em que são concebidos, é o de divulgar e incutir na sociedade ideias, valores, crenças e opiniões de um determinado grupo. E mesmo no final do século XIX e início do XX,5 em Belém, os dois de maior circulação na época, Folha do Norte e A Província do Pará, nunca deixaram de esconder o “lado” que defendiam.6 E em se tratando de intervenção política que afetava grandemente o setor econômico, nada mais conveniente para um e outro atacar ou defender o grupo que representava. No caso do processo de modernização da cidade, quando entra em cena o corpo policial como braço do Estado que tem como objetivo manter a SARGES, Maria de Nazaré. Memórias do Velho Intendente. Belém: Paka-Tatu. 2002, p. 131. 5 E por que não dizer especialmente nesse período em que grupos políticos e econômicos estavam em processo de formação, consolidação e firmação no cenário político da jovem República, inclusive no Pará? 6 Nesse momento da história política do Pará, os grupos políticos se polarizarão com a divisão do Partido Republicano em Federal e Paraense, sendo o primeiro representado por Lauro Sodré e o segundo por Antônio Lemos, que historiograficamente passaram a se chamar de lauristas e lemistas. Fundado em 1896, a Folha do Norte passou a defender Lauro Sodré enquanto A Província do Pará permaneceu sob a influência de Antônio Lemos. 4

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ordem na cidade por meio da repressão e aplicação da lei, Folha e Província se posicionam de maneira opostas em relação às construções textuais de suas crônicas policiais, sendo o primeiro bem enfático na sua narrativa, principalmente quando se tratava de alguma ação contraditória da polícia em relação à sua missão civilizadora, enquanto o segundo procurava descrever o fato de uma maneira mais cuidadosa, omitindo qualquer informação que comprometesse a ação policial. Para esse trabalho, que tem como objetivo tratar de ações contraditória da polícia no processo civilizatório de Belém na primeira metade da intendência de Antônio Lemos, constatou-se como mais oportuno a utilização da Folha pelo fato de ser, em concordância com Lacerda, um jornal de oposição ao intendente, reconhecido como o principal responsável pela remodelação urbana da cidade de Belém, sendo, quase sempre por meio de seus articulistas, muito combatido em relação às ações de disciplina e de organização da cidade.7 Atentemos ao que revela uma de suas crônicas: Scena deprimente Scena deprimente capaz de desmerecer nos predicados de nossa provada generosidade, próprio para arrancar os nossos méritos de terra civilisada, foi o attentado selvagem praticado em trez portuguezes trabalhadores, innofensivos, humildes de posição, mas sérios na conducta, á travessa de Monte Alegre e, alta hora de noite de sabbado, 11 do corrente. Foi o caso que, tendo havido ligeira altercação á taverna da esquina da referida travessa com a estrada Almirante Tamandaré, entre um brasileiro e um portuguez, motivado por uma barregã, chegando aquelle a puxar uma faca para este, que evitou golpes e ferimentos, dando a fulga, avolumou-se n’aquellas immediações a pequena rusga, provocando um grande barulho. Aos gritos de “mata gallego” – acudiu a policia, que, longe de sua missão, acompanhou a um magote de pessoas em busca de portuguezes, por aquellas cercanias e adjacências. Everedando por fim pela travessa de Monte Alegre abaixo viram, policias (já em maior numero) e paisanos que, na cocheira, casa n. 9, um pobre portuguez chegara á janella arrastado pela curiosidade de ver a causa de tamanho alarido. Para logo gritou um dos portuguezophabos: “É aqui”. Tanto bastou para que voltassem as praças de cavallaria, que já iam mais adiante, e de roldão policiaes e paisanos forçaram e meteram a dentro o portão da cocheira, pegaram do portuguez chamado José Fernandes e tiraram-n’o para fora. Batendo n’elle a valer vieram ate perto da estrada Almirante Tamandaré, onde encontraram mais dois LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (18891920). Belém: Editora Açaí, 2010, p. 25. 7

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portuguezes que áquella hora voltavam da Companhia do Amazonas, onde tinham ido levar seu patrão que seguia para Soure, e sobre estes também cevaram o seu canibalismo voraz. Houve sobressalto das famílias, detonações de arma de fogo, etc. Para calcular-se o estado em que ficaram os trez inoffensivos extrangeiros, que procuraram nossa terra por ser hospitaleira e generosa, basta ler o corpo de delicto a que se procedeu domingo pela manhã. Resta saber: Ficarão impunes os policiaes? Sobre os cabeças do motim os paisanos portuguezophobos, não haverá devassas e diligenciaes policiaes? Para caso tão revoltante, é de ver, que devem convergir todas as attenções das auctoridades d’esta terra e todos os esforços do cônsul portuguez junto d’ellas, afim de que não fiquem a propriedade, a vida e o direito dos maltratados offendidos a mercê de espadachins e arruaceiros. Ao sr. capitão Mattos, pedimos queira falar dos tiros de rewolver, dos cacetes que foram aprehendidos, dizem os policiaes, no barulho feridos estão os portuguezes, sem que tenha a força ou qualquer paisano um arranhão sequer. Ao capitão lembraremos que a autoridade só é forte com a lei na mão. Belém, 14 de dezembro de 1897.8 Ao que parece, o relato chegou à redação da Folha por meio de carta, meio comum e seguro de denúncia que podia ser praticado de maneira anônima, ou com pseudônimo, como forma de se manter em segredo a figura do denunciante. Mas a impressão que fica é a de que muitas das cartas delatoras recebidas pelo jornal pareciam ser forjadas por seus redatores para parecer que se tratava de expressão popular de insatisfação. Numa dessas cartas– que a redação da Folha inicia com apenas um “Escreveram-nos:” –, dizia respeito à decisão da polícia de fechar os botequins e tabacarias do bairro do Reduto às seis horas da tarde, com o fim de evitar desordens durante a noite. Desagradado com tal decisão, o “autor” a considerava injusta pelo fato de atingir o trabalho de comerciantes, que em nada eram culpados com a falta de ordem no local e que para se evitar tais constrangimentos bastava a execução de um bom policiamento, ao que, estendendo sua revolta para além da questão da ordem, dizia que a decisão, classificada por “ele” como arbitrária, constitui mais um attentado que se pratica contra o livre comercio, prejudicando, sobretudo, aquelles que pagam impostos pesados de industrias e profissões, licenças, etc., fiados na

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Folha do Norte, 15 de dezembro de 1897, p. 3. 111

Cidade e Cultura garantia de terem os seus estabelecimentos abertos de accordo com o codigo de policia municipal.9

No caso da “scena” relatada, a denúncia aparece assinada por Antonio Marques da Silva e Manoel Gomes Brandão, prováveis leitores da Folha do Norte e conhecedores da tendência política defendida pela Província do Pará, onde, apesar da violência que envolve o caso, não há registro. Mas mais do que dramático, o “attentado selvagem” lhes pareceu deprimente, isso porque não se viram comovidos em primeiro lugar pela particularidade do sofrimento a que foram submetidas as vítimas, mas pela ameaça que ela representava para a reputação da cidade, “próprio para arrancar os nossos méritos de terra civilisada”. De uma “ligeira altercação” entre um brasileiro e um português observada numa taberna na esquina da rua Monte Alegre com a Almirante Tamandaré, a narrativa ganha ares epopeia, onde se vê uma turba a percorrer a primeira rua numa verdadeira caça à portugueses. O que inicialmente chama a atenção dos denunciantes, entretanto, não é tão somente a formação do distúrbio por populares que aos gritos de “mata gallego” se põem a perseguir o português que conseguira escapar da faca do brasileiro e fugir sem deixar pistas. Seu escândalo reside no fato de somarem-se à turba alguns policiais que, acompanhando-a, se puzeram na busca de portugueses. A truculência dos mantenedores da ordem não escolhia nacionalidade, mas entre os estrangeiros parece ser os portugueses o grupo preferencial da ponta da lança policial. Numa ocasião, ainda das cartas, Antonio Lopes, José Pereira dos Santos e João Rodrigues, moços empregados no comércio, compareceram à redação do jornal para denunciar o tratamento dado pela polícia a um velho português, funileiro, estabelecido à travessa de Vigia, que um pouco embriagado, numa noite, em frente ao Circo Apolo, divertia-se no meio de populares, “mas sem offensa ao decoro publico”. Flagrado pelo subprefeito Calheiros, foi conduzido à estação de segurança por algumas praças da patrulha sob espancamento brutal sendo ferido em várias partes do corpo. Temerosos que algo mais grave ocorresse ao português, os três se ofereceram para carregá-lo até a estação. “O que o infeliz soffreu lá para dentro do edificio não souberam os moços – lamentou o redator –, que dalli voltaram justamente indignados.”10 Situação pouco convencional em se tratando da função da polícia, mas considerada de pequena grandeza em comparação a descrita sob o título “Para quem apellar?”, onde a Folha divulgou uma agressão ainda mais violenta sofrida pelo carroceiro português Lazaro Maria Amador, 35 anos, que tentava seguir 9Folha

do Norte, 25 de julho de 1905, p. 1. do Norte, 14 de março de 1904, p. 2.

10Folha

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caminho em meio a um grupo de soldados que tentava extorquir o produto do carrinho de um garapeiro na estação de Belém, à estrada de São José, junto ao canto da estrada Almirante Tamandaré. Em meio ao espancamento, sairia ferido inclusive seu patrão, o também português Rodrigues Luiz Nunes, de 32 anos.11 Voltando aos policiais da “scena deprimente”, os denunciantes revelam que tanto seu comportamento como o de seus companheiros que aparecem nos relatos acima, os arremete para “longe de sua missão” que, em oposição a horda de populares degenerados desordeiros, pobres, inaptos, inferiores e de má índole, deveria ser de sobriedade e continência para poder conter o descontrole e fazer valer a lei como o herói que não mede esforço para que tudo retorne à normalidade. Numa situação onde a ordem comum das coisas é rompida por uma pouco significativa contenda entre dois indivíduos que aparentemente se resolve com a fuga de um deles, mas que se agrava com o envolvimento de populares que começam a persegui-lo, a presença da autoridade policial deveria dar cabo ao distúrbio pela dispersão da multidão. Ao contrário, o que se testemunha, segundo Antonio Marques da Silva e Manoel Gomes Brandão, é a tomada de liderança pela polícia que, além de legalizar a ação de descontrole, consolida a unidade do grupo na “busca de portuguezes, por aquellas cercanias e adjacências.” Ou seja, não bastassem os distúrbios, desordens e conflitos causados pelo descontrole de populares “incivilizados”, observados corriqueiramente pela cidade, “Para quem apellar?”, sugere o articulista, se os próprios mantenedores da ordem muitas vezes eram os que assumiam o trabalho de materialização da desordem? Queixas contra a polícia chegavam ainda a redação da Folha das próprias vítimas. Era comum, na época, a transformação do escritório da redação de um jornal em espaço de recebimento de queixas diretamente denunciadas por se encontrar o queixoso desacreditado dos serviços da polícia ou por ter justamente por ela sofrido algum tipo de agressão ou por tê-la procurado para se queixar sem receber algum tipo de resposta. No primeiro caso, Adriano Cerqueira, morador no Marco da Légua como cuidador e vigilante de uma rocinha, expunha sua queixa contra o tenente-coronel Calixto, convizinho do local, pelo qual, numa manhã pelas oito horas, teria sido insultado, esbofeteado e mandado preso para um xadrez ali existente, sendo liberado somente à noite.12 No segundo, um espanhol recorre a esse recurso para denunciar o defloramento de sua filha praticado pelo filho da ex-patroa da moça que, por conseguinte, a espancou, despedindo-a sem nada. Como o caso já havia chegado ao conhecimento da polícia, que pouco caso fez para solucioná-lo, o espanhol resolveu torná-lo público no jornal juntamente com sua revolta, lastimando-se em meio à desilusão: 11Folha 12Folha

do Norte, 11 de abril de 1897, p. 2. do Norte, 17 de maio de 1903, p.1. 113

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“O Pará (...) é terra de muito desrespeito.”13Já o nacional José Elias Viana procurou o jornal para denunciar uma violência que havia se dado da seguinte forma: temeroso de sofrer intervenção da polícia por dever três meses de aluguel a seu senhorio, tratou de procurar a autoridade com antecedência para lhe dar explicação, ao que foi, com “maus modos”, atendido pelo alferes Cassulo, subprefeito do 2º distrito, sob injúrias, insultos e ameaças.14 Em outros casos, o próprio articulista assumia sua insatisfação denunciando ações arbitrárias da polícia, como a abusiva prisão para averiguações que não tinha data para acabar e que incorria numa série de humilhações para o suspeito. Segundo consta na Folha do Norte, o merceeiro Francisco Soares Amado, sob desconfiança de promover jogatina em sua casa, situada na estrada Gentil Bitencourt, teria sido preso para averiguação e libertado depois de alguns dias após pedir “perdão” à autoridade de permanência da estação de segurança em que se encontrava.15 Revoltado, o articulista do jornal lançou uma nota no dia seguinte contra esse tipo de prisão, que mantinha detidos a mais de uma semana na cadeia de São José, por ordem de Cunha Barreto, magistrado policial responsável pelo centro penitenciário, aos indivíduos Belchior Alves de Lima, Francisco Fernandes e Manuel Rodrigues, argumentando, “admirado” com o consentimento de tal abuso sob o manto de sua autoridade, “quando a lei não permite a coação de ninguém sob esse fundamento”.16 Sobre a suposta intenção pelo apelo à justiça pretendida pelo jornal seria desnecessário arriscar-se aqui a dar alguma opinião. Mas com respeito ao que nos interessa neste trabalho é possível dizer que Belém como “terra civilizada”, que inclusive os denunciantes da “Scena deprimente” pareciam acreditar existir, sofria grande ameaça de perder seus “méritos” por culpa não somente de populares desordeiros, mas também por causa de policiais que não cumpriam sua função social. Procedimentos como perseguir e espancar gratuitamente os aproximava dos homens bárbaros, incivilizados e os levava para bem “longe da missão” a eles reservada. E, nessa condição, argui os denunciantes, eles mereciam ser lançados nas mãos da justiça como qualquer outro delinquente para que fossem julgados e punidos por seus crimes para poderem retornar ao caminho da ordem e da civilidade. O que ainda poderia corroborar com essa visão é a insistência do jornal em intervir nos serviços da polícia, apontando os pontos em que ela parecia ser mais deficiente, indicando propostas para uma mais eficiente execução de seus serviços como mantenedora da ordem e defensora da civilidade. O tom de 13Folha

do Norte, 24 de agosto de 1899, p. 2. do Norte, 3 de dezembro de 1900, p. 2. 15 Folha do Norte, 4 de setembro de 1900, p. 1 16 Folha do Norte, 5 de setembro de 1900, p. 1. 14Folha

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exigência com que a carta é concluída deixa isso bem claro: “Ficarão impunes os policiais? Sobre os cabeças do motim, os paisanos portuguezóphobos, não haverá devassas e diligências policiais?” Ainda sobre essa questão, uma matéria publicada tratando sobre a mendicidade pelas ruas de Belém, o articulista denunciava o transtorno social que a presença “profundamente desgostosa” dessa categoria de habitantes representava para a sociedade ao adentrarem em bondes, hotéis e restaurantes. Mesmo já existindo o Asilo da Mendicidade no Marco da Légua, lugar distante para onde esses habitantes indesejados deveriam ser conduzidos, o articulista lamentava o grande número de mendigos e aleijados perambulando incomodamente pelas ruas do centro da cidade a esmolar à caridade pública. Aproveitando a ocasião em que aproveita para fazer críticas indiretas à instituição, uma das muitas obras realizadas por Antônio Lemos e vista, segundo Maria de Nazaré Sarges, “como mais um ato megalomaníaco que não condizia com a realidade financeira dos cofres municipais”,17 o articulista, em nome do jornal, apela: É preciso que as autoridades policiaes se compenetrem de que não foram creadas somente para pegar gatunos e prender bebados, e façam cessar, para sempre, estas scenas de miséria e desgraça, que fazem piedade á gente e compungem, é certo, mas são, francamente, desagradaveis.18

Mas sobre o que ainda pesa a falta de critério da polícia, e que agravava ainda mais suas práticas abusivas ou suas omissões, é que estas recaiam quase sempre sobre trabalhadores, homens considerados de “bem” pela sociedade, exemplares no seu papel de sujeitos sociais ajustados ao sistema de funcionamento da economia e, portanto, toleráveis pelos entendidos da civilidade. Pelo que se vê, à exceção de alguns indivíduos, as vítimas da polícia se encaixavam nos mesmos caracteres descritos para os portugueses agredidos no “attentato selvagem” perpetrado pela turba descontrolada com a ajuda de policiais: “trabalhadores, innofensivos, humildes de posição, mas sério na conducta.” E será esse, no decorrer da primeira década do século XX, o principal teor das denúncias jornalísticas contra essas práticas da polícia, efetuadas geralmente contra pessoas de “bem”, trabalhadores comuns e comerciantes que, no exercício de sua atividade e luta pela sobrevivência, não só se encontravam vulneráveis à ação de

SARGES, Maria de Nazaré. Memórias do Velho Intendente. Belém: Paka-tatu, 2002, p. 159. 18Folha do Norte, 17 de setembro de 1902, p. 1. 17

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ladrões, gatunos e estelionatários, como também à repressão e abuso daqueles que os deviam proteger. Sobre os trabalhadores, principalmente vendedores ambulantes e outros que dependiam da rua para a execução de suas atividades, além das taxas que pagavam, outra categoria de violência era-lhes impostas: a extorsão. Sujeitos a um código de posturas que lhes obrigava a se comportar de determinada maneira e lhes impedia de mercadejar livremente pelas ruas da cidade, vez ou outra se viam em situações consideradas ilegais pelos oficiais da Guarda Municipal. O flagrante de infração de algum dos códigos quando observado podia lhes custar uma boa soma de dinheiro e, na impossibilidade ou recusa de pagamento, podia resultar no seu aprisionamento e até espancamento caso se mostrasse resistente. O medo que tinham de ser “engaiolados” era o ensejo para a ação de alguns guardas municipais que se aproveitavam para extorquir dinheiro desses trabalhadores ou então a exigência de prestação de serviço gratuito mediante a ameaça de aplicação injusta de multas. Os casos eram tão comuns em Belém que a redação da Folha chegava a parecer um centro de peregrinação para onde acorriam engraxates, sorveteiros, doceiros, garapeiros, vendedores de café. Ancorado nessa prática da polícia e fundamentado num discurso pautado pela ideia de civilidade ameaçada, outro articulista da Folha denunciava a atitude da polícia do sr.dr. Thomaz Ribeiro, “que está a rebaixar-nos e a envilecer-nos”, pelo fato de ter atentado contra Domingos da Silva, vendedor ambulante de peixes e morador no largo do Carmo. Ao sentarse no batente de uma casa comercial na Rua de Santo Antônio, Domingos teria sido assediado por duas praças da infantaria estadual que lhe perguntaram se ali morava. À negativa da resposta, recebeu ordem de prisão e levado à estação de segurança, onde permaneceu detido e liberado no dia seguinte depois de pagar multa de 33$. Referindo-se sobre a situação, o articulista a condena energicamente: “É assim, com arbitrariedades e violências, é que a polícia affirma a sua existência.”19 De modo menos austero, mas qualitativamente crítico, a prática da extorsão praticada pela polícia, entre outros problemas sociais que se supôs terem-se agravados depois da emergência de Antônio Lemos à intendência municipal e de Augusto Montenegro ao governo estadual,viria a ser cantada com comicidade e cinismo em rimas por um suposto Telles Meirelles, na Folha: Mas allém vê-se a policia (essa malta de zangões, que por fazer extorsões talvez fique vitalícia...) 19Folha

do Norte, 5 de junho de 1901, p. 2. 116

Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos tornar o pobre detido, a quem espaldeira e insulta, um escravo, arrependido quando “não tem” para a multa! (...) Policia feita de escória dos ineptos mortaes! policiadiffamatoria dos analphabetos, – boçaes!20

Daí que “ladra”, “bárbara”, “selvagem”, “sanguinária” e “violenta” serão alguns dos adjetivos que acompanharão o substantivo “Polícia” nos títulos sobreposto a algumas denúncias de abuso ou arbitrariedade do corpo policial nas colunas da Folha do Norte durante a primeira metade dos governos de Antônio Lemos e Augusto Montenegro, em referência contrária e evidente ao projeto civilizador e modernizador da cidade. Sobre a omissão, a morosidade e a falta de eficiência da polícia, principalmente em relação à gatunagem, quando roubos e furtos se multiplicavam em progressão aritmética, o suposto Telles Meirelles, cantará: O villão mata e saqueia pois que não teme ninguém, a gatunagem campeia e o guarda... cochila além! polícia como a que temos nem mesmo na Califórnia! “gentalha do José” (lemos) numa folha d’Amazônia...21

20Folha 21Folha

do Norte, 5 de setembro de 1900, p. 2. do Norte, 5 de setembro de 1900, p. 2 117

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A “DESCOBERTA” DA VIGIA NO SÉCULO XVII: ESTUDOS E FRAGMENTOS José Renato Carneiro do Nascimento1 Resumo Este trabalho pretende rastrear, em alguns estudos clássicos sobre a chegada e ocupação portuguesa na Amazônia, como foi tratada a “descoberta” da região onde hoje localiza-se a cidade da Vigia no nordeste do Estado do Pará. Estes estudos não mencionaram a data 6 de janeiro de 1616 considerada pelo escritor vigienses José Ildone como a de “fundação” de Vigia em uma região habitada por uma aldeia indígena chamada Uruitá. Dessa maneira, o presente trabalho analisa de que maneira os estudos clássicos paraenses abordaram essa data e o Uruitá. A data descrita por José Ildone refere-se a “parada” de Francisco Caldeira Castelo Branco na aldeia de “Uruitá” antes de sua chegada na região onde seria fundada a cidade de Belém. No entanto, essa “parada” não foi mencionada pelos estudos “clássicos” que abordaram a referida expedição. Palavras-chave: Vigia, Uruitá, Expedição, Fundação. Depois de sair de São Luis em 25 de dezembro de 1615, Francisco Caldeira de Castelo Branco parou na aldeia de Uruitá em 6 de janeiro de 1616. Esta é considerada a data oficial de fundação da Vigia segundo o escritor vigiense José Ildone2. Outras datas e outras paisagens foram citadas pelos estudos clássicos sobre a ocupação portuguesa na Amazônia, mas a data e a “parada” de Castelo Branco na aldeia de Uruitá não foram reportadas por esses estudos. O que esses estudos dizem a respeito da “fundação” da Vigia no ano de 1616 e após 1640 (final da união das coroas ibéricas)? Uma pequena polêmica ocorreu entre dois articulistas do jornal Gazeta da Vigia em torno da fundação da Vigia. Na edição de 6 de setembro de 1925 3 o articulista Serafim Rayol descreveu a Vigia, com base nos estudos do Cônego Ulysses Pennafort e Barão de Guajará, como “uma das cidades mais antigas” fundada na Capitania do “Gram-Pará” entre os anos de 1645 e 1654. Não Doutorando do Programa de Pós Graduação em História Social da Amazônia (UFPA) e bolsista da Secretaria de Educação do Estado do Pará (SEDUC-PA). 2 SOEIRO, José Ildone Favacho. Noções de História da Vigia. Belém: Cejup, 1991, p. 12. 3 Acervo da Sociedade Cinco de Agosto. 1

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concordando com o nome inicial de Uruitá, Serafim Rayol afirmou que a Vila nasceu com a denominação de Vigia e Uruitá era uma aldeia de índios habitantes do lugar antes da chegada dos portugueses. Outro artigo assinado por “Karina” (possivelmente um pseudônimo) e publicado na edição de 22 de novembro de 1925 do Gazeta da Vigia, saiu em defesa do nome Uruitá argumentando o interesse de Serafim Rayol enquanto presidente do clube de futebol Luzeiro, adversário do clube de futebol Uruitá, desmerecer o nome de fundação da vila. A despeito da polêmica em torno da denominação, a antiguidade da Vigia pelos anos de 1645 e 1654 não foi tido como controvérsia entre os articulistas dos anos 1920. Os estudos sobre a ocupação da Amazônia também citaram a Vigia como um lugar de forte presença jesuítica após o período da União Ibérica (1580-1640). Em 1616 o governo hispano-português buscava assegurar o domínio sobre as áreas ultramarinas em função das ameaças de invasão por parte dos concorrentes holandeses, franceses e ingleses. O Estado do Maranhão e GrãoPará foi criado em 1621 (Antes disso, a região era conhecida como “terra do rio das Amazonas”, “terra dos tupinambás” ou “terra dos caraíbas”) e dividia-se em duas capitanias a do Maranhão com sede na cidade de São Luís, “tomada aos franceses em 1615 e a do Grão-Pará com sede em Belém, fundada pelos portugueses em 1616, num desdobramento das ações militares de tomada do Maranhão”4. Para Arthur Cezar Ferreira Reis após a expulsão dos franceses de São Luís os lusitanos, preocupados em proteger o território, atingiram rio Amazonas em uma expedição com três embarcações sob o comando de Francisco Caldeira Castelo Branco. Em 12 de janeiro de 1616, depois de entrarem no Guajará lançaram “os fundamentos de uma casa forte, a que deu o nome de Presépio” 5. Na sua obra “Guia do Estado do Pará”, Theodoro Braga indicou que a expedição foi costeando a região entrando nas baias do Sol e Santo Antonio para atingir a do Guajará6. No livro “Compêndio das Eras”, Antônio Baena também escreveu sobre essa estratégia da expedição em conservar a “terra a vista” a medida em que avançavam sob o rio Amazonas. Ao entrar na foz do Amazonas, os estrangeiros desembarcaram em diversos sítios. O primeiro deles foi “Antonio de Deos”, no CARDOSO, Alírio. A conquista do Maranhão e as disputas atlânticas na geopolítica. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 31, nº 61, p. 317-338, 2011, p. 320. 5 REIS, Arthur Cezar Ferreira. Síntese de História do Pará. Belém: Amazônia Edições Culturais LTDA, 1972, 12. 6 BRAGA, Theodoro. Guia do Estado do Pará. Belém: Typographia do Instituto Lauro Sodré, 1916, p. 7. 4

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qual os “broncos sylvicolas” se opunham a presença dos navegantes. A viagem prosseguiu até, no dia 3 de dezembro de 16157, quando encontraram “uma ponta de terra fronteira a uma corda de ilhas” onde as tropas desembarcaram e fizeram “amisade” com os “selvagens” para a construção de uma fortaleza8. Em “Formação Histórica do Pará”, Manoel Barata discordou da data indicada por Antônio Baena. Apesar de lamentar a ausência de documento histórico que indicasse “o dia certo em que Francisco Caldeira desembarcou”, Manoel Barata reuniu documentos “irrefragáveis” para argumentar contra a data 3 de dezembro de 1515 e defender a saída de São Luís no dia 25 de dezembro de 1615. Os documentos citados (do Frei Santa Mara e um fragmento da “Chronica da Companhia de Jesus no Maranhão”) narram o percurso da expedição9 mas não mencionam a “tribo de Uruitá”. Em sua obra “Evolução Histórica do Grão-Pará”, Augusto Meira descreve a expedição sob o comando de Castelo Branco, que após alguns dias de viagem chegou na barra do “Separará” prosseguindo “vencendo os baixios da Tigióca até chegar com uma feliz viagem defronte da Barreta, que hoje forma a entrada da Villa da Vigia. Foi subindo esta grande boca, que corre as terras dos Sacácas na Ilha dos Joannes e a dos Tupynambás na parte Leste”10. Manuel Barata e Augusto Meira utilizaram os relatos de um “companheiro de Castelo Branco o senhor André Pereira Themudo ou Andres Pereira, que após a “fundação” de Belém foi enviado com outros emissários a “dar conhecimento na Corte dos feitos realizados”. Segundo Augusto Meira esta “peça histórica” intitulava-se “Relação do que há no grande rio Amazonas novamente descuberto” de 161611. Citando outros documentos e estudiosos, Augusto Meira discutiu as possibilidades do tempo da jornada entre São Luís e Belém ser uma difícil tarefa, pois “a navegação à vela exigia paralisações,

O ano de 1615 foi indicado pelo Padre José de Moraes em sua obra “História da Companhia de Jesus na Extincta Provincia do Maranhão e Pará” publicada em 1759. Ele narrou o percurso de Castelo Branco, que após passar pelos “baixos da Tigioca” chegou “defronte da Barreta, que hoje forma a entrada da villa da Vigia”. Subiu a “grande boca” entre a Ilha dos Joanes e a dos Tupynambás e passou pela Ilha do Sol. Cf. MORAES, José de. História da Companhia de Jesus na Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, de Brito e Braga, 1860, p. 185. 8 BAENA, Antônio Ladislau Monteiro Baena. Compêndio das Eras da Província do Pará. Belém: Universidade Federal do Pará, 1969, p. 22 e 23. 9 BARATA, Manoel. Formação Histórica do Pará. Belém: Universidade Federal do Pará, 1973, p. 207 e 208. 10 MEIRA, Augusto. Evolução Histórica de Belém do Grão-Pará. Vol. 1. Belém: 1976, p. 49. 11 Idem, p. 45. 7

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dependia dos ventos, da necessidade de sondagens do rio, encontro dos canais” e outros obstáculos. Em resposta a estas possibilidades, Augusto Meira indicou um documento referente aos contatos do Arcebispo de Lisboa, então vice-Rei de Portugal, a D. Luiz de Souza, Governador Geral do Brasil relatando ter recebido carta de 12 de abril de 1616 de Castelo Branco. Este manuscrito fazia parte de um conjunto de documentos seiscentista sob a guarda do Museu Paulista. Augusto Meira fez uma citação em que Castelo Branco teria relatado os 18 dias de vigem até o “Rio pará”12. A armada teria entrado “pello primeiro braço que aquelle Rio faz, e navegando por ele trinta legoas, escolheo hum sitio forte por natureza (onde edificou hua fortz) com enceada de fundo bastante para Navios de grande porte e o canal muito limpo para poderem entrar”. Augusto Meira citou o possível local, Barreta na Vigia, onde a expedição provavelmente havia passado, mas não realizou nenhuma “parada” neste local. Nenhum desses historiadores paraenses clássicos, dirigidos por um rigor de pesquisa documental característico de suas épocas, mencionaram essa “fundação” da Vigia antes de Belém. Augusto Meira comentou ter resolvido a dúvida acerca do tempo do percurso. Esta dúvida foi citada no “Annuario de Belém” 13 de 1915 organizado pelo Engenheiro Ignácio Moura. O autor14 do texto sobre a descoberta de Belém escrito no Annuário reconheceu a falta de “provas” documentais para esclarecer essa dúvida e admitiu o uso de “deducções” para relatar a provável chegada da expedição às águas do Pará “em princípios de janeiro de 1616”. Em outro texto do Annuario (também sem autoria), foi feita uma análise sobre a origem e o significado do vocábulo “Aruitá”- antiga tribo indígena residente no canal da baia do Guajará. O Annuario apontou as “chronicas dos egrégios padres da Companhia de Jesus” e diversos outros autores para argumentar que a Vigia foi a terceira Capitania mais antiga fundada no Grão Pará. A primeira teria sido a do rio Gurupy, a segunda a do Cauá-été e a terceira da Vigia pelo ano de 1654 após a expulsão dos holandeses de Pernambuco. Neste momento, Dom João IV, rei de Portugal, chamado de “o restaurador”,

Idem, p. 51 e 52. MOURA, Ignacio (org.). Annuario de Belém em comemoração ao seu Tricentenario (16161916). Pará: Imprensa Oficial, 1915. 14 Augusto Meira lamentou a ausência de autoria de um artigo sobre os templos de Belém contido no Annuario, mas ele atribuiu a autoria do texto ao organizador Ignácio Moura. Idem, p. 132. Outros textos reunidos na coletânea também foram escritos sem a revelação de autores. 12 13

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autorizou o nobre cavalheiro Dom Jorge Gomes de Alemo (“homem de negócio e possuidor de grandes cabedais”), a “fundar” uma vila no Grão Pará. Foi a esta povôa d’Alamo que todos os historiadores de nota, quer nacionais quer estrangeiros, deram o seu inicio coloniense – o nome vulgar de Vigia; e nenhuma chronica coéva diz que a villa fundada por Jorge d’Alamo tivesse (...) nome indobrazileno. O appellido que ainda hoje possue foi-lhe dado desde o começo da sua fundação colonial.

Neste sentido, o nome d’uruitá seria um verdadeiro “contrassenso filológico” e o autor do artigo explicou que as capitanias de Gurupy, Cauaeté, Mojuhy mais tarde foram “pombalicamente” alcunhadas respectivamente de Vizeu, Bragança e Odivelas. Contudo, a Vigia foi sempre conhecida como este “predicamento geográfico”. Dom Jorge d’Alamo deu início a ocupação mas fracassou e “abandonou por completo” a vila por ser “improductiva”. A denominação urúita tendo o significado de “cesto de pedra”, atribuído pelo Sr. Barão do Guajará em sua obra “Motins Políticos” (tom. IV, p. 323), não foi encontrado “em nenhuma chronica coéva dos Jesuitas que habitaram Vigia in illo tempore... e nella fundaram aldeias, missões, collegios, fazendas e egrejas monumentais”. O autor do texto escrito para o Annuário de Belém, fez buscas em diversos documentos dos Arquivos do Pará e só encontrou referências ao nome Vigia. Entre os documentos um relatório de 1751 do bacharel e ouvidor do Maranhão João Antonio da Cruz Diniz Pinheiro nomeando vilas, tabas, missões e freguesias com “seus próprios nomes indígenas, autochtones, indianos, brazilenos” exceto a vila de Vigia, que continuou com o mesmo nome de origem. Entre os lugares citados por Diniz Pinheiro no Grão Pará havia um no “sertão do Urubú, dos Padres das Mercês, e 18 dos padres da Companhia que vem a ser: - Maracanan, Cabú, Vigia (note-se), Mortigura, Sumauma, Araticum, Aricará; (...). Ou seja, em meio as denominações indígenas a única que continuou com o nome inicial foi Vigia. Para o autor, os índios Tupinambás nunca conheceram o cesto de pedra e uruitá, em tupy, não tinha este sentido atribuído “falsamente”, pois no língua tupi “cada nome he quase uma descripção do objeto que representa, porque cada syllaba exprime uma idéa”. Por exemplo a palavra itá-tuba, de ytá (“pedra”) e tuba (exprimindo lugar peculiar ou abundante) resultando no sentido de “pedreira” ou “lugar abundante de pedras”. Além disso, itá seria um prefixo e jamais poderia ocorrer no final da palavra. O artigo citou a obra “Grammatica da Lingua Geral sobre o Genitivo” do padre Luiz Figueira (conhecido por ser o “primeiro filólogo brasileiro”) para sustentar que itá não poderia estar no final da palavra. Entre diversos exemplos foi lembrada a palavra itácuara que significa 122

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“buraco de pedra”. Caso fosse cuaitá o significado seria “pedra de buraco”. Assim, uruitá seria um palavra sem sentido, pois representaria “pedra de cesto”. Dessa maneira, não haviam motivos históricos ou linguísticos favoráveis para esclarecer o ato de “parada” da expedição de Castelo Branco em 1616 de São Luis à Belém. Para esses estudos a Vigia foi alvo de preocupações colonizadoras metropolitanas após término da união das coroas ibéricas, ou seja, depois de 1640. Cronologicamente a Vigia aparece depois de outras localidades. Baena, por exemplo, atribuiu aos Carnelitas a construção de um Hospício (entre 1693 e 1694) próximo ao templo denominado Nossa Senhora de Nazareth na aldeia de “Uruytá”15 na Villa da Vigia16. Depois de ser rejeitado como Capitão-Mor pelo senado de Belém em 1642, Pedro Maciel embarcou para a Bahia do Sol onde teria fundado a “estancia com a denominação de São Pedro de Alcantara” na “Ilha do Sol” (depois designada “Villa de Collares”) composta de soldados e índios “domesticados”17. Segundo Manoel Barata, a “Ilha do Sol” seria a segunda região, depois da “Ponta do Mel” (atual Icoaraci), sugerida pelos colonizadores a se tornar “o assento da nascente cidade” de Belém em 163318. A chegada e colonização portuguesa no rio Amazonas fazia, obrigatoriamente, o percurso descrito por Augusto Meira, isto é, “a Tigioca, a Barreta, o Separará, a Ilha do Sol, o ChapéuVirado a Ponta do Mel e as belas ribeiras guajarinas...” 19. De maneira mais detalhada, este mesmo percurso foi descrito na obra “A Arte de Navegar” publicada em 1762 e escrita pelo “Cosmografo-Mor” do Reino português Manoel Pimentel. Narrando a viajem “Do Maranhão ao Pará”, o cosmógrafo passou por diversas baias e viu diversas terras com os nomes da língua dos

Antonio Baena chamou ou lugar de “Uruytá” situado na Vila de Vigia. A primeira edição de “Compêndio das Eras” é de 1838. Provavelmente nessa época já havia um lugar na vila com essa denominação. 16 BAENA, op. cit., p. 124. 17 BAENA, op. cit., p. 54. Augusto Meira também relatou a presença de Pedro Maciel na Baía do Sol em 1642 descrevendo o lugar de poucos recursos e “ainda selvagem”. Em frente a “Ilha do Sol” ocorreu um naufrágio com 42 sobrevivente entre 173 passageiros que teriam saído de Lisboa. Entre os sobreviventes estava Pedro de Albuquerque (primeiro governador do Maranhão e Grão Pará após a restauração de Dom João IV) que alcançou e descansou no arraial de Pedro Maciel. Cf. MEIRA, op. cit., 270-282. 18 BARATA, op. cit., 210. 19 MEIRA, op. cit., 127. 15

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“Tapuyas” (Caité, Maracaná, Piramerim, Guarapió, etc.). De Maracaná em diante ficava a “ponta da Tigioca” com diversos canais, ilhas e bancos de areia 20. No capítulo dois da obra “História da Companhia de Jesus na Extincta Provincia do Maranhão e Pará”, o Padre José de Moraes relatou algumas “notícias” das capitanias do Pará. Depois do Maranhão e Pará (Belém), foi constituída a do Rio Gurupi. Essa capitania foi conservada, mas os seus moradores não se conformaram com a extensão e qualidade das terras mudaram-se para o “bello sitio do Caeté, aonde fundárão a nova villa”. A outra vila destacada no caminho da cidade do Pará foi Vigia, a qual foi cedida pelo Rei Dom João IV ao Senhor Jorge Alemo, negociante “de grandes cabedais”. Jorge Alemo iniciou a vila como o nome de Vigia, mas “quebrou no negocio e não podendo contribuir com os muitos gastos para acabar o começado, a deixou tão pouco avultada” e a deixou sob a direção do capitão-general Gomes Freire. Para José Moraes a vila tinha “bons ares” e era muito farta de peixe e mariscos. Possuía uma terra rasa e alagada. Havia “senado, capitão, e sargentomor da ordenança”. Os religiosos do Carmo conservavam no lugar um hospício e os da Companhia de Jesus tinha a intenção de fundar um “collegio”. A igreja matriz estava “arruinada”, mas foi reformada na administração do prelado Dom Frei Miguel de Bulhões. O templo era “bonito e asseiado” constituído de pedra e cal “dedicado à Maria Santissima, debaixo de suavíssimo título de Nossa Senhora de Nazareth” com uma imagem venerada pelos moradores da vila e da cidade do Pará21. O “Diccionário Geographico, histórico e descriptivo do Império do Brazil” publicado em 1845, descreveu Vigia como uma antiga vila fundada pelos padres da Companhia de Jesus no século XVII num sítio “aprazível” às margens do rio Guajará e “fundarão nelle um collegio a que posérão o nome de São Jorge dos Alamos”22. Nas proximidades do lugar os frades das Mercês dirigiram a construção de uma casa conventual. Ao redor dessas construções, índios e portugueses, “que ali ião traficar” tornaram-se moradores a convite dos padres.

PIMENTEL, Manoel. Arte de Navegar e Roteiro das Viagens, e Costas Maritimas de Guiné, Angola, Brazil, Indias e Ilhas Occidentais e Orientais. Lisboa: Officina de Miguel Manescal da Costa do Santo Officio, 1762, p. 297-299. 21 MORAES, op. cit., p. 195. 22 Segundo Ignacio Accioli na obra “Corografia Paraense” de 1833, este colégio jesuítico tornou-se a Igreja Matriz da vila. Cf. SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira. Corografia Paraense ou Descripção Física, Historica,e Politica, da Provincia do Gram-Pará. Bahia: Typografia do Diario, 1833, p. 249. 20

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Ainda segundo o Dicionário, após a expulsão dos holandeses, em 1654 a Vigia recebeu o título de Vila23. Os relatos do padre José Moraes percorrem em poucas linhas o tempo da fundação (época da restauração do trono português após 1640) e alguns aspectos que ele achou interessante destacar sobre a atuação religiosa na vila em meados do século XVIII (1759). Entre os estudos consultados, a descrição do dicionário foi o único a denominar uma escola jesuítica na vila com o nome do “fundador” da capitania. Os estudos apresentados não indicaram que a “fundação” da Vigia tenha ocorrido durante a expedição de Castelo Branco em 1616. Depois de Belém, outras capitanias (Gurupi e Caeté) e até Colares (com o antigo nome de “Ilha do Sol”), constituíram as primeiras ocupações, no processo de manutenção das conquistas portuguesas no Grão-Pará. Entretanto não podemos descartar a possibilidade dos tripulantes das embarcações terem se deparado com algum povoado indígena durante o percurso marítimo. Talvez o sítio de “Antonio de Deos” citado por Antonio Baena, talvez a “feliz viagem” até a Barreta citada por Augusto Meira ou entre as diversas baias, terras, canais e ilhas citadas pelo cosmógrafo Manoel Pimentel.

SAINT-ADOLPHE, J.C.R. Diccionario Geographico, Historico e Descriptivo, do Imperio do Brazil. Paris, 1845, p. 772. 23

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TRÂNSITO DE ARTEFATOS E ESPÉCIES NO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI DE 1870 A 1903 Josiane Melo1 Agenor Sarraf Pacheco2 Nelson Rodrigues Sanjad3 O Museu Paraense, como era chamado o Museu Paraense Emílio Goeldi no período de 1866 a 18944, é uma instituição científica e museológica surgida em 1866 em Belém, no Pará, que procura ordenar a história cultural e natural da região. A história do Museu Paraense Emílio Goeldi, como chamado hoje, começa a ser escrita a partir das contribuições de três personagens da história das ciências na Amazônia: Jean Louis Rodolphe Agassiz, Domingos Soares Ferreira Penna e Antônio Lacerda de Chermont (o Barão do Arary, nome este que já reflete regiões marajoaras devido ao rio Arary que se entranha em municípios marajoaras). Esses três personagens foram os responsáveis primeiros pela tentativa de se criar a “Sociedade Filomática 5” que mais tarde se tornaria o Museu Paraense. Sobre isso, diz Sanjad (2010) que Ferreira Penna foi a pessoa a relançar a ideia da criação de um museu de história natural, seguindo as sugestões que Agassiz fizera em uma das conferências que deu em Belém, quando então demonstrou “a conveniência da criação de um Museu nesta cidade, lamentando não se encontrar aqui reunidos e um tal estabelecimento tantos objetos úteis e interessantes” (Vellozo, 1867, p. 33). [...] A proteção de Chermont foi fundamental para a fundação do Museu Paraense. Ele e Ferreira

Museóloga e mestranda em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará. 2 Doutor em História Social – PUC-SP e Professor Adjunto II da Universidade Federal do Pará. 3 Doutor em História da Ciência e da Saúde- Fundação Oswaldo Cruz e Professor da Universidade Federal do Pará no Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia. 4Como afirma Sanjad, Foi criado o Museu Paraense em 1866, em 1894 tinha o nome de Museu Paraense de História Natural e etnografia e em 1900 de Museu Goeldi. A partir de 1931 que o museu é nomeado como conhecemos hoje, de Museu Paraense Emílio Goeldi. 5A sociedade Filomática é uma sociedade criada pelos amigos da ciência, os filomáticos da época. 1

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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos Penna levaram a Sociedade Filomática para dentro do Palácio do Governo e tornaram o assunto de utilidade pública.6

A partir daí, outros nomes compunham a lista de membros da sociedade, “também filiados eram o engenheiro Antonio Nicolau Monteiro Baena (18331989), o médico José Ferreira Cantão (professor de História no Liceu Paraense)”7. Esses são alguns dos personagens que fortalecem a ideia de museu na Amazônia. Mais ainda, a relação museu e Amazônia, em plena criação da sociedade filomática, estaria ligada, inicialmente, aos personagens Pedro Leão Vellozo, Charles Frederick Hartt e Domingos Soares Ferreira Penna. Pedro Leão Vellozo, presidente da província na época, monta um relatório e o envia a Barão do Arary. Este relatório explica as condições da criação do museu paraense em 1867, o presidente da província manda prestar à associação cerca de 2.000$000. É com essa verba inicial que se implanta na Amazônia o Museu Paraense. Um Museu Público é o primeiro monumento de um povo civilizado; a capital do Pará merece um estabelecimento dessa ordem, não só para servir de centro à instituição superior, mas também para reunir em seu seio amostras e exemplares de tantos e tão variados objectos preciosos, actualmente disseminados por todo o valle do Amazonas, que pertencentes á historia natural, quer ás raças extintas ou ainda subsistentes dos povos indígenas.8

Nesse relato, duas questões podem ser levantadas: primeiro, neste relato encontramos a inteira relação entre o museu e a ideia de povo “civilizado”. O museu nesse período é visto enquanto um projeto civilizador, ordenador e intelectual, além de instituição promovedora de ordem e desenvolvimento diante a barbaridade do caos de mundos não “civilizados”. 9 A segunda é SANJAD, Nelson. A Coruja de Minerva: o Museu Paraense entre o Império e a República (1866-1907). Brasília: Instituto Brasileiro de Museus; Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2010, p.50. 7 Ibdem, p. 54. 8 VELLOZO, Pedro Leão. Relatório com que o excellentissimo senhor presidente da província Dr. Pedro Leão Vellozo passou a administração da mesma ao excellentissimo senhor vice presidente Barão de Arary, no dia 9 de abril de 1867. Pará. Typ. De Frederico Rhossard, 1867. Disponível na Biblioteca Central da Universidade Federal do Pará. Obras Raras. p. 32-33. 9 Sobre o “ordenamento do Caos” proposto pela direção de Emílio Goeldi ver Lucio Meneses Ferreira “Território Primitivo: a institucionalização da arqueologia no Brasil”, p. 97-102. 6

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entender quais as motivações colecionistas desse período e quais objetos eram deslocados, como diz o relato, objetos preciosos movimentam a ordem do colecionamento da história natural e de grupos indígenas inscritos no passado e presente através da cultura material. Charles Frederick Hartt, de acordo com Sanjad (2004)10, fez algumas viagens ao Brasil e contribuiu de maneira significativa para a institucionalização da ciência no país. As viagens foram como membro “da Expedição Thayer (18651866), de maneira independente (1867), nas Expedições Morgan (1870 e 1871) e na Comissão Geológica do Império (1875-1878)” (p. 449). De acordo com os arquivos digitais do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Hartt fez sua primeira expedição na Amazônia em 1870 na ilha do Pacoval, situado no lago Arary no arquipélago de Marajó. Projetou suas formas de olhar e interferir sobre a cultura marajoara no século XVIII a partir de patrimônios arqueológicos da comunidade marajoara. Hartt (1876) discursa sobre a sua expedição e as tangas marajoaras alocadas no Museu Nacional: Na minha primeira expedição ao Amazonas em 1870 o meu amigo, o sr. D. S. Ferreira Penna, chamou a minha attenção para a pequena ilha do Pacoval, situada no lago Arary, da ilha de Marajó, onde constava existir grande quantidade de louça fabricada pelos antigos indios. Mandei um dos meus ajudantes, o sr. Dr. Bernard, exlorar a localidade, e elle me trouxe uma pequena, porém interessante coleção dessa louça, que descrevi no American Naturaslis, em 1871. Uma das mais bellas destas amostras existe no Museu Nacional, e foi mencionada no livro publicado pelo Dr. Ladislau Netto sobre este museu. 11

Além dessas notas tomadas por Hartt, Ferreira Penna também relata a sua relação com o trânsito material-cultural de sambaquis na costa oriental do Pará, de Bragança, da cidade de Cametá, do Largo Grande de Campinas perto de Óbidos, de Curuçá e nas vizinhanças de Tocantins. Sobre os objetos encontrados no sambaqui da Mina do Capitão Clarinho em Bragança, relata Ferreira Penna (1876): De todos os Sambaquis que visitei é este o que está menos destruído, tendo ainda muitas camadas intactas. Achei aqui algumas falanges, uma maxila inferior com 9 SANJAD, Nelson. Charles Frederick Hartt e a institucionalização das ciências naturais no Brasil. Revista Hist. cienc. saúde-Manguinhos. vol.11 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2004, pp. 449-455. 11 HARTT, Carlos Frederico. Nota sobre algumas tangas de barro cosido dos antigos indígenas da Ilha do Marajó. Arquivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Volume 1, 1876, p. 21. 10

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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos dentes, fragmentos de craneo, etc., e pequenos pedaços de louça.E’ procedente deste lugar uma tosca mó de quarts descoberta por um mrador do Juapirica que m’a offerceu. Em 1875 os trabalhadores do Sambaqui acharam um esqueleto humanos dentro d’um grosseiro vaso de barro que estava soterrado no meui das conchas. O Capitão Clarindo mandou guardal-o; passado muitos dias o Vigario de Bragança, tendo conhecimento do facto, foi ao lugar, arrecadou os ossos e regressando, mandou enterral-os no cemiterio publico. Poucos mezes antes da minha viagem, descobrio-se tambem n’este Sambaqui outros ossos humanos entre os quaes fêmur, humerus e craneo de dimensões extraordinárias, segundo afirmou-me o Capitão Clarindo e foi-me confirmado pelo Dr. em sciencias naturaes R. A. Monteiro que os vio em Bragança na casa de um Inglez que alli reside. Entre os fragmentos de creaneo que com outros objetos ora remeto ao Museu, vae o de um perietal que encontrei no mesmo Sambaqui e cuja parede é tambem d’uma espessura fóra do commum.12

Diante do relato, pode-se pensar que o trânsito de artefatos acontecia na Amazônia tanto pela agência dos grandes filomáticos, quanto pelos moradores da localidade. Pensando a partir de um “deslocamento cultural material”, tanto o Vigario de Bragança quanto Ferreira Penna deslocaram os objetos de seus locais de “origem” para servirem outros locais. O sambaqui, o cemitério e o museu se fazem presentes enquanto “lugares antropológicos” como propõe Renato Ortiz em O próximo e o Distante, sua análise ao falar sobre o Japão enquanto um “lugar antropológico”. Traz-se para este trabalho a mesma noção de Ortiz quando cita Marc Augé para falar sobre este lugar: Marc Augé considera o “lugar antropológico” um territóriogeográfico investido de sentido. Território que poderia circunscrever uma tribo indígena, uma cidade ou uma nação. Nele se enraizariam os homens e as mulheres, sua espacialidade constituindo os limites míticos e identitários dos diversos grupos sociais que o compõem. Inaugura-se assim a existência de um “nós” fonte permanente de referência e de identidade, ao qual se contrapõe um “eles”, fora de suas fronteiras, distante, distinto. A memória coletiva de cada “lugar” é sempre singular, os mitos, narrativas, monumentos, relembram sua história específica, dizem respeito à sua modalidade sócio espacial.13

PENNA, Domingos Soares Ferreira. Breve Noticia sobre os Sambaquis do Pará. Arquivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Volume 1, 1876, p. 90-91. 12

ORTIZ, Renato. 1947. O Próximo e o Distante: Japão e modernidade – mundoSão Paulo: Brasiliense, 2000, p. 137. 13

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Enquanto o Vigário mandava os ossos-vestígios para o cemitério, Ferreira Penna também deslocava alguns objetos para servir o colecionismo do Museu. Assim, museus são genuinamente lugares que vivem de trânsitos e apropriações que inscrevem patrimônios e sociabilidades diversas. O trânsito dos artefatos nem sempre tem a ver com a conservação museológica da época, mas pode atingir outros tipos de valores, como o valor simbólico de se guardar em cemitérios, de uma conservação espiritualizada e religiosa. Assim, o “lugar antropológico” no relato de Ferreira Penna pode ser entendido na dinâmica desses artefatos, inseridos na relação do “nós” e “eles”, como sugere a citação. No Marajó, Ferreira Penna também realiza várias expedições, em uma carta enviada a Ladislau Neto em 1877, mostra como foi seu primeiro encontro com as antiguidades indígenas no Pará e o contato com os ceramios marajoaras. Sobre o objeto migrado, a inferência é justamente sobre estes objetosanalisados por Ferreira Penna: dos ceramios da margem esquerda do Amazonas, miracan-wera, da ordem dos Maracás, da região do Purús, de Santa-Izabel e Pacoval. Esses são os ceramios migrados para museus de 1877 na Amazônia. Ferreira Penna diz que “O ceramio do Pacoval e o que se póde chamar uma pequena collina baixa e artificial, formada por series de urnas e de outros vasos [...]” 14. Afirma também sobre os que já se propuseram a estudar estes cerâmicos e sua primeira visita ao Pacoval: A minha primeira visita ao Ceramio do Pacoval foi precedida pelo Dr. Steere. Este naturalista me havia comunicado que distinguira do Pacoval tres secções ou camada de vasos, sobrepostas umas às outras e apresentando cada uma artefactos sensivelmente diferentes quanto aos desenhos e outros ornatos contendo a secção inferior os mais perfeitos exemplares e a superior os menos importantes. 15

Sobre esses objetos, de acordo com a Relação dos objectos existentes no Museu Paraense, na seção de antropologia estão presentes 16 objetos, dentre estes estavam uma urna, quatorze pedaços de urnas funerárias e uma mão de múmia egípcia.16 Esses objetos poderiam ser encontrados no Museu Paraense, mas como dito no relato (abaixo), objetos da cultura marajoara estavam sendo

PENNA, Domingos Soares Ferreira. Breve Noticia sobre os Sambaquis do Pará. Arquivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Volume 1, 1876-1877. p. 51. 15 Ibdem, p. 52. 16 PORTO, Raymundo M. S.. Relação dos objectos existentes no Museu Paraense. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnographia: Tomo I (fascículo 1-4),Typographia de Alfredo Silva & C.º. Pará, Brasil, 1894-1896, pp. 20-22. 14

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deslocados para outros museus no Brasil. Ferreira Penna nos descreve uma urna do Ceramio do Pacoval e depois mostra para onde foi transferida A uma representa uma mulher cujo corpo inteiro parece velado ou encoberto por um vestido, profusamente ornamentado com ligeiros relevos que o artista realçou com tinta rósea ou quase vermelha que em alguns pontos ainda se distingue. Faltalhe a tampa e tem na boca algumas fracturas. [...] Esta urna foi extrahida do Ceramio do Pacoval e acha-se no Museu Nacional, para onde a remettiam outros artefactos (PENNA, 1877, p. 57-58).17

Ainda sobre Marajó e Pacoval, no livro As regiões amazônicas: estudos chorographicos dos Estados do Gram Pará e Amazonas, de Barão de Marajó, são relatadas as excursões feitas ao Pacoval. Uma das excursões realizadas por Ladislau Neto e daqui foram migradas algumas peças para conter na Exposição Antropológica do Museu Nacional. Que me conste, apenas cinco explorações, mais ou menos importantes, têm sido feitas no semiterio do Pacoval em beneficio da sciencia; a primeira pelo sr. Bernard, sob a direcção do sr. Fred. Hartt em 1870; a segunda pelo sr. Derby em 1871, a terceira pelo sr. Ferreira Penna um anno depois; e as duas ultimas, uma pelo sr. Ladislau Netto, cujos bellos resultados figuram na exposição anthropologica que se realisou no Rio de Janeiro e ultimamente em Chicago, e outra pela commissão encarregada no Pará de obter productos para a exposição de Chicago, onde figuraram; estas duas ultimas creio terem sido as que deram as duas maiores collecções obtidas n’aquelle local. 18

A exposição antropológica foi de muita importância para Ladislau Neto, essa exposição é um marcador para entender como os naturalistas e viajantes que vieram às “Amazônias” tinha autonomias para realocar peças amazônicas em museus ou outras instituições científicas. Esse momento é importante para a compreensão do trânsito, entender as obras marajoaras enquanto ícones da musealidade da época neste trabalho. Na Revista da Exposição Antropológica Brasileira, mostra-se a criação da exposição e da revista para “estudar o homem nas diversas manifestações de sua

PENNA, Domingos Soares Ferreira. Breve Noticia sobre os Sambaquis do Pará. Arquivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Volume 1, 1876-1877, pp. 57-58. 18 MARAJÓ, José Coelho da Gama Abreu, Barão de. As regiões amazônicas: estudos chorographicos dos Estados do Gram Pará e Amazonas. – 2 ed. – Belém: SECULT, 1992 (Lendo o Pará; 12). p. 316. 17

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realidade; selvagem ou civilizado”19. Alguns dos objetos e das informações levadas e negociadas por Ferreira Penna e Ladislau Neto estão na revista, sobre esses objetos e a sua relação de poder para o Museu Nacional. Sanjad (2010) assinala que com essa coleção, Ladislau finalmente igualava o museu carioca às demais instituições que possuíam a famosa cerâmica do Lago Arari. [...] o Museu Paraense, o Museu da Universidade de Cornell e o Peabody Museum para onde Hartt e seus companheiros escoavam os objetos encontrados no Brasil (p. 89).20

Todos esses relatos demonstram a mesma perspectiva de análise historiográfica sugerida por Bernard Lepetit (2001) que propõe compreender “sem mecanismo e linearidade, o trinômio temporal dos lugares, das coisas e dos homens” 21. Nesse sentido, a história dos museus tomam a relação museal como primazia do conhecimento tanto no século XIX quanto hoje. A relação museal envolve a imaginação museal dos protagonistas do patrimônio, independentemente do tempo em que os objetos estão inseridos. Esta imaginação “configura-se como a capacidade singular e efetiva de determinados sujeitos articularem no espaço (tridimensional) a narrativa poética das coisas”.22 Seguindo este pensamento, a relação museal é aquela que faz com que pessoas e objetos conversem em busca de uma imaginação museal que sirva de pensamento poético e crítico sobre a vida. Quando se retira um objeto de seu estado inicial de uso e o transforma em objeto de museus, esse ato faz com que o objeto se renove no mundo dos significados e usos. Os objetos são coisas que se ligam a espaços e tempos, transbordam memórias e fazem de nós meros interpretantes de sua imaterialidade e materialidade. Nesse sentido os artefatos ganham um caráter de vida diásporica através das agências dos atores sociais envolvidos com o fazer científico da época. A questão diaspórica de objetos emergem também no livro de Arjun Appadurai A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural, quando mostra, numa perspectiva crítica do marxismo ortodoxo e FILHO, Mello Moraes. Revista da Exposição Antropológica Brasileira. Rio de Janeiro, 1882. 20 Ibdem, p. 59. 21 LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. – São Paulo, EDUSP, 2001, p. 22. 22 CHAGAS, Mario. A imaginação museal: museu, memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Ibram/Garamond, 2009, P. 64. 19

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funcionalista, as dinâmicas de trocas que surgem diante da comercialização de mercadorias. Façamos uma abordagem das mercadorias como coisas em uma determinada situação (...) que pode caracterizar diversos tipos de coisas, em pontos diferentes de suas vidas sociais. Isso significa olhar para o potencial mercantil de todas as coisas, em vez de buscar em vão a mágica distinção entre mercadoria e outros tipos de coisas. Também significa romper de modo categórico com a visão marxista de mercadoria, dominada pela perspectiva da produção. E concentrar-se em toda a trajetória, desde a produção, passando pela troca/distribuição, até o consumo.23

O autor ajuda a pensar os objetos de museus na direção da comercialização. Assim os objetos recolhidos, na segunda metade do século XIX e primeira década do XX, por diferentes cientistas, naturalistas e/ou etnólogos e doados para o Museu Paraense Emílio Goeldi podem ser lidos a partir do consumo científico da época na Amazônia. A principal contribuição do trabalho de Appadurai remete ao trabalho de Igor Kopytoff (2008) quando pensa a biografia cultural das coisas. Examinar as biografias das coisas pode dar grande realce a facetas que de outra forma seriam ignoradas. Por exemplo, em situações de contato cultural, elas podem mostrar aquilo que os antropólogos tantas vezes enfatizaram: o que é significativo sobre a adoção de objetos estrangeiros- e ideias estrangeiras- não é a sua adoção, mas sim a maneira pela qual eles são culturalmente redefinidos e colocados em uso.24

Nesses termos, os objetos quando saem de um estado “inicial” e se tornam de museus, passam a ser estudados e são ressignificados aos olhos da ciência. A biografia dos objetos de museus é feita no momento em que a musealização se faz presente, no momento da aquisição, pesquisa, conservação, documentação e comunicação. Os museus criam biografias de objetos e isso só é possível no momento de seu movimento (material e imaterial) para dentro dos museus. No museu os objetos ganham novas biografias e criam conexões

APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas. As mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EDUFF, 2008, p. 22. 24 KOPYTOFF, Igor. “A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo”. Ibdem, p. 93. 23

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e rizomas. O rizoma, “ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças”25. De acordo com Gonçalves (2007), o deslocamento dos objetos materiais para os espaços de coleções privadas ou públicas ou para museus (por exemplo, na condição de “objetos etnográficos” ou “arte primitiva”) pressupõe evidentemente a sua circulação anterior e posterior em outras esferas. Antes de chegarem à condição de objetos de coleção ou de objetos de museu, foram objetos de uso cotidiano, foram mercadorias, dádivas ou objetos sagrados. Afinal, conforme já foi sugerido, cada objeto material tem a sua “biografia cultural” (Kopytoff 1986) e sua inserção em coleções, museus e “patrimônios culturais” é apenas um momento na vida social. 26

Para Bruno Latour (1999) as redes criadas em lugares como bibliotecas, museus, arquivos, laboratórios e exposições através de objetos e livros vão além de mera classificação técnica, criam também biografias. Se inscrevem dentro do que chama de “centro de cálculo”. O centro de cálculo mostra redes e conexões feitas a partir de inscrições num espaço. Aplica-se aos museus pensar as várias redes que objetos e coleções tomam na vida humana. Un gabinete de curiosidades, unas láminas ornintológicas, um relato de viaje, deben tomarse como la punta de um vasto tríangulo que permite, por variaciones mínimas, pasar de textos a situaciones y volver a libros por la mediación de las expediciones, la puesta em imagen y las inscripciones.27

Para o autor, todas as informações são relações estabelecidas entre lugares em que são inscritas suas condições materiais. Sobre a informação, diz que é “una relación muy práctica y muy material entre dos lugares, de los que el primero negocia lo que debe tomar del segundo con el fin de tenerle a la vista y de actuar a distancia sobre él.”. O centro de cálculo tem a ver com a produção de informação. “Es porque las bibliotecas, lo laboratórios y las colecciones se conectan con um mundo que sin ellos permanece incompreensible por lo que merece la pena apoyarlos, si uno se interesa por la razón” 28. A inscrição também DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia.Vol.1, São Paulo: Ed.34, 1995, p. 43. 26 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro, 2007, p. 23-24. 27 LATOUR, Bruno. Redes que la razón ignora: Laboratorios, Bibliotecas, coleciones. In: Fernando J. Garcia Selgas e José B. Moleón. (Ed). Retas de La Postmodernidad. Madrid: Trota, 1999, p. 07. 28 Ibidem, p. 06 e 37. 25

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tem a ver com a abordagem biográfica das coisas, de registrar nomes e significados. Sugere Latour que “Tanto Dios como la Naturaleza circulan a través de redes de transformación”29 De acordo com o Regulamento do Museu Paraense de 1894, já com a direção de Emílio Goeldi, o museu pretendia estudar, desenvolver e vulgarizar a História Natural e Etnologia do Estado do Pará e da Amazônia em particular, do Brasil, da América do Sul e continente americano. 30 Nesse sentido, as “redes de transformação” ficam mais evidentes na direção do suíço Emílio Goeldi. Fica também claro que a venda de objetos era proibida. Sabe-se que se formou na Amazônia junto com o “ciclo da borracha” um “ciclo de pesquisas” e de estudo de objetos. Está claro que as coleções conquistadas vinham das expedições e de algumas doações feitas ao museu. O nosso Museu e suas collecções zoológicas. Por telegramma que hontem recebeu o illustre sr. dr. Emilio Goeldi, o profficiente director do Museu Paraense, que nolo communicou, sabe-se que o exm. Sr. dr. Manoel Francismo Machado, senador federal, conseguio em Obidos um exemplar vivo do notavel peixe lepidosiren, exemplar que provavelmente há de chegar aqui em Belém pelo próximo vapor do Amazonas.31

Alguns dos lugares relatados e que foram explorados de 1894 a 1903 são: Castanhal, Ilha das Onças, Ilha do Marajó, Zona costeira da Guyana ao norte do Amazonas, Amapá e Counany, Monte Alegre arredores do rio Tapajós, Ceará, entre outras regiões. Sobre as excursões, diz o relatório: Realisaram-se diversas excursões maiores e menores, com o fito de colecionar n’um mínimo de tempo o máximo de productos da natureza, para o Museu, que tão pobre, era e ainda é. Posso testemunhar de modo mais positivo que se tem feito o que era humanamente possível e não resta dúvida alguma que se se tivesse trabalhado antes, como n’estes poucos mezes, o Museu Paraense seria hoje uma perola entre os seus congêneres e um instituto digno de inveja por parte dos seus collegas.32

Ibidem, p. 22. SODRE, Lauro. Regulamento do Museu Paraense. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnographia: Tomo I (fascículo 1-4),Typographia de Alfredo Silva & C.º. Pará, Brasil, 1894-1896, p. 22. 31 DO NORTE, Folha. Museo Paraense. Terça-feira 9, N.º 433, 1897, p. 02. 32 GOELDI, Emílio. Relatório apresentado pelo diretor do Museu Paraense ao sr. Dr. Lauro Sodré, Governador do Estado do Pará. IN Boletim do Museu Paraense de 29 30

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A busca por fazer do museu uma pérola digna e um instituto invejável só seria possível a partir da coleta cada vez maior de objetos, através das excursões, pelas regiões amazônicas. Conclui-se que, as coletas através de excursões são o que move a prática de musealização desse período. Para entender o funcionamento, as ordens de gestão e produção do conhecimento, escolheramse dividir estas abordagens para entender algumas práticas do Museu Paraense de acordo com os relatórios dos Boletins publicados a partir de 1895. A maioria dos relatórios analisados subdivide-se em categorias de análise como edifício, pessoal, biblioteca, mobília, material de conservação, movimento científico, coleções, viagens e excursões e orçamento. Todos os relatórios são encaminhados ao Governador do Estado devido a grande ligação entre o Estado e o fazer científico como citado por Sanjad.33 Esses documentos históricos34 serviam para explicar ao Governador do Estado o movimento material e científico do museu na época. Portanto, é através dele que a análise da musealidade pode ser feita em relação, principalmente, à preocupação em se organizar um “lugar de guarda” para os objetos coletados pelos cientistas e viajantes da época. Aborda-se a questão do pessoal científico do Museu paraense em todos os relatórios lidos. Em 1895, o pessoal científico do museu era representado unicamente por Emílio Goeldi e com a participação de Barão do Marajó na seção de arqueologia do museu. Mas, ao decorrer dos anos, o corpo científico do museu foi tomando novas participações. Já em 1896, o quadro de pessoas aumenta: Na secção de zoologia História Natural e Etnographia: Tomo I (fascículo 1-4),Typographia de Alfredo Silva & C.º. Pará, Brasil, 1894-1896, p.231. 33 SANJAD, Nelson et al. Documentos para a história do mais antigo jardim zoológico do Brasil: o parque zoobotânico do Museu Goeldi. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. Hum., Belém, v. 7, n. 1, abr. 2012, pp. 197-258. “Ciência de potes quebrados” Nação e região na arqueologia brasileira do século XIX. Annais do Museu Paulista. V. 19. N.1. Jan.- junho 2011, pp. 133-164. SANJAD, Nelson. Emílio Goeldi (18591917) e a Institucionalização das Ciências Naturais na Amazônia. Revista Brasileira de Inovação. Vol. 05. N.º02 Julho/Dezembro, 2006, pp. 455-477. A Coruja de Minerva: o Museu Paraense entre o Império e a República (1866-1907). Brasília: Instituto Brasileiro de Museus; Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2010. Charles Frederick Hartt e a institucionalização das ciências naturais no Brasil. Revista Hist. cienc. saúde-Manguinhos. vol.11 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2004, pp. 449-455. 34 Esses documentos foram coletados nas instituições Biblioteca Central Prof. Dr. Clodoaldo Beckmann da Universidade Federal do Pará, no Museu Paraense Emílio Goeldi e na Fundação Cultural Tancredo Neves. 136

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estavam Emílio Goeldi e Hermann Meerwarth; na Botânica o responsável era Jacques Huber; Mineralógica com Friedrich Katzer.35 É nesse momento que o museu consolida o aumento do seu acervo com mais expedições e viagens pela Amazônia. Em 1896, Goeldi revela alguns acréscimos feitos no acervo na parte de zoologia: mamíferos 56 indivíduos, 436 aves, 264 répteis,8 anfíbios, 198 peixes, 360 insetos, 9 outros. Sobre isso e em pleno diálogo entre museus e doadores, relata-se que: Dos mammiferos e das aves a maioria já se acha montada, e seja dito, com gosto montada, faltando entre os primeiros apenas a montagem dos representantes de maiores dimensões, que intencionalmente foi transferido para a epoca das chuvas. A fonte principal de riqueza consistio também este anno nos esforços do proprio pessoal do Museu: mas não pequena foi também a affluencia espontânea de material de doadoes particulares e justamente por ahi é visível, que as supramencionadas foram atendidas por parte do publico. Um valioso presente para a collecção ornothologica, veio-nos da parte dos , zeladores do British Museus do Londres, que nos enviaram um caixão contendo perto de 500 pelles de aves neotropicas do Mexixo, da América Central e dos paizes circunvizinhos da Amazônia. Agradeci devidademente, em nome do Governo Estadoal, esta oferta, que vae nos prestar bons serviços em estudo comparativos. 36

Da região marajoara são retiradas algumas espécies para compor o acréscimo do acervo em 1898. A região marajoara se faz presente na construção da musealidade produzida no Museu Paraense Emílio Goeldi, tanto na economia quanto na construção do rico acervo deste museu. Na economia, é importante ressaltar que os investimentos feitos pela economia da borracha no museu vieram também das altas safras de borracha produzidas e exploradas na região. Melo e Pacheco (2014) justificam a importância de se estudar o Marajó “já que produziu quilogramas e mais quilogramas de borracha e, assim, contribuiu diretamente para a produção e exportação gomífera e para a

GOELDI, Emílio. Relatório apresentado ao Sr. Dr. Lauro Sodré Governador do Estado do Pará, pelo diretor do Museu Paraense. IN Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnographia: Tomo II (fascículo 1-4),Typographia de Alfredo Silva & C.ª. Pará, Brasil, 1896-1898, p.11. 36 GOELDI, Emílio. Relatório apresentado ao Sr. Dr. Lauro Sodré Governador do Estado do Pará, pelo diretor do Museu Paraense. IN Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnographia: Tomo II (fascículo 1-4),Typographia de Alfredo Silva & C.ª. Pará, Brasil, 1896-1898, p. 19. 35

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prosperidade da economia do Estado”.37 Além dos materiais arqueológicos, o herbário também era composto por “preciosidades” advindas do Marajó e outras regiões: Volto àsecção botanica,[...]. A vista d’olhos cresce o herbário, que hoje já constitui uma preciosidade com as suas séries provenientes de regiões tão interessantes como diversos pontos da Guyana Brasileira, da Ilha de Marajó, do alto Capim, dos arredores de Belém e do Ceará. 38

Em 1903, 69 plantas do Marajó foram oferecidas ao Museu: Temo entretanto, mais uma vez, o prazer especial de registrar a doação de uma collecção de plantas seccas, provenientes de Marajó, que foi offerecida ao Museu pelo snr. Dr. Vicente Chermont de Miranda, no principio do anno. Embora não muito grande, esta coleção compreendia um erto numero de especies que faltavam ainda no nosso herbario Amazonico. 39

Ao buscar entender e analisar o trânsito de artefatos e espécies naturais acionado pelo Museu Paraense Emílio Goeldi na chamada Belle Époque amazônica, de 1870 a 1903, a pesquisa notou quais foram as forças colecionistas dos séculos XIX e XX na Amazônia. As migrações de objetos etnológicos, arqueológicos, zoológicos formaram-se diante das demandas científicas (políticas) da época. O trabalho mostrou como e porque se deu a migração dos objetos na Amazônia através da agência de sujeitos como Domingos Soares Ferreira Penna, Derby, Charles Hartt, Emílio Goeldi, entre outros. A importância desse trabalho se manifesta quando tenta entender os cruzamentos entre museologia e história para prospectar novas intensões analíticas ao pensar os museus e seus sujeitos criados no século XIX e XX. O trânsito de artefatos

MELO, J.; PACHECO, Agenor. Sob o Signo de Aquário: o Patrimônio Marajoara em Tempos de Belle Époque. Muiraquitã- Revista de Letras e Humanidades. Rio Branco, Vol. 3, n. 1, (jan/jun) 2014, ISSN 1807-1856. 38 GOELDI, Emílio. Relatório apresentado pelo diretor do Museu Paraense ao sr. Dr. Jose Paes de Carvalho Governador do Estado do Pará. IN Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnographia: Tomo III (fascículo 1-4),Typographia de Alfredo Silva & C.º e do instituto Lauro Sodré. Pará, Brasil, 1900-1902, p. 49-50. 39 GOELDI, Emílio. Relatório apresentado ao Exm. Sr. Dr. Secretario do Estado da Justiça, Interior e Instrução Publica. IN Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnographia: Tomo V (fascículo 1),Typographia de Alfredo Silva & C.ª e do Instituto Lauro Sodré. Pará, Brasil, 1903, (Parte administrativa I), pp. 01-22. 37

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e espécies naturais é o que move as dinâmicas científicas e práticas museológicas na região amazônica no período de 1870 a 1903.

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PRAÇA DO CARMO E SEU LEGADO SOCIAL, HISTÓRICO E CULTURAL PARA A CIDADE DE BELÉM DO PARÁ Lucivaldo Baia Costa1 Resumo Objetivou-se investigar a praça do Carmo como um patrimônio histórico cultural e sua importância para a cidade de Belém, a partir da representação social dos comerciantes do entorno da praça, agentes locais que convivem diariamente com pessoas que visitam e/ou moram perto da praça. A pesquisa partiu de um levantamento bibliográfico e pesquisa de campo, usando a metodologia da representação social, com dados coletados por meio de questionários semiestruturados. Os resultados demonstraram que os comerciantes atribuem um valor simbólico à praça do Carmo enquanto patrimônio histórico e cultural dos paraenses. Eles acreditam que isso exerce influência positiva na dinâmica do comércio local. Porém, também percebem um certo abandono do poder público local quanto ao aspecto físico da praça, quanto à manutenção da infraestrutura e segurança desse logradouro e seus arredores. Esses problemas geram uma visibilidade negativa à praça do Carmo, devido seu status de patrimônio histórico e cultural, o que se constitui um paradoxo, quando ocorre no Centro Histórico de uma cidade que está às vésperas de comemorar 400 anos de fundação. Palavras-Chave: Belém; Praça do Carmo; Patrimônio Histórico e Cultural; Comércio. Introdução A memória de um povo é um legado significativo. Por conseguinte, a preservação dessa memória, seja ela material ou imaterial (simbólica) de alguma forma se relaciona com o modo de conservar e preservar os monumentos e patrimônios edificados pelo homem.

Jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Pará. Aluno especial da disciplina Arte, Cultura, Religião e Linguagens, pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará. 1

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Buscou-se investigar a praça do Carmo em seu valor histórico e cultural, descrevendo eventos ocorridos desde a fundação de Belém, pontuando as modificações que ocorreram na praça, demonstrando as diversas fases assumidas no decorrer dessas mudanças. Desse modo, partiu-se de uma inquietação reflexiva sobre a praça do Carmo e seu papel na circunferência geográfica onde surgiu a cidade de Belém, o bairro da Cidade Velha, um dos dois núcleos de povoamento de Belém, desde sua origem. Objetivamente, busca-se compreender o legado social, histórico e cultural da Praça do Carmo para a cidade de Belém do Pará a partir da representação social dos comerciantes instalados em seu entorno, agentes locais que fazem parte da cotidianidade de moradores e visitantes da praça. A pesquisa foi bibliográfica e de campo, a fim de coletar informações e dados que pudessem configurar elementos capazes de compreender melhor a dinâmica urbana da praça do Carmo e suas funções hoje desempenhadas no centro histórico de Belém. Fundação de Belém e uma breve trajetória até o século XXI O nascimento de uma cidade Belém foi fundada no século XVII, em 1616 sob o comando da Dinastia Filipina. O objetivo era de proteger a foz do rio Amazonas, garantindo o domínio do território. Conforme Silva (1999)2, Belém ficava na porta de entrada da Amazônia e por isso foi escolhida, por sua posição geográfica estratégica. Logo vieram missões religiosas que ajudaram a ampliar a urbanização da cidade a partir de dois núcleos urbanos: Cidade (atual bairro da Cidade Velha) e Campina. Foi onde foram erigidos os palácios governamentais, a secular feira do Ver – O - Peso e ainda o centro comercial da capital. Nesse período a cidade foi objeto de interesse de outros países – Inglaterra, Holanda, Irlanda, França. A expedição sob o comando de Francisco Caldeira Castelo Branco, visando afastar a ameaça estrangeira, fundou o Forte Militar do Presépio, mais tarde sendo denominado Forte do Castelo e demarcou geograficamente o ponto de fundação. A partir de Belém os portugueses deram início a uma série de expedições militares pela região amazônica, visando a SILVA, Ana Priscila Corrêa da. Qualidade de vida no Centro Histórico de Belém a partir de seus moradores. Postado em 1999. Disponível em Acesso em 10 abr 2015. 2

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expulsão dos ingleses e holandeses, sob o aval da coroa espanhola (ALVES FILHO, ALVES JUNIOR; MAIA NETO, 2001)3. “Batizada” inicialmente como Feliz Lusitânia, a cidade recebeu outros nomes como Santa Maria do Grão Pará, Santa Maria de Belém do Grão Pará e, por fim foi denominada Belém. Era inicialmente uma cidadela tendo apenas um forte (1616) e um colégio jesuíta construído em 1626 (DIAS; DIAS, 2015) 4. Alguns anos antes da proclamação da república brasileira (1889), Belém já apresentava uma paisagem urbana arborizada em alguns logradouros e ruas, como as estradas de Nazaré, São Gerônimo e Mangubeiras, plenamente arborizadas. As mangueiras da estrada de Nazaré, no final do século XIX, já formavam túneis verdes de grande extensão (AIROZA, 2010, p. 123)5. Nesse período histórico, segundo Airoza (2010)6, Belém experimentou uma alavancagem econômica, conhecida como “ciclo da borracha”, compreendido entre 1870 a 1910, gerando grandes recursos para a cidade. O porto de Belém escoava a borracha ao mercado externo. Parte desse excedente econômico ficava nos cofres públicos da intendência municipal e era usado na reurbanização da cidade. Essa fase economicamente favorável ajudou a formar as elites - comerciantes, seringalistas, financistas, e profissionais liberais, coincidindo com a belle-époque7. Urbanização do bairro da cidade velha No final do século XVII, os dois núcleos, a Cidade e a Campina, eram separados pelo pântano do Piri. A cidade erigida ao redor do Forte do Presépio deu lugar ao que hoje é conhecido como bairro da Cidade Velha. A Campina, ALVES FILHO, Armando; ALVES JÚNIOR, José; MAIA NETO, José. Pontos de história da Amazônia. 3 ed. rev e ampl. Belém Paka-tatu, 2001. 4 DIAS, Caio Smolarek; DIAS, Solange Irene Smolarek. Belém do Pará: história urbanismo e identidade. Disponível em Acesso em: 12 abr 2015. 5 AIROZA, Luis Otavio Viana. Cidade das Mangueiras: aclimatação da mangueira e arborização dos logradouros belenenses. (1616-1911)/Belém: Editora Amazônia, 2010. 6 Idem. 7 No Brasil, a Belle Époque deu-se entre 1889 e 1922, coincidindo com a abertura da Semana da Arte Moderna em São Paulo, tendo uma fase de esvaziamento progressivo até 1925. No Pará, coincidindo com a boa fase da extração da Borracha, Belém viveu esse auge entre 1870 a 1910. 3

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localizada mais perto do rio, ocupa hoje a área comercial da cidade. Os limites dessa expansão urbana pela beira do rio estavam definidos pelas ordens religiosas dos Carmelitas, no largo do Carmo; e dos Franciscanos, no largo de Santo Antônio. Esses pontos opostos delimitadores do espaço urbano foram determinantes na organização espacial das praças, já que os largos eram formados a partir das áreas próprias das igrejas e seus conventos. Assim, ocorreu a criação de novos pátios e largos, a partir de igrejas, de campos ou terreiros, com funções distintas (SOARES, 2009)8. Marques de Pombal, primeiro-ministro de Dom José I, rei de Portugal, em 1751 criou um governo principal e nomeou seu meio-irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1758), como governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, com sede em Belém. Foi um período conhecido historicamente como “pombalino”, que contribuiu para a ampliação e consolidação dos largos (SOARES, 2009)9. A praça (largo) do carmo A igreja do Carmo, pertencente à Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, erigida no Porto (Portugal), em 13 de Julho de 1736, por devotos de Maria Santíssima teve sua réplica em Belém, e foi edificada no fim da primeira rua, em 1776. A praça foi vincula à inauguração da igreja, embora tenha sido inaugurada dez anos depois, em frente à igreja, entre as ruas Siqueira Mendes, Joaquim Távora, Carmo e Dom Bosco: Trata-se de uma praça de bairro, sem grandes atrativos culturais ou de lazer. Mas o que lhe confere importância é seu aspecto histórico relativo à participação nas lutas do movimento denominado Cabanagem, sua localização no bairro - berço da cidade e seu casario de entorno. Em seu interior existiu, desde o século XIX até o primeiro quartel do século XX, a pequena Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Brancos, cujas fundações podem ser vistas graças a seu resgate arqueológico (SOARES, 2009, p. 116)10.

As primeiras edificações construídas no bairro da Cidade Velha seguiram o rio e estavam próximas ao forte. A Rua do Norte (hoje Siqueira Mendes) paralela ao rio, iniciava na praça D’armas e seguia até a residência do CapitãoMor Bento Maciel Parente. Foi este que em 1626, doou à Ordem dos Carmelitas Calçados o terreno onde foi construído o convento e o primeiro prédio da igreja SOARES, Elizabeth Nelo. Largos, coretos e praças de Belém – PA. Brasília, DF: Iphan / Programa Monumenta. 2009. 9 Idem 10 Op. Cit. 8

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do Carmo11. Segundo alguns historiadores, era um terreno baldio e alagado, caracterizando a pobreza e precariedade de uma Belém que começava a ser povoada (CRUZ, 1973)12.

Figura 1 - A Igreja do Carmo e seu largo com registro feito pelo italiano J.L Righini no século XIX (do acervo do Centro de Memória da Amazônia). Fonte: Leão (2011)13.

O arquiteto italiano Antônio Landi projetou não somente a Igreja do Carmo, reconstruída em 1760, mas também inúmeros prédios no Centro Histórico da cidade de Belém (LEÃO, 2011). 12 CRUZ, Ernesto. História de Belém. (Coleção Amazônica, Série José Veríssimo). Belém: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Pará, 1973. 13 LEÃO, Monique Bentes Machado Sardo. O Largo do Carmo em Belém/PA: cultura, lazer e conflitos no espaço público. Artigo publicado nos anais da ANPUR - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – 2011. Disponível em http://unuhospedagem.com.br/revista/rbeur/index.php/anais/article/view/3706 Acesso em: 25 mar 2015. 11

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Figura 2 - Planta geométrica de Belém (datada de 1753 nos arquivos da Biblioteca Nacional). A linha em laranja é a rua do Norte, em amarelo o largo do Carmo. 1) Forte do Presépio; 2) Igreja do Carmo e 3) Igreja do Rosário dos Homens Brancos. Fonte: Leão (2011).

Conforme Leão (2011)14, no fim do século XIX e início do XX Belém teve muitas mudanças. As reformas urbanísticas feitas em maior escala visavam embelezar e modernizar a cidade. Muitas transformações foram financiadas por seringalistas e também pelo intendente Antônio Lemos (1897-1912), que naquele período, detinha o status de prefeito da cidade. O intendente revitalizou a praça do Carmo, dando-lhe novo calçamento e arborizando-a, seguindo os moldes europeus da época. Uma balaustrada permitia a apreciação do rio e um quiosque foi instalado para comercializar de artigos finos na Travessa do Carmo (hoje conhecida por Rua Dom Bosco). Leão (2011) cita algumas transformações nos relatórios de Antônio Lemos, de 1902: Recebeu o largo do Carmo importantes melhoramentos. Na parte que dá para o rio, mandei fazer um vasto terrapleno limitando-o por elegante balaustrada. O acesso 14

Op. Cit. 145

Cidade e Cultura do terrapleno para o rio em vez de esboroada rampa de pedras irregulares a qual existe até agora, far-se-á por meio de uma escadaria de avenida de suave declive. A antiga arborização da praça começou a ser substituídas por mangueiras (RELATÓRIOS DE LEMOS, 1902 apud LEÃO, 2011, p. 6)15.

Leão (2010)16 afirma ainda que outras modificações ocorreram na praça, especialmente em 1949, quando recebeu um jardim, passeios e mobiliários urbanos. Outra mudança ocorreu em 1994. A prefeitura projetou um anfiteatro para receber manifestações culturais. Na alteração de 1994 manteve-se o busto de Dom Bosco, doado pelo colégio do Carmo em 1975. Nos dias de hoje a praça mantém seu desenho arquitetônico, embora bastante descaracterizado. Abaixo seguem fotografias comparando a época antiga e a atual:

Figura 3 – A Praça do Carmo por volta da década de 1940 (Acervo do Colégio do Carmo). Figura 4 – Atual configuração da Praça do Carmo.

A praça do Carmo surgiu como adro de igreja do Carmo, fazendo-se também largo para a igreja do Rosário dos Homens Brancos (que foi demolida na década de 1930); depois virou um terreno baldio e alagado. Recuperou-se para ser uma praça de eventos, porém seu uso como espaço público seguiu a necessidade e contexto de cada época (LEÃO, 2011)17. Esta autora notou que a praça influenciou a vida dos moradores e visitantes por diversos períodos. Relatos do início do século XX a mostram como uma praça de bairro, que acolhia crianças, moradores e visitantes. A partir da década Idem. LEÃO, Monique Bentes. Espaço público e urbanismo em áreas centrais: O Largo do Carmo e seu entorno. 2010. 149 f. Trabalho final de graduação - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Pará, Belém, 2010. 17 Op. Cit. 15 16

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de 1990 houve a inserção de novos elementos e supressão de outros. Essa década (1990) demarca também novos usos atribuídos à praça, especialmente como praça de bairro, praça de eventos e praça museológica. É de bairro, por que há uma apropriação por parte dos moradores locais que a utilizam segundo sua faixa etária e necessidades, podendo ser local de lazer ou de práticas de esportes e brincadeiras, absorvendo funções recreativas. Há espaço para brincadeiras e práticas de esportes (futebol, vôlei e skate), sendo visitada por crianças, jovens, adultos e terceira idade. Como praça de evento já era usada desde a década de 1980, consolidandose assim com a construção do anfiteatro, o qual serve como ponto de concentração para blocos de carnaval, para o arrastão do Instituto Arraial do Pavulagem, cordão do Peixe-Boi, Auto do Círio, shows. Essas atrações também ajudaram a instalação de diversos bares no entorno da praça. Porém, a opinião de moradores se divide quanto o assunto é atividade cultural, pois enquanto uns enfatizam aspectos negativos, como os conflitos e confusões, outros acreditam que houve mais valorização e reconhecimento da praça enquanto centro representativo da cultura popular (LEÃO, 2011)18.

Figura 5 - Cordão do peixe-boi realizado pelo Instituto Arraial da Pavulagem em 2009 no Anfiteatro. Fonte: CiVViva (2009 apud LEÃO, 2011)19.

Associações representativas expressam suas opiniões sobre a movimentação da praça:

18 19

Op. Cit. Idem. 147

Cidade e Cultura A Seresta do Carmo - famosa por levar música ao ar livre para o centro histórico reunindo centenas de pessoas - voltará a ser promovida. Batizada agora de Serenata do Carmo (...). Segundo a Secult, a proposta é “resgatar um pouco da movimentação cultural que existia no bairro”. Para Jânio Miglio, presidente da Associação de Moradores da Cidade Velha, a iniciativa é importante. “Sabemos que nos áureos tempos da borracha, as famílias se reuniam em praça pública. A Praça do Carmo sempre foi um local de famílias tradicionais se reunirem”, diz. Porém, a iniciativa não é compartilhada por outra associação de moradores do bairro, a CiVViva (Associação de Moradores, Empresários Estabelecidos e Amigos do Bairro da Cidade Velha). Segundo a presidente da entidade, Dulce Rocque, as festas que têm acontecido na Praça do Carmo acabam se estendendo para outras ruas do bairro, deixando vestígios nada agradáveis para os moradores, já que o principal público das serestas não é a população residente no bairro. “Não somos contra a seresta, mas contra o grande número de pessoas que se concentram aqui e, consequentemente, a sujeira que fica depois. Cultura não é sinônimo de destruição”, diz Dulce. (JORNAL O DIARIO DO PARÁ, 30/10/2009, apud LEÃO, 2011, p. 10).20

Conflitos à parte, Leão (2011) sustenta o pensamento de que a função museológica parece não ter vingado. Proposta pelo IPHAN21, buscando dar visibilidade ao sítio arqueológico, a ideia encontrou muitas barreiras. Entre elas o desinteresse e não aceitação das ruínas por parte dos usuários. Há ainda uma reação negativa devido ao aspecto estético e conflitos sociais gerados no entorno do largo, com reclamações de que o espaço é ocupado por mendigos, que fazem necessidades fisiológicas nas calçadas, além do acúmulo de lixo no local. Pesa ainda a localização de pontos críticos. Um dos locais mais tensos é o Beco do Carmo, que abriga moradias construídas em palafitas e madeira, em sua maioria, com apenas 1 ou 2 cômodos, abrigando em média 04 a 06 pessoas, tendo por agravante a baixa qualidade de vida dos moradores, o acúmulo de lixo e a falta de saneamento básico (ALVES, 2006)22. Segundo o jornalista Lucio Flávio Pinto, numa das edições do seu Jornal Pessoal de 200823, chamava a atenção para esse problema ao redor da praça do Carmo: Ibidem. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 22 ALVES, Joana Valente. Levantamento Social e Comunitário do bairro da Cidade Velha. Projeto Landi Cidade Viva, Fórum Landi. Belém, 2006. 23 PINTO, Lucio Flávio. A agenda amazônica. Beco do Carmo. Edição de 15/07/2008, Belém. 20 21

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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos Todas as construções voltadas para a baía são ilegais. Até a década de 40 descia-se do Largo do Carmo para o beco vendo a água. Aos poucos, as construções, todas precárias, foram ocupando o espaço. Acabaram por se tornar antros do crime, sujando a paisagem e desvalorizando a área. Está na hora de atacar essa chaga e fazer a assepsia urbana, qualificando melhor esse belo perímetro da cidade (PINTO, 2008, apud LEÃO, 2011, p. 14-15)24.

Essa formação urbana ao redor do largo do Carmo, muito próximas da configuração típica das “baixadas” de Belém mais do tempo presente, difere de outros centros históricos em que é mais comum o encortiçamento feito em casarios antigos (LEÃO, 2011)25. O Beco do Carmo, que se estende pela margem do rio Guamá, entre a igreja e o mercado do Porto do Sal (inaugurado em 1934), teve sua ocupação iniciada na década de 1970, a partir da imigração de trabalhadores oriundos da região do Baixo Tocantins, que se concentraram em um terreno abandonado pela empresa de navegação Rodomar (MIRANDA, 2006)26. Caracterização da pesquisa A pesquisa fundamentou-se na teoria da representação social que considera o valor da dimensão subjetiva e cognitiva do indivíduo de forma significativa para o delineamento de formação de mentalidades, podendo interferir nas práticas sociais, atitudes e condutas referentes ao objeto da representação (ARRUDA, 2002)27. Assim, buscou-se compreender a perspectiva social, histórica e cultural, considerando sujeitos, autores, temática, lacunas, revisão teórica, pesquisa empírica e a visão histórica (SILVA; MENEZES, 2001)28. A pesquisa de campo com sujeitos que vivenciam a realidade local, foi intermediada pela aplicação de um questionário semiestruturado no período de 10 a 30 de abril de 2015. A abordagem foi quantitativa e qualitativa, descritiva Op. Cit. Idem. 26 MIRANDA, Cybelle Salvador. Cidade Velha e Feliz Lusitânia: cenários do Patrimônio Cultural em Belém. Tese (Doutorado) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará, Belém, 2006. 27 ARRUDA, Ângela. Teoria das representações sociais e teorias de gênero. Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002. 28 SILVA, Edna Lúcia da; MENEZES, Estera Muskat. Metodologia da pesquisa e elaboração de dissertação. 3. ed. rev. e atual. Florianópolis: Laboratório de Ensino à Distância da UFSC, 2001. 24 25

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interpretativa, buscando reduzir a distância entre a teoria e os dados (BARROS; LEHFELD, 2000)29, a fim de melhor compreender o objeto problematizado. O local da pesquisa foi a praça do Carmo, Centro Histórico de Belém, sendo os sujeitos comerciantes locais que se estabeleceram no seu entorno, em número de 15 (pessoas), escolhidas pelo critério da localização e relação de proximidade com a praça e seus moradores/visitantes. Apresentação dos dados Entre os sujeitos 60% são mulheres e 40% homens; 40% tem até 25 anos e 60% entre 26 e 35 anos; 60% tem ensino médio e 40% ensino fundamental; 80% trabalha no entorno da praça há pelo menos 5 anos, os demais trabalham há mais de 10 anos. Quanto à importância da praça do Carmo para as suas atividades econômicas, foram unânimes afirmar a relevante importância da praça nesse aspecto, e que as atividades turísticas e de eventos repercutem positivamente em suas atividades comerciais. Eles se conhecem entre si e lidam com a necessidade de se manterem ativos no comércio local. Concordam todos que a condição de patrimônio histórico-cultural da praça do Carmo melhorou as atividades comerciais no seu entorno. Também foram unânimes em afirmar um relevante valor imaterial da praça do Carmo enquanto patrimônio histórico-cultural, e que isso influencia também no turismo da cidade. De igual modo concordaram que a Praça do Carmo é um espaço de utilidade pública, turística e de lazer, e que sua condição enquanto patrimônio histórico-cultural ajuda a atrair as atividades realizadas na Praça do Carmo. Segundo todos os sujeitos, quanto mais movimento de pessoas na praça, mais renda aos comerciantes. Cerca de 40% acredita que é somente no aumento da renda que a movimentação de pessoas na praça influencia. Porém 60% acredita que existem mais benefícios, como a valorização simbólica da praça, que se torna mais visitada, conhecida e prestigiada. Entretanto, os comerciantes se queixaram de alguns aspectos da praça. Destes, 40% apontou que é preciso melhorar a infraestrutura e segurança pública no logradouro e 60% crê que além disso, a praça deve ser mais valorizada e melhor apresentada, pois a mesma está na condição de um patrimônio histórico e cultural, e que por isso deve ser melhor preservada. Considerações finais

BARROS, Aidil de Jesus Paes de; LEHFELD, Neide Aparecida de Souza. Projeto de pesquisa: propostas metodológicas. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. 29

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Percebeu-se que os comerciantes prezam a praça pelo que ela representa de simbólico, mas que deve ser melhor valorizada, urbanizada, estruturada e segura, a fim de atrair as pessoas para usufruir de suas atividades e programações locais. As reclamações sobre as políticas públicas voltadas à praça se deram no sentido de chamar a atenção das autoridades, para a preservação do patrimônio, garantindo as festas populares, serestas, cordões de pássaros, quadras juninas, folguedos e outras atividades. A valorização e a preservação desse tipo de patrimônio são essenciais para se construir uma rede de significados, tornando a praça do Carmo não apenas um espaço público, em área comercial, mas um bem imaterial capaz de atender a população que o visita, seja por motivos de lazer e entretenimento, seja pelos eventos, ou mesmo por seu valor museológico-histórico e cultural. Novas pesquisas podem envolver outros atores nesse debate sobre a representação social da praça, a exemplo dos moradores mais antigos do seu entorno, autoridades políticas, cidadãos de outros pontos da cidade, promotores de eventos, historiadores. Um patrimônio histórico e cultural inestimável, localizado no Centro Histórico de Belém, clama por mais atenção.

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A “INVENÇÃO” DE AJURUTEUA: DESENVOLVIMENTO VERSUS NATUREZA EM BRAGANÇA/PA (1970-1996)1 Marcus Vinicius Cunha Oliveira2 O processo de construção da rodovia PA-458 e da criação do balneário de Ajuruteua, em Bragança, Pará, pode elucidar aspectos importantes da forma como se entendeu a natureza e como se projetaram políticas para ela durante a segunda metade do século XX no Brasil, em especial na Amazônia. A construção da rodovia, iniciada no governo de Fernando José de Leão Guilhon (1971-1975), durante a ditadura civil-militar (1964-1985), foi pensada como um projeto de desenvolvimento para a região - que vivia um momento de crise profunda desde a desativação Estrada de Ferro Belém-Bragança (1964) - para um melhor aproveitamento da natureza local, que segundo a elite política representava, “um manancial de atrativos, paisagens que permitirão bons momentos de lazer [...]”, sobretudo, “as praias de Ajuruteua [...].”3 Esse projeto de crescimento econômico não estava desligado dos outros projetos que surgiam pelo resto do país naquela época e estava profundamente alinhado com as políticas de “desenvolvimento” 4 ditadas pelos militares que viam na “natureza” a alternativa que o país tinha para alcançar o nível dos países considerados de “Primeiro Mundo”. Nesse sentido, com o discurso de colocar o Brasil no caminho do desenvolvimento e garantir, ainda, a “soberania” com um plano de integração Esse artigo é a síntese do primeiro capítulo da minha dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em história Social da Amazônia (UFPA) intitulada “A estrada para o “progresso”: política, cultura e natureza em Bragança, Pará (1970-1996)”, orientada pelo professor Dr. Márcio Couto Henrique, que será defendida na primeira quinzena de junho de 2015 (escrevo esse artigo em abril de 2015). 2 Graduado em história e aluno do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (Mestrado) na Universidade Federal do Pará. 3 A Província do Pará, 2º caderno, Belém, 9 de fevereiro de 1975, p.11. 4 O termo “desenvolvimento” e “subdesenvolvimento”, assim como a classificação “Primeiro Mundo” e “Terceiro Mundo” são resultados de jogos de interesses e enfrentamentos políticos específicos daquele momento histórico. “Desenvolvimento” foi um termo importado da biologia que associava-se aos estágios dos seres vivos, também ao “crescimento”, “evolução” e “maturação”, porém passou a ser utilizados, a partir de 1949, para determinar o modelo de sociedade mais ou menos próxima de um modelo natural que ela deveria necessariamente ser, basicamente industrializado e capitalista. Sobre as críticas a esse termo Ver: DUARTE, Regina Horta. História e natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005, p.15-16. 1

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nacional, os militares tiveram na Amazônia o seu principal locus de preocupação. As imensas florestas representavam um espaço de “riquezas”, mas ao mesmo tempo de instabilidade devido as dificuldades de vigilância, sobretudo, por ser, no olhar dos militares, um “espaço vazio”, despovoado. Assim, políticas de investimentos, como a construção de rodovias e o incentivo a ocupação desses espaços fizeram parte da agenda do governo, e em Bragança, a PA-458, como uma grande intervenção sobre o meio natural, deve ser destacada como um exemplo dessas políticas. A década de 1970, época em que se iniciou a construção da rodovia e a criação do “balneário” de Ajuruteua, é lembrada por historiadores ambientais, como Donald Worster, em seu famoso artigo intitulado “Para fazer história ambiental”5, como uma época de “reavaliação e reforma cultural”, em escala mundial, em relação a preocupação com as consequências da acentuada exploração dos recursos naturais e do aumento sensível da poluição causada pela industrialização, no entanto, o Brasil era um país essencialmente agrícola, com altos níveis de pobreza e desemprego, condição que fazia com que o governo ignorasse a preocupação ambiental e privilegiasse a superação das dificuldades econômicas e sociais tomando medidas na contra mão das preocupações ambientais. Nesse contexto, José Sarney, na época um senador do Nordeste, que via na industrialização um dos critérios para o desenvolvimento, esnobava o alarde ambiental provocado pela Conferência de Estocolmo realizada em 1972 e exultava do seu posto político “Que venha a poluição, desde que a fábricas venham com ela”.6 O general Costa Cavalcanti, representante do Brasil na reunião de proteção ao meio ambiente em Estocolmo, declarou na oportunidade que as formas de degradação mais graves eram as poluições constituídas pela pobreza e pelo subdesenvolvimento.7 O pensamento dos políticos em Bragança não era diferente, a preocupação com os indicativos de subdesenvolvimento se sobrepunha a qualquer preocupação em relação à preservação do meio natural. A ideia de “abundância” e “riqueza” dos recursos naturais servia como mais uma justificativa de

WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, 1991. 6 DEAN, WARREN. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.307. 7 DUARTE, Regina Horta. História e natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005, p.25. 5

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investimento num melhor aproveitamento da “natureza” sem qualquer critério de exploração. O prefeito José Maria Cardoso externou sua ideia de “desenvolvimento” para Bragança ao jornal “A Província do Pará” em janeiro de 1975 ao propor um “plano de turismo” para “revitalizar a economia local” prejudicada com o “esvaziamento anunciado da região bragantina”. De acordo com esse plano o objetivo era explorar “as condições que a natureza bragantina oferece”, especialmente, as “praias” que seriam maiores que as de Salinópolis. Para isso, a prefeitura já havia iniciado a abertura de uma rodovia com extensão de 45 km, o que corresponderia vinte minutos de carro do centro urbano até o litoral. Além das praias, havia um conjunto de opções que a natureza oferecia ao longo da rodovia que poderiam ser explorados para a prática de “camping”, caça e pesca, igarapés e áreas de campo além da possibilidade de estabelecimentos de granjas. De acordo com o prefeito a área apresentava outras vantagens em relação à Salinópolis8, que eram as extensas áreas que possibilitavam a construção de edificações permanentes, como casas de campo e hotéis. 9 É importante ressaltar aqui a composição geográfica do município de Bragança, inserida na região que detém uma das maiores reservas de manguezais do mundo, nas latitudes próximas à linha do Equador, no litoral amazônico, entre a foz do rio Oiapoque (Estado do Amapá) e a baía de São Marcos (Estado do Maranhão), região conhecida singularmente como “costa norte” e tem sua preservação ameaçada pela atuação humana. A cidade detém grande parte deste manguezal sob seus limites políticos, porém sua geomorfologia mudou significativamente nos últimos anos e o resultado tem sido a retração dos manguezais no litoral, que, em grande medida, ocorreu por conta do aterramento de parte desse ecossistema para a construção desta rodovia iniciada na década de 1970, cerca de 26 km, o que ocasionou a invasão da areia que cobriu as camadas de lama, a obstrução das águas de maré e asfixiou a vegetação.10 O prefeito referiu-se especificamente à praia de Salinas, situada no litoral paraense, que pertence ao município de Salinópolis, nordeste do Pará, e é muito conhecida na região por ser frequentada pelas classes mais abastadas do Estado, onde há uma elevação considerada do custo de vida com a especulação imobiliária e a carestia de produtos e gêneros alimentícios, sobretudo, em épocas de férias escolares, feriados e finais de semana. 9 Jornal A Província do Pará, 1º caderno, 29 de janeiro de 1975, pp.5, 11. 10 LARA, Rubén & COHEN, Marcelo. Sensoriamento Remoto. In: Fernandes, M.E.B. (ed.). Os Manguezais da Costa Norte Brasileira. Fundação Rio Bacanga. São Luís. 2003, 142p. 8

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Durante a pesquisa não foi encontrado documento que demonstrasse a preocupação das autoridades políticas ou dos jornalistas, que costumavam fazer coro pela construção da rodovia, com as consequências ambientais que a intervenção poderia causar ao ecossistema. A natureza era vista, apenas, como uma “riqueza” que deveria ser explorada em nome do progresso e desenvolvimento da região, uma natureza apenas utilitária. O ecossistema de manguezal, para que se mantenha, necessita de condições específicas, tais como: teor de salinidade adequado à vegetação; costas protegidas de ondas e marés violentas; amplitude de marés e terrenos com fraco declive, para permitir que a água do mar penetre; solo composto de silt e argila fina, rica em matéria orgânica e temperaturas tropicais. Outra dependência desse ecossistema é referente à livre circulação das águas, pois grande parte do material orgânico (nutrientes) produzido pelas árvores, que é importante para a vida da floresta é trazido pelas águas marinhas e continentais. 11 Assim, um aumento do nível relativo do mar pode resultar no recuo dos manguezais em direção ao continente como resultado do aumento da frequência de inundações. A região afetada é caracterizada por penínsulas cortadas por canais de maré que ligam o manguezal ao estuário. Abaixo, em destaque (Figura 1), a floresta de manguezal às margens da rodovia, fotografada durante a pesquisa de campo. Um detalhe importante é o contraste da floresta entre o lado direito e o esquerdo da estrada (sentido Ajuruteua-Bragança). Do lado direito um manguezal vivo, com suas árvores de pé; do lado esquerdo, uma floresta devastada e um mangue em um processo lento de recuperação e autoadaptação, resultado do aterramento para a construção da rodovia.

MANESCHY, Maria Cristina. “Pescadores nos manguezais: estratégias, técnicas e relações sociais de produção na captura de caranguejo”. IN: FURTADO, Lourdes; LEITÃO, Wilma; MELLO, Alex Fiuza de. (Org.). Povos das águas: realidade e perspectiva na Amazônia. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1993b. 11

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Figura 1: Floresta de manguezal em Bragança, às margens da PA-458. Fonte: Oliveira, 2014.

Ignorando os limites ambientais, sobretudo, aqueles ligados às características específicas dos ecossistemas como o manguezal e outros aspectos geográficos típicos da região amazônica os governos militares privilegiavam a implementação das rodovias que traziam consigo sérios danos ao meio natural com o desmatamento, com a morte de rios e de manguezais, espaços e paisagens que não eram exclusivamente compostos pela natureza “não-humana”, mas que eram, também, locais de reprodução social de inúmeros indivíduos, sejam eles indígenas, ribeirinhos, extrativistas e agricultores e que passaram, com as rodovias, a disputar espaço com o turismo, com o agronegócio e com pecuaristas. Na esfera estadual, o discurso também estava pautado no desenvolvimento que as rodovias poderiam promover. Fernando José de Leão Guilhon, governador do Pará entre 1971-1975, em sua “Mensagem à Assembleia Legislativa do Pará” ressaltava que em seu governo, no exercício de 1972, seu vasto programa de obras do Departamento de Estradas e Rodagem (DER) concorria decisivamente para a integração e desenvolvimento socioeconômico do estado12; da forma idêntica, na avaliação de Aloysio da Costa Chaves, governador do Pará entre 1975 e 1978, o Plano Rodoviário Estadual, executado pelo Departamento de Estradas e Rodagem, tinha exatamente o mesmo discurso, que parecia cada vez mais genérico: “concorria decisivamente para a Governo do Estado do Pará. Mensagem à Assembleia Legislativa. Apresentado em 1 de março de 1973. Governo Fernando José de Leão Guilhon. Belém, Pará, 1973, p.274. 12

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integração e para o desenvolvimento socioeconômico do estado”13. Entre muitos empreendimentos rodoviários, o início da construção da PA-458 é registrado entre as obras executadas pelo departamento na sua “Mensagem à Assembleia Legislativa”, apresentada em primeiro de março de 1976. A construção de rodovias continuava como prioridade, mesmo diante de todas as consequências socioeconômicas já registradas após implantações de rodovias já ocorridas na Amazônia. No dia 6 de outubro de 1975 o contrato foi assinado entre o DER e a ENGENORTE, empresa responsável pela obra. O contrato previa dar continuidade na obra já iniciada no governo anterior de Fernando Guilhon e a entrega da estrada em revestimento primário em 240 dias (8 meses)14. Aloysio Chaves esteve em Bragança no dia 8 de novembro daquele mesmo ano para visitar o canteiro de obras da estrada Bragança-Ajuruteua, a qual concorreria, a seu ver, para o “desenvolvimento” da região15. A associação entre estrada e desenvolvimento é corriqueira nas documentações do DER da década de 70 e 80 consultadas durante a pesquisa, está presente nas Mensagens à Assembleia dos governos de Fernando Guilhon, Aloysio Chaves, Alacid Nunes e Jader Barbalho. Helder Aranha, colunista do “Jornal do Caeté”, ao reclamar em sua coluna sobre a demora da conclusão da rodovia, em julho de 1980, alardeava que “Ajuruteua é a nossa esperança. O turismo poderá ser a válvula que permitirá a este sofrido povo desfrutar dias melhores, sair da nossa situação de letargia econômica, industrial, educacional e etc.”16 A construção da estrada ocorreu em várias fases, incluindo ampliações, melhoramentos e asfaltamento. Inicia no governo de Fernando Guilhon, persistiu por todo o governo de Aloysio Chaves e Alacid Nunes e foi concluída com o asfaltamento somente em 1991, na gestão do então governador Jader Barbalho. Sobre as explicações para essa demora podemos juntar algumas evidências nos jornais da época e em documentos oficiais, além de alguns relatos orais. Sobre esse aspecto, é elucidativa uma reportagem do “Jornal do Caeté”, de 30 de abril de 1979, acerca das dificuldades de conclusão da obra. De acordo com a reportagem, o engenheiro Paulo Nunes da Silva, que pertence aos quadros do DER/PA, informou que a conclusão da obra dependeria de uma série de “circunstâncias”. Levando em conta o que foi dito na reportagem pelo Governo do Estado do Pará. Mensagem à Assembleia Legislativa. Apresentado em 01 de março de 1976. Governo Aloysio da Costa Chaves. Belém, Pará, 1976, p.235. 14 “A Província do Pará”, 2º caderno, Belém, 7 de outubro de 1975, p.3. 15 “A Província do Pará”, 1º caderno, Belém, 9 de novembro de 1975, p.9. 16 Jornal do Caeté, 26 de julho de 1980, p.6. 13

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engenheiro, uma das principais “circunstâncias” seriam as condições naturais, especialmente do clima, e também das dificuldades que o ambiente natural, composto de muitos rios, pois era “uma região que ficava anteriormente em pleno oceano e hoje é atravessada pela estrada”, iria proporcionar. A reportagem enfatiza: “Ele também nos disse que a previsão era que o inverno fosse rigoroso, a partir de fevereiro, daí porque as máquinas não se encontram em serviço na área. Se soubesse que o inverno deste ano fosse fraco, como tem sido, os serviços prosseguiriam”17. Aqui devemos considerar as dificuldades que as condições naturais do ecossistema e as condições climáticas peculiares da região teriam imposto ao empreendimento. As fortes chuvas, que costumam cair nos primeiros meses do ano na região, impossibilitavam o seguimento à obra, ademais, o solo movediço do manguezal, as inúmeras e imensas árvores que tiveram que ser derrubadas e os vários e grandes rios que foram aterrados ou os que só puderam ser superados com pontes de madeira, certamente acarretaram um grande esforço que necessitou de máquinas e equipamentos específicos. A memória de José Monteiro da Silva é enfática acerca das dificuldades que a natureza impusera aos operários: (...) quando eles botavam a piçarra no mangue, as primeiras camada era mermo que soltar dentro d’água: ia embora pro fundo, ia rachando tijuco, ia derrubando mangueiro, ia espocando raiz, era tudo, era assim. Ai... das outra é que já ia... já em cima daquela primeira camada era que eles iam continuando a levar o aterro pra frente e foi nisso que... até findaram.18

Outra circunstância, que não foi apontada pelo engenheiro, mas que se tornou um grande empecilho já no ano seguinte foi a falta de recursos para concluir a obra. Uma nota do “Jornal do Caeté”, na coluna de Helder Aranha, de 26 de julho de 1980, intitulado “Nós não merecemos Ajuruteua?” Aranha expõe que, a despeito de todo o esforço empreendido pelo ex-governador Fernando Guilhon ao iniciar a obra “rasgando a selva” com a estrada “tão aspirada”, hoje a “maior aspiração do povo bragantino” tornou-se uma “verdadeira novela de acontecimentos, todos, infelizmente, contra a concretização de nosso sonho maior”. Segundo o autor, “os canais responsáveis” anunciam que “não há verbas, todas foram cortadas”, mesmo para completar os “míseros quatro quilômetros” restantes, naquela altura. “Jornal do Caeté”, de 30 de abril de 1979, p.4. Entrevista com José Monteiro da Silva, 61 anos, pescador e ex-mariscador de caranguejo, 28 de janeiro de 2014. 17 18

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Mesmo diante da falta de recursos e admitindo que “os tempos são outros, mais difíceis, mais dificultosos”, Aranha não entendia a falta de recursos para complementar apenas os quatros quilômetros restantes. Aranha ainda insistia: “Não se poderá, então, tirar alguns milhões de cruzeiros de um fundo qualquer e aplica-los numa obra que, antes de ser turística, é altamente econômica, já que virá nos tirar do fundo do poço?”19. O mesmo jornal, dois anos depois, continuava a reclamar da lentidão da obra. Em uma nota intitulada “Ajuruteua”, o autor da nota reclama que pouco se ouve falar sobre os trabalhos da Rodovia Bragança-Ajuruteua, o último teria sido o pedido do deputado Osvaldo Melo ao senador Jarbas Passarinho e ao Superintendente Elias Seffer, sobre a liberação de verba para dar continuidade à obra. Ainda, de acordo com o jornal, a Comissão de Aeroportos da Região Amazônica (COMARA) deveria terminar a obra, contudo, “o governo do Estado não admitiu sob a alegação de que o DER era capaz de realizar e tornar realidade o sonho dos bragantinos”. Para o “Jornal do Caeté”, esse fato foi o “princípio do fim”, pois o DER estaria com as verbas do Fundo Rodoviário Nacional (FRN) bloqueadas pelo Banco do Brasil e não teria capacidade para assumir e dar conta de tal encargo. Ainda na mesma reportagem, o jornalista informa que a verba destinada à conclusão da obra foi desviada para a construção do cais de Bragança.20 Em 1980, em vez do desenvolvimento, ao contrário, os efeitos negativos do turismo21 começaram a aparecer e foram notados por Helder Aranha quando escreveu uma nota intitulada o “Perigo de Ajuruteua”. O colunista alerta para a cobiça que Ajuruteua havia despertado em “muita gente de fora”, isso já teria causado uma ocupação desordenada, sem qualquer estrutura urbanística, o que representava uma “iminente perigo de invasão dos economicamente poderosos e ser elitizada, perdendo assim sua principal característica natural, que é seu bucolismo”22. Era clara a preocupação do jornalista, que Ajuruteua viesse a se tornar um “reduto dos poderosos”, uma “nova Salinas”23, em detrimento aos interesses da população.

Jornal do Caeté, 26 de julho de 1980, p.6. Jornal do Caeté, 17 de julho de 1982, p.3. 21 COSTA, Helena Araújo. Destinos do turismo: percursos para a sustentabilidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013. 22 Jornal do Caeté, 26 de julho de 1980, p.6. 23 Salinas é outra praia que está situada no litoral paraense, que pertence ao município de Salinópolis, nordeste do Pará, e é muito conhecida na região por ser frequentada pelas classes mais abastadas do Estado, onde há uma elevação considerada do custo de 19 20

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Na verdade, a construção do espaço bragantino convergia com outras políticas urbanas de forma objetiva e subjetiva, onde a propaganda e a adjetivação de paraíso e riqueza faziam parte de um processo complexo de construção de um espaço a ser vendido dentro das novas lógicas capitalistas que segundo Sánchez24 surge a partir dos anos 1990 onde o espaço passa se realizar enquanto mercadoria. A lógica subjetiva diz respeito à criação do espaço que “toma forma também através de representações e imagens adequadas [...] seus pontos de irradiação coincidem com as instâncias políticas de produção de discursos: governos locais em associação com as mídias; instituições supranacionais” 25. Em Bragança, os governantes e a mídia estavam empenhados em criar uma representação de paraíso para Ajuruteua para explorá-la na atividade turística desde a década de 1970, que persistiu nas décadas subsequentes, sobretudo na década de 1990, essas representações dependiam de estratégias discursivas e retóricas que pareciam centrais. Isabela Teobaldo26 afirma que a globalização atinge a produção do espaço e uma das estratégias constitui-se em criar novas centralidades e, para isso, usaram-se como ferramentas opções culturais e de lazer para criar uma espetacularização das cidades, para essa autora, o resultado é a promoção de cidades cada vez mais semelhantes e a desconsideração de aspectos regionais de cada uma. A implantação da rodovia promoveu mudanças nas dinâmicas sociais das comunidades atravessadas por ela e no ecossistema local. Houve o surgimento de uma noção de desenvolvimento pela população local, subsidiada por mudanças em suas atividades econômicas assentada na introdução do transporte rodoviário (da canoa passaram a usar o carro, por exemplo) e pelo fim do isolamento geográfico em que viviam.27 Por outro lado, em Ajuruteua, especificamente na Vila dos pescadores, de acordo com Maneschy, após a vida com a especulação imobiliária e a carestia de produtos e gêneros alimentícios, sobretudo, em épocas de férias escolares, feriados e finais de semana. 24 SÁNCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades na virada do século: agentes, estratégias e escalas de ação política. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 16, p. 31-49, jun. 2001, p.33. 25 SÁNCHEZ, 2001, p.32. 26 TEOBALDO, Izabela Naves Coelho. A cidade espetáculo. Sociologia: Revista do Departamento de Sociologia da FLUP, Vol. XX, 2010, pág. 137-148, p.138-139. 27 Essa mudança no sistema de transporte, no que toca os mariscadores de Bacuriteua, meus interlocutores durante a pesquisa de campo, é percebida como uma das principais melhoras após a introdução da rodovia, o que lhes permitiu passar menos tempo no manguezal quando saiam para tirar o caranguejo ou ir até a cidade quando necessitavam. 160

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construção da PA- 458, “a terra entrou no circuito da mercadoria e da apropriação privada” e ainda modificou a cultura local, pois “o contato com a cidade alterou o rol de aspirações dos pescadores e de seus filhos, não só em termos de moradia, vestuário, lazer, mas também, e principalmente, em termos de escolarização, condições de saúde e emprego”28. Com a estrada aumentou o número de turistas, porém, como consequência emergiu a especulação imobiliária, o encarecimento dos produtos no comércio, o crescimento demográfico, a expansão urbana desordenada na praia, aumento da demanda por recursos naturais (peixes, crustáceos, madeira, etc.)29 e o aumento do lixo. A instalação da indústria hoteleira também fez pouca diferença, já que os hotéis são de pequeno porte e costumam receber turistas somente durante as altas estações, especialmente no mês de julho, criando empregos periódicos e com baixos salários. As alterações ambientais foram grandes, a intervenção antrópica ocasionou a “morte” de parte do mangue e de inúmeros elementos da fauna e da flora por conta da barragem que alterou o fluxo da maré, houve o acúmulo do lixo na praia, construções irregulares nas dunas e o aumento da exploração de peixes e caranguejos devido ao fácil acesso proporcionado pela via terrestre, ocasionando a diminuição desses recursos. Apesar das claras alterações no ambiente e dos problemas acarretados pela intervenção antrópica, a realização desse projeto foi defendido abertamente por políticos, jornalistas e por grande parte da população bragantina, alimentados, especialmente, mas não só por isso, pela esperança do tão propagado desenvolvimento que o turismo poderia proporcionar-lhes e da nova opção de lazer em um lugar tido como aprazível.

MANESCHY, Maria Cristina. Ajuruteua, uma comunidade pesqueira ameaçada. Belém: UFPA. CFCH. 1993a. 29 Desde a década de 1970 Bragança passou a fazer parte do circuito de produção industrial pesqueira, sobretudo do caranguejo Ucides Cordatus, tornando-se o maior produtor do Estado do Pará. O problema é que essa mudança notificou-se pela substituição da pesca artesanal por métodos industriais considerados predatórios, ameaçando a reprodução de muitas espécies. Ver: SOUSA, Elisamar Silveira de. Amazônia atlântica: implicações socioespaciais da indústria de pesca no nordeste paraense. Belém-PA: UFPA (Programa de Pós-Graduação em Geografia, Dissertação de mestrado), 2012, p.63. 28

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ENTRE CÁRCERES: A CRIMINALIDADE FEMININA E OS PAPÉIS DE GÊNERO Paula Dantas1 Resumo Este trabalho objetiva a discussão de dados relativos à criminalidade urbana, sob a ótica dos diferentes papéis de gênero, tendo como balizas temporais os anos de 1905-1917. Pretende-se analisar a dinâmica da relação da sociedade com as instituições de poder, discutindo resultados obtidos através da análise de documentos produzidos pela imprensa e pela Polícia, a fim de esclarecer como essa sociedade lidava com as diferenças, além de compreender, principalmente, em que lugar os paradigmas de gênero se encaixavam na diversidade dos problemas urbanos da cidade de Manaus no período proposto. Palavras-chave: Crime – Gênero - Polícia – Manaus Não é mistério que, ainda hoje, e mesmo após muitos historiadores terem refutado esse conceito, a idéia de que a cidade de Manaus tenha sido a rica e opulente “Paris dos Trópicos” nas primeiras décadas da República ainda habita o senso comum. A historiografia contemporânea afirma que é muito provável que o período, conhecido como “Belle Époque”, tenha sido mais uma representação e ferramenta de legitimação de um status que se almejava do que uma consequência concreta do enriquecimento proporcionado pela exploração maciça da borracha. A cidade tão moderna, que deveria “ser mostrada e exibida” 2 como fruto do sucesso econômico, não era muito mais que uma grande vitrine, onde se preocupava em publicizar a parte considerada “bela”, reformada e moderna, e esconder tudo o que não ficava bonito nos cartões-postais. Otoni Mesquita afirma que parte do sucesso dessa idéia de fausto foi consequência dos esforços do governo que, por exemplo, “(...) mandou escritores e políticos como propagandistas à Europa, fotografou a cidade em álbuns que percorreram capitais européias, e metamorfoseou-a aos gostos

Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas MESQUITA, Otoni. La Belle Vitrine – Manaus entre dois tempos (1890-1900). Manaus: EDUA, 2009, p.73 1 2

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estrangeiros”3, estabelecendo juntamente com a imprensa uma ampla política de propaganda da cidade, fazendo com que ela se despisse cada vez mais e o melhor possível de suas características nativas e absorvesse em larga escala as “novidades” vindas da Europa. Em trabalhos anteriores 4 foi verificado que os jornais que circulavam no período eram sempre recheados de anúncios, a maioria de estabelecimentos que traziam as últimas novidades da Europa para os consumidores locais. É possível notar nesses anúncios a preocupação da imprensa em enfatizar especialmente a influência francesa no comércio amazonense, que ia desde o nome dos estabelecimentos ao grande número de menções a produtos vindos diretamente da França. A imagem de Manaus como a “Paris dos trópicos” era tão forte no período que Mesquita5 se refere ao governador Eduardo Gonçalves Ribeiro, que governou entre 1890 e 1896 e foi responsável por grande parte da reforma urbana manauara, como Haussmann mulato.6 A imprensa, entretanto, era mais que ferramenta de propaganda desse suposto refinamento social e econômico da cidade, era também instrumento de reprodução do discurso que as elites burguesas almejavam impor. Os jornais traziam colunas com textos normatizadores, cartas abertas sobre a importância de se extinguir os “problemas urbanos”, dentre outros fatores, revelando uma aliança com o moralismo característico dessas elites. Manaus, como todas as grandes capitais brasileiras no período, tinha uma política fortemente pautada na criação de um ideal de “civilização”, que ia além de modificações na estrutura urbana e tinha como um dos principais pilares o condicionamento dos costumes. Verifica-se na historiografia sobre o período um grande número de medidas de, especialmente, combate ao ócio, com ampla influência das noções positivistas de profilaxia social e de criminalização da pobreza. Para garantir a “saúde” da cidade e do governo era necessário manter toda a sociedade sob o jugo do capital, era preciso principalmente fixar o hábito do trabalho assalariado no inconsciente coletivo da sociedade, lançando mão de

COSTA, Selda Vale da. Eldorado das ilusões: cinema & sociedade: Manaus (18971935) Manaus: Editora da Universidade, 1996, p.21 4 DANTAS, Paula. Desordem em progresso: Crime e criminalidade em Manaus (19051915). Dissertação de Mestrado. Manaus: UFAM, 2014. 5 MESQUITA, Otoni. La Belle Vitrine – Manaus entre dois tempos (1890-1900). Manaus: EDUA, 2009, p.191 6 A comparação surge a partir da semelhança e influência dos projetos reformadores do Barão de Haussmann (o artista demolidor) em Paris sobre os do Governador Eduardo Ribeiro em Manaus. 3

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um grande número de recursos de fiscalização e controle para que esse objetivo fosse alcançado. Parte do sucesso dessa política se deve à promulgação do Código Criminal da República, de 1890, que trouxe um número considerável de artigos destinados a normatizar, disciplinar e controlar os modos de vida e o comportamento social. O artigo 399, por exemplo, previa pena de prisão para quem Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes.7

Em trabalhos anteriores, analisando ocorrências policiais da Chefatura de Polícia do Amazonas entre os anos de 1905-1917, foi possível identificar uma tendência da repressão policial em Manaus, chegando, dentre outras conclusões, a dados que indicam um índice repressivo maior na região portuária 8, local que, segundo Maria Luiza Pinheiro, concentrava o lazer dos trabalhadores populares9, e onde o alto tráfego de pessoas fazia das ruas os palcos perfeitos para os conflitos que acabavam muitas vezes nas delegacias e/ou nas páginas dos jornais. Os números de prisões por embriaguez, desordem, ofensas a moral, e outros delitos relacionados ao lazer popular confirmam a hipótese de que os costumes do povo eram os principais alvos da polícia disciplinadora.10 Nesses mesmos trabalhos, porém, foi verificada uma nuance interessante, que foi um número relativamente pequeno de prisões femininas. Foram analisados 4.230 registros de prisão entre os anos de 1909-1917, e destes, apenas 459 (cerca de 10,8% do total) eram de mulheres. Ao passo que nos registros de Código Penal dos Estados Unidos do Brazil. Capítulo XIII, Dos vadios e capoeiras, Art. 399. Disponível em http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=847&tipo_norma =DEC&data=18901011&link=s 8 SAMPAIO, Patrícia e DANTAS, Paula. Cenas das ruas: Ocorrências Policiais e Cultura Popular em Manaus (1916-1917). Relatório Final de Iniciação Científica. Manaus: UFAM, 2010; DANTAS, Paula. Desordem em progresso: Crime e criminalidade em Manaus (1905-1915). Dissertação de Mestrado. Manaus: UFAM, 2014. 9 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no porto de Manaus (1899-1925). Manaus: EDUA/Governo do Estado, 2ª edição, 2003 10 Os dados foram quantificados a partir de variáveis como profissão e local de moradia, informações reveladoras da classe social dos envolvidos 7

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queixas a presença feminina nos dados configura cerca de 22%. Esses dados, somados com lacunas sobre o tema na historiografia local e questionamentos pessoais, suscitaram algumas hipóteses sobre a criminalidade feminina na cidade, e nos levaram a concluir, inicialmente, que talvez as mulheres tenham sido de certa forma ocultadas dos índices, como “uma forma de negá-las e colocá-las no subterrâneo dos crimes masculinos” 11. Outras hipóteses foram levantadas a partir dos dados, dentre elas a de que talvez a divisão geográfica da cidade tenha influenciado os números finais da análise, visto que nas fontes que tratam da região mais central, local de tráfego e trabalho das classes populares, a presença feminina nas páginas policiais é menor do que na região periférica, local de moradia dessas classes. O aumento no número de mulheres que registravam queixas ou eram presas talvez indique uma condição de limitação espacial feminina, imposta pela vida e pelo trabalho doméstico, ao passo que os homens teriam mais facilidade em transitar pela cidade, estabelecendo relações sociais em outras áreas além das de moradia e trabalho, facilitando com que eles fossem presos longe de casa. Até os índices de reincidência são reflexos dessa provável limitação espacial, visto que giravam em torno de 14% na região periférica da cidade (jurisdição do Segundo Districto Policial) e 10% na região central (jurisdição do Primeiro Districto Policial), não sendo raras as ocasiões onde a mesma mulher foi presa até mais de quatro vezes durante o decorrer de um ano. Sabe-se, porém, que o papel da mulher nas sociedades capitalistas é bastante diverso, sendo impossível categorizá-lo em moldes pré-concebidos. Enquanto a mulher burguesa, por exemplo, é frequentemente confinada ao lar, tem sua “virtude” fiscalizada e “paga a sua ociosidade com a submissão” 12, “(...) a mulher do povo pode sair, freqüentar tavernas, dispor do corpo quase como um homem” 13. Para a mulher pobre o trabalho “é um aspecto essencial da construção de sua identidade social” 14, o que justifica o fato de as mulheres presentes nas páginas policiais serem, na sua esmagadora maioria, as mulheres pobres que estavam na rua.

PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 257 12 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 4ª edição, 1970, p. 128 13 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 4ª edição, 1970, p. 141 14 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2001, p. 207 11

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Rachel Matos e Carla Machado afirmam que “nos discursos tradicionais da criminologia, a mulher foi genericamente ignorada ou analisada com base nos estereótipos de gênero inerentes ao discurso social dominante” 15, que geralmente as classificavam de forma maniqueísta, sendo ora seres de natureza má, ora loucas. Essa hipótese pode ser corroborada quando se encontra nos registros de crimes, especialmente nos divulgados pela imprensa, discursos repletos de julgamento moral, que ainda que não atingissem apenas as mulheres, eram mais enfáticos quando falavam delas. Na edição 764 de 13 de agosto de 1906, do Jornal do Commercio do Amazonas, a prisão de uma mulher foi anunciada da seguinte forma Em constante rebuliço e em alvoroço constante vive o outr’ora tão sossegado Becco do Commercio, só porque ali reside a despudorada Anna Maria da Conceição. Sabendo disso, uma autoridade mandou hontem agarrar a Conceição e lá foi ella, toda espalhafatosa e rebarbativa, no passo do constrangimento, alli perto dos fundos do Cabeça de porco. 16

Neste caso fica claro que a intenção do jornalista foi fazer com que o leitor julgasse a mulher não apenas socialmente pelo suposto crime cometido, mas que também contestasse a moralidade da mesma. Ela não é apenas causadora de problemas e “rebuliços”, ela é mais que isso, é “despudorada”, e ainda é capaz de adicionar insulto à injúria, indo “toda espalhafatosa e rebarbativa” para a delegacia. Na descrição da maioria dos crimes cometidos por mulheres o discurso da imprensa passa para o leitor uma idéia de que é a conduta social dessas mulheres que as define como criminosas. Raramente se vê, por exemplo, um homem criminoso sendo definido pela sua moralidade (ou falta dela), enquanto entre mulheres isso é bastante comum. Nessa sociedade capitalista, “a mulher que comete crimes tem sido considerada duplamente desviante” 17, por transgredir não apenas a lei, como os papéis de gênero idealizados, que (não) se impunham a elas. É notável, nos casos de crimes protagonizados por mulheres, a ênfase dada à condição social delas, especialmente no caso das meretrizes, que eram sempre definidas como “mulheres de vida airada”, “vida fácil”, e toda a sorte MATOS, Raquel e MACHADO, Carla (2012). Criminalidade feminina e construção do gênero: Emergência e consolidação das perspectivas feministas na Criminologia. Aná Psicológica. vol.30, n.1-2, p. 37 16 Ortografia original mantida. Grifos meus. 17 MATOS, Raquel e MACHADO, Carla (2012). Criminalidade feminina e construção do gênero: Emergência e consolidação das perspectivas feministas na Criminologia. Aná Psicológica. vol.30, n.1-2, pp. 37 15

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de adjetivos, a maioria deles pejorativos e degradantes. Os jornais do período, em geral, exploravam os papéis de gênero da sociedade burguesa e “se empenhavam em inventar detalhes extravagantes que enfeitassem a notícia, causando sensação ao público e assegurando a venda de muitos exemplares”.18 A variedade de fontes disponíveis nos permite realizar diferentes análises sobre a criminalidade feminina na cidade. Enquanto as fontes oficiais trazem um apanhado de dados determinados por um protocolo de discurso formal e pouco detalhado, visto que serviam apenas para registrar burocraticamente os crimes ocorridos, os jornais eram responsáveis por colocar os acontecimentos na boca do povo, e precisavam, para isso, se valer de um discurso com maior apelo popular, permeado de coloquialismos e figuras de linguagem. Na edição 464 de 17 de junho de 1905, o mesmo Jornal do Commercio trouxe o seguinte anúncio na coluna “O pessoal de arrelia”, onde o jornalista utiliza a derrota da Rússia na guerra russo-japonesa (1904-1905) para referenciar uma briga envolvendo duas mulheres. Ante-hontem, às dez horas da noite, occasião em que a mulher de nome Anna Rselo, conhecida pela alcunha de Princeza Russa, era recolhida ao xadrez da estação policial, por estar um tanto alegre e se ter portado inconvenientemente perante o subprefeito de permanência na subprefeitura, encontrando no xadrez a sua desaffecta e companheira de vida Maria Luiza de Azevedo, atirou-se contra esta e subjugando-a, começou a dar-lhe com um sapato na cara, produzindo-lhe uma extensa ecchymose e ferindo-a no braço esquerdo. Aberto o xadrez, foi a mesma retirada dalli e depois de lavrado o competente flagrante recolhida à Cadeia Pública com nota de culpa prevista no artigo 393 do Cód. Pen. da República. Nem sempre a Rússia há de apanhar. Lá chega um dia em que toma uma desforra. Maria Luiza é, com certeza, japoneza.19

Apesar de todas as diferenças estruturais das fontes, não se pode afirmar que uma seja mais “rica” que outra, pois ambas, dentro das suas particularidades, lançam olhares diferentes sobre a cidade, a sociedade e as instituições de poder. Enquanto os jornais nos permitem verificar que a criminalidade feminina na cidade era tratada, como na maioria dos lugares, mais como a consequência de uma falta de “educação moral” do que como um desvio de caráter, as fontes oficiais nos permitem enxergar que, tal como a historiografia sugere, era a CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2001, p. 27 19 Ortografia original mantida. Grifos meus 18

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condição social dessas mulheres que as tirava do cárcere do lar e acabava, algumas vezes, colocando-as no cárcere do Estado. Estamos tratando de mulheres que circulavam pelas ruas da cidade, que tinham relações de sociabilidade e trabalho, que se sustentavam e se defendiam, a si próprias e às famílias pelas quais muitas eram as únicas responsáveis, e que acabavam sendo duplamente vitimizadas por uma sociedade masculinizada que buscava, a todo custo, controlá-las. É notável que as mulheres pobres configuravam uma casta diferenciada nessa sociedade. Elas não se identificavam com as esposas/mães burguesas, geralmente confinadas ao lar e aos seus privilégios de classe, não poderiam ser subjugadas ao patriarcado, visto que este é profundamente apoiado na conservação e transmissão de um patrimônio na maioria das vezes inexistente, e principalmente, mesmo ocupando e transitando pelos mesmos ambientes que eles, não poderiam ser equiparadas aos homens. Como exemplificou Sojouner Truth, liberta, abolicionista e feminista Nova Iorquina, na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, em 1851 Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! Eu não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. Eu não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! Eu não sou uma mulher?20

É importante reforçar que é preciso ter cuidado quando se fala de mulheres pobres, especialmente quando se relaciona a pobreza aos papéis de gênero e à criminalidade urbana. As mulheres de quem se fala aqui estão o mais distante possível do ideal feminino sob os olhos da sociedade patriarcal. Está se falando da mulher que, ao contrário do que se espera, não é estúpida, submissa, tampouco dócil; está se falando da mulher que é vitimizada, mas que nem de longe é vítima. As mulheres criminalizadas nos jornais e nos livros das Disponível em http://arquivo.geledes.org.br/atlanticonegro/afroamericanos/sojourner-truth/22661-e-nao-sou-uma-mulher-sojournertruth. Consultado em 23/04/2015 20

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delegacias são as mulheres a quem não cabe nenhuma das qualificações do mito criado sobre o feminino. Se Simone de Beauvoir fala que, de acordo com o ideal do patriarcado, a “verdadeira mulher” é a que se aceita como outro 21, as mulheres tratadas nesse texto são o outro do outro, e viveram suas vidas como protagonistas de um verdadeiro caleidoscópio de realidades profundamente complexas.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 4ª edição, 1970, p. 308 21

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PALÁCIO ANTÔNIO LEMOS: SÍMBOLO DO PODER LUGAR DA MEMÓRIA Rosa Arraes1 A historia do poder executivo municipal tem no Palácio Antônio Lemos seu maior representante, ele foi palco de muitas disputas e centenas de acontecimentos que contabilizam certamente, muito marcos importante na historia da nossa municipalidade. O meu desafio é levantar as diversas informações que podem se apresentar neste lugar monumental, e relacionar como este poder simbólico foi ao longo de trajetória se estabelecendo Conhecido como Palacete Azul este monumento está privilegiadamente localizado no centro histórico de Belém e protegido pela legislação de tombamento do Patrimônio Histórico Cultural nas três esferas do Poder Público: Federal, Estadual e Municipal.2 Constitui-se como uma das mais importantes construções públicas municipais que documenta a história da cidade e representa a memória dos seus cidadãos. Sua preservação atualmente é uma difícil tarefa, principalmente se não atrelarmos a ela a diversidade cultural, que poderá ser incentivada através da aproximação entre as ações de promoção do patrimônio, ou seja estabelecer instrumentos que permitam relacionar as diversas culturas de uma região e o respeito ao patrimônio artístico e cultural para o desenvolvimento das cidades. O desenvolvimento da cidade a partir da nova situação econômica favorece verticalmente a consolidação do poder municipal que aclamado pela sociedade insurge numa reivindicação pela concepção de um novo edifício próprio para as atividades políticas e administrativas do município3. Este estudo propõe-se a uma investigação e sistematização da história do Palácio Antônio Lemos, conhecido como “Palacete Azul”, monumento central do poder executivo do município de Belém. Minha proposta é fazer uma análise deste monumento histórico, avaliando sua construção, percorrendo sua Doutoranda em História, PPHIST/UFPA. Lei Federal N° Processo nº 0315-T-42, Livro Histórico Inscrição 190, Livro de Belas Artes Inscrição 257-A, de 07/07/1942./; Lei Estadual N°– Lei Estadual nº 4.855/79, que trata do tombamento do antigo prédio do Quartel do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar e seu entorno. / ; Lei Municipal N° Lei nº 7.709/94, de 18/05/1994, Capítulo III, Art. 3º Parágrafo Único, em conformidade com o Anexo V, localizado na Zona Habitacional – ZH2. / 3 Sobre a história cultural deste período, Cf. SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a belle-époque (1870-1911). 1 ed. Belém: Paka-Tatu, 2001. 1 2

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trajetória e escrevendo a história deste ícone, reconhecido como símbolo do poder municipal. Penso que é necessário entender os fatores atribuídos a este edifício que permite alçar um patamar tão importante, tendo permanecido com suas funções solenes políticas de forma irrefutável até os dias de hoje, quais valores agregados são tão determinantes para que os gestores não o abandonassem? Mesmo diante da desordem que tomou conta de seu entorno, em pleno centro da cidade de Belém ao longo destas últimas décadas. É preciso identificar o que faz dele um lugar da memória e das lembranças do passado. E como desvelar estes registros que foram ao longo dos tempos silenciados e muitas vezes suprimidos da população, e após relacionar todas estes registros, identifica-los fazendo com que ele reencontrem a dimensão histórica deste lugar. Longe de ser um produto espontâneo e natural, os lugares de memória são uma construção histórica e o interesse em seu estudo vem, exatamente, de seu valor como documentos e monumentos reveladores dos processos sociais, dos conflitos, das paixões e dos interesses que, conscientemente ou não, os revestem de uma função icônica Le Goff (2003)4. Mas quais são os elementos que constituem a memória? No capítulo intitulado Memória, (LE GOFF, 2003) retoma as discussões sobre a importância da memória para a constituição do conhecimento histórico. Apresenta o Documento/monumento onde nos faz perceber a representação dos acontecimentos da humanidade erguidas através dos monumentos que as representam, concomitantemente mostra como o historiador utiliza esses documentos para obter respostas para seus questionamentos. Por outro lado talvez esta seja também uma via, onde seja possível se constituir uma política de preservação (e uma historiografia) que deverá ter em mente o quanto o poder desorganizou a posse de um sentido das participações coletivas, destruindo a possibilidade de um espaço público diferenciado. Acredito que ao conseguirmos uma leitura vertical destes registros e deste poder simbólico, poderemos conceitua-lo como lugar da memória. A expressão lugares de memória foi criada pelo historiador francês Pierre Nora (1994) 5. Convencido Segundo Jacques Le Goff, em seu livro História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1994, a memória é a propriedade de conservar certas informações, propriedade que se refere a um conjunto de funções psíquicas que permite ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas, ou reinterpretadas como passadas. 5 Busca-se indicar a contribuição do historiador Pierre Nora para os estudos relacionados ao campo do patrimônio cultural, nos seus trabalhos sobre o tempo presente: entre a memória e o patrimônio cultural em especial a partir da noção de “lugares de memória”. Para tanto, são considerados sobre tudo textos de sua autoria 4

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de que no tempo em que vivemos os países e os grupos sociais sofreram uma profunda mudança na relação que mantinham tradicionalmente com o passado, Pierre Nora acredita que uma das questões significativas da cultura contemporânea situa-se no entrecruzamento entre o respeito ao passado – seja ele real ou imaginário – e o sentimento de pertencimento a um dado grupo; entre a consciência coletiva e a preocupação com a individualidade; entre a memória e a identidade. Conta a história da cidade de Belém que o Intendente Antônio Lemos, grande mecenas das artes e responsável por grande parte das encomendas dos objetos de artes que hoje fazem parte do acervo do Museu de Arte de Belém, integrado ao Palácio Antônio Lemos, era uma pessoa de refinado senso estético. Os relatórios referentes a todos os trabalhos desenvolvidos na sua administração denotam a preocupação com os aspectos visuais da cidade. Muito bem relacionado com os artistas locais e com uma rede de contatos internacionais invejável, encomendou e adquiriu muitas obras de artes, tanto para si como para ornamentar as paredes do Palácio da Intendência, e sempre com a ideia de organizar uma grande Pinacoteca para este espaço. Alguns fatos da história deste edifício estão ainda por ser definidos e investigados com mais profundidade como é o caso da autoria do “Projeto”, onde é possível perceber algumas controvérsias, proveniente de uma leitura aparentemente incorreta, dos dados disponíveis. Uma das teorias era que teria sido aproveitado um desenho de Landi, cedido por familiares do referido arquiteto para uma nova construção em cima do Teatro de ópera. Conforme registra Baena (1969.p. 303)6, o teatro deveria ser erguido no mesmo lugar do antigo por ordem expressa em 1817, do governador, Conde de Vila Flor, nos seguintes termos “Compete ao Tenente Coronel Comandante do Corpo de Artilharia Antônio Luís Pires Borralho a direção da obra segundo um desenho do defunto Antônio José Landi, morto em 1791, oferecido por seu genro João Antônio Martins”. Assim, o Paço Municipal poderia já ter a base do antigo teatro cuja planta era do Landi, e não de Gama Abreu como diz a Moeda. É importante destacar que, nesta pesquisa procurarei interpretar os discursos que este patrimônio transmite a propósito de identidade sobre a presentes na obra Les lieux de mémoire, por ele dirigida e originalmente publicada entre 1984 e 1992, além de artigos publicados ao longo e depois desse período, nos quais são perceptíveis mudanças de tom, revisões de posturas e respostas a críticas. NORA, Pierre . Entre memórias e historia. A problemática dos lugares. Projeto Historia. São Paulo: PUCSP,10,1993 6 Ensaio coreográfico sobre a província do Pará por Antônio Ladslau Monteiro Baena. Belém: Tipografia Santos e Menor, 1839. 172

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cidade de Belém. Como este Edifício durante tanto tempo mesmo com todas as transformações sociais e politicas que existiram continuou ostentando este termo e o desempenho de símbolo do poder? Sabemos que as identidades se estabelecem em uma relação conflitiva com o tempo, tendo-se em vista que, se identidade é aquilo que define, pode-se perguntar como ela pode ser garantida ao longo do tempo. Cabe a nós sujeitos da historia, conferir os significados através de uma sistemática investigação. Somente a minha observação e a rotina diária na conservação deste monumento durante estes vinte anos de trabalho, não são suficientes para que eu possa falar do seu valor histórico e estético. Ricouer nos fala na fragilidade que a identidade assume em confronto com o outro, sendo que esta não pode ser presumida exclusivamente por seu detentor; em vez disso, ela é forjada nas relações sociais. E é apontada por Ricoeur quando menciona a terceira causa de fragilidade da identidade. Entre os diversos aspectos da identidade contemporânea, a memória é um mecanismo fundamental para a construção da identidade social e local. Segundo Le Goff (2003) a identidade se constrói em um indivíduo a partir de suas visões de mundo, suas ideologias políticas e suas experiências históricas em comum com o grupo social em que vive. Penso que este é um tema que nos permite debater sobre a preservação da história, da memória e a utilização também da micro história,7 pois muitos são os atores que ajudaram a construir o Palácio. Histórias dos diversos sujeitos que atuaram incansavelmente para ver erguido este edifício, fossem carregando pedras, fazendo traçados, encomendando materiais, ou desenhando a planta, cada um com sua qualidade se interligaram com a construção do Palacete Azul. Acredito que a preservação deve ter a capacidade de relacionar os aspectos culturais que formam um determinado local e isso passa pelo compartilhamento da memória de diversas culturas. Ao analisar as diversas civilizações Le Goff (2010-Pg286) Vê a cultura como uma mentalidade histórica, ligada à diferentes concepções de tempo existentes nas sociedades. Destaca a importância da oralidade nesse processo, pois todas as sociedades possuem História (quer tenham escrita ou não) para ele, não é possível desassociar a formação dos sujeitos das representações simbólicas que os orientam e circunscrevem suas realidades, ou seja os acontecimentos, objetos e monumentos, são Carlo Ginzburg (2003) e Giovanni Levi (1992) são um dos historiadores que contribuíram para romper com a abordagem tradicional da história. A partir deles é que os historiadores tiveram a preocupação em analisar os fatos históricos dando importância também aos agentes tidos até então como figurantes. Portanto, a principal característica da micro história é analisar os “marginalizados” da história, isto é, os esquecidos ou invisíveis. 7

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coletivamente referenciais em sua diversidade e todo o esforço realizado no sentido da preservação de sua história e de sua estrutura física, fará emergir o reconhecimento do direito ao passado. Assim sendo para o referido autor no Documento/monumento vamos perceber a representação dos acontecimentos da humanidade erguidas através dos monumentos que as representam, concomitantemente mostra como o historiador utiliza esses documentos para obter respostas para seus questionamentos. Penso que sob o signo desta mentalidade é possível, não apenas conservar o patrimônio histórico e cultural, mas também incorporá-lo ao cotidiano da sociedade, emprestando-lhes funções sociais significativas, permitindo aos habitantes da cidade de Belém a possibilidade de cumprir a dimensão básica do direito à cidadania, estimulando o conhecimento ao patrimônio e a memória de cada um destes monumentos históricos. É necessário mergulhar na sua historia e buscar as diversas narrativas e os discursos, que penso me levarão ao descortinamento dos mistérios contidos neste espaço. Entendo que a história, memória, iconografia e simbologia não estão desassociadas ao se falar de patrimônio. Cabe a nós, mais uma vez nos apropriarmos desse passado e agirmos em nosso presente. O reconhecimento das lembranças depende do presente, e é no presente que a ressignificação das imagens é feita ativando a memória. Segundo Paul Ricoeur: Reconhecer uma lembrança é reencontrá-la. Reencontrá-la é presumi-la principalmente disponível, se não acessível. Disponível como a espera de recordação, mas não ao alcance da mão, como as aves do pombal de Platão que é possível possuir, mas não agarrar. (RICOEUR, 2012, p. 441)8.

Não é a minha intensão olhar e reverenciar como era antes e comparar como está agora. Há muitas histórias escondidas por debaixo da “pedra e cal”. Por isso, enfatizo que é importante observar, pesquisar e refletir sobre este monumento, no sentido de interpretar as diversas narrativas e iconografias, desvelando não só os documentos, mas também as imagens enquanto fonte documental, assim como, os objetos adquiridos e que hoje fazem parte do acervo de arte do Museu de Arte de Belém, trabalhando também os discursos silenciosos destes objetos enquanto cultura material.

Paul Ricoeur, Tempo e narrativa (t. I, 1994 e II, 1995), Papirus. Leituras (1, Em torno ao político, 1995; 2, A região dos filósofos, 1996; 3, Nas fronteiras da filosofia, 1996), Loyola. 8

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Em seu livro El Passado es um pais estraño Lowenthal (1998)9 escreve sobre o passado, sobre as relações dos homens com ele e com o reflexo do passado no presente , como enfrentar essas relações , se aceitamos ou rejeitamos, se apoiarmos preservar o que os nossos antepassados criaram ou mantidas, pelas razões expostas na primeira parte do livro, ou se, pelo contrário , preferem meia ambiente , praticamente novo , criado para o nosso gosto e necessidade. Portanto acredito que ao retrocedermos nesta questão da preservação de monumentos históricos, nos deparamos com alguns momentos que marcaram esta necessidade da preservação em nosso território brasileiro e sua intensificação acontece, pela quantidade de remodelações urbanas que aconteceram e alguns momento, principalmente nas décadas de 40 a 70 do século XX, influenciadas pelo ideário europeu. Portanto á luz das nossas reflexões, percebemos que teremos a possibilidade de trabalhar este Palácio com todas as suas fontes de pesquisas, quer sejam externos ou internos. Compreendendo a sua força icônica, será possível estabelecer os parâmetros das interpretações e acredito que inventariar não só os objetos mais os fatos do Palácio Antonio Lemos descritos pelos atores deste processo será um enfrentamento, como sugere Lowenthal (2010) , entretanto esta é a principal perspectiva com que penso analisar este trabalho, minha maior justificativa e construir historicamente ferramentas que possibilitem a sua preservação enquanto monumento histórico nacional reconhecido por sua trajetória histórica e Artística.

7 LOWENTHAL, David. El pasado es un país extraño. Madrid: AKAL, 1998. p. 42. 9

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OS VENDEDORES AMBULANTES ENTRE TRABALHO, PATRÕES E A ORDEM (BELÉM: 1880-1950) Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo1 Corria o ano de 1898, o teatro paraense seria laureado com uma revista de costumes paraenses, escrita pelo consagrado autor de obras teatrais Arthunio Vieira a peça que naquele momento já estava nos ensaios, estaria dividida em três atos, com 32 números de música, trataria do cotidiano da cidade de Belém. Segundo Aristarcho, articulista d’O Pará, a peça “Belém...de Bicycleta” seria um sucesso linguagem simples que seria utilizada. De acordo com Aristarcho a peça teria como personagens como: José Paruará, a Intendência, o ciclismo, a porca, um português, um maranhense, um cearense, um espanhol, um italiano, a luz elétrica paraense, um padeiro, um hoteleiro, um peixeiro, um bucheiro, um sorveteiro, um cocheiro, um guarda municipal, um galinheiro, um seringueiro, o café-beirão, o açaí, o tacacá, a História, os sonhos, os ladrões, os vendedores ambulantes, mulatos, estabelecimentos comerciais como a “Formosa Paraense”; a “Paris n’América”; e Bom Marché,2. Imaginar o que cada personagem diria em cena, suas falas é visualizar a cidade de Belém daquele contexto. De fato, apesar de a peça ter um caráter fictício, a mesma era a representação dos diversos sujeitos sociais que andavam todos os dias pela cidade de Belém. A “Belém de Bicycleta” era também a Belém dos ambulantes, dos imigrantes, do trabalho e da ordem representada pelo governo. Era a Belém do progresso representada na peça pela iluminação pública elétrica Paraense. Era também a cidade da manutenção dos antigos hábitos com os vendedores de refrescos como José Romão3, de garapa como Valentin Passa4,que foram multados pela intendência como Simão Francisco, Sebastião Domingos Ferreira, Manuel Ignácio Neves5, de carroceiros Ignacio Marques, Delfino de Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia. Com o projeto intitulado Sobre hábitos e tradições: uma história da alimentação e do abastecimento em Belém 1880-1950. Este texto faz parte das discussões que estão sendo feitas na tese. 2 O Pará. 9 de Setembro de 1898. p.2. 3 O Pará. 28 de abril de 1869. p. 2. 4 O Pará. 28 de abril de 1869. p. 2. 5O Pará. 9 de fevereiro, de 1898, o peixeiro Adão José da Silva Tavares, foi multado e preso por infracção do art 251 do código de posturas. No mesmo dia foi preso Manuel Agostinho Ferreira Brandão, às 7 horas da manhã, pelo sub-prefeito do I districto, por 1

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Oliveira e Jose dos Santos que foram multados por deixarem os carros abandonados em via pública6. A cidade de Belém que Arthunio Vieira retratava buscava a civilidade com os códigos de posturas, tão defendidos pelo governo pois como nos informa Sarges que nesta cidade “necessitava ter seu espaço disciplinado e ordenado, e para exercer essa tarefa o poder público (...) teve de criar novos mecanismos de regulamentação (Código de Posturas) da vida social na cidade”7. Em contrapartida, esta mesma cidade ao longo do período estudado mantém antigas práticas, que muitos moradores insistiam em manter como porcos ou outros animais que andavam nas ruas, do leiteiro que tinha que andar com as vacas para vender o leite.8 Ao longo da segunda metade do século XIX, quando do crescimento dos negócios da borracha, a cidade de Belém, capital da Província do Grão-Pará e sua principal praça de comércio, conheceram importantes transformações urbanas e demográficas, com o aumento de sua área urbana e de sua população, sendo neste contexto possível discutir sobre os diversos trabalhadores que circulavam na cidade.9 Nesse campo destacam-se os diversos sujeitos sociais ser encontrado exercendo o mister de atravessador no Ver-o-Peso. O Pará. 10 de fevereiro de 1898. p.2. O Pará. 9 de fevereiro de 1898. p.2. Folha do Norte.12 de fevereiro de 1919, p. 5. 6 O Pará. 28 de abril de 1869. p. 2. 7 SARGES, op. cit., p. 139. 8 Sobre a relação dos animais dentro da cidade ver: VIEIRA, D.D. J. A cidade e os “bichos”. Poder público, sociedade e animais em Belém (1892-1917). Programa de pós-graduação em História Social da Amazônia. Dissertação de Mestrado. 2015. 9 Vários foram os fatores que levaram ao crescimento da indústria da borracha na região da Amazônia, como o fato de que a borracha só era existente na região da Amazônia tornando-a em pouco tempo a principal fornecedora do produto, a disponibilidade da mão-de-obra em especial com a imigração nordestina que garantia a extração da borracha por um custo baixo, a existência de um sistema de financiamento da extração e comercialização da borracha amazônica, através do aviamento que favorecia o processo de dependência dos seringueiros em relação aos seringalistas e permitia justamente a exportação da borracha pelos portos; além das casa de comércio estrangeiras de importação e exportação de produtos, as quais acabavam monopolizando a venda da borracha para os mercados europeus e norte-americanos, permitindo assim o seu escoamento.A cidade continuou com a primazia de negócios comercias da Amazônia e a ser vista como a Páris na América, foi a única cidade da Amazônia a produzir bens de consumo e um setor fabril, produzindo cerveja, cigarros, alimentos industrializados, sabão, fósforos e roupas para o mercado local. Era em Belém que lojas como Les fleur de jeune, casa africana e outras comercializavam produtos importados e também que se desenvolvia a esfera cultural com cinema, ópera conservatório musical entre outras. Sobre as transformações em Belém a partir do 177

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que compunham a classe dos chamados vendedores ambulantes, vendendo peixe, açaí, garapa e outros produtos. Ao lado de outros sujeitos que também viviam do trabalho com a manipulação ou venda de alimentos, tal como os garçons, carroceiros e outros.10 Uma vez que, “as transformações no espaço urbano, aliadas ao posto de principal cidade do Norte e grande centro econômico, promoveram novas formas de abastecimento de alimentos à população”11. O crescimento econômico gerou também um aumento populacional com a presença de migrantes nacionais e estrangeiros que para sobreviverem transformavam-se em vendedores diversos. Esses vendedores, semelhante ao que acontece em outras áreas urbanas do Brasil como São Paulo12, percorria a cidade vendendo seus produtos. Silva considera que em Belém na virada do século XIX para o XX, o aumento de trabalhadores autônomos ou “não regulares ou temporários”13faz com que o governo busque uma forma de controle destes com “a regulamentação do comércio e das profissões, pelo boom da borracha ver: WEINSTEN, Bárbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). Ed. HUCITEC-EDUSP. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993. LACERDA, Franciane Gama. Muito além dos seringais: seringueiros na cidade de Belém (1898-1915). Revista Tema de História Social. Documentos Culturais 7. Conselho Estadual de Cultura. Belém, setembro,2006. BEZERRA NETO, José Maia. A economia da borracha e o Esforço de guerra: os soldados da borracha na Amazônia. In: Pontos de História da Amazônia vol II. Belém: Paka-Tatu: 2000. SANTOS, Roberto. História econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T. A. Queiroz, 1980. SARGES, Maria de Nazaré. Belém: Riquezas produzindo a Belle-Époque (1870-1912). Belém: Paka-Tatu, 2002. 10 E aqui pensar o “ator” nas suas relações interpessoais e agindo dentro de um conjunto de regras e na sua pluralidade. IMÍZCOZ, José Maria. Actores, redes, processos: refleiones para uma historia más global. Revista da Faculdade de Letras. História. Porto, III Série, vol 5. 2004. p. 115-140. 11SILVA, Fabrício Herberth Teixeira da. Nas tramas da “Escassez”: o comércio e a política de abastecimento de carnes verdes em Belém (1897-1909). 1ª Ed. São Paulo: Alameda, 2013.p. 238. 12 MATOS, Maria Izilda Santos. Na trama urbana: do poder público, do privado, do privado e do íntimo. In: Projeto de História: revista de estudos de pós-graduação em História e do Departamento de História da Pontificia Universidade Católica de São Paulo. N. 1981. São Paulo: EDUC, 1981. 13 Cancela faz uso desta denominação ao tratar destes trabalhadores onde “eles eram caixeiros, alfaiates, sapateiros, pedreiros, carapinas, artistas e pessoas que viviam de agência, ou seja, que realizavam serviços não regulares, temporários como os de carregador, vendedor e proprietários de pequenos negócios”. CANCELA Cristina Donza. Uma cidade...muitas cidades: Belém na economia da borracha. In: Conheça a Belém, comemore o Pará (orgs) Jane Felipe Beltrão, Antônio Otaviano Vieira Junior. Belém: EDUFPA, 2008. p. 82. 178

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poder público, buscavam a cobrança de impostos”.14 Essa realidade foi presente inclusive na 1ª metade do século XX. Assim, podemos pensar a cidade de Belém, tendo como fio condutor algumas questões apontadas por Braudel, ainda que para outro espaço e período, buscando entender Belém por meio dos sujeitos e negócios comerciais. Desse modo, a cidade de Belém pode ser pensada como uma “economiamundo” em que a cidade “no centro da logística dos seus negócios” e o espaço no qual circulam “as informações, as mercadorias, os capitais, os créditos, os homens, as encomendas, as cartas comerciais chegam a ela e dela voltam a sair. Nela, quem dita às leis são grandes comerciantes, por vezes excessivamente ricos”.15 E ainda, segundo Cancela “Com a imigração intensa de nordestinos e estrangeiros estimulada pela economia da borracha, a cidade cresceu e se expandiu”. 16 O porto de Belém, no período pesquisado era uma porta de entrada e saída importante para comércio da cidade. Já que, a Província do Pará era uma região de rica bacia hidrográfica o que delimitava o comércio através destes rios como o Capim e Guamá, o Tocantins. A frase de Ruy Barata: “Este rio é minha rua”17, expressa bem a importância dos rios, furos e afins para a cidade. “Uma vez que os rios e afluentes tornavam-se meios para fluxo do transporte, tanto das pessoas quanto para produção, fonte para obtenção de alimentos”. 18 E os locais que circundavam os portos eram locais onde se viam a presença dos trabalhadores ambulantes desde carregadores até os vendedores de café, garapa e outros. Muitos trabalhadores ligados à venda de alimentos começavam esse tipo de trabalho ainda muitos jovens, quase crianças, como empregados de donos tabernas, quitandas. Lacerda a este respeito enfatiza que:

SILVA, op. cit., p. 238/239. Em relação à questão semelhante no Rio de Janeiro Juliana Souza enfatiza que “com opções restritas e disputadas, muitos procuravam no comercio a varejo de alimentos uma forma de ganhar a vida. Afinal de contas, o Rio de Janeiro era um grande centro consumidor”. SOUZA, Juliana Teixeira. Dos usos da lei por trabalhadores e pequenos comerciantes na Corte Imperial (1870-1880). In: Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. p. 190 15 BRAUDEL, Fernand. Civili1zação Material e Capitalismo: séculos XV-XVIII. Tradução Telma Costa. – São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 20. 16 CANCELA, op. cit., p. 80. 17 BARATA, Ruy. Revista Ver-o-Pará. Amazônia. Abaetetuba. Ano X. n. 23, março/2002. 18 MACÊDO, op. cit., p. 126. 14

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Cidade e Cultura (...) as ocupações para crianças giravam em torno de trabalho no comércio local, destacando-se a tarefa de caixeiro em mercearias, padarias, lojas de fazenda. Esse trabalho quase sempre era muito mal remunerado, além de expor esses pequenos trabalhadores a toda sorte de arbitrariedades por parte dos adultos”.19

Outros se lançavam como vendedores ambulantes por conta própria 20 ou vendendo produtos alimentícios para outras pessoas, prestando assim um serviço, que também poderia se modificar. Um exemplo disso são as atividades exercidas pelos imigrantes portugueses José da Silva e Joaquim da Costa, que na cidade de Belém teriam sido “carregadores, depois catraieiros, geleiros e por fim vendedores de peixe na rua.” 21 É possível dizer que as relações entre estes trabalhadores versus patrões e as políticas do governo vão definir o papel de cada um dentro do comércio e do mercado de Belém e os conflitos em torno deles. Na cidade de Belém um dos lugares onde havia uma maior presença de pessoas envolvidas no trabalho de mercancia ambulante era o bairro da Campina que populoso e movimentado. Na Campina era possível encontrar carregadores, vendedores de comida, de frutas, uma vez que neste bairro encontravam-se grande parte das lojas, tabernas, casas de aviação e outras. Neste bairro os vendedores ambulantes muitas vezes não eram vistos com bons olhos. Segundo Cancela “Apinhados nas ruas estreitas dos bairros da Cidade Velha e da Campina” reclamava-se para que “carregadores e vendedores não atrapalhassem o passeio público dos cavalheiros”.22 Desta forma, foram muitos os conflitos entre estes trabalhadores, os governos e mesmo os donos de estabelecimentos fixos e regulares. Em de 1897, na 10ª sessão do legislativo paraense Cordeiro de Castro, demonstrava preocupação com a fiscalização municipal em torno da fabricação da garapa e Segundo a autora “Este foi o caso, noticiado em 1897 no Diário de Notícias, do menor Augusto Alves Moreira, caixeiro de uma mercearia da cidade “ferido na cabeça por seu patrão, com um cinturão de soldado pelo simples fato de ter esquecido de assentar no caderno seis vinténs”. LACERDA, Franciane Gama. Infância e imigração no Estado do Pará (final do século XIX, início do século X). In: Terra Matura: historiografia e história social na Amazônia. (orgs) José Maia Bezerra Neto e Décio de Alencar Guzmán. Belém: PakaTatu, 2002. P. 397. 20 Jesuina Rita Rodrigues Martins em 1881 participava aos seus fregueses que mudou seu antigo estabelecimento de frutas e açaí dos “baixos da Maçonaria”, para rua Formosa, junto ao depósito de mobílias; “onde sempre espera a benevolência de seus fregueses”. Gazeta de Notícias. 1881. p.4. Folha do Norte. 12 de fevereiro de 1919. p. 2. 19

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CANCELA. op. cit., p. 91. 180

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até mesmo dos trabalhadores pobres que a consumiam: “o trabalhador, o homem pobre que toma garapa como um refrigério, para temperar as ardências do sol e do clima, se não encontrar bebida inofensiva quando sente necessidade, vae tomar cachaça, que lhe altera as faculdades”. 23 A fala do Sr. Cordeiro é apoiada por Sabino da Luz (1ª secretario) que enfatiza que os garapeiros são homens trabalhadores que para fazerem seu negocio acordam às 4 horas da madrugada saindo. O Sr. Cordeiro também demonstrava preocupação com os vendedores de café, porque segundo ele estes homens trazem suas bancas para certos lugares, como o Ver-o-Peso apenas porque precisam fazer os seus negócios. Havia por parte das autoridades municipais um posicionamento contrário a esse comércio ambulante de alimentos porque se alegava que os vendedores e consumidores deixavam muita sujeira nas ruas por onde passavam24. Na verdade, conforme sugere Cordeiro este parecia ser um comércio movimentado em Belém que tinha entre os fregueses de café e garapa, até mesmo os “guardas municipais”, de quem se esperava ordenamento da cidade e aplicação de multas aos vendedores ambulantes que não raro eram vistos “tomando café n’essas bancas ambulantes”.25 Em 12 de Dezembro, do Livro de detalhes do Governo Municipal26, foi publicado o seguinte: “Sendo de toda conveniência publica abolir a prática de fabricar-se garapa em diversos pontos da cidade, como acontece actualmente, advindo d’ahi a falta de aceio nos pontos em que estacionam os aparelhos empregados naquele fabrico”. Informava-se ainda que não seria “permitido armar barracas para a venda de café outros artigos de ingestão”, em pontos do Ver-o-Peso, do boulevard da República do Reducto27. O que ocorria em Belém neste momento que vai levar a uma discussão a “favor” dos vendedores ambulantes por parte de membros do Conselho Municipal? Se os garapeiros ou vendedores de café não pudessem vender seus alimentos nos locais proibidos, os quais eram de maior circulação de trabalhadores, onde tais pessoas iriam comer seus alimentos? O Pará. 19 de janeiro de 1898. p. 4. Segundo Lacerda & Sarges as autoridades acreditavam eu muitos desses vendedores eram “os responsáveis pela sujeira e afeamento da cidade”. LACERDA, Franciane & SARGES, Maria de Nazaré. “De Herodes para Pilatos: violência e poder na Belém da virada do século XIX para o XX”. In: Projeto História (PUC-SP), v. 38, p. 161-178, 2009. p. 166. 25O Pará. 19 de janeiro de 1898. p. 4. 26 Sendo publicado no jornal Folha do Norte. 27O Pará. 12 de Dezembro de 1897. p. 3. 23 24

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Pensar sobre esse mundo do trabalho, suas formas de movimentação na cidade e acima de tudo as dificuldades dos trabalhadores é também pensar em uma cidade em que as transformações dos hábitos e costumes, seguindo novos padrões de civilização e sociabilidade ganham força a partir da segunda metade do século XIX, quando a cidade ganha cada vez mais, novas feições urbanas, novos gostos e sensibilidades, muito em função das rendas geradas pelos negócios da borracha28. Belém passava por um processo de reforma urbana e embelezamento. Processo que seria efetivado com os códigos de posturas. 29 Dessa forma, a Intendência Municipal ao se propor a gerir a vida da população, estava tomando pra si a responsabilidade de moldar a cidade de acordo com os padrões exigidos por uma elite que começava à exigir tais cuidados de seu governo. Em contrapartida, através da pesquisa é possível identificar que numa cidade onde “as contradições sociais inerentes ao sistema capitalista afloravam muito mais, visto que o desenvolvimento econômico do capitalismo trazia em seu bojo o paradoxo do progresso, da modernidade, onde convivem miséria, a prostituição e toda uma gama enorme de desgraças sociais”. 30 Quando tomamos como fio condutor a investigação dos espaços da cidade de Belém onde se comerciava e consumiam alimentos na virada do século XIX para o XX, observamos que Governo Municipal, buscou combater as práticas de comércio e consumo de alimentos que não estavam dentro do ideal de sociedade civilizada desse contexto, o código de postura municipal foi um instrumento utilizado com esse fim31. Os conflitos em torno disso foram Sobre a discussão dos negócios da borracha e a reurbanização de Belém ver: SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912). Belém: Paka-Tatu, 2000. Para um processo semelhante à Belém ver: DIAS, Edinea Mascarenhas. A ilusão do Fausto. Manaus 1890-1920. Manaus: Valer, 1999. DAOU, Ana Maria.A belle Époque amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2000. 29 Os códigos de Posturas já se faziam “presentes na cidade desde 1829-31num dos primeiros Códigos de Posturas, mas somente em 1900 é que as exigências isntitucionais se materializavam de forma mais evidente”. E em caráter de ordem, pelo Intendente Antônio Lemos que via neles uma forma de padronizar e modernizar a cidade. Em 1900 o Intendente reformulou o código de postura denominando-o de Código de Polícia Municipal. GUIMARÃES, op. cit., p. 45. 30 SARGES, op. cit., p. 142. 31 Uma das principais leis estabelecidas no código de postura municipal dizia respeito a “abolir a pratica de fabricar-se garapa em diversos pontos da cidade (...) também não era permitido armar barracas para a venda de café e outros artigos de ingestão, como observa-se em diversos pontos do Ver-o-pezo, boulevard da Republica, Reducto, etc”.In: O Pará. 19 de janeiro de 1898. p. 4. 28

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constantes32. Também é importante destacar que, essa tarefa não foi apenas da Intendência de Lemos, mas, estas questões estiveram presentes em outros governos. Mais do que um problema de uma elite da borracha e de seu gestor, era acima de tudo um problema de interesses econômicos e que estiveram presentes ao longo do período estudado. Em 1952, por exemplo, o prefeito Lopo de Castro resolveu tratar da seguinte forma a situação, já que pagavam apenas uma taxa ao município estes trabalhadores não deveriam vender em local fixo, mas de forma ambulantemente, de porta em porta, pois assim estava caracterizado o trabalho. Considerou, portanto, “ilegal que eles se postassem em frente aos estabelecimentos comerciais regulares, que tinham as despesas com seu prédio, pagavam funcionários e recolhiam impostos” 33. A história acima sugere o fato de que as atitudes dos governos em relação aos trabalhadores ambulantes foi assunto tratado em vários governos ao longo do período estudado, uma vez que se vinculava a interesses econômicos de comerciantes da praça de Belém como também implicavam no ordenamento da capital paraense. Esse cenário nos permite pensar que mesmo com uma lei que proibia aos vendedores ambulantes de estacionarem no litoral, o requerimento deles pedindo que eles pudessem estacionar durante um determinado tempo, era uma forma de burlar a lei, e igualmente de lutar pelo que consideravam correto e justo para as suas vidas e consequentemente para os seu comércio de alimentos, que conforme deixamos entrever era a forma de sobrevivência de muitos trabalhadores. O governo sempre enfatizava que a não permanência desses vendedores ambulantes por considerar a prática uma “afronta não só a hygyene, como um desrespeito à moralidade pública”.34 Além do mais, a recomendação Os vendedores ambulantes resistiam á ordem pública insistindo em fazer o que era infração, eles também tentavam manter suas vendas em locais que eram proibidos através da mesma lei que os proibia. Em 8 de março de 1898, na sessão da reunião ordinária do governo municipal, fora apresentado um requerimento de diversos vendedores ambulantes em carrinhos de mão que pediam que lhes fosse “permittido estacionarem durante determinado tempo, no littoral”, o que não fora aceito. Da mesma forma, que o livro de detalhes do Executivo Municipal ressaltava que: “Sendo de toda conveniência evitar que continuem alguns pontos centrais da cidade a servir de pastagem do gado que abastece de leite à população. Tal prática era vista como algo que além de perigoso para os transeuntes trazia ofensas à moral e aos bons costumes, assim sendo cabia ao fiscal determinar locais mais afastados e subúrbios para serem destinados a esse fim. O Pará. 21 de janeiro de 1898. p.4. 33 PINTO, Lúcio Flávio. Memória do Cotidiano. Vol-3. Belém: Edição do Autor, novembro de 2010. p. 22. 34 O Pará. 24 de Dezembro de 1897. p. 2. 32

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dada pelo executivo municipal do asseio em 24 de Dezembro de 1897, era de que os agentes da fiscalização municipal proibissem de “estacionar nas ruas o gado que abastece de leite a população, como sucede diariamente, desde as 6 horas até às 8 horas da manhã em frente ao Mercado Público”.35 Para além das questões de limpeza e beleza da cidade, existia ainda a preocupação com as questões de higiene e consequentemente com a saúde. Modelar nesse sentido na virada do século XIX para o XX eram as denúncias contra vacarias jornal.36Ao que parece, para estes lados da Batista Campos eram comum as vacarias, e talvez até uma venda clandestina de carne em alguns momentos. Em1952, conforme conta Lúcio Flávio Pinto, Aramiço Quintela Chaves, teria ido a uma vacaria “situada na “baixa” da Avenida Serzedelo Correa e comprou dois vitelos. Levou os animais para o quintal de sua casa, localizada na São Jerônimo, e por lá mesmo os abateu. Iniciou uma venda para os vizinhos, aos motoristas de ponto de táxi no Largo da Pólvora.37 Na verdade, as políticas voltadas para os vendedores ambulantes, não foram preocupação apenas do Intendente Antônio Lemos. O tripé: comerciantes, governo e vendedores ambulantes têm suas origens bem antes. Desde a década de 50 do século XIX já havia conflitos envolvendo estes três grupos, gerando leis, proibições e prisões.38 Os comerciantes que pagavam impostos, recolhiam receita, pagavam muitas vezes aluguel, luz e funcionários viviam em constante insatisfação com os vendedores ambulantes, que somente ocasionalmente pagavam uma taxa para serem considerados vendedores ambulantes e na O Pará. 24 de Dezembro de 1897. p. 2. Em 1897, reclamva-se com uma vacaria, localizada na rua Apinagés com a Mundurucus, já que os esgotos “estagnando-se na primeira d’essas ruas, constituem um foco de miasmas”. O Pará. 30 de dezembro de 1897. p. 2. 37 PINTO, Lúcio Flávio. Memória do Cotidiano. Vol-3. Belém: novembro de 2010. p. 23. 38 E lembremos aqui a história ocorrida em 1852: “Em 1852, por exemplo, no dia 13 de março, na capital da província, o jornal O Monarchista Paraense publicou o pedido dos taberneiros do 3ª Distrito da capital o qual solicitava aos respectivos fiscais que redobrassem a vigilância sobre as quitandeiras, pois, eles que pagavam os direitos e impostos devidos para a venda de produtos nacionais e importados saíam no prejuízo já que aquelas além de não pagarem impostos “á sombra de meio dúzia de panellas, vendem todas ou quase todas, os mesmos gêneros que os taberneiros o não podem fazer, sem a competente licença...”,38 até porque elas escondiam os produtos por traz das panelas. De imediato, podemos entender que taberneiros e quitandeiras não viviam na mais perfeita paz e que havia certo conflito entre sujeitos de ambas as categorias”. MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Do que se come: uma história do Abastecimento e da alimentação em Belém, 1850-1900. 1ª edição. São Paulo: Alameda, 2014.p. 209. 35 36

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maioria das vezes fixavam seus negócios na frente de outros estabelecimentos o que ocasionava os conflitos. Assim, cabia ao governo pressionado muitas vezes pela classe dos proprietários de estabelecimentos tomar atitudes que fossem favoráveis a eles.39 No que diz respeito ao comércio de alimentos, os trabalhadores que tinham local fixo de trabalho também se manifestaram em relação à exploração dos proprietários. Em 1898, Manoel Barreira, queixava-se de que seu patrão, dono da Padaria Viennense, recusava-se a pagar seu ordenado40. Segundo Pinto, em 1953, os garçons do Grande Hotel41 entraram em greve por causa do valor das gorjetas que a direção do estabelecimento estava retendo. E para agravar mais a situação do Grande Hotel, a reivindicação ocorreu justamente no dia em que o Prefeito de Belém decidiu oferecer um grande banquete, no hotel, para turistas “sulinos que visitavam a cidade”. O banquete só ocorreu, porque houve certo entendimento entre as partes para que fosse realizado o banquete.42 Voltando-nos novamente para os vendedores ambulantes percebemos o quanto estes representavam um grupo importante do comércio realizado, na zona portuária do Ver-o-Peso por exemplo. Desse modo, nesse espaço uma indústria comum era a de doces, vendidos em “charões” por algumas Souza consegue visualizar situação semelhante para a cidade do Rio de Janeiro, de fins do século XIX, quando cinco comerciantes trataram, de se unir e encaminhar uma representação à municipalidade tão logo forma instalados os primeiros chalés nas imediações de seus estabelecimentos”. O documento foi enviado ao presidente da Camara Municipal e “fizeram questão de destacar entre seus méritos a sujeição aos regulamentos da Camâra e da polícia, assim como o pagamento dos tributos exigidos ao Estado, na esperança de que a municipalidade reconhecesse que eles cumpriam com suas obrigações enquanto governados”. SOUZA, op. cit., p. 192. 40 FONTES. Edilza. O pão nosso de cada dia: trabalhadores e indústrias da panificação e a legislação trabalhista (Belém 1940-1954). Belém: Paka-Tatu, 2002. O Pará. 5 de Janeiro de 1898. p.2. 41 De acordo com Lúcio Flávio Pinto o Grande Hotel era um dos mais sofisticados da cidade de Belém, funcionou durante 53 anos, na Avenida Presidente Vargas. Foi construído em 1913 por Ricardo Salvador Fernandes de Mesquita. Fechou as portas em 30 de junho de 1966, teve como cardápio do último jantar: “melão com presunto, filé de pescada à provençal, pernil de leitão assado à carioca, peru à brasileira e torta de maça”. Entre seus hospedes estavam grandes personalidades como “General Eisenhower, comandante das forças Aliadas na Segunda Guerra Mundial, o aviador português Sacadura Cabral, a atriz americana Lana Turner” entre outros. Foram fechados a churrascaria, o restaurante, o bar, a barbearia e a boate. In: PINTO, Lúcio Flávio. Memória do Cotidiano. Vol -5. Belém: Edição do Autor; outubro de 2012. p. 87. 42 PINTO, Lúcio Flávio. Memória do Cotidiano. Vol -3. Belém:novembro de 2010. p. 27. 39

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vendedoras43. E tinham aqueles vendedores que acabavam por enganar seu patrões na venda de doces por exemplo. Este foi o caso de Raymundinho que no início do ano de 1920, se fez passar por vendedor de doces e acabou ludibriando Hermínia Bayna que era muito conhecida no “bairro do Ladrão”, onde residia e fazia doces. Segundo a Folha do Norte apareceu na sua porta um individuo, oferecendo-se para vender seus doces. O qual foi aceito com um ordenado de 15 mil réis mensais. Segundo noticiou a Folha do Norte em certa ocasião, Raymundinho saiu com uma bandeja repleta de doces e sumiu. Em 14 de janeiro a mulher comparece a polícia relatando o fato e dizendo que segundo informações que teve, Raymundinho teria vendido até a sua bandeja.44 Os padeiros além de terem uma jornada exaustiva e longa no interior das padarias, às vezes tinham que sair com balaios45 cheios de pão vendendo nas ruas e nas portas das casas. Segundo Fontes “O padeiro saía com um balaio grande e outro pequeno, levando quase sempre o filho como uma forma de aprendizagem da profissão”46. Assim, através da discussão acima pode-se entender que as relações entre os sujeitos sociais envolvidos nas atividades envolvendo a alimentação, no período estudado estavam pautadas nas ações do governo, em disciplinar e ordenar a cidade e desta forma as ações dos vendedores ambulantes e trabalhadores não regulares. Essas ações governamentais tinham um caráter disciplinador, mas, acima de tudo entende-se que a preocupação dos governos era em regular e fiscalizar trabalhadores ambulantes era também uma reposta a pressão dos comerciantes da praça do comércio de Belém, os quais, muitas vezes sentiamse prejudicados por aqueles.

O Pará. 15 de Dezembro de 1897. p.3 Folha do Norte. 14 de janeiro de 1920. p. 2. Outro grupo de trabalhadores participavam deste cenário eram carroceiros, não raro envolvidos em conflitos na área do Ver-o Peso. O Pará.19 de janeiro de 1898. p. 4. O Pará. 26 de fevereiro de 1898. p. 2. O Pará. 26 de fevereiro de 1898.p. 2. 44 O Pará. 4 de Janeiro de 1898. p.3. 45 Morais nos diz que: “Balaio-cesto raso de talas de palmeira, de boca mais larga que o fundo, tecido caprichosamente colorido, onde se guardam costuras, roupoas, miudezas, cousas domésticas”.MORAIS, Raimundo. O meu dicionário de cousas da Amazônia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2013.p. 33. 46 Fontes; op cit., p. 47. 43 44

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O ENSINO SUPERIOR NO MARANHÃO E A PRESENÇA DAS MULHERES NAS DÉCADAS DE 1940/70 NOS CURSOS DE FARMÁCIA E ODONTOLOGIA Tatiane da Silva Sales1 Resumo O presente artigo tem por finalidade apresentar um breve histórico do estabelecimento das primeiras instituições de ensino superior no Maranhão, destacando seu fortalecimento na década de 1940 da Faculdade de Farmácia e Odontologia de São Luís, para isso faz também um levantamento das principais ações educacionais implantadas pela união neste período. Após apresentar um quadro geral da educação superior, o trabalho visa ainda destacar a presença feminina neste espaço e discutir como esta instituição foi palco de um processo cada vez mais emancipatório para as mulheres, mas também foi um espaço de controle e estabelecimento de poder na perspectiva de gênero. Palavras-chave: educação superior; gênero; poder. O século XX no Brasil é marcado, dentre outros fatores, por conflitos políticos e econômicos, aceleração da urbanização, ampliação dos investimentos e discussão acerca da educação. Esta última se constitui em um espaço propício para as importantes mudanças que o país vivenciou, sobretudo a partir da década de 1930/40. As modificações no processo de urbanização que tiveram como conseqüência a passagem de uma sociedade essencialmente rural para uma outra predominantemente urbana. A emergência dessa nova sociedade, complexa e moderna, encontra-se em estreita relação com as modificações na ordem econômica, com as mudanças na estrutura ocupacional do país e com a crescente entrada de mulheres no mercado de trabalho.2

Doutoranda em História Social da Amazônia/UFPA e professora do Curso de Ciências Humanas – UFMA/Codó. 2 AVELAR, Lúcia. O Segundo Eleitorado: tendências do voto feminino no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1989, p.34. 1

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O período que compreende as décadas de 1940 e 1970 foi palco de alterações no âmbito político que causaram uma série de mudanças de perspectiva nas demandas governamentais, sobretudo no que diz respeito ao sistema de ensino em suas esferas primária, secundária e superior. Na década de 1940 o Brasil, sob a ditadura do Estado Novo, esteve marcado pelo desemprego, baixos salários e projetos políticos e pedagógicos voltados para a educação das massas, pois “o novo regime prometia criar o homem novo, a sociedade nova e o país novo.” 3 Dentre os aspectos sociais das mudanças podemos identificar os papéis femininos e da família, onde algumas ações sobre a moral e situação feminina no espaço privado e público sofreram reavaliações. Tais aspectos englobam desde relações de namoro e casamento, vestimentas, até as condições de trabalho, frequência ao espaço público, instrução e acesso feminino ao voto. No caso das mulheres, sua efetiva incorporação à sociedade capitalista urbana, mesmo que realizando-se em base discriminatórias, fez delas mais um setor da população em que se terá de reconhecer um dos novos interessados na ordem democrática do país.4

A presença feminina mais visível nos espaços públicos resultou também de maior grau de instrução e trabalho fora do lar por parte das mesmas. Susan Besse5, em seu trabalho acerca da ideologia de gênero no Brasil no início do século XX, aponta como a participação feminina no meio social e fora do lar, ou questões relativas a ele, não pode ser apenas compreendida pela perspectiva de mudanças nas relações de gênero, mas deve ser entendida também pelo viés de que ao passo que espaços foram conquistados, as desigualdades entre os sexos ganharam novas conotações, definido como “modernização da desigualdade”. Em conformidade com o contexto de mudanças sociopolíticas e econômicas a educação não deixava de se constituir enquanto critérios de análise pelos governos vigentes. Algumas das demonstrações de possíveis mudanças aconteceram logo no início da década de 1930, com a criação do CAPELATO, Maria Helena. O Estado Novo: o que trouxe de novo? In: DELGADO, Lucilia de Almeida; FERREIRA, Jorge (orgs.). O Brasil Republicano: o tempo do nacionalestatismo do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p.123. 4 AVELAR, Lúcia. O Segundo Eleitorado: tendências do voto feminino no Brasil. Campinas, Unicamp, 2º Ed., 1989, p. 16. 5 Ver: BESSE, Susan. Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia de gênero no Brasil (1914-1940). São Paulo: Edusp, 1999. 3

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Ministério da Educação e Saúde Pública e algumas reformas como a do ministro Francisco Campos (1931), o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932) e a discussão da educação em plano nacional pela Constituição Federal de 1934. Na sequência das décadas seguintes, medidas de reforma promovidas por Gustavo Capanema (1942-1946) também deram continuidade ao projeto político de uma educação nacional e, em 1961, este plano culminou na maior lei educacional estabelecida até então, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. 6 Na perspectiva de promoção da educação registra-se uma política de incentivo à formação de professores, sobretudo para o ensino secundário, e para sanar em parte a falta destes profissionais, Francisco Campos propôs no decreto do Estatuto das Universidades Brasileiras a criação da Faculdade de Educação, Ciências e Letras. Naquele momento, o ensino superior, juntamente com os debates acerca da educação nacional, ganhava notoriedade nos espaços administrativo e social. É neste contexto que foram criadas as universidades, substituindo as faculdades isoladas: Logo em 1931 promulga-se o Estatuto da Universidade Brasileira [...] Em 1934 surge a Universidade de São Paulo. [...] A tradição do ensino superior brasileiro, antes da universidade, foi a escola superior isolada, de tempo parcial, com professores e estudantes reunidos em certos períodos diários para cursos de conferências (aulas) que se previam boas, senão notáveis. 7

A partir do Estado Novo a educação primária foi definida como pública, gratuita e obrigatória; já o ensino secundário foi remodelado para atender de forma, cada vez mais, universal aos alunos integrantes, incluindo tanto a ascensão ao ensino superior, quanto ao campo profissionalizantes. O ensino superior sofreu um processo de crescimento, de 1930 a1945 foram criados 95 novos estabelecimentos de ensino superior e de 1945 a 1960 foram criados 223. 8 A universidade, assim como os diversos órgãos públicos, mantinha-se sem autonomia, elitista, de caráter oligárquico e os estudantes reivindicavam reformas educacionais que promovessem a democratização. Para Cunha9 a universidade do período de 1945 a 1964 viveu momentos de crise de crescimento, pois não conseguia manter no meio socioeconômico o BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. 7 TEIXEIRA, Anísio. Ensino Superior no Brasil: análise e interpretação de sua evolução até 1969. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2005, p.196/197. 8 Ibid. , p.211. 9 CUNHA, Luis Antônio. A Universidade Crítica: o ensino superior na República Populista. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. 6

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crescimento para a demanda. Ela foi crítica de si mesma e da sociedade que a cercava, fruto de um inconformismo de professores e do movimento estudantil. A partir de 1964, com a ditadura militar o ensino superior atravessou por um processo conhecido como de modernização desta modalidade de ensino, tendo nos padrões dos Estados Unidos as referências para traçarem as diretrizes de reforma deste ensino, culminando em 1968, com a reforma universitária10. No Maranhão a escolarização teve avanços significativos a partir da proclamação da República, quando a educação formal teve uma ampliação em número de escolas, na capital e interior, na formação de professores e ampliação dos horários de aula nos turnos matutino, vespertino e noturno. As melhorias na instrução do Maranhão, registradas em falas e mensagens de governantes e autoridades, foram relevantes a ponto de serem notabilizadas na sociedade. Entretanto, estes documentos/discursos se referem à educação pública e fazem parte da divulgação dos respectivos governos, fato que torna a informação mais propícia a revelar e maquiar a atuação dos governos diante do público maranhense. Foi nas primeiras décadas do século XX que as primeiras faculdades se organizaram no Maranhão, e o ensino superior desponta como uma forma de especialização profissional e desenvolvimento econômico. Na cidade de São Luís o ensino superior foi ofertado a partir de Faculdades isoladas de Direito (1918) e Farmácia (1922) e Odontologia (1925), obrigando aqueles que não desejam essas formações profissionais a buscarem outras instituições localizadas em outras unidades da federação (como São Paulo, Recife e Salvador) e países da Europa (Portugal, Inglaterra e França). 11 Estas faculdades ‘nasceram’ com a proposta de iniciativa privada a partir da latente necessidade de implantação do curso superior neste estado e das constantes reivindicações sociais nos jornais. A Faculdade de Direito foi concretizada em 1924 por iniciativa dos doutores Fran Paxeco e Domingos Perdigão que, em 1918, iniciaram o processo de tentativa de oferta deste curso na capital maranhense. Em 1925, criou-se o curso de Odontologia conjuntamente com o de Farmácia que já existia e o estabelecimento ficou designado como Escola de Farmácia e Odontologia do Maranhão. A escola não obteve a autorização do governo federal para funcionar

BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Lei n. 5540, de 28 de novembro de 1968. RELATÓRIO do Grupo de Trabalho da Reforma Universitária. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 50, n. 111, p. 119-175, jul./set. 1969. 11MEIRELES, Mário Martins. O ensino superior no Maranhão: esboço histórico. São Luís: Editora da UFMA, 1981, p.12. 10

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e fechou em 1941, por designação da Divisão de Ensino Superior do Ministério da Educação e Cultura, o mesmo ocorreu com a Faculdade de Direito. Após três anos de inatividade das faculdades a Fundação ‘Paulo Ramos’, estabelecida pelo então interventor no estado do Maranhão, Paulo de Sousa Ramos, reorganizou as Faculdades de Direito e Faculdade de Farmácia e Odontologia de São Luís, que permaneceram como faculdade isolada até 1965, ano em que, por iniciativa da Sociedade Maranhense de Cultura Superior, foi fundada a Universidade do Maranhão, que incluiu em sua estrutura as já existentes Faculdades de Direito e Faculdade de Farmácia e Odontologia. A Universidade do Maranhão tinha caráter confessional e integrando a Faculdade de Ciências Médicas e a de Filosofia. Imbuída de dificuldades financeiras a Universidade Católica entrou em decadência cedendo espaço para a Fundação Universidade do Maranhão, em 1966.12 É possível perceber que o ritmo para estabelecimento de cursos em nível superior no Maranhão se deu a passos lentos e que as iniciativas se deram muito por conta das vaidades pessoais das lideranças que encabeçavam os projetos, isto é tão perceptível que em 1944 o grupo ligado ao interventor Paulo Ramos fez uma alteração simbólica, mas muito expressiva no nome da instituição de farmácia e odontologia, retirando o título ‘Escola do Maranhão’ para ‘Faculdade de São Luís’ afim de inaugurar um novo período da instrução superior no estado. O documento de construção da Universidade do Maranhão mostra um crescimento exponencial de pessoas interessadas no ingresso ao ensino superior no Maranhão, aponta alguns dados como os destacados: em 1967, foram 763 inscritos no exame de seleção e em 1968 inscreveram-se 864 pessoas, um aumento em torno de 20%.13 Inicialmente, integraram a nova instituição de ensino, as seguintes unidades: Faculdade de Direito de São Luís, Faculdade de Farmácia e Odontologia de São Luís, Escola de Enfermagem ‘São Francisco de Assis’, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Luís, Faculdade de Serviço Social e Faculdade de Ciências Medicas do Maranhão. 14

No ensino superior a Faculdade de Direito foi a primeira a se estabelecer em 1918, e a primeira mulher concluiu o curso em 1924, posteriormente foi criada Ibid. BRASIL. Universidade Federal do Maranhão. Documento de Construção do Campus. São Luís,1993. 14 TAJRA, Lêda Maria Chaves. Primeiro Ciclo de Estudos Básicos da Universidade Federal do Maranhão: contribuições para reflexão. São Luís: Edufma, 1985. 12 13

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a Faculdade de Farmácia e Odontologia e, ainda com o objetivo de fortalecer a educação, foi criada a escola de Enfermagem São Francisco de Assis e escola do Comércio. Estas instituições destacaram-se como a grande possibilidade de uma profissionalização mais aperfeiçoada, e como o estado estava experimentando um crescimento significativo da educação básica, inclusive com a participação feminina em crescimento exponencial, havia um público urbano e de classe média interessado nas oportunidades educacionais para ensino superior e profissionalizante, sobretudo as mulheres. 15 Sobre a participação e acesso de mulheres ao ensino superior no início do século XX, Susan Besse destaca que: “No final da década de 1920, as mulheres ainda haviam caminhado muito pouco no ingresso em instituições de ensino superior, a não ser nas áreas de Farmácia e Odontologia, que eram as profissões médicas de menor prestígio.”16 A presença, inicialmente, de mulheres nos cursos citados foi tímida e somente a partir de década de 1940/50 é que mulheres passaram a compor o meio acadêmico em São Luís. No ano de 1948 a colação de grau das faculdades de Direito, Farmácia e Odontologia teve um número de formandos muito próximo entre os sexos, na faculdade de Direito formaram-se três mulheres e quatro homens, em Farmácia eram duas mulheres e três homens e em Odontologia eram três mulheres e número igual de homens formandos. É possível identificar, desta forma, a relevância da presença feminina no ensino superior17, muito embora “muito poucas mulheres frequentaram as escolas secundárias preparatórias para a universidade. As que provinham de classe social mais alta do que as que em geral frequentavam escolas comerciais e técnicas para aprender datilografia e estenografia ou escolas normais para formar-se para o magistério.”18 O perfil das mulheres que cursavam ensino superior no Maranhão foi influenciado pela possibilidade de estudar fora ou dentro do próprio estado. As filhas de pessoas pertencentes a grupos de uma elite tradicional cursavam o ensino superior fora do estado, sobretudo em São Paulo. Já as mulheres que fizeram parte do ensino superior no próprio estado eram pertencentes a uma elite mais recente, portanto focada na classe média alta e urbana que tinha o ABRANTES, Elisabeth Sousa. “O Dote é a Moça Educada”: mulher, dote e instrução em São Luís na Primeira República. São Luís, EDUEMA, 2012. 16 BESSE, Susan. Modernizando a desigualdade: reestruturação de gênero no Brasil, 19141940. São Paulo, Edusp, 1999, p. 128. 17 Jornal O Combate. São Luís, 18 de dezembro de 1948, ano XXIV, p. 04. 18 BESSE, Susan. Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia de gênero no Brasil. São Paulo, Edusp, 1999, p. 136. 15

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desejo pela titulação de ensino superior, porém não saía da capital maranhense por motivos que variavam de questões econômicas e/ou mesmo por manutenção da moralidade, tendo em vista que sair do lar paterno (sem estar casada) ainda se configurava como uma problemática social.19 As primeiras ‘doutoras’ maranhenses tiveram que realizar sua formação fora do Estado, em cursos já estabelecidos em outros espaços da federação, e após o período de estudo, retornavam para o seu estado natal exercendo as ‘nobres profissões’ ou ainda com o intuito de casar-se. Até onde se tem notícia, a primeira mulher maranhense a se formar em medicina foi Laura Guimarães Caldas de Vasconcelos, cursando a Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, em Belém e diplomando-se em 1940 na especialidade considerada mais segura às mulheres, obstetrícia e ginecologia. Os cursos superiores de maior prestígio social, como Direito e Medicina, eram destinados quase que exclusivamente aos homens, pois a concepção de que a manutenção principal do lar provinha destes, a eles era dada a principal oportunidade de estudo dentro da família. Com a necessidade cada vez maior de ajuda financeira da mulher no sustento da casa as oportunidades de acesso ao ensino profissionalizante dentro do universo feminino também foram se ampliando, ainda que de forma mais tímida. Até a década de 1940, as faculdades de Direito e Farmácia e Odontologia foram as únicas instituições de ensino superior no Estado. A diferença na matrícula de mulheres nas duas faculdades pode ser explicada pela característica desses cursos, sendo o curso de direito destinado a formar não somente os magistrados, mas a própria elite dirigente, tanto do poder legislativo como da administração pública, e os cursos de farmácia e odontologia para prepararem profissionais para atuarem na área da saúde, considerada mais adequada para as mulheres.20

É interessante perceber, pelas fontes, que as mulheres estavam presentes no universo acadêmico não apenas na condição de alunas passivas ao movimento acadêmico, mas também na composição de grupos e desempenhos de atividades de diretoria, docência e editorial de revistas. É possível citar alguns exemplos como os destacados a seguir: em 1954 a diretoria do Diretório Sobre esta questão ver o trabalho de VANIN, Iole Macedo. As damas de branco na biomedicina baiana (1879 - 1949): médicas, farmacêuticas e odontólogas. Salvador, pósgraduação em História, UFBA, 2008. (Tese de Doutorado). Ao pesquisar sobre as profissionais da área biomédica em Salvador, Iole também observou as dificuldades encontradas por mulheres na busca pela profissionalização. 20 ABRANTES, Elisabeth Sousa. “O dote é a moça educada”: mulher, dote e instrução em São Luís na Primeira República. São Luís, editora UEMA, 2012, p. 280. 19

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Acadêmico “Osvaldo Cruz” da Faculdade de Farmácia e Odontologia era composta por oito pessoas, sendo três mulheres (Magnólia Frazão, Clotilde Oliveira e Cleaner Balata). Outro exemplo interessante é que os membros do editorial da “Revista Farmacodonto” (Revista dos/as estudantes da Faculdade de Farmácia e Odontologia) era formada por quatro pessoas, sendo uma mulher (Afonsina Nogueira).21 Já na década de 1950 as mulheres eram professoras e na década de 1970 as mulheres fazia parte da direção do conselho de campus.22 Apenas na década de 1970 é que temos registro da presença de mulheres em cargos de chefia no curso de odontologia, representadas pela professora Otildes Maria Gomes de Sousa e subchefe a professora Alina de Sousa Araújo, no departamento de odontologia I, e Isabel Carvalho Magalhães e Benedita Leite, no departamento de odontologia II.23 Dentre os professores fundadores da nova Faculdade de farmácia e odontologia de São Luís, em 1944, tem-se de doze homens, duas mulheres, Ilva Nogueira Gomes e Antonia de Arruda Soares. Desta nova etapa das faculdades, a primeira turma se diplomou em 1947, com a seguinte formação: nove formandos, dentre estes apenas uma mulher, Benedita Silva Atta, com o aproveitamento de quatro destes (todos homens) para o ingresso no magistério superior desta faculdade. Já na década de 1950, tem-se o registro de disciplinas do curso de farmácia, onde a presença é de maioria feminina, por exemplo: a disciplina de ‘Química Toxiológica e Bromotológica’24 em 1956 era formada por sete alunas e apenas um do sexo masculino. Realidade numérica semelhante se repete por toda a década de 1950/60 nos diversos registros de matricula deste curso. Este número se torna expressivo e mesmo até compreensivo quando reforçado pela ideal que circulava nos meios de comunicação de que aos homens estava mais dedicado o curso de odontologia e às mulheres seria mais o curso de farmácia, por características financeiras e de compreensão que as mulheres estariam mais ligadas aos cuidados básicos de enfermidades, exercendo papeis próximos da noção de maternidade. No curso de farmácia, identifica-se que as mulheres além de serem maior número como docentes (em relação à odontologia), também têm mais espaço Farmacodonto – Revista da Faculdade de Farmácia e Odontologia. São Luís, out-dez., 1954, p.13/17. 22 BRASIL. Universidade Federal do Maranhão. Documento de Construção do Campus, São Luís, 1993. 23 Farmácia de Odontologia da Universidade do Maranhão. Histórico. São Luís, 1980. 24 Faculdade de Farmácia e Odontologia de São Luís. Diário de turma da disciplina Química Toxiológica e Bromotológica. São Luís, 1950-1960. 21

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enquanto alunas, pois também se apresentam como maior número como auxiliares de classe e monitorias. Mas quando em ocasião do I Congresso Maranhense de Farmacêuticos, década de 1970, tem-se o registro de palestras apenas de homens, dentre eles convidados de universidades de São Paulo, duas professoras aparecem apenas na comissão de relações públicas. Isto nos aponta algumas questões importantes: um curso que é formado com expressiva participação feminina as tem timidamente quando há uma manifestação mais pública ou mais respeitosa das atividades de pesquisa na academia, parece que a legitimação e prestígio social ainda é masculino. Ainda no curso de Farmácia havia divisão em três departamentos com a seguinte configuração de gênero: no primeiro tem-se metade do corpo docente para cada sexo e a representação estudantil é feminina, mas na diretoria, apenas a secretária é mulher. No segundo dos cinco docentes, três são mulheres sendo uma delas chefe de departamento e o mesmo se repete no terceiro departamento. No relatório anual da diretoria da faculdade de farmácia da Universidade do Maranhão, em 197225, o registro de atividades acadêmicas como apresentação de trabalhos, publicações, cursos promovidos, conferências e palestras, a quase totalidade das participações é masculina, ainda que o número de mulheres seja equiparado e mesmo superior ao de homens. O que se percebe no ensino superior é uma dinâmica muito semelhante à ocorrida na educação básica, as mulheres até tinham expressiva presença nos quadros docentes, mas cargos de chefia e papéis de proeminência ainda eram majoritariamente masculinos. O que levaria a esta dinâmica? A necessidade de mulheres compatibilizarem suas atividades profissionais com as domésticas? À medida que educadores e membros do governo elaboravam e instituíam as políticas educacionais, tornava-se claro que o propósito da educação feminina ‘moderna’ era não só oferecer instrução que permitisse às mulheres atuar como trabalhadoras e cidadãs na sociedade burguesa moderna mas, talvez mais importante, preparar as mulheres para o casamento e a maternidade.26

Vários fatores levaram as mulheres a ingressarem com mais frequência no ensino superior, desde a necessidade de ampliar a renda familiar, por conta da nova estrutura econômica nacional, até a exponencial demonstração pública de que uma senhora dona de casa não poderia mais se apresentar com uma Faculdade de Farmácia. Universidade Federal do Maranhão. Relatório Anual da Diretoria da Faculdade de Farmácia. São Luís, 1972. 26 BESSE, Susan. Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia de gênero no Brasil. São Paulo, Edusp, 1999, p. 129. 25

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educação limitada. Houve assim, um processo de combinação entre possibilitar a educação feminina de forma a substituir-lhe o dote material pelo simbólico e dessa forma promover um acesso ao ensino ainda muito disciplinador e dando novas características para as desigualdades que já estavam estabelecidas sobre as mulheres. Mas algo que é possível perceber é que esta educação formal não foi um presente dado às mulheres do século XX, foi resultado de longas conquistas, lutas travadas no âmbito público e sobretudo no espaço privado. Muitas mulheres ingressaram no ensino superior e aproveitaram aquele espaço de poder e disciplina para alcançarem o maior número de experiências possíveis, ainda que com algumas limitações sociais impostas. Com isso não afirmamos que as mulheres presentes nos cursos de ensino superior no Maranhão tinham um projeto emancipatório articulado, pois faltariam elementos para tal afirmação, mas expressamos que a modernização dos quadros educacionais locais foi espaço também para projeção feminina em espaços públicos no ensino superior, e a veiculação midiática sobre isso é um exemplo importante. Apropriar-se de um ambiente de poder e vigilância, como as instituições educacionais, para projeções coletivas e individuais no ensino superior foi uma das armas utilizadas por mulheres maranhenses que, diante de uma perspectiva ainda patriarcal, demonstravam suas habilidades em comissões, redações de periódicos, obtendo maior frequência nos cursos, maiores notas, exercendo atividades como monitorias, auxiliares de ensino e mesmo docência superior. Ainda que muitas dessas personagens da história educacional maranhense tenham se tornado ‘apenas’ mães e esposas após a conclusão de seu curso superior, a presença e atuação de tais mulheres não podem ser ignoradas em instituições criadas por homens e para homens, fruto de políticas educacionais que nunca privilegiaram as mulheres.

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AUGUSTO MONTENEGRO E AS ARTES APLICADAS NO PARÁ Thaïs Zumero Toscano1 Resumo A Belém do fim do século XIX, início do XX experimentou um exitoso mecenato de estado, que teve a figura do Governador Augusto Montenegro, ao lado de Antonio Lemos, como grande articulador. O mercado das artes aplicadas introduzidas neste momento e inseridas em prédios, públicos e particulares contou com uma rede de artistas contratados, liceus de artífices, fomentando um ambiente de forte cunho artístico e intelectualizante, dentro do projeto civilizatório da Belém bellepoqueana. Esses nomes (sujeitos) e a materialidade dessa empresa estão, paulatinamente, sendo perdidos e seus rastros apagados. Faz-se necessário o entendimento desse sistema e o descortinamento dos personagens. Palavras-chaves: Augusto Montenegro, artes aplicadas, mecenato Introdução O mecenato de estado ocorrido no Pará entre o final do século XIX e primeiras décadas do XX, esteve centrada na figura do Governador Augusto Montenegro (1901 – 1907) e sua relação com as artes decorativas. O cenário é a cidade de Belém do “ciclo” da borracha. A capital paraense experimentou um aporte financeiro por conta dos dividendos da economia gomífera, que, segundo Sarges (2010), resultou, entre outros aspectos, em uma marcante transformação sociocultural, refletindo-se na arquitetura e nos costumes da sociedade. Foi exatamente nesse momento de pujança econômica, que a arte decorativa foi impulsionada, estabelecendo relações comerciais e artísticas entre ateliers europeus e artistas contratados pelo Governo. A arte decorativa foi trazida para o interior de prédios de grande relevância, como Palácios de Governo, Palacetes e Teatros. Foram aplicados mosaicos nos pisos, como tapetes, escaiolas nas paredes, estuques, pinturas parietais no interior das edificações, em sua grande maioria, pertencentes ao Poder Público, o que pode ser explicado pela abundância de Mestra em Arquitetura e Urbanismo (UFPA), doutoranda em História da Amazônia (UFPA) 1

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recursos advindos das exportações de látex, que abasteceram os cofres estaduais, e menos frequentemente em prédios particulares. Belém viveu intensamente a belle époque e a criação em 1852 da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas teve um papel preponderante nesse cenário, porque permitiu a livre importação de produtos europeus, que não paravam de circular na cidade. Na realidade, dois significativos momentos na história urbana de Belém podem ser identificados de forma bem nítida: o primeiro deles foi a chegada do arquiteto bolonhês Antônio Landi, no século XVIII, que, sob a influência da Academia Clementina dos mestres Bibienas, imprimiu em suas obras traços do estilo neoclássico ou mesmo, como muitos consideram, do barroco tardio, desenhando e construindo com elegância, apuro formal, e requinte, igrejas, palácios, capelas e residências particulares, que ainda hoje marcam a cidade. O segundo momento aconteceu entre o final do século XVIII até a 1ª Grande Guerra, em que a cidade de Belém, impulsionada pelo comércio da borracha e pela ideologia burguesa experimenta transformações culturais expressas na arquitetura, costumes e pensamento da época. Período identificado por Eidorfe Moreira (1966), como “fase cosmopolita”, Belém, nesta ocasião, teve sua fisionomia urbana alterada decorrente de medidas “modernizadoras” e de profundas reformas urbanas. Avenidas foram abertas, palacetes, escolas, hospitais, asilos construídos, estabelecimentos comerciais, bancários e de serviços reproduziam-se em larga escala, praças ajardinadas, boullevards erguidos, e a infraestrutura urbana como telégrafo, telefonia, linha de bonde, estradas de ferro, iluminação a gás fizeram com que a vida na cidade se transformasse. Vale ressaltar, segundo Sarges (2010), porém, que todos esses melhoramentos beneficiavam, sobretudo, as elites. A atividade nos seringais empregava a grande parte da mão de obra local e ainda absorvia a migração de nordestinos para as frentes de trabalho nos seringais, o que impôs um aumento demográfico de caráter substancial. Essa legião de trabalhadores, entre os quais os estrangeiros, vivia em condições precárias e sem nenhum retorno das benesses advindas da riqueza da borracha. É nesse contexto, como já mencionado, de efervescência cultural e de contradições, de grande disponibilidade financeira, de grande mobilidade de pessoas e de produtos e de grande diversidade de idéias, que a arte decorativa foi introduzida em Belém. A influência mais próxima foi, certamente, a da primeira fase da arte utilitária (Arts and Crafts) representada por William Morris, John Ruskin e Thomas Carlyle, que explorava a arquitetura doméstica e a decoração interior, que por sua vez teve influências dos Pre-rafaelitas.

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A introdução das artes decorativas ocorre sob o mecenato de Augusto Montenegro e sua importância para a representação da cidade cosmopolita. Considera-se ter sido a ação do Governador peça fundamental para o entendimento desse tráfico de artistas no período glamouroso da cidade, aonde outros sujeitos (anônimos ou não) vêm à cena, sem esquecer que esse mecenato se desenvolveu pari-passu com o mecenato lemista. O Projeto “modernizador” e o mecenato No final do século XIX e início do XX, Augusto Montenegro e Antônio Lemos reproduziram, em Belém, um exitoso mecanismo de representação de uma sociedade intelectualizada e “moderna” refletida na cidade “bellepoqueana”, que Belém “desejava” tornar-se. Tal mecanismo foi o mecenato de Estado, que, em nome de um progresso intelectual e “civilizatório”, o próprio ente administrativo, através de seus representantes, conduzia e fomentava a relação estado/arte, como um pilar da meta de levar Belém à condição de cidade cosmopolita e “globalizada" 2 Segundo Coelho (2014, p. 13), antes mesmo do ápice do mecenato cultural, que teve o imperador Pedro II, como grande representante, o Brasil já experimentava, ainda que embrionariamente essa forma de atuação do Estado, com a fundação, em 1826, da Academia Imperial de Belas Artes. Em 1840, já no II Reinado, o Instituto Histórico e Geográfico (IHGB) abre suas portas. Depois, vieram o Colégio Pedro II, os Liceus, as Faculdades de Medicina e as Escolas de Direito, apontando um claro esforço, por parte do Imperador, em criar no Brasil um ambiente propenso à cultura. Pedro II personificou a imagem de agregador e patrocinador das artes e ciências: Victor Meirelles, Carlos Gomes e Pedro Américo são alguns exemplos de artistas que o Imperador apoiava, sem contar com os médicos, cirurgiões e cientistas. As mensagens políticas e sociais que a postura de Pedro II reverberava, rapidamente encontraram ressonância dentre as elites letradas de outras cidades, que também tinham por meta a equiparação “civilizatória” ditada pela Europa, e Belém encontrava-se nesse elenco. O Pará e o Amazonas ainda viviam sob a riqueza da borracha e o Estado dispunha de recursos para o financiamento dessa política. Segundo Sarges (2010, p. 20) o pensamento corrente era da importância em “alinhar” as cidades

Entende-se por globalizada a condição de Belém como entreposto comercial: intercâmbio de idéias e produtos. 2

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aos padrões europeus e inserir definitivamente Belém num cenário de civilização. Figueiredo (2001) aponta, no entanto, que desde 1890, sob o incentivo do então Governador Lauro Sodré (1891 a 1897) várias sociedades científicas, artísticas e literárias foram criadas. Lauro Sodré incentivava a contratação de artistas europeus e organizava exposições no Liceo Benjamin Constant de artistas como D. Mendelson, Domênico De Angelis, Giovani Capranesi, Natale Attanazzio, Davi Widhoptt, Maurice Blaise, Luigi Lubutti entre outros, que passaram a atuar no ensino e no mercado de arte, tendo o Governo como principal patrocinador. Pinacotecas públicas e privadas foram inauguradas e o modelo de “estado mecenas” foi rigorosamente cumprido por José Paes de Carvalho, Governador entre 1897 e 1901 e ampliado por Augusto Montenegro (1901 a 1909). Tinha-se, portanto, em Belém um mercado de arte aquecido, diverso, sustentado pela economia da borracha e dentro de um continuum político. Coelho (2014, p. 21) considera que, ao contrário do II Reinado, o mecenato nessas cidades não se limitou ao favorecimento de governantes para com determinados artistas, homens de letras ou de ciências. O mecenato, no Pará, também foi praticado em torno de obras públicas de grande significado social, como a decoração do Theatro da Paz, do Palácio Lauro Sodré, a abertura de espaços urbanos, de praças e boulevards” Sabe-se que no período entre 1901 a 1909, o governo de Augusto Montenegro patrocinou a vinda de artistas, como mosaicistas, marmoristas, escaiolistas3, escultores, que transformaram o interior de alguns prédios públicos de grande valor simbólico, adaptando-os aos paradigmas conceituais da belle- époque. Segundo Coelho (2014, p. 62), em 1905, Augusto Montenegro recebeu do Governador da França reconhecimento pela valorização de artistas franceses, como Joseph Cassé, ex- aluno da Escola de Bellas Artes de Marselha, que vem a trabalhar na decoração interna do Theatro da Paz, do Palácio do Governo e da Capela do Colégio Gentil Bittencourt. Em 1906, o então Presidente da República Afonso Pena visita o Pará e é levado por Montenegro e por Lemos às principais obras realizadas, demonstrando um claro manifesto de relação ao patrocínio dessas obras com o Estado. Denominam-se de escaiolistas os profissionais que executavam a técnica da escaiola, bastante utilizada como elemento decorativo. A técnica consiste na aplicação de mistura de gesso e cola, com o objetivo de imitar pedras, especialmente, as marmorizadas. Essa técnica é sofisticada e precisa, para sua qualidade superior, de habilidade. 3

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Em 1901, Montenegro inicia reforma no então Palácio dos Governadores, projetado por Antônio Landi, no século XVIII. As obras não alteram a tipologia, com exceção da fachada, mas inserem elementos decorativos e ornamentais, que transformam substancialmente o edifício. Conforme sugere Coelho (2014. p, 64), assumindo um tom reflexivo de sua própria identidade. Montenegro relata esse feito em suas mensagens para a Assembléia legislativa. (figura 1). Figura 1 Trecho da mensagem do Governador Augusto Montenegro para a Assembleia Legislativa do Estado de 1906, p. 60

Em 1904, Augusto Montenegro implementa a sua mais simbólica obra: a reforma do Theatro da Paz, lócus do pensamento e conceito da sociedade burguesa. A casa de ópera era o espaço por excelência da economia da borracha. Montenegro contrata Canessa para fazer as esculturas dos bustos de Carlos Gomes e de Henrique Gurjão, De Ângelis para pintar o forro da Sala de Espetáculos e supõe-se que Joseph Cassé para executar o piso em mosaico e as pinturas parietais. (Figura 2). Existe a informação de que o “cartão” 4 deste mosaico, com desenhos estilizados de vitórias régias (figura 3) estaria no Instituto Histórico Geográfico de São Paulo, junto com a coleção de Theodoro Braga, de quem Cassé era amigo.

Chama-se cartão, ao projeto, em escala reduzida, do mosaico a ser executado. Com o cartão vieram as autorias desse tipo de arte. 4

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Cidade e Cultura Figura 2. Trecho da mensagem do Governador Augusto Montenegro para a Assembleia Legislativa do Estado de 1904, pg.92)

Figura 3. Mosaico do piso do hall do Theatro da Paz, vitória régia estilizada.

Note-se, porém, que as residências possuidoras das artes decorativas eram palacetes de propriedades de pessoas ligadas ao Estado, como: Palacete Augusto Montenegro, de propriedade do Governador, Palacete Bolonha e o 202

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Palacete Bibi Costa, cujo construtor foi o engenheiro Francisco Bolonha, secretário de obras públicas na gestão de Montenegro. Percebe-se, portanto, que o intercâmbio artístico não era somente executado pelo poder público, mas também por particulares, que fomentavam um ambiente de grande efervescência artística. É importante destacar a figura de Augusto Montenegro, relacionando-a à introdução das artes aplicadas no Estado, sem contudo esquecer que os mosaicos usados para embelezar as fachadas e os interiores, por exemplo, também representam um símbolo do poder (Bourdieu, 1989): serviram para a afirmação e prestígio do Estado e do governante, já que dariam visibilidade e o reconhecimento ao autor (o artista) e ao patrocinador (o mecenas) deste projeto artístico que se espalhou pela cidade. Augusto Montenegro: o mecenas “diletante” A figura de Augusto Montenegro é tratada pela historiografia atual como coadjuvante e errática no processo de embelezamento da cidade, e a ela devese dar protagonismo. Torna-se cada vez mais evidente seu papel de mecenas e incentivador das artes decorativas, que por sua vez são relegadas a um quase ostracismo, haja vista a ausência de pesquisas de autorias e temáticas. Diferentemente das artes plásticas, as artes decorativas possuem como suporte o próprio prédio, fazem parte de um contexto arquitetônico. O mecenato de Augusto Montenegro também incorporou a arquitetura. Argan (2003, p. 426), ao analisar os mosaicos paleocristãos no Mausoléu de Galla Placidia, em Ravena, imprime a eles atributos próprios da arquitetura, quando afirma que o mosaico não é somente um elemento de revestimento das paredes, e que em alguns momentos a substitui, chanfra as arestas, deforma o contorno dos arcos, anula a intercessão dos planos, fornecendo uma profundidade ilusória, através de indicações perspécticas. Nota-se que o reconhecimento do crítico oferece ao mosaico, e às artes decorativas em geral, um protagonismo, demonstrando que sua aplicação não é aleatória, nem casual ou descomprometida. O estudo da cidade de Belém, no seu contexto “bellepoqueano”, deve ser observado, não somente no alargamento das ruas e na construção de prédios ‘modernos” e no art nouveau, mas também em outros símbolos da modernidade que tornaram a cidade muito especial aos olhos de admiradores da arte. Atualmente, a preservação destas marcas, destes signos, encontram-se em risco porque pouco valor se dá a esse tipo de arte, sempre exposta a toda sorte de negligências e imperícias. Faz-se necessário uma documentação sistematizada. Os exemplares das artes decorativas nos prédios públicos de Belém correm o 203

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constante risco de desaparecimento por conta do pouco valor dado a elas e o acervo documental segue ainda sem grande destaque na historiografia local. É importante relacionar Augusto Montenegro como o grande mecenas das artes aplicadas, fundamental para a consolidação simbólica da Belém da belle époque. Por essa razão, alguns pontos a serem considerados, como.  As Artes aplicadas demonstrada como elemento principal para a visualização da cidade “bellepoqueana”  A grande ligação política e de mentalidades entre Antonio Lemos e Augusto Montenegro e o diálogo na constituição de uma paisagem artística que reforçasse o clima de uma petit Paris encravada em plena floresta amazônica.  O tráfego de artistas estrangeiros para a cidade e como isso refletia nas finanças públicas A cidade de Belém fará 400 anos e existem muitos rastros, de um período considerado transformador (apesar dos problemas que a cidade apresentava), que estão sendo paulatinamente apagados. Esses rastros precisam ser “recuperados”. Lembrando Choay que ao analisar o papel dos ingleses na manutenção dos prédios públicos aponta que “para eles, os monumentos do passado são necessários à vida do presente; não sem ornamento aleatório, nem arcaísmo, nem meros portadores de saber e prazer, mas parte do cotidiano” (2001, p. 139) Essa memória pode ser utilizada como instrumento de gestão de governo, assim o valor desta pesquisa é também documental, de sensibilização, na medida em que descortina para a sociedade esse acervo a partir de um protagonismo que visa à sua valoração e à preservação. Afinal, como registra o autor de As pedras de Veneza (Ruskin): “A arquitetura é o único meio de que dispomos para conservar vivo um laço com um passado ao qual devemos nossa identidade, e que é parte do nosso ser.”. E, concordando com Choay “esse passado é essencialmente definido pelas gerações humanas que nos precederam” (Idem)

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A CIDADE E A GUERRA: A CAPITAL PARAENSE DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Tunai Rehm1 Resumo Em meio a Segunda Guerra Mundial, a cidade de Belém passa por diversas transformações e percepções. Nesse tempo, ela é sentida e percebida pelos seus habitantes de maneiras distintas. Nesse sentido, este trabalho visa dar luz aos sentidos e acontecimentos na capital paraense em meio ao processo beligerante. Por meio dos jornais que circulavam na época (tal como o Folha do Norte, O Estado do Pará, ou ainda A Vanguarda), somado a relato de literatos, ou mensagem do governador, intenciono apresentar por meio deste trabalho, a cidade de Belém durante a Segunda Guerra Mundial. Palavras – Chave: Belém – Segunda Guerra - Cidade No início da década de 1940, o governo do estado do Pará, em conformidade com a decisão do governo Brasileiro, assume o fim dos laços diplomáticos com os países do eixo. Estes eram representados por Alemanha, Itália e Japão. A capital paraense, com a entrada efetiva no processo beligerante, promove permanências e transformações tanto no espaço físico como imaginário da cidade. Ocorrerá assim uma mudança de postura do governo acarretando na consequente transformação do meio citadino. Por meio dos jornais que circulavam na época (tal como o Folha do Norte, O Estado do Pará, ou ainda A Vanguarda), somado a relato de literatos, ou mensagem do governador, intenciono apresentar por meio deste trabalho, a cidade de Belém durante a Segunda Guerra Mundial. As fontes nos revelam uma perspectiva de tensão e, ao mesmo tempo, de normalidade, com as pessoas levando os dias com a guerra como um pano de fundo distante, fora da realidade local. Nesse sentido, a cidade não pode ser pensada simplesmente como uma floresta de pedras. Ela é construída e vivenciada por sujeitos que a pensam e a transformam. Para tanto, os estes agentes aqui não foram esquecidos, pelo contrário, ao perceber que a guerra cria o estrangeiro inimigo é que a investigação ganha fôlego.

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Mestre em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará. 205

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1. No ano de 1930, com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, ele indica para os estados brasileiros os chamados Interventores – que correspondia naquele momento ao cargo de governador. No Pará, chega ao poder Joaquim Magalhães Barata. Inicialmente lhe é atribuído o cargo de Interventor e de maneira subsequente o de governado do estado do Pará. Durante a década de 1930, criou uma política que de acordo com seu discurso intencionava trazer de volta os ares de modernização que teriam sido perdidos na segunda década do século XX. Através de medidas paliativas e superficiais, deu um pontapé inicial com uma série de ações implementadas que, dentre elas, é possível listar: a ampliação, abertura e pavimentação de ruas; urbanização de antigos bairros, ou ainda, criação de novas edificações que, no entanto, somente contemplavam a área central da cidade. Esse processo de modernização, então, se baseou na reestruturação da atividade comercial a partir da Avenida 15 de Agosto, trecho fundamental que conectava o centro comercial aos bairros em crescimento. Esta representava um ponto estratégico, afinal, além de promover a expansão do centro, também se beneficiava da proximidade ao porto e de uma rampa que serviu de pista para os chamados hidro aviões 2. Esse processo de urbanização e verticalização contava com o percalço da falta de mão de obra especializada na capital paraense. Para isso, era necessário atrair estrangeiros interessados em ganhar dinheiro em Belém. Um desses foi o arquiteto alemão Oswald Massler. Ele trabalhou na capital durante as décadas de 1930 e 1940 obtendo relativo sucesso quando da feitura do desenho dos edifícios comercias da empresa Booth Line e Associação Comercial do Pará, ambas localizadas no início da Avenida 15 de Agosto, atual Presidente Vargas. Apesar de ter participado de maneira ativa na construção de edifícios importantes para a época, devido sua nacionalidade alemã, o jornal carioca A Noite reproduz reportagem do periódico O Estado do Pará, em que é acusado de estar a serviço da Alemanha e de se chefe nacional, Hitler, com quem o Brasil, naquele momento, já havia rompido seus laços diplomáticos. Somado a isso, fora tachado como “chefe do NSDAP” e acusado de possuir balas “dum-dum” (balas de revólver calibre 38) na sua residência. O jornal expõe após a investigação da polícia, um documento onde deixa evidenciado uma discussão, ao que parece, com um membro do partido nazista em Belém. No fim do

VIDAL, Celma Chaves Pont. Arquitetura, modernização e política entre 1930 e 1945 na cidade de Belém. 2008. Online. 2

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documento, faz a saudação típica dos nazistas: “Heil Hitler!”3. Isso foi o suficiente para considera-lo um perigo iminente para a sociedade paraense. Após quatro dias, foi noticiado na Folha do Norte que ele, somado a outros alemães e um japonês, foram levados a Delegacia Especial sob suspeita de atividades nazistas no Pará4. O governo brasileiro sentia a necessidade de ter o controle dos estrangeiros oriundos das nações inimigas. Não surpreende que pouco tempo depois do ocorrido, o referido periódico publica o nome do arquiteto novamente como alvo da polícia paraense. É propalado que ele junto com outros alemães e japoneses foram levados a um Campo de Concentração situado no interior do estado, no município de Tomé-Açu5. O caso foi utilizado para servir de exemplo. Percebe-se ainda que, pelo texto redigido, igual em todos os jornais onde a matéria foi publicada, que o DEIP o fez intencionando que o caso viesse reforçar o controle a partir do medo. Mas o caso de Oswald Massler não foi o único nem em Belém, nem no Brasil. O arquiteto não foi uma exceção à regra. Na década de 1940, no contexto da guerra, em Belém era comum a associação entre alemães e o nazismo, quando não, acusações de praticar espionagem a favor de Hitler. A presença dos alemães podia ser sentida na capital e desde a década de 1930, a filial do Partido Nazista em Belém já estava atuando. A cidade estava em transformação. Os prédios construídos em momentos anteriores eram vistos como lugares propícios para a prática da espionagem. Exemplo disso é o caso do empresário William Bern acusado de ser conivente com um espião alemão que teria tirado fotos indevidas do alto de seu prédio. O Edifício Bern ficou no centro das discussões, não pela sua modernidade, mas, por ter sido palco de uma infração das mais graves em um momento de guerra. O empresário tornou-se alvo de acusações na imprensa paraense. Ocorre uma querela entre os jornais A Vanguarda e Folha do Norte e, em meio a esse fogo cruzado, o empresário vende os seus bens, inclusive o prédio lhe pertencia 6. Aliás, a imprensa, nesse momento, foram utilizados pelo governo a fim de estabelecer um controle social. Ao que é possível perceber, promoveu a censura A Noite, 5 de Outubro de 1942. p.3 Folha do Norte, 09 de Outubro de 1942, p.1. 5Folha do Norte, 18 de Outubro de 1942, p.3 ; O Estado do Pará, 18 de Outubro de 1942, p.4; Folha Vespertina 18 de Outubro de 1942, p2. 6 Para compreender melhor as acusações contra o empresário William Bern, suas motivações e o desenrolar deste processo ver: ALMEIDA, Tunai Rehm Costa de. Achsenmächte, Potenze dell'Asse, Sujikukoku na Amazônia: imagens, narrativas e representações da Quinta Coluna no Pará (1939-1945). Dissertação. Belém: Ufpa, 2015. 3 4

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nos meios de comunicação, sejam eles de massa ou não, para manter-se estável em um momento de um possível descontrole. Assim como no governo totalitário alemão, a propaganda ganha caráter essencial para apresentar a necessidade de cooperação em tempos beligerantes. Dessa forma, o uso da informação e das mídias voltou-se para a construção de um ideário acerca da obrigação do povo para com sua pátria. A guerra acaba por ser um instrumento de convencimento e controle da sociedade objetivando seus interesses. Por meio dessa análise, Karl Schuster Leão, em sua dissertação, revela como o “Regime, apoiado por grande parte da imprensa, buscou disciplinar a sociedade pernambucana para manter-se estável num momento em que uma guerra desestabilizou seus interesses primeiros”7. Por sinal, o uso dos jornais que circulavam no estado, foi muito comum para disseminar os ideais contrários ao totalitarismo, para promover lisonjas à democracia, para denunciar possíveis atividades da Quinta-Coluna, mas também serviu como um espaço de defesa daqueles que se sentiam injustiçados por aquilo que poderia ser classificado como acusações infundadas. Dentro dessa lógica, é necessário esclarecer quais órgãos de imprensa ganhavam destaque naquele momento. O Estado do Pará, jornal que muitas vezes funcionou como um veículo de defesa dos ideais governistas, que na capital representou, por algum tempo, os interesses do grupo do Interventor Magalhães Barata8. Em trabalho monográfico, Adrialva Simões o aponta como o jornal responsável pelo propagandeamento da guerra no estado9. No entanto, existia a circulação de outros periódicos, como, por exemplo a Folha do Norte, pertencente a Paulo Maranhão, adversário de longa data de Magalhães Barata. Todo jornal possui uma linha editorial. Isto nos permite inferir que cada um segue uma determinada forma de pensar. Implica dizer que a ideia de uma LEÃO, Karl Schurster. V. A guerra como metáfora: aspectos da propaganda do estado novo em Pernambuco (1942-1945). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal Rural de Pernambuco. 2008. 8 Em trabalho monográfico, Luiz dos Santos mostra a atuação do jornal O Estado do Pará durante o período da Segunda Guerra Mundial. Apresenta o papel do jornal fazendo denuncias, revelando acontecimentos e atuando ativamente na construção da guerra através de suas páginas colaborando com a política perpetrada pelo Estado através do Departamento de Imprensa e Propaganda. Cf. SANTOS, Luiz dos. “Inimigos Intimos”: italianos, japoneses e alemães no estado do Pará durante a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Monografia. Ufpa: Belém, 2003; Ver também: SILVA, Cícero Alves da. Notícias do front: A Segunda Guerra Mundial na Imprensa do Pará – 1939/1945. Monografia. Ufpa: Belém, 2005 9 SIMÕES, Adrialva. De pé pela honra do Brasil: o paraense na divulgação da Segunda Guerra Mundial (1942 – 1945). Monografia. Ufpa. Belém, 1993. 7

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imprensa imparcial inexiste. Os dois jornais atuaram de maneira diferente e parecida ao mesmo tempo, no período da guerra. A impressão que fica é que ao mesmo tempo em que havia denuncias nos dois jornais, também publicavam declarações de pessoas se defendendo de acusações ou declarações acerca do patriotismo brasileiro. No entanto, O Estado do Pará, parece ser mais incisivo em suas acusações. Enquanto isso, a Folha do Norte, abre mais espaço para defesa do nome de sujeitos envolvidos em supostas delações. Apesar das notícias propaladas nos jornais darem conta de torpedeamentos, bombardeios, catástrofes, a população continuava a viver suas vidas. Os estudantes continuavam frequentando as aulas na escola ou faculdade, mulheres e homens trabalhando em casa ou na rua, assim como indigentes pedindo esmolas. Enfim, com a guerra que se alastrava, os bombardeios nas capitais europeias, torpedeamento dos navios brasileiros, havia o receio, por parte da população e de autoridades, do que poderia ocorrer na capital com inimigos camuflados, os quintacolunistas, que estavam à solta. Eram tempos difíceis e Belém vivia constantes racionamentos, o período da guerra acentuou a escassez de produtos no mercado. Por conta dos torpedeamentos sofridos pelos navios mercantes no litoral, muitas embarcações por precaução deixaram de fazer o trajeto até a capital paraense. Armando Mendes afirmava que “em certo momento durante a Guerra, o porto de Belém chegou a ficar três meses sem receber um só cargueiro (...) e o transporte aéreo, especialmente para cargas pesadas, ainda era incipente” 10. A situação se consolidava como da total ausência e da busca pela superação das dificuldades que se somavam. Os produtos tornavam-se cada vez mais escassos. O açúcar, por exemplo, sumiu. Somente São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco o produziam. Para adocicar o café, então, passou-se a utilizar do caldo de cana. E quando o produto em escassez era o café? O jeito era a substituição pelo chá de ervadoce. Outro produto que rareou, o pão por muitas vezes desapareceu da mesa do cidadão sendo trocado por batata-doce e cuscuz11. O governador do Estado, Magalhães Barata, em relatório enviado ao presidente alertava acerca que “o problema do abastecimento deste Estado tem MENDES, Armando Dias. A Cidade transitiva: rascunho de recordância e recorte da saudade da Belém do meio do século. Belém, Imprensa Oficial do Estado, 1998.p. 40-1. Ver também: MENEZES, Murilo. A Capital do El Dorado: Crônica sentimental de Belém, e comentários sobre alguns de seus problemas. Imprensa Oficial: Belém, 1954. 11 FONTES, Edilza. O Pão nosso de cada dia: trabalhadores, indústria da panificação e a legislação trabalhista em Belém (1940 – 1945). Belém: Paka-Tatu, 2002. 10

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a sua solução condicionada à regularidade dos transportes da cabotagem nacional”. Evidenciava-se essa situação muito porque “o bloqueio das nossas costas veio criar para nós, na intermitência dos carregamentos e na insuficiência das tonelagens disponíveis, uma carência alimentar sem precedentes na história”12. Ou seja, acusava-se a interferência e os torpedeamentos dos navios na costa brasileira pela ausência dos alimentos que eram produzidos no sul do país. Devido ao real racionamento, Belém sofria com a indisponibilidade de alimentos o que interferia diretamente no cotidiano da população. Isso levou o próprio governo a criar medidas para controlar a situação dos alimentos. Política similar foi engendrada em São Paulo onde também houve um racionamento de produtos. Contudo, essa política posta em prática pelo estado paulista não refletia uma ausência no mercado, mas sim, uma política do governo que intencionava estabelecer um maior controle social. Para isso, o discurso da guerra, da ocupação da costa brasileira por embarcações inimigas criou uma sensação de insegurança que facilitou a aceitação do discurso estatal sobre o controle dos alimentos13. De fato, os torpedeamentos dos navios mercantes brasileiros por submarinos alemães provocaram uma diminuição substancial no tráfego pela costa do litoral brasileiro. Como essa era a principal rota comercial de produtos norte-sul do país, a carência alimentar tornava-se sensível. Ao mesmo tempo, inflamava o sentimento patriótico da população e, cada vez mais, aumentava sua aversão aos nazistas. Nesse caso, o Estado entendia como necessária a criação de medidas que visassem à proteção do território nacional e da população. É nesse sentido que foi criado a chamada Defesa Passiva AntiAérea. A Defesa representava um exercício promovido pelo Estado a fim de evitar um improvável, porém, noticiado como possível, ataque aéreo que poderiam sofrer as cidades brasileiras. Nele, as luzes das cidades eram completamente apagadas (o black-out, como ficou conhecido) e as pessoas deveriam se resguardar em suas casas enquanto os aviões faziam a defesa do território. O governo brasileiro, em parceria com os estados, criou uma série de exigências para que a população seguisse durante a efetivação do momento de defesa. PARÁ. Interventor Federal, 1943 – 1945 (Joaquim de Magalhães Barata). Relatório apresentado ao Presidente da República Getúlio Vargas em 1944. Belém, 1944. p. 7. 13 CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. Geração Editorial: Edusp: São Paulo, 2000, pp. 51 – 98. 12

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Em Belém, provavelmente essa simulação ganhou contornos ainda mais eficientes. Basta imaginar uma cidade praticamente isolada do resto do país por conta dos processos de fechamento das principais vias de comunicação devido aos acontecimentos da guerra. Fato é, que pouco antes da primeira experiência na capital paraense, em nota, o Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda alertava que o “Sangue frio acima de tudo deve ser mantido por quantos ouças as sirenas de alarme, prevenindo a possibilidade do deflagrar das bombas e do troar das metralhadoras”14. O Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda lançava notas alertando para o perigo iminente de um bombardeio sobre a capital paraense. No dia 11 de Junho de 1942, o general Zenóbio da Costa vai aos jornais fazer um alerta a população. Segundo informa o noticiário, o militar acredita que a cidade de Belém não estava livre de um ataque aéreo do inimigo. Tal afirmação se dá no contexto pós primeiro ensaio da Defesa Passiva Anti-aérea15. A preocupação do general já havia sido compartilhada em nota do DEIP lançada nos jornais dias antes. As letras correntes afirmavam que a chegada de uma invasão poderia estar próxima as terras brasileiras. Para proteger o território nacional e os patrícios somente uma bem articulada Defesa Passiva Anti-Aérea. Talvez, fosse possível defender a cidade, atenuar os efeitos dos bombardeios “livrando-a do pânico, do nervosismo, do terror da morte” 16. A primeira noite de Defesa Passiva ocorreu no dia 10 de Junho de 1942. Segundo o que destaca a manchete dos jornais no dia seguinte, tudo ocorreu de maneira positiva e em boas condições para proporcionar a defesa do território paraense.

2. O cenário da guerra estava armado, Imprensa, governo, sociedade. Os anos beligerantes de 1939 – 1945 mudou a cidade, mas, principalmente, mudou a vida dos seus habitantes. E, por habitantes, não compreendo apenas os paraenses ou brasileiros, mas todos aqueles que viviam na cidade e que construíam suas histórias. É importante perceber que, ainda que o Brasil houvesse em Fevereiro de 1942 rompido os laços diplomáticos e, em Agosto de 1942, declarado guerra aos países dos eixo, ainda assim, muitos dos seus A Vanguarda, dia 05 de Junho de 1942, p. 4. A Vanguarda, 11 de Junho de 1942, p.1. 16 A Vanguarda, 11 de Junho de 1942, p.1. 14 15

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ascendentes e descendentes viviam na capital paraense. Estes há tempos haviam construído casas, escolas, comércios, associações, enfim, possuíam uma história na cidade. Marília Ferreira Emmi, em pesquisa acerca da contribuição econômica dos grupos italianos na sociedade paraense, desvela a interação existente da comunidade com a sociedade local. Ainda que seja possível perceber que os italianos se misturaram aos paraenses e possuíram fácil adaptação, se compararmos com outros estrangeiros, ainda assim, mesmo vivenciando a realidade brasileira, construíram formas de “preservar sua cultura através das associações, da imprensa, da sintonia com os da política italiana, das comemorações festivas que congregavam a comunidade, entre outras” 17. Muito foi construído pelos italianos na capital paraense. A primeira associação a ser criada, foi a Società Italiana di Beneficenza, fundada com apoio de um grupo de imigrantes por Clodomiro Paquale Pandolfi, em 12 de Abril de 1912. Passado algum tempo, é fundada em 21 de Abril de 1919, a Unione Italiana D’Istruzione e Mutuo Soccorso por um grupo de comerciantes italianos. Na década de 1920 vão surgir novas agremiações em Belém. No plano esportivo, o Itália Sport Club; No plano político, Fascio del Pará e Fascio Italiano de Obidos. Na educação, a Società Italiana di Beneficenza irá criar a Escola Dante Alighieri, suas aulas eram ministradas em italiano e somente descendentes poderiam frequentar as aulas. No ano de 1933 houve a fusão entre a Società Italiana di Beneficenza e Unione Italiana D’Istruzione surgindo a Societá di Assistenza per gli Italiani di Belém. Em 1938, sob orientação fascista, passou a ser denominada Associação Civil Casa da Itália Pará Brasil18. Ao longo da primeira metade do século XX, principalmente no período anterior a Segunda Guerra Mundial, surgem associações, clubes que possuem caráter fascista – depois combatidos. Fato este não impediu sua existência, tampouco, reclusão daqueles que os integravam. Com a política nacionalista de Vargas, houve a nacionalização das instituições. Assim, “O primeiro ato de nacionalização atingiu o sistema do ensino em língua estrangeira: a nova legislação obrigou as chamadas ‘escolas estrangeiras’ a modificar seus currículos e dispensar os professores ‘desnacionalizados’”19. A Escola Dante Alighieri, em Belém, ainda resistiu até o ano de 1942, quando suas atividades tiveram de ser

EMMI, Marília Ferreira. Italianos na Amazônia (1870 – 1950): pioneirismo econômico e identidade. Belém: NAEA, 2008. p.229 18 Ibidem. pp.229 - 239 19 SEYFERTH, Giralda. A assimilação dos imigrantes como questão nacional. Mana [online]. 1997, p. 96. 17

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encerradas devido às perseguições processadas em decorrência da postura brasileira diante da Segunda Guerra Mundial. Com a entrada efetiva na guerra, por mais que houvesse um abrandamento em relação aos italianos, se comparados a alemães e japoneses, ainda assim, houve o fechamento de portas de instituições como, por exemplo, o Itália Sport Club. Mas, o Itália não foi o único a sofrer intervenção do Estado brasileiro. Em São Paulo, por exemplo, O Palestra Itália teve de mudar seu nome após algumas tumultuadas reuniões passando a se chamar Sociedade Esportiva Palmeiras, um nome mais brasileiro. Mais do que o nome, a diretoria foi renovada para que seguisse preceitos identificados na legislação que obrigava a nacionalização dos clubes. Em Belho Horizonte, o Palestra Itália, em 1940, transformou-se em Palestra Mineiro. Contudo, devido a fortes pressões, no ano de 1943, trocaria de nome para Cruzeiro Esporte Clube20. 3. A cidade mudava, ganhava novas feições com as ações perpetradas pelo governo. Não fosse pouco, o governo cria no interior do Estado um Campo de Concentração, na cidade Tomé-Açu. Aqueles sujeitos considerados suspeitos de serem nocivos e que estavam à espera para agir contra a sociedade, eram enviados para a cidade no interior do estado. Essa era uma forma de responder as defensores dos fascismos, campos de Concentração vão ser criados no país – exemplo é o já referenciado campo em Tomé-Açu, quando inúmeras pessoas foram levadas a morar em colônias agrícolas isolando-as do resto da população da capital. Longe de chegar ao ponto da “Solução Final” dos alemães, quando da criação dos Campos de Extermínio, na Europa. No Brasil, o processo de formação desses lugares foi bem menos aterrorizador do que os campos de extermínio no nazismo. Com a entrada efetiva na guerra, vai se iniciar o processo dos internamentos no país. Serão criados campos em diversas regiões ao longo do território nacional como o Campo de Concentração Chã de Estevão, em Paulista (PE); a Colônia Penal Candido Mendes, em Ilha Grande (RJ); o Presídio de Ilha das Flores, no Rio de Janeiro (RJ); o Campo Militar para Prisioneiros de Guerra, em Pouso Alegre (MG), a Estação Experimental de

SALUN, Alfredo Oscar. Palestra Itália e Corinthians: Quinta Coluna ou tudo Buona Gente? [Tese]: Universidade de São Paulo. São Paulo: 2007. Pp.107 – 124. 20

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Produção Animal, em Pindamonhangaba(SP); a Escola Prática de Agricultura, em Guaratinguetá (SP), Presídio Oscar Scheineder, em Joinville (SC)21. Desde a década de 1930 é possível constatar a presença desses campos no Brasil. No Ceará foram criadas áreas de isolamento para os chamados retirantes da Seca. Kenia Rios constata que o ano de 1932 marca o processo da construção de locais que serviram para aprisionar a população pobre que, no centro urbano de fortaleza, endossava um verdadeiro bolsão de pobreza. Além de isolados, outras medidas também foram implementadas, tal como, a emigração forçada para outros Estados, como exemplo, o Pará. O Estado cearense foi responsável pela criação de sete campos distribuídos “em lugares estratégicos para garantir o encurralamento de um maior número de retirantes do Sertão do Ceará”22. O Estado intencionava promover o isolamento daqueles que foram tratados um elemento nocivo e que poderiam contaminar os demais habitantes das cidades paraenses. As colônias japonesas no interior do Pará, que anteriormente abrigava trabalhadores japoneses, passaram a circunscrever uma área de reclusão dos suspeitos de fazerem parte da Quinta-Coluna. Foram enviados para esses locais não somente os japoneses, mas também, italianos e alemães. A colônia de Tomé-Açú, segundo o jornal O Estado do Pará, era destinada aos “eixistas nocivos à segurança nacional (...) sob direção fecunda do capitão João Evangelista Filho”23. A notícia de que novos suspeitos eram endereçados aos campos de concentração saía nos jornais. Era uma forma de manter a população informada e, ao mesmo tempo, apresentar à sociedade a forma que o Estado criou para ter o controle da população. Levando estrangeiros oriundos dos países do eixo, supostamente defensores da causa de seus governos, estariam também protegendo os brasileiros de possíveis atos ofensivos que poderiam ser cometidos por esses sujeitos. Exemplo disso é o que ocorreu no dia 18 de Outubro de 1942 quando são enviados para Tomé-Açu vinte e nove estrangeiros dessas nações. Foram enviados quatro japoneses, um italiano e vinte e quatro alemães. Segundo a reportagem de Folha do Norte, foram levados

PERAZZO, Priscila Ferreira. Prisioneiro da Guerra: os “súditos do eixo” nos campos de concentração brasileiros (1942 – 1945).São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Fapesp, 2009, p.101. 22 Rios, Kênia Sousa. Isolamento e poder: Fortaleza e os campos de concentração na seca de 1932. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014. p.10. 23 O Estado do Pará, 03 de Janeiro de 1943. p.6. Apud SANTOS, Luiz dos. Inimigos íntimos: italianos, japoneses alemães no Estado do Pará durante a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial.UFPA. Belém, 2003. 21

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em um barco puxado por uma lancha e a motivação que os levou a serem enviado para o interior foi que “viviam em atividade suspeita”24. Apesar da caracterização de um campo de concentração levar a imaginar uma situação pesarosa para aqueles que foram levados a esses lugares, Miguel Lessa, mostra que na memória daqueles que viveram a realidade no interior do Pará, há um contraste no sentimento que ficou do lugar. Nas lembranças de Tooru Ikeda, agricultor, a cidade foi transformada totalmente num campo de concentração e aglomeravam famílias as abrigando em “coisas” pois não havia casa para todos. Dessa forma, a vida nos campos tornava-se difícil devido as condições que eram impostas. Em sentido inverso, Satoshi Sawada vê com bons olhos o que acontecia nos campo do interior do Pará. Ele rejeita a ideia de que o espaço funcionaria como um campo de prisioneiros, para ele, representava apenas um confinamento” 25. Os campos de concentração foram então uma política do Estado brasileiro para punir aqueles que supostamente representavam um perigo à população brasileira. Mas, o pensamento de alguns era que as formas de punição não deviam parar por ai. O povo foi incitado a boicotar as casas comerciais de proprietários estrangeiros eixistas, manifestações na cidade foram feitas com milhares de pessoas tomando as ruas em luta pela causa democrática, ações cerceadoras por parte do Estado e até mesmo cogitar sentença de morte. Apesar desses campos não terem sido criados na cidade de Belém, ainda assim, era, principalmente, da capital que surgiam as acusações contra os possíveis inimigos do Brasil. Dessa forma, uma consequência natural é o sentimento de policiamento por parte do Estado e vigilância sobre os cidadãos. 4. A Cidade de Belém no decorrer da década de 1940 passou a conviver com os aspectos da Segunda Grande Guerra. Sujeitos foram levados a campos de Concentração, Associações fecharam as portas e a cidade efetivamente viveu uma atmosfera diferente por conta da guerra. A constante situação de acusações em jornais, por exemplo, levava a estrangeiros de diferentes nacionalidades buscarem os periódicos na capital para fazer declarações afirmando patriotismo e defesa a nação brasileira. Enfim, por meio deste trabalho, minha intenção foi perceber a cidade de Belém e como seus moradores, aqueles que dão sentido a ela, viveram o momento do maior conflito beligerante da história. Folha do Norte, 18 de Outubro de 1942, p.3. LESSA, Miguel Geraldo Cavalcante. A Segunda Guerra e o perigo do “inimigo” – 1939/1945. Monografia. UFPA, 2001. p.35 24 25

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