Bezerra da Silva: muito além de mocinhos e bandidos

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ETAPA IV Apoio ao professor

Muito além de mocinhos e bandidos O que se poderia apreender do projeto político-discursivo de Bezerra da Silva – que dá voz aos seus pares que a ela não têm acesso, senão, por seu intermédio – é uma verdadeira chamada à disputa em torno da posição social dos “regimes de verdade”

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rovando e comprovando a versatilidade dos mecanismos de dominação que nos envolvem, Bezerra da Silva (1927-2005) é hoje uma figura facilmente apropriável, para os mais diversos fins comerciais. Uma espéFernando cie de patrono lendário da causa da legalização dos Pedrazolli Filho entorpecentes (sobretudo a maconha, composto é mestre em Sociologia. remotamente aparentado à cannabis sativa, que se encontra em qualquer esquina). A imagem de Bezerra, deslocada de seu contexto, estampa camisas, bótons e memes. E vende. Menos que a erva, é evidente, mas vende muito. Ao mesmo tempo em que serve à causa da legalização, o conteúdo crítico radical da obra interpretada por ele é convenientemente esterilizado, tornando-o uma figura estraRobson nha. Assim, a causa da legalização, a despeito de Gabioneta sua retórica em nome da liberdade – de um tipo é mestre em muito específico, egótico e consumista, contrário Filosofia pela à luta imprescindível e radical de diversos coletivos Unicamp e antiproibicionistas – acaba, por fim, reivindicando o professor de aumento ainda maior do poder opressivo, vigilante Filosofia em e controlador do Estado. Nada mais radicalmente Itupeva. oposto à visão de mundo ­insistentemente cantada www.portalcienciaevida.com.br •

Lucas Salvador Andrietta é mestre em Economia Social e do Trabalho.

Thiago Fernandes Franco é mestre em História Econômica.

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Há na obr a de Bezerr a da Silva a afirmação de uma verdade assentada nos pontos de vista dos oprimidos

por Bezerra da Silva, que, provando e comprovando a sua própria versatilidade, ainda tem muita bala na agulha desse rifle. Além de ser o cantor de Vou apertar, mas não vou acender agora, Bezerra também – e, defendemos, principalmente – proclama “eu sou eu, partideiro indigesto e sem nó na garganta, defensor do samba verdadeiro que nasce do povo fonte de inspiração”. Sobre a injusta fama que lhe imputavam, refutou: “dizem que eu sou malandro cantor de bandido e até revoltado, somente porque canto a realidade de um povo faminto e marginalizado. Na verdade eu sou um cronista que transmito o dia a dia do meu povo sofredor, dizem que eu gravo música de baixo nível porque falo a verdade que ninguém falou”. Mas como, afinal, é possível apreciar a visão de mundo expressa por ele ao longo de sua carreira? É evidentemente uma tarefa comple46 •

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xa que deve começar com o que ele disse sobre si próprio.1 A primeira e mais importante questão é o necessário deslocamento de uma perspectiva personalista para a compreensão do lugar de origem do seu discurso. Toda a obra musical de Bezerra da Silva – incluindo sua crítica à criminalização das drogas – não se baseia no direito de consumo do indivíduo, mas na consideração do que representa a repressão e a proibição. Mais que isso, sobre quem essa repressão recai de forma contumaz e violenta. Esse ponto será retomado, mas não sem antes levar a questão do deslocamento de perspectivas à sua radicalidade, reivindicada e exigida pelo próprio cantor, que sempre recusou o papel que o mercado fonográfico tentou lhe impor. Na contramão, sempre enalteceu a figura costumeiramente negligenciada do compositor, conforme insistiu em muitas entrevistas e eternizou cantando: “a razão do meu sucesso não sou eu nem é a minha versatilidade, é que eu gravo com uma pá de pagodeiros que são compositores de verdade”. Conforme documentado no imprescindível Onde a coruja dorme, José Bezerra da Silva foi um compositor esporádico que escolheu para interpretar abaixo de sua inseparável boina o personagem “porta-voz das favelas”; seu “embaixador”. Mas não gravava qualquer tema. Do contrário, foi perito em escolher um tipo muito peculiar de assuntos para compor seu repertório e invariavelmente escolhia seus compositores entre seus pares favelados: pedreiros, serventes, mecânicos, camelôs, bombeiros, carteiros, coveiros e até policiais. Deste modo, o discurA verdade, já dizia Foucault, é algo em constante disputa. Bezerra e seu povo percebem isso. Para Foucault, mais primordial e mais legítima verdade é a condição de falar sobre si próprio, o poder de se nomear, de falar do que lhe acontece, de falar da sua história.

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so para o qual Bezerra emprestou a sua voz e seu carisma é o discurso do próprio trabalhador do morro – frequentemente analfabeto ou semialfabetizado – que sofre na pele as misérias de uma sociedade injusta e desigual acirrada pelo enraizado preconceito – de cor, de raça, de origem – da dita “boa sociedade” que estigmatiza o pobre favelado. Segundo Bezerra, este trabalhador, por não ter direito de voz, dá expressão à sua visão de mundo em forma de samba. 2 Portanto, a questão essencial na apreciação do personagem que José criou para si mesmo é o entendimento – explicitado diversas vezes em sua obra e amplificado no supracitado documentário – de que ele tinha plena consciência da necessidade de contrapor ao discurso oficial o discurso dos próprios favelados – e ali, por ser parte essencial da realidade do morro, a questão do tráfico se impôs como tema. Conforme Bezerra da Silva foi consolidando a sua posição no mercado fonográfico (com ótimas vendagens de disco e grande reprodução radiofônica), a articulação de um discurso contra o preconceito que sofrem os favelados e as bases absurdas das acusações contra eles se tornaram ainda mais claras (e um número ainda maior de compositores se empenhava em escrever para ele gravar).3 Assim, é possível verificar em sua obra a afirmação de uma verdade assentada nos pontos de vista dos oprimidos pela “sociedade”, pela “mídia” e pela polícia. Dessa forma, canta que “não é marginal e eu assino embaixo, doutor, por minha rapaziada, somos crioulos 2 O samba, embora hoje tenha sido colocado como uma espécie representante da música brasileira, naquele momento ainda é uma linguagem forte somente no eixo Rio-São Paulo. Noutros lugares, como a Recife de Bezerra, outras linguagens, como o coco, representam para o povo do lugar o que o partido-alto representa para paulistas e, sobretudo, cariocas. 3 Sobre isso, ouvir É esse aí que é o homem.

do morro, mas ninguém roubou nada, isto é preconceito de cor (vou provar ao senhor)”. Nesta mesma música, desenvolve o argumento: “por que é que o doutor não prende aquele que só faz mutreta e só anda de terno, porém o seu nome não vai pro caderno, porque a lei só é implacável pra nós favelados e protege o golpista, ele tinha que ser o primeiro da lista”. O samba contr a o preconceito A articulação entre preconceito, má-fé dos veículos de mídia oficial e a repressão policial – instrumentos de um sistema de dominação hierarquizado que oprime, seletivamente – se mostra em todos os seus elementos de forma cristalina, em Bezerra, refutando qualquer possibilidade de discurso que possa ser feito sobre a “ingenuidade” do favelado. Vejamos: “Se vocês estão a fim de prender o ladrão/Podem voltar pelo mesmo caminho/O ladrão está escondido lá embaixo/Atrás da gravata e do colarinho/Só porque moro no morro/A minha miséria a vocês despertou/A verdade é que vivo com fome/Nunca roubei ninguém, sou um trabalhador/ Se há um assalto a banco/Como não podem prender o poderoso chefão/ Aí os jornais vêm logo dizendo que aqui no morro só mora ladrão/(...)/ No morro ninguém tem mansão/ Nem casa de campo pra veranear/ Nem iate pra passeios marítimos/E nem avião particular/Somos vítimas de uma sociedade/Famigerada e cheia de malícias/No morro ninguém tem milhões de dólares/Depositados nos bancos da Suíça”. O “produto importado lá de Bogotá é vendido pra elite, classe média, alta e baixa e também pra favela, portanto, não é de encalhar e tem que vir de navio ou então de avião pra poder chegar aqui”. A metralha-

O comércio ilegal de drogas reafirma a discriminação cometida contr a a população das favelas sem reconhecer que este é um negócio de proporções tr ansnacionais dora vem de Israel ou da Suíça. Então, coloca em xeque o discurso de que os – únicos – responsáveis pelo crime organizado são os pobres e analfabetos moradores da favela. Quem opera essa “logística” e quem lucra com ela?4 Assim, o tema do comércio ilegal de drogas reafirma a discriminação que a sociedade e a justiça cometem regularmente – e, pode-se dizer, institucionalmente – contra a população das favelas sem reconhecer que o tráfico de drogas é um negócio de gigantescas proporções transnacionais e mobiliza recursos completamente fora do alcance de qualquer traficante “local”. “Por que é que ninguém mete o grampo no pulso daquele colarinho branco?” A pergunta é rigorosamen-

te retórica. Qualquer oprimido sabe bem que o que legitima a ação da polícia contra ele é o seu próprio estatuto de oprimido. Dialogando com questões que vão e vêm no debate midiático e político, o compositor, na voz de Bezerra, já perguntava, severamente: “Pra que pena de morte, doutor? Essa ideia é que me consome, se o filho do pobre antes de nascer já está condenado a morrer de fome (...) vê se toma um chá de semancol e colabora para o meu Brasil Novo, ao invés da pena de morte, faça uma lei pra ter pena do povo”. Atualmente, a disputa em torno da redução da maioridade penal não é inédita, e para o bem da verdade, é mesmo mais tênue do que sua antecessora, a pena de morte.5

Ver Onde a coruja dorme, 2000 e Notícias de uma guerra particular, 1999.

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O que não significa que não deva ser contestada, combatida e impedida.

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Algumas de suas músicas deixam ­extremamente clara a consciência de que políticas supostamente radicais como essas – infladas todos os dias por programas sensacionalistas – são eminentemente racistas. “Quando o colarinho branco mete os rifles sem dó nos cofres da nação o senhor não condena ele à morte e também não lhe chama de ladrão”. Mas o discurso que “a favela” produz sobre ela mesma e, em especial, sobre a relação de opressão “do asfalto” com ela, atinge uma dimensão ainda mais profunda quando questiona os fundamentos da legitimidade do que é considerado um “crime”, entre os quais o tráfico de drogas assume mais uma vez o papel principal. Em um nível mais imediato, na mudança do código penal que – diante da dificuldade em lidar com a prisão de “gente importante” – separou “usuário” de “traficante” (o 281 foi afastado, o 16 [usuário] e o 12 [tráfico] no lugar ficou). Em outro, a incongruência da proibição de substâncias específicas (maconha, cocaí-

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na, crack, etc.) numa sociedade que tolera muitas outras (álcool, tabaco, ritalina, rivotril, etc.). No caso específico da maconha, Bezerra registrou, com Marcelo D2, canção na qual elenca os benefícios medicinais da planta (de sabidas e ancestralmente reconhecidas propriedades terapêuticas), e pergunta por que é que [somente] essa erva é proibida? Mais uma vez, a questão ganha profundidade quando assentada nas relações de poder que permeiam a atuação da polícia. Os poderosos nunca são tratados como os pobres favelados. O pobre favelado, tratado com violência desproporcional depois de ser autuado em flagrante, questiona ao delegado por que com os ricos a conduta da polícia é diferente, ao que o doutor lhe responde: “Leonardo é Leonardo/ Me disse o doutor/Ele faz o que bem quer/E está tudo bem/Infelizmente é que/Na lei dos homens/A gente vale o que é/E somente o que tem”.6 Ouvir também a canção Com dinheiro, tudo bem, em que filosofa-se sobre o papel do dinheiro, equivalente universal – para Marx – em nossa sociedade.

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Em teoria, a diferença entre o enquadramento no art.16 e no art.12 deveria ser a quantidade de droga apreendida, mas como o próprio delegado revela, mesmo só tendo “dado 2”, o pobre favelado será enquadrado como traficante. A definição entre o legal e o ilegal é, mais uma vez, arbitrária. A discriminação de quem é ou não um criminoso acontece de duas maneiras. Por um lado, reprimindo pesadamente o morador da favela, pra quem “quando os homens da lei grampeiam, o couro come toda hora” e vira rotina tomar da polícia um “sacode regado a tapa, pontapé e pescoção”. Por outro lado, aliviando a execução da lei para aqueles que estão imunes a ela como na história do policial que “quase perdeu a patente, só porque grampeou um rapaz que tinha as costas quentes”. Nesse universo de sentido, o pobre, identificado como favelado, é duplamente estigmatizado: primeiramente, pelo simples fato de ser pobre, que – numa sociedade com fortes resquícios aristocráticos – é sinônimo de incapaz ou desclassificado; e, também, por carregar consigo o estigma generalizado da violência e do crime. “O pobre paga pelo crime dos ricos”, diz Bezerra, que denuncia em

O Estado deveria gar antir os interesses comuns, mas atua como um mecanismo de opressão de classe, destinado a negar a igualdade que ele mesmo promete suas canções justamente essa situação “marginalizada” do pobre, leia-se favelado. Ao denunciar essa situação, ele está do lado de quem defende que a injustiça social causa a pobreza, e não o contrário.7 Outro importante episódio narrado por Bezerra envolve uma “peça de defesa” no julgamento sobre uma suposta cobrança de pedágio por parte de traficante que dominava o Morro do Juramento. Segundo o Estado, a cobrança de tarifa é seu monopólio, e a cobrança por “terceiros” é ilegal. Mas o “advogado” de defesa interpela o juiz em favor do acusado: “meu bom doutor, o morro é pobre e a pobreza não é vista com franqueza nos olhos desse pessoal intelectual, buscando um jeito de ajudar o pobre, quem quiser cobrar que cobre, pra mim isso é muito legal”. Quem determina a fronteira entre legal e ilegal?8 Quem aos olhos do Estado é um criminoso, lá morro é rei, coroado pela gente. Enquanto a “boa sociedade” e a “Justiça” comemoram a condenação, sua comunidade fica triste e chora de dor, sabendo que sem o seu benfeitor, as condições de vida pioram ainda mais.9 A quem interessa a lei sobre a cobrança de tarifas de pedágio se “lá na minha bocada ninguém paga pedágio, a malandragem é quem paga pra gente passar, nossos filhos vão pra escola com todo o material que o sangue-bom compra e dá pra

criançada, é aí que eu me pergunto o que seria de mim se não fosse a ajuda da rapaziada?” Porque o “pobre não é bobo e sabe que o candidato caô só visita o morro quando é tempo de eleição, chega dando beijos e abraços, tapinha nas costas e aperto de mão, mas depois que se elege emprega os seus parentes e para o pobre favelado ele não faz nada. Estado e máfia parecem não se diferenciarem tanto aos olhos dos pobres favelados”, seja pela violência que sofrem por parte de ambos, seja pela real associação que existe entre eles quando se fala em crime organizado, cartel das drogas, tráfico, etc. – associação que pode muito bem ser apreendida na figura do “policial corrupto”. Daí certa flexibilidade de julgamento moral de seus compositores (trabalhadores, moradores da favela) que torna impossível de se responder à pergunta: quem é melhor, Estado ou traficante? O Estado supostamente deveria garantir os interesses comuns (Commonwealth), mas na realidade atua como um mecanismo de opressão de classe, destinado a negar a igualdade que, em sua forma burguesa, ele mesmo promete.10 Para tanto, precisa expandir seu poder ilimitadamente e organizar seletivamente os grupos sobre os quais a violência recai. Sendo assim, a única saída racional para os oprimidos é a violência.11

Sugestão de leitura: A. Zaluar: A máquina e a revolta. Sugestão de Leitura: A. Cândido. Dialética da malandragem. 9 Thomas Hobbes foi o primeiro a defender a transferência do monopólio da violência para o Estado. Para ele, a “guerra de todos contra todos” é o que caracteriza uma sociedade em que a violência não é limitada por meio de um contrato social.

10 Sugestão de Leitura: O Leviatã, de T. Hobbes, e As origens do totalitarismo, de H. Arendt [em especial sua crítica a Hobbes: “Hobbes é, realmente, o único grande filósofo de que a burguesia pode, com direito e exclusividade, se orgulhar, embora os seus princípios não fossem reconhecidos pela classe burguesa durante muito tempo.” (págs. 207 e seguintes).] 11 Sugestão de Leitura: H. Arendt, Da violência. pág. 39.

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No caso das favelas contemporâneas, surgiram empresas armadas que se financiam vendendo drogas ilegais e outros “produtos” (gás, TV a cabo e tantas outras). É claro que a atuação de traficantes, em qualquer comunidade, provoca, por si mesma, muitos atos de violência que afetam a vida de quem vive ali. A formação de facções – de traficantes e também de policiais – gera uma série de conflitos territoriais e de acertos de contas, onde “malandro toma eco de três oitão e vira presunto”. E, também, como nenhum negócio pode prosseguir sem certa estabilidade, a celebração de acordos. Afinal de contas, “esse morro é muito grande / vamos fazer um tratado / daqui pra baixo é seu / daqui pra cima é meu lado”. Porém, a realidade é muito mais dura e complicada. Faz menos diferença se quem manda é um traficante ou policial, do que a relação que essa rapaziada – este “poder paralelo” – estabelece com uma população completamente negligenciada pelo Estado. Em um mundo em que o homem só vale o que tem, o pobre sabe que “não vale nada e que é apenas um faminto operário de salário mínimo que tem mulher e filho e mora em casa alugada”. Para ele, a “ordem” da favela pode variar da tirania absoluta até uma rede de

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relações que garante, por exemplo, que a criançada vá pra escola com todo o material. No geral, embora Bezerra esporadicamente cante a voz do traficante e do policial, que tenta realizar seu serviço contra os poderosos, mas não pode, o lugar do seu discurso é o do trabalhador que mora no morro, espremido entre conflitos armados de um e de outro grupo: apenas mais um, com salário de fome. Vive na precariedade. Está sempre na iminência do despejo, da violência e da morte. Como pensar em “esfera pública” e Estado democrático em uma situação assim? Indo muito além da visão distante e moralmente binária de quem não está exposto a uma situação como essa, Bezerra registra as visões dessa gente para quem tanto o Estado quanto os traficantes são a face da violência. Mas em muitos casos os traficantes são também uma rede que oferece alguma proteção, ao passo que do Estado não podem esperar outra coisa que não o policial que atua de modo arbitrário e a justiça que, nessa hora, enxerga e protege o marajá. A ordem imposta pelo tráfico é opressiva, mas o Estado não oferece contra ela uma ordem republicana, mas, sim, uma ordem totalitária e, por isso, contra ela, a comunidade procura se organizar de modo ainda mais incisivo

É preciso contestar a ordem vigente e os valores da ideologia que hier arquiza e legitima a violência sobre determinados grupos sociais (vide os protestos contra os assassinatos arbitrários cometidos pelos policiais e pela luta por moradia especialmente no esteio das grandes remoções dos megaeventos esportivos).12 Nessa precariedade, não obstante, é onde surge a forte solidariedade que cimenta o sentido de comunidade – e nesse contexto o cagueta é a maior ameaça, punida com a morte. Se Deus desse asa à cobr a O problema é que a força das armas é extremamente poderosa e mantém a comunidade acuada. Mas a resistência também é grande, vigorosa e intensa e a comunidade continua fazendo barraco, batuque e festinha e dando vida às favelas. Não Sugestão de leitura: A sociedade contra o Estado, de P. Clastres.

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obstante, as cicatrizes de uma ordem violenta se fazem presentes de modo visível e a capacidade dos grupos subordinados, por meios violentos e com o respaldo das classes dominantes, criarem grupos ainda mais oprimidos (mulheres e LGBTs, por exemplo) parece infinita.13 Assim, é necessário refletir sobre como é possível pensar em alternativas não moralistas nem maniqueístas, mas que contestem a ordem vigente e os valores da ideologia que hierarquiza e legitima a violência sobre determinados grupos sociais desde as suas raízes. É importante que essa crítica incorpore a conclusão que Hannah Arendt (1906-1975) apresenta no final de seus estudos teóricos sobre a violência. Para ela, “A prática da violência, como toda ação, transforma o mundo, mas a transformação mais provável é em um mundo mais violento”,14 que faz eco com o recado do mestre, em um dos raros sambas-enredo por ele gravado: “Sou partideiro indigesto e tô aí de novo, esclarecendo ao meu povo a demagogia como é, violência gera violência, quem avisa amigo é, (...) veja quanta incoerência, o homem trabalhar na terra e sem terra pra morar, e o índio, ele está perdendo o seu chão, é governante usando forma de sofisma, pra ludibriar esse povão, (...) já é hora, de uma nova consciência, vamos dar um basta à violência, e fazer reinar a união”. 13 Sugestão de leitura: “Raça e Burocracia”, em Origens do Totalitarismo, de H. Arendt. 14 Da Violência, pág. 51

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