BENS RELIGIOSOS, REQUERIMENTOS E SÚPLICAS EM SERGIPE NO SÉCULO XVIII: DA CARIDADE AO PECADO DA DÍVIDA

May 22, 2017 | Autor: Janaina Mello | Categoria: History, Historia, História do Brasil, História, História De Sergipe
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Quæstionis Documenta – Revista do Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió

Ano II, Nº 2, 2017

ISSN 2447-9616

BENS RELIGIOSOS, REQUERIMENTOS E SÚPLICAS EM SERGIPE NO SÉCULO XVIII: DA CARIDADE AO PECADO DA DÍVIDA RELIGIOUS PROPERTY, REQUESTS AND PETITIONS IN SERGIPE IN THE EIGHTEENTH CENTURY: FROM CHARITY TO SIN DEBT Janaina Cardoso de Mello Willams dos Anjos Oliveira Ingrid Batista Santos Resumo: O artigo objetiva tratar dos requerimentos e súplicas envolvendo bens religiosos tradicionais da igreja católica no século XVIII. As referências à construção de igrejas e capelas, a solicitação de obras em edificações religiosas, os salários pagos por igrejas e Irmandades ao Provedor e Juízes, a intervenção de padres na partilha de heranças, o arrolamento de artigos religiosos em prata e ouro, permitem identificar não somente a cultura material religiosa, mas também a atuação do clero na sociedade sergipana. O estudo parte do acesso aos documentos relacionados no Arquivos Histórico Ultramarino da Capitania de Sergipe (AHU-SE) compostos por inventários com requerimentos, cartas, certidões e representações relativas à solicitação de provisões para as igrejas e as fontes acondicionadas no Arquivo Geral do Poder Judiciário do Estado de Sergipe (AGPJSE) formadas por autos de capelas sergipanas direcionando um olhar mais cuidadoso sobre a distribuição geopolítica, econômica e sociocultural do catolicismo setecentista. As referências ao Jesuítas e à Santa Casa de Misericórdia entre 1722 e 1798 identificam a participação dos leigos na vida religiosa. Adota-se uma metodologia quali-quantitativa no levantamento de fontes, exercício de paleografia e posterior análise documental. Palavras-chave: Bens Religiosos; Santa Casa da Misericórdia; Sergipe del Rey. Abstract: The article aims to address the requests and petitions involving religious traditional property of the Catholic Church in the 18th century. References to the construction of churches and chapels, the request works in religious buildings, the wages paid by churches and sororities to the provider and Judges, the involvement of priests in the sharing of inheritances, the sequestration of religious items in silver and gold, identifying not only the religious material culture, but also the role of the clergy in society of Sergipe. The study part of access to related documents in the Historical Files of captaincy of Sergipe (AHU) composed of inventories with applications, letters, birth certificates and representations relating to the request for supplies for churches and packed in the General Archives of the judiciary of the State of Sergipe (AGPJSE) formed by the sergipanas chapels directing a look more careful about the geopolitical distribution Economic and sociocultural, in 18th century Catholicism. References to the Jesuits and the Santa Casa de Misericórdia between 1722 and 1798 identify the participation of laypeople in religious life. Adopt a qualiquantitative methodology in gathering sources, palaeography and exercise later documentary analysis. Keywords: Religious Goods; Santa Casa da Misericórdia; Sergipe del Rey.



Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutora em História e Professora Adjunta. Universidade Federal de Sergipe (UFS). Graduando em Museologia. PIBIC/CNPq (2016-2017).  Universidade Federal de Sergipe (UFS). Graduanda em História. PICVOL (2016-2017). 

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O século XVIII foi crucial para a manutenção do poderio da Igreja católica na América Portuguesa, entre dissonâncias e resistências na ampliação e proteção dos bens religiosos. O contexto não era favorável, uma vez que a expulsão dos Jesuítas em 1759 pela ação do Marquês de Pombal, em razão das contendas de colonos e religiosos pelo controle dos missionários sobre a mão-de-obra indígena, ameaçou a disciplina e a coesão interna do modelo de cristandade até então em vigor. Essa realidade se fez presente especialmente em Sergipe, pois conforme afirma Roberto Sousa Santos (2011, p.310), após a partida dos Jesuítas, ocorre uma reestruturação do catolicismo possibilitando o desenvolvimento de novas relações simbólicas de mando e domínio, tanto pelo viés tradicional quanto na vertente popular com o apego aos santos de devoção. Os documentos relacionados no Arquivos Histórico Ultramarino da Capitania de Sergipe (AHU-SE) compostos por inventários com requerimentos, cartas, certidões e representações relativas à solicitação de provisões para construção e reformas de igrejas, bem como as fontes acondicionadas no Arquivo Geral do Poder Judiciário do Estado de Sergipe (AGPJSE) formadas por autos de capelas sergipanas informando sobre os bens religiosos e seus administradores, além dos testamentos, permitem um olhar mais acurado sobre a distribuição geopolítica, econômica e sociocultural do catolicismo setecentista. Há certa escassez de pesquisas sobre a religiosidade tradicional em Sergipe no século XVIII, sendo poucos os trabalhos de fôlego que abordam essa temporalidade, uma vez que há uma maior predileção dos estudiosos pela religiosidade popular nos séculos XIX e XX. Uma das pesquisas mais recentes ocasionou a tese de doutorado do historiador Claudefranklin Monteiro Santos, “A festa de São Benedito em Lagarto-SE (1771-1928): limites e contradições da romanização”, defendida no Programa de Pós-Graduação em História, em 2013, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É importante salientar a dissertação de Roberto Sousa Santos, intitulada “A reestruturação sociorreligiosa em Sergipe, no final do século XVIII”, apresentada em 2010, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), para a obtenção do grau de Mestre. A historiadora Ane Luise Silva Mecenas Santos tem se dedicado de longa data aos estudos da evangelização jesuítica sobre os povos indígenas desde sua monografia de graduação em História, intitulada “Evocação ao céu: a Igreja de Nossa Senhora do Socorro, uma 57

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expressão da mentalidade da Companhia de Jesus na aldeia do Geru (1683-1759)”, apresentada na Universidade Federal de Sergipe (UFS), em 2005; e em sua dissertação de mestrado em História denominada “‘Conquistas da fé na gentilidade brasílica’: a catequese jesuítica na aldeia do Geru (1683-1758)”, defendida em 2011 na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), possuindo ainda vários outros artigos de relevância publicados em periódicos científicos e anais de eventos. Ressalta-se ainda a monografia de France Robertson C. Da Silva, “‘Sob o manto da Imaculada’- Sergipe se devota a Maria (Séculos XVI a XIX)”, apresentada na Universidade Federal de Sergipe (UFS) em 2001. Para os estudos da cultura material religiosa, cabe consulta ao livro de Kátia Afonso S. Loureiro, “Arquitetura sergipana do açúcar”, publicado em 1986, onde são inventariadas igrejas e capelas do Engenho Caieira (Santo Amaro das Brotas, SE), do Engenho Colégio (Itaporanga D´Ajuda, SE), dentre outros. Também na perspectiva da cultura material, a dissertação de Mestrado em Arqueologia intitulada “Espaço e Paisagem Jesuítica: Perspectivas de Análises Arqueológicas em Laranjeiras/SE”, defendida em 2014, na Universidade Federal de Sergipe (UFS) por Ronaldo José Ferreira Alves Santos, dedicou-se ao estudo das Fazendas “Retiro” e “Comandaroba”, em Laranjeiras, tendo as edificações nesse espaço como objetos de análise. O artigo aqui delimitado possui caráter de originalidade uma vez que se propõe à tratar dos requerimentos e súplicas envolvendo bens religiosos tradicionais da igreja católica em suas múltiplas facetas no século XVIII. As referências à construção de igrejas e capelas, a solicitação de obras em edificações religiosas, os salários pagos por igrejas e Irmandades ao Provedor e Juízes, a intervenção de padres no momento da partilha de heranças, o arrolamento de artigos religiosos em prata e ouro, as doações testamentárias à igrejas e irmandades permitem identificar não somente a cultura material religiosa, mas também a atuação do clero na sociedade sergipana setecentista. Optou-se pela adoção de uma metodologia quali-quantitativa dividida em duas etapas nesse artigo: primeiro um levantamento quantitativo de fontes primárias no AHU e AGPJSE que remetesse às igrejas e capelas sergipanas, bem como as referências aos Jesuítas e à Santa Casa de Misericórdia entre 1722 e 1798, possibilitando um mapeamento das áreas de influência religiosa (bens, dívidas e súplicas) a partir dos espaços identificados. O

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segundo momento envolveu o cotejamento dessa documentação primária com Testamentos e outros dados bibliográficos para análise qualitativa das informações.

Dos proventos para Capelas e administração de bens religiosos A presença jesuíta no Brasil colônia foi ressaltada por sua atuação primordial na fundação de aldeias indígenas e no estabelecimento de colégios que proveram a educação e cultura fortalecendo o processo colonizador de além-mar desde o século XVI. Na Capitania de Sergipe del Rey1, em São Cristóvão, data de agosto de 1722, uma representação dos Oficiais da Câmara da Capitania de Sergipe del Rey, ao Rei [D. João V], solicitando licença para fundarem na Cidade de São Cristovão um Hospício assistido pelos padres da Companhia de Jesus.2 Pedido que se repetiu em janeiro de 1727, no requerimento dos moradores da Capitania de Sergipe del Rey ao Rei[D. João V], solicitando a instalação de um Hospício, onde os Religiosos da Companhia de Jesus pudessem ensinar aos seus filhos as letras humanas.3 Esses documentos atestam que decorridos mais de dois séculos, a Companhia de Jesus ainda possuía uma influência considerável, não apenas pelas terras e casarios de sua propriedade, bem como pela estruturação de um imaginário de assistência educacional junto às povoações. Desde a criação da Comarca de Sergipe, em 1696, desmembrada da Comarca da Bahia iniciou-se o processo de consolidação administrativa local, perpassando a criação de novas vilas e a criação de diversos cargos. Essa situação acarretou desavenças por parte do Vigário-Geral de São Cristóvão, uma vez que a arrecadação de valores para as Irmandades se viu prejudicada com o particionamento das vilas. O Escrivão Judicial e Notas, Órfãos, Capelas e Resíduos, Defuntos e Ausentes viu a queda nos rendimentos com o desligamento dos antigos moradores da sua jurisdição (Nunes, 1996, p.105). Isto posto que parte dos bens religiosos configurava-se não somente em edificações materiais, mobiliários e peças religiosas em ouro e prata, mas também nos proventos 1

A denominação de Sergipe del Rey, muitas vezes usada para indicar São Cristóvão e outras para a Capitania, foi usada até fins do século XVIII, como afiançou Nunes, 1996, p.171. 2 AHU-SE. Inventário nº115, Caixa 02, Documento nº38, de 16 de agosto de 1722, São Cristóvão. 3 AHU-SE. Inventário nº179, Caixa 03, Documento nº36, de 23 de janeiro [Ant.1727], Sergipe del Rey.

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obtidos com doações e dízimos pagos pelos fiéis compondo uma renda tributável. A certidão passada pelo Escrivão da Provedoria dos Defuntos e Ausentes Capelas e resíduos, Nicolau de Souza Furtado, em 1729, referente aos salários que costumam levar o Provedor e Escrivão das contas tomadas às Irmandades das Igrejas da Capitania de Sergipe del Rey4, evidenciam essa premissa. A atuação do clero regular possuía um papel significativo no desenvolvimento da colônia, uma vez que demonstraram reiteradamente em sua busca pela construção ou reforma de igrejas e capelas o serviço à “boa condução das almas” em Sergipe. Sob esse aspecto, em 1723, uma carta do Ouvidor Geral Manuel Martins Falcato, ao Rei [D. João V], referente a petição do Padre Pedro de Abreu de Lima, Pároco da Matriz de Nossa Senhora da Abadia, informava sobre a situação em que se encontrava a Igreja: arruinada e precisando de obras.5 Em outubro de 1736 um requerimento do Padre Manuel Cardoso de Loureiro, Bacharel formado nos Sagrados Cânones, e Vigário proprietário da Freguesia e Matriz de Nossa Senhora da Vitória da Cidade de Sergipe del Rey, ao Rei [D. João V], solicitava um auxílio para as obras da capela mor da referida Igreja.6 A igreja em questão fora edificada por ordem dos reis Felipes da Espanha (Souza, 2005, p.24). Entretanto, em 30 de janeiro de 1741, encontra-se um outro requerimento de Manuel Cardoso de Loureiro, Vigário colado da Matriz de Nossa Senhora da Vitória, da Cidade de Sergipe del Rey, em seu nome e dos seus paroquianos ao Rei [D. João V] que solicitava recursos para acabar a construção da Igreja.7 Demonstrando o desejo de expansão das edificações religiosos naquela área. Expressão que vai se ampliando por terras sergipanas como se pode verificar no requerimento de janeiro de 1743, do Padre João Gomes de Souza, Vigário Colado da Freguesia de Santo Antônio do Urubu de Baixo, ao Rei[D. João V], solicitando que se fizesse uma igreja maior pois a que existia era considerada pequena e de taipa.8 Inicialmente conhecida como Vila Nova do rio São Francisco com povoação iniciada em torno de 1660 e sendo unida à “Coroa Real” em 1731, seus moradores preocuparam as autoridades quando em 1708 prenderem o Vigário, enquanto este 4

AHU-SE. Inventário nº202, Caixa 03, Documento nº59, de 20 de setembro [Ant.1729], Sergipe del Rey. AHU-SE. Inventário nº119, Caixa 02, Documento nº42, de 03 de fevereiro de 1723, Sergipe del Rey. 6 AHU-SE. Inventário nº 305, Caixa 05, Documento nº 30, de 27 de outubro [Ant.1736], Sergipe del Rey. 7 AHU-SE. Inventário nº 335, Caixa 06, Documento nº 12, de 30 de janeiro [Ant.1741], Sergipe del Rey. 8 AHU-SE. Inventário nº 342, Caixa 06, Documento nº 24, de 12 de janeiro [Ant.1743], Sergipe del Rey. 5

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celebrava uma missa, na revolta contra a proibição da escravização de indígena dada a escassez de mão de obra no local. Impediram ainda o Ouvidor de realizar devassa sobre o ocorrido e nutriam profundo descontentamento com os Jesuítas (Nunes, 1996, p.197). Em 1744 foi apresentado um Requerimento de João de Souza, Vigário colado da Freguesia de Santo Antônio da Vila Real do São Francisco, ao Rei[D. João V], solicitando ajuda para as obras da Igreja.9 O Requerimento do Padre José de Souza, Vigário Colado da Igreja Matriz de N. Sra. do Socorro da Cotinguiba, enviado em abril de 1748 ao Rei [D. João V], solicitava uma esmola para construção da capela mor da referida Igreja.10 Por volta de 1675, a existência de uma igreja dedicada a Santo Antônio é usada como demarcação para o povoamento da Vila de Itabaiana, incentivando a criação da Irmandade de Santo Antônio e Almas pelos moradores da região. O problema surge quando a Irmandade decide comprar terras ao Vigário Sebastião Pedroso de Góis – beneficiado pela doação de sesmarias naquela área, configurando-o num grande proprietário de terras – para construção de uma nova igreja distando uma légua do lugar originário. A terra árida, de vegetação caatinga e falta d’água, impediu o própero desenvolvimento do povoado, implicando na pobreza de seus habitantes. O resultado material da precariadade foi visto na rusticidade da igreja que terminou se deteriorando ao longo dos anos (Nunes, 1996, p.177-178). Por isso, uma Carta de 1761 escrita pelo Pároco da Freguesia da Vila de Itabaiana, Francisco da Silva Lobo, foi enviada ao Rei[D. José I], solicitando uma esmola para a obra da Igreja Matriz da mesma Vila.11 Data de agosto de 1777, um Requerimento dos moradores da Freguesia de Nossa Senhora do Socorro, do termo da Cidade de Sergipe del Rey, ao Rei [D. José I], solicitando auxílio para fazer a capela mor da Igreja Matriz.12

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AHU-SE. Inventário nº 350, Caixa 06, Documento nº 34, de 06 de outubro [Ant.1744], Vila Real do São Francisco. 10 AHU-SE. Inventário nº 364, Caixa 03, Documento nº 26, de 05 de abril [Ant.1748], Sergipe del Rey. 11 AHU-SE. Inventário nº415, Caixa 07, Documento nº60, de 12 de setembro [Ant.1761], Vila de Itabaiana. 12 AHU-SE. Inventário nº 436, Caixa 08, Documento nº 18, de 29 de agosto [Ant.1777], Nossa Senhora do Socorro.

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Em 1784 foi encaminhado à Rainha[D. Maria I] um Requerimento do licenciado Ventura Rabelo Leite de Sampaio, pedindo licença para erguer uma igreja no seu engenho da Penha na Capitania de Sergipe del Rey.13 Como ressaltou Mott (2005, p.161: [...] na Colônia, a elite branca, acastelada e minoritária demograficamente, protegia-se da arraia-miúda e da gentalha de cor, isolando-se por detrás de balaustradas e colunatas próximas ao altar-mor. Os mais esnobes e elitistas [...] construíam seus próprios locais de culto – capelas, ermidas e até igrejas, no interior ou anexas às suas moradias, evitando assim o indesejado convívio com os fiéis de outras raças ou de estratos inferiores (grifo do autor).

Logo após a conquista do território de São Cristóvão por Cristóvão de Barros, em 1590, inicia-se o povoamento de Santo Amaro das Brotas com a concessão de sesmarias à Aires da Rocha. Em 1699, a localidade é elevada à Vila e em 1702, depois de uma contenda sobre terras com Antonio Martins de Azevedo, foi construída Igreja de Nossa Senhora das Brotas (Nunes, 1996, p.191). O relato do povoamento do espaço ao longo dos anos marca a presença religiosa na região: Em 1757, no núcleo urbano viviam “cinquenta vizinhos pouco mais ou menos, com uma igreja nova bastantemente grande, que inda não é Matriz, e um Hospício dos Religiosos de Nossa Senhora do Monte do Carmo e uma Capela de Nossa Senhora dos Pretos por acabar” (Certidão de uma das Ordens e Relação Topográfica da Vila de Santo Amaro das Brotas em 11.01. 1757 apud Nunes, 1996, p.192, grifo da autora).

Mesmo após ter sido apontada como uma das localidades mais prósperas, a Carta do Juiz e mais Oficiais da Câmara da Vila de Santo Amaro das Brotas da Comarca de Sergipe del Rey, de 1787, apresentava à Rainha [D. Maria I] o pesar pela morte do Rei D. Pedro e, ao mesmo tempo, pedia que mandasse suspender, pelo estado de decadência e pobreza em que se encontravam, o Donativo Voluntário que oferecera aquele Rei. Solicitava também esmola para os reparos necessários na capela da Igreja Matriz da referida Vila.14 Em 1796 foi submetido um Requerimento pelo Padre Antônio Dias Coelho e Melo e pelo Sargento Mor Domingos Dias Coelho e Melo, ao Príncipe Regente [D. João V],

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AHU-SE. Inventário nº 447, Caixa 08, Documento nº 33, de 22 de janeiro [Ant.1784], Sergipe del Rey (anexo: 6 doc.). 14 AHU-SE. Inventário nº 453, Caixa 08, Documento nº40 , de 31 de janeiro de 1787, Vila de Santo Amaro das Brotas.

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solicitando a divisão de terras dos engenhos São Pedro e São Francisco, herdados dos falecidos pais de Domingos Dias Coelho.15 Ao todo foram levantados quatorze documentos envolvendo questões de bens religiosos, destes eram nove Requerimentos, duas Cartas, uma Representação, uma Certidão e uma Petição conforme disposto na tabela abaixo. Tabela 1: Documentos de Bens Religiosos em Sergipe (1722-1796) Autoria Jesuítas

Tipologia Representação

Ano 1722

Moradores (Jesuítas) Escrivão

Requerimento

1727

Certidão

1729

Padre Padre Vigário Padre Vigário

Petição Requerimento Requerimento Requerimento Requerimento

1723 1736 1741 1743 1744

Padre

Requerimento

1748

Pároco

Carta

1761

Moradores

Requerimento

1777

Licenciado

Requerimento

1784

Juiz e Oficiais da Câmara Padre e Sargento

Carta

1787

Requerimento

1796

Assunto Licença para fundação Hospício Instalação de Hospício

de

Salários de Irmandades e igrejas destinados ao Provedor e Escrivãos Obras na igreja matriz Obras na Capela mor da matriz Término da construção de igreja Construção de uma igreja maior Obras da igreja Esmola para construção de Capela mor de igreja Esmola para obra de igreja matriz Auxílio para Capela mor de igreja matriz Licença para erguer igreja em engenho Esmola para reparo na Capela

Divisão de terras e engenhos herdados Fonte: Dados do Arquivo Histórico Ultramarino - AHU (Sergipe)

Lugar São Cristóvão Sergipe del Rey Sergipe del Rey

Sergipe del Rey Sergipe del Rey Sergipe del Rey Sergipe del Rey Vila Real de São Francisco Sergipe del Rey Vila de Itabaiana Nossa Senhora do Socorro Sergipe del Rey Vila de Santo Amaro das Brotas Sergipe del Rey

Fora do conjunto documental do AHU-SE, estão os Autos da Capella de Nossa Senhora da Ajuda da povoação de Itaporanga, integrando o inventário de bens religiosos e os Testamentos sob a guarda do Arquivo Geral do Poder Judiciário do Estado de Sergipe (AGPJSE) que auxiliam a compreensão da regularidade de doações materiais para ordens, irmandades e igrejas. Os Autos da Capella de Nossa Senhora da Ajuda da povoação de Itaporanga, datados de 1798, administrado pelo Brigadeiro Domingos Dias Coelho Mello, proprietário

15

AHU-SE. Inventário nº 457, Caixa 08, Documento nº 45, de 18 de janeiro [Ant.1796], Sergipe del Rey.

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do engenho da mesma povoação, compõem documentos referentes aos bens religiosos da Capitania de Sergipe Del Rey pela Provedoria-mor da cidade de São Cristóvão. No documento há um detalhamento dos bens religiosos: a imagem de Nossa Senhora com uma coroa de prata e adornos em ouro, seis escapulários pequenos e maiores, um jogo em prata, dentre outros.16 Data de 04 de outubro de 1790, o Testamento de Escolastica de Almeyda de Mendonça, de São Cristóvão, no qual deixa dinheiro à Igreja de Nossa Senhora do Socorro, além de esmolas para a Ordem Terceira de São Francisco.17 Já Francisco Jozé de Santa Rita, em Testamento de 17 de junho de 1794, também de São Cristóvão, afirma querer ser enterrado no Convento de Nossa Senhora do Carmo, onde era irmão terceiro, e ordenou aos testamenteiros que fizessem uma festa para Nossa Senhora da Conceição na sua fazenda, deixando a quantia de açúcar branco correspondente ao peso de dois escravos para o Senhor do Bom Jesus do Bomfim da Capela de Nossa Senhora da Glória.18 O Testamento de Maria Telles da Silva e Menezes, de 19 de outubro de 1774, de Vila Nova Real D´El Rey do São Francisco, deixava dinheiro para Nossa Senhora do Rosário e Santo Antônio.19 Antonio de Almeida Doria, em seu Testamento de 18 de abril de 1778, de Vila Real de Santa Luzia, deixava dinheiro para Nossa Senhora dos Campos, entre outros bens.20 Enquanto Verissimo Pereira de Lima, em seu Testamento de 27 de agosto de 1785, de Vila Real de Santa Luzia, deixava dinheiro à irmandade de Nossa Senhora do Amparo.21 O Capitão José Antonio Borge de Figueredo, no Testamento datado de 23 de abril de 1786, de São Cristóvão, deixava dinheiro à Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Comandaroba.22 Além dos casos relatados, outros testamentos evidenciam a preocupação de seus testadores com “vontades de caráter religioso” que em grande parte referem-se à doação de esmolas para caridade de pobres assistidos pelas igrejas ou a oferta de missas mensais,

16

Ref. Cx: Bens Religiosos, fólio 08, 08 de julho de 1798, Itaporanga (AGPJSE). Ref. Arq: SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 01 - pp. 33-43 (AGPJSE). 18 Ref. Arq: SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 01 - pp. 49-58 (AGPJSE). 19 Ref. Arq: SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 03 - pp. 67-74 (AGPJSE). 20 Ref. Arq.: SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 04 - pp. 14-21 (AGPJSE). 21 Ref. Arq: SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 04 - pp. 177-186 (AGPJSE). 22 Ref. Arq.: SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx.62 - Lv. 07 - pp. 01-09 (AGPJSE). 17

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semestrais, anuais e mesmo perpétuas em memória do falecido, deixando dotação orçamentária para os serviços religiosos. Em alguns casos, a doação de terras está condicionada à manutenção das missas periódicas de longa duração no tempo. No que diz respeito às dívidas, há um Testamento não identificado, de 1770, de um português, filho de Manoel Pereira Mendes e Maria Vieyra de Lemos, da Vila de Nossa Senhora da Piedade do Lagarto, que confirmou ter dívida junto à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.23 Ainda o Padre Manoel de Afonseca de Araújo, em Testamento de 19 de julho de 1771, listou como credora a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Lagarto.24 No caso das dívidas assumidas em testamento, usualmente a igreja provia uma representação “sob júdice” para que as mesmas fossem quitadas com a venda dos bens arrolados no documento. Entretanto, muitas vezes havia morosidade ou malogro da cobrança, uma vez que a família contestava a dívida do falecido alegando terem estas sido “enterradas com o morto”. Da Santa Casa de Misericórdia e suas dívidas Em 1498, a Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia foi criada em Portugal por Dona Leonor, irmã de D. Manuel, sob a influência do frei Miguel de Contreiras. Eram quatroze obras de caridade em torno das quais se organizava a irmandade, sete espirituais e sete corporais, inspiradas pelo Evangelho segundo São Mateus (Gandelman, 2001, p.614). O patrocínio régio possibilitou a disseminação da Santa Casa pelo império português, tornando-se a irmandade leiga com maior poder e expressão no desempenho das obras de caridade. As Misericórdias do Rio de Janeiro e da Bahia foram vitais ao projeto colonizador português. Por isso, salienta Maria Luiza Marcílio (1998, p.147) que “a História da colonização brasileira está ligada à história das santas casas de Misericórdia”. Em termos quantitativos, segundo Isabel dos Guimarães Sá (1995, p. 100), antes de 1750 já havia, além das várias Misericórdias em Portugal, onze nas ilhas de Açores e Madeira, três em Angola, vinte e nove por toda a Ásia e dezesseis somente no Brasil.

23 24

Ref. Arq: SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 02 - pp. 01-06 (AGPJSE). Ref. Arq: SCR/C.1ºOF. Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 02 - pp. 42-57 (AGPJSE).

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Em Sergipe Del Rey a Santa Casa da Misericórdia foi criada no início do século XVII, entrando em progressiva decadência no século XIX e sendo ocupada pelo Lar Imaculada Conceição a partir de 1911. Fundada em 1590, a Capitania de Sergipe Del Rey surgiu com a necessidade da expansão dos mercados das capitanias da Bahia e Pernambuco, entretanto: A fundação da Santa Casa de Misericórdia de São Cristóvão, da capitania de Sergipe D’El Rey, não ocorreu no século XVI, como faz pensar Anchieta e Jabotão. É possível identificar sua criação entre 1607, quando a cidade se estabelece no monte Una, a esquerda do Rio Paramopama, e 1626, ano em que Baltazar Barbunda solicita via testamento sua inumação na capela Santa Isabel, orago da instituição. Dentre seus benfeitores figuram Belchior Dias Moreya e seu filho, Rubélio Dias Moreya, o capitão-mor Antônio Pinheiro de Carvalho, seu provedor Cosme Barbosa e o próprio Balthazar Barbunda (Silva Filho, 2011, p.143).

No Requerimento de julho de 1732, o Provedor Pedro da Silva Daltro e outros irmãos da Santa Casa de Misericórdia, da cidade de São Cristóvão de Sergipe del Rey, solicitavam ao Rei[D. João V], em mercê e esmola, a Provisão de Proteção que se costumava dar às Casas de Misericórdia.25 Isso porque, ao não ter compromisso aprovado, a Santa Casa de São Cristóvão foi alijada dos privilégios financeiros e jurídicos garantidos pela Coroa as Misericórdias do reino (Russel-Wood, 1981, p.13-14). A justificativa para a exclusão pode ser verificada na carta enviada ao Rei em 11/04/1733 pelo capelão da Santa Casa de São Cristóvão, Padre Gonçalo Pinto. O relato expõe a situação caótica da instituição, com bens desviados pelos próprios irmãos cuja manipulação das eleições da mesa permitia o revezamento na dilapidação do considerável patrimônio.26 Conforme afirmou Nunes (1996, p.251): Os sócios que integravam a instituição estavam entre as pessoas mais representativas da sociedade sergipana, destacando-se a participação de prósperos negociantes. Crises financeiras provenientes da atuação de maus administradores passaram a dificultar a Santa Casa no exercício de suas finalidades.

Em 1734 foi submetida uma Representação da Santa Casa de Misericórdia da Capitania de Sergipe del Rey, solicitando ao Rei [D. João V], que fosse atendido o

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AHU-SE. Inventário nº 254, Caixa 04, Documento nº 41, de 22 de julho [Ant.1732], Bahia. AHU-SE. Inventário nº 269, Caixa 04, Documento nº 62, de 15 de abril de 1733, Sergipe del Rey.

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requerimento de 1727, referente ao privilégio de proteção Real que era dado as demais casas de misericórdias.27 Em 1762 um novo Requerimento, do Provedor e Irmãos da Santa Casa de Misericórdia da Cidade de Sergipe del Rey, foi enviado ao Rei[D. José I] solicitando os mesmos privilégios que gozava o Hospital Real da corte e a Igreja da Misericórdia da Bahia.28 Data de 1763, o momento em que a Bahia deixava de ser capital do Brasil colônia, sendo substituída pelo Rio de Janeiro. Todavia a questão política ainda era confusa, pois as pessoas nomeadas pelo Rei para exercício de funções administrativas ainda estavam subordinadas ao governo baiano e não ao Vice-Rei. As indicações, entretanto, sofrem pressões locais em Sergipe e as contendas com a Bahia se acirram nas disputas pelo poder (Nunes, 1996, p.115). Isso pode explicar ainda a subordinação da Santa Casa sancristovense à instituição congênere de Salvador. Essas solicitações contínuas, via Requerimentos e Representações, evidenciava a tentativa de ascender a Santa Casa de Misericódia sergipana aos benefícios concedidos à instituição baiana e suas similares em outras geografias. Os recursos eram necessários para a manutenção dos serviços e também para uma certa autonomia. Apesar da complexidade dos problemas que enfrentava a Santa Casa da Misericórdia sancristovense prestou serviços de saúde junto aos ricos e pobres, contando assim com as doações, os juros de empréstimos, foros de terras e legados pios (Silva Filho, 2001, p.144). As Misericórdias eram canais para participação efetiva de leigos na vida religiosa. A iniciativa dos moradores tornaram as Santas Casas de Misericórdia “hospitais, orfanatos, bancos, lugares de reunião e de assistencialismo para os mais diversos casos da vida comunitária” (Nunes, 1996, p.250). No final do setecentos, em 1799, Antônio Pereira de Magalhães Paços, Ouvidor da Comarca de Sergipe, escrevia à Rainha D. Maria I informando-a que a má administração da Misericórdia estava afastando homens nobres e antigos do serviço em prol dos pobres da cidade, uma vez

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AHU-SE. Inventário nº 279, Caixa 05, Documento nº 05, de 15 de julho [Ant.1734], Sergipe del Rey. AHU-SE. Inventário nº 416, Caixa 07, Documento nº 63, de 15 de março [Ant.1762], Sergipe del Rey.

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[...] que da ausência de fiscalização ao funcionamento da Santa Casa resultava a corrupção no gerenciamento do seu patrimônio pelo tesoureiro, eleito pela Mesa Diretora. Este, embora sem remuneração, era o responsável por sua administração, inclusive a manipulação de bens (Nunes, 1996, p.252).

O Ouvidor Antônio Pereira ainda relata que dentre os bens da Santa Casa existia uma grande quantidade de terras chamadas de Outeiro, deixadas em testamento em 1705 – quando houve um declínio do valor das terras – avaliadas em um conto e seiscentos mil réis. Os Mesários venderam as ditas terras, em 1758, por setecentos mil réis, deixando à Casa a obrigação de pagar seis mil réis por ano e em realizar missa de Natal de dote de uma Ermida.29 Nesse caso, percebe-se que é a própria Santa Casa de Misericódia – na figura de seus Mesários – que contrai além do débito monetário, uma dívida espiritual com um benemérito que havia feito a doação de terras em troca de missas de Natal perpétuas em sua ermida. Ao longo do oitocentos, a má arrecadação, as dívidas, a desorganização na contabilidade, a ingerência administrativa e a apropriação indébita do patrimônio da Santa Casa da Misericórdia constituíram um problema para a saúde pública em São Cristóvão. Havia pendências do hospital no tratamento dos necessitados e do cemitério no enterramento de seus filiados. Tal situação levava ao descrédito sistemático da instituição mesmo por aqueles que procuravam seus leitos e serviços, uma vez que viam a Santa Casa como uma “zona de corrupção, passatempo de flagelado, lugar de passamento”. Possuía um extenso rol de devedores, dentre os quais muitos senhores de Engenho da Província de Sergipe, com seus nomes anunciados, ao longo do oitocentos, no Correio Sergipense. Mesmo com os percalços financeiros, o hospital de caridade manteve-se em funcionamento, assim como a capela e o banco de empréstimos, até o século XIX quando fechou suas portas. O Ministério dos Negócios do Império assumiu para si a “missão de reavaliar e moralizar as santas casas” no quadro da reforma política e econômica que se implantava no país.

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AHU-BA. Documento nº 20.795, de 26 de abril de 1799.

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Considerações Finais Ao pesquisar o patrimônio cultural material sacro do centro histórico de Sergipe, notabilizou-se o conjunto formado pelos bens construídos pelas ordens religiosas católicas que se radicaram em São Cristóvão. Fixaram-se na cidade os religiosos Jesuítas (1597), Capuchinhos (1603), Carmelitas (1618 ou 1619), Beneditinos (1693) e por fim, os Franciscanos, que se tornariam proprietários de terras, gados e engenhos (Freire, 1977). Igualmente o orfanato Imaculada Conceição, o Convento do Carmo, além das igrejas de São Francisco e da Ordem Terceira de São Francisco, da Misericórdia, da Matriz de Nossa Senhora da Vitória, de Nossa Senhora do Carmo, da Ordem Terceira do Carmo (Senhor dos Passos), de Nossa Senhora do Amparo, do Rosário e o Museu de Arte Sacra, são monumentos que compõem o acervo sacro do centro histórico (Abadia; Barroco, 2012, p.526). Todavia, várias outras igrejas e capelas – em São Cristóvão e adjacências – chamam a atenção por serem arroladas como beneficiárias de doações testamentárias, ou serem motivo de requerimentos e súplicas para reformas, construção e manutenção de suas atividades religiosas. Herdeiro da tradição judaica, o cristianismo sempre ensinou a seus fiéis um caminho de duas mãos para se conseguir a perfeição espiritual e o tão almejado galardão no Reino dos Céus: de um lado, o exercício individual e privado de atos de piedade e comunicação mística direta da criatura com Deus Nosso Senhor; do outro, a prática pública e comunitária dos sacramentos e cerimônias sacras (Mott, 2005, p.156).

Mas, em Sergipe del Rey essa dualidade assume também outra dimensão, pois entre a “cidade de Deus” e a “cidade dos Homens”, parafraseando a obra de Santo Agostinho, se encontram o dom da caridade e o pecado da corrupção e das dívidas. Assim como estavam Abel e Caim, nascidos do mesmo pai, com vontades radicalmente distintas (Coelho, 2012, p.122), também eram leigos e religiosos de Sergipe del Rey pessoas divididas em suas práticas. Estudos sobre as Santas Casas da Misericórdia em Portugal e no Brasil são abundantes, destacando-se no caso brasileiro aqueles voltados para o Rio de Janeiro e a Bahia. Em Sergipe, as pesquisas em torno da Misericórdia sancristovense limitaram-se à uma monografia de autoria do historiador José Thiago da Silva Filho (2000) e alguns artigos que tratam dos aspectos turísticos contemporâneos difundidos pelo turismólogo Ivan Rêgo Aragão (2011). A maior parte dos escritos sobre São Cristóvão detém-se em sua 69

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religiosidade (festa do Senhor dos Passos), na cultura imaterial (os bricelets e as queijadas) e no estudo arquitetônico da praça São Francisco (Governo do Estado de Sergipe, 1980). Isto posto que talvez, a disseminação dos nomes dos endividados – oriundos de famílias prestigiosas em Sergipe del Rey – maculasse as genealogias de exaltação que mormente têm marcado a historiografia local. E ainda há a questão dos bens materiais da Santa Casa cujo destino ainda se encontra obscuro: foram enviados para a Santa Casa da Bahia, à qual era subordinada, para integrar seu acervo? Ficou em Sergipe del Rey, tendo sido apropriados por seus devedores? O historiador Jacques Le Goff (1996, p.26) aponta para a “relação nunca acabada entre presente e passado”, enfatizando o papel da história no esclarecimento da memória, na retificação de seus erros, mas com atenção aos aspectos de seletividade e filtros do “pensamento simbólico”. Por isso, ao tratar dos bens religiosos católicos e evidenciar os “pecados dos homens”, mostra-se também o lado demasiadamente humano sujeito à falhas e fraquezas, bem como as boas intenções e ações que serviram sobretudo para manter firme e duradoura a fé e a religião em meio à tantos tropeços.

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