Bezerra da Silva: voz e produto do morro

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Reflexão e prática 99

encarte do professor

Só por que moro no morro? As ações das UPPs nas favelas cariocas e a legitimação da violência e da segregação social

Bezerra da Silva

Apontamentos sobre a desigualdade social a partir das músicas do artista pernambucano

Com curadoria de Carolina Desoti Fernandes e Tiago Brentam Perencini Carolina Desoti Fernandes é graduada em Filosofia pela PUC-Campinas e pesquisa o feminismo vinculado às manifestações tradicionais brasileiras. É professora, editora, redatora e produtora cultural. Tiago Brentam Perencini é licenciado e bacharel em Filosofia. Mestre em Ensino de Filosofia pela Unesp e professor de Filosofia Contemporânea na Faculdade João Paulo II de Marília.

Bezerr a da Silva: voz e produto do morro Por Fernando Pedrazolli Filho, Lucas Salvador Andrietta, Robson Gabioneta e Thiago Franco

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ezerra da Silva (1927-2005) é hoje um nome nacionalmente conhecido por seus sambas engraçados e cheios de trocadilhos sobre “drogas” ilícitas e “traficantes”. É difícil não reconhecer trechos de letras gravadas por ele como: “É cocada boa, não é... Só tem coca aí na geladeira... Se Leonardo dá vinte, por que é que eu não posso dar dois... Vou apertar, mas não vou acender agora...” Porém, o “Porta-voz dos morros” é muito mais do que isso e, se podemos perceber o humor em muitas de suas músicas, nem por isso podemos colocá-lo no time de outros tantos – como ele – migrantes “nortistas” que escolheram a profissão de palhaços para “vencer na vida”. Um certo tipo de humor que sempre carregou e um certo tipo de contestação dirigida Fernando Pedrazolli Filho é mestre em Sociologia. Lucas Salvador Andrietta é mestre em Economia Social e do Trabalho. Robson Gabioneta é mestre em Filosofia pela Unicamp e professor de Filosofia em Itupeva Thiago Franco é mestre em História Econômica.

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contra o moralismo e a ilegalidade das “drogas” ilícitas, quando comparadas à totalidade da sua obra, podem acabar por distorcer o personagem que Bezerra da Silva criou para si mesmo. Como registra o documentário Onde a coruja dorme, um personagem muito seletivo na escolha do repertório, que não canta o amor – “porque nunca tive” –, mas que “transmite o dia a dia do meu povo sofredor”. “Na verdade, eu sou um cronista”. Apesar do sucesso de seus sambas e dos milhões de discos vendidos, foi cunhado pela mídia como “cantor de bandido e até revoltado”. Sua obra, porém, é muito rica e pouco conhecida e, ainda, alvo de muitos preconceitos – os quais podem dizer muito sobre a realidade de certo ambiente cultural em que vivemos atualmente.

Etapa I: Bezerr a da Silva contr a o elitismo cultur al Atividade I:

imagens: shutterstock/divulgação

Carioquices de um pernambucano

José Bezerra da Silva nasceu em um bairro pobre da cidade de Recife (PE), no ano de 1927. Seu pai, um marinheiro mercante, abandonou a família deixando sua mulher ainda grávida e mudou-se para o Rio de Janeiro. Sua mãe, bordadeira, criou os filhos ( José e Vanda) com muita dificuldade. Assim, foi levado ao mundo do trabalho ainda menino, quando atuou em pequenos serviços de “carreto”, transportando água e bacalhau. Além das privações, teve muitos conflitos com a família, em especial com o padrasto, cuja autoridade não reconhecia. Uma grande parte desses conflitos se devia aos constantes flertes com a música – tida naquele tempo como coisa de “vagabundo”. Diante disso, aos 15 anos, José Bezerra, como era conhecido, tomou a decisão de migrar para o Rio de Janeiro atrás do pai. Ingressou na Marinha Mercante em busca de informações sobre seu paradeiro e tomou uma “carona” clandestina em um navio. Chegando lá, encontrou uma família formada e foi imediatamente rejeitado pelo pai. Viu-se então obrigado a encarar a nova cidade sem nenhuma rede de relações que o amparasse. Como para muitos outros migrantes, a mudança para o “sul” não significou para Bezerra o fim das privações e da exploração. Arrumou trabalho na construção civil e profissionalizou-se como pintor. Sem condições de pagar por moradia, dormia

Onde a coruja dorme é um documentário sobre os compositores que faziam músicas para Bezerra da Silva

nas próprias construções. Depois de alguns anos, mudou-se para o Morro do Cantagalo, onde viveu por mais de 20 anos. Lá, em meio aos relacionamentos frustrados com várias mulheres, fez amigos e conheceu o partido-alto, aparentado do repente nordestino que conhecia desde menino. Tocava tamborim nas rodas de samba em 1950 e, por meio de um amigo, conseguiu emprego temporário na Rádio Clube Brasil como ritmista. Dividia seu tempo entre a construção civil e a música, suas duas profissões. Nesse período, era conhecido pela valentia que demonstrava ao enfrentar os bandidos que cobravam “multa” dos trabalhadores que moravam no morro, conhecidos como “otários”. Como se não bastasse, foi detido pela polícia mais de 20 ve-

zes – “apenas” para averiguação. Atribuía esses fatos ao preconceito dos policiais contra sua origem negra e nordestina e se orgulhava do nada-consta que dizia que ele era um bom cidadão. Algum tempo depois, por volta de 1954, por não arrumar mais trabalho, virou morador de rua por um período de sete anos. Com um forte componente tragicômico – que se faz notar ao longo de sua obra musical – Bezerra diz que atingiu o auge da decadência ao ser rejeitado por semelhantes seus que dormiam na pedra do Arpoador, os quais o expulsaram depois que associaram a sua chegada com o fato de que, em sua primeira noite, todos foram atingidos por uma grande e inédita onda, ao que teve que ir embora todo molhado numa noite fria do Rio de Janeiro. Desenganado, tempos depois, quis ser preso para ter acesso a pelo menos uma refeição, mas não conseguiu. Ao ver-se sem mais solução, tentou o suicídio. Arrumou formicida e um copo, mas no ato de levá-lo à boca, relata que tomou um tapa que fez o copo voar de sua mão. Posteriormente viria a descobrir que o autor da “sabotagem” era seu guia Ogum, Caboclo Rompe-Mato, que tinha outros planos para o seu “f ilho”. Orientado por uma senhora do Cantagalo, foi ao terreiro Caboclo Junco Verde, de D. Iracema, e lá viu a imagem da mulher que ele havia magoado e que f izera um “trabalho” que o deixara naquela situação. Para se curar, converteu-se à umbanda, aprendeu os preceitos dessa religião e passou quatro anos trabalhando num terreiro. Tornou-se médium

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Exercício I:

Com Bezerra da Silva, o melhor dos partideiros, o artista tornou-se um autêntico produto do morro

e foi revelada sua vocação para a música. Curado, saiu de lá com as chaves de um barraco que um ­c onhecido lhe dera antes de voltar para o Nordeste. Ali, no Parque Proletário da Gávea, morou até o histórico e brutal despejo que expulsou as famílias residentes sob metralhadoras. Em 1965 teve sua primeira música gravada para o carnaval, pela cantora Marlene, em parceria com duas pessoas, sendo uma delas o dono da gravadora. Nesse período, foi ajudado por outro artista migrante, o já famoso Jackson do Pandeiro, que abriu o caminho da música para que Bezerra provasse e comprovasse a sua versatilidade. Somente em 1975, viria, finalmente, a gravar seu primeiro LP, Bezerra da Silva o Rei do Coco Vol. 1, no qual, seguindo uma longa tradição da música popular de improviso – disseminada entre par-

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tideiros, repentistas e rappers, por exemplo – se valeria dos primeiros versos para se apresentar ao público: “Balança o ganzá\ Segura o repente\ Cuidado cantor\ Não é banca nem vaidade\ É pura realidade\ O rei do coco chegou! \ Mas chegou sim!” Em seguida, assimilando um tanto da carioquice na qual vivia, passou a gravar, ainda sem muito sucesso, sambas de partido-alto de compositores anônimos dos morros que frequentava e lançou mais três discos. Já mostrando de onde vinha e qual era a sua proposta artística e o seu público, desenvolveu estratégias próprias de divulgação, sendo bancado pelas próprias comunidades (ou por bicheiros e traficantes “benfeitores” dessas comunidades) e fez shows em favelas e presídios. Como registra Letícia Vianna, em cuidadosa biografia: “Como intérprete

Bezerra da Silva era mais intérprete do que compositor. Percorria os morros cariocas à procura de compositores e sambas que pudessem fazer parte do seu exigente repertório. Há no texto diversos trechos que estão “entre aspas” que foram extraídos de canções gravadas pelo sambista. Identifique cada uma delas e pesquise, se possível: O nome da canção O álbum e o ano em que foi gravada O(s) nome(s) do(s) compositor(es) * Dica: utilize os sites do projeto Onde a coruja dorme e o Cliquemusic. A partir da pesquisa feita no exercício anterior, selecione canções que retratem o cenário e o cotidiano das favelas, mas gravadas com grande intervalo de tempo entre elas. Quais semelhanças e diferenças são possíveis identificar entre cada época? A vida retratada nas canções se alterou? O que mudou? Bezerra da Silva, ao longo da carreira, dedicou três canções para exaltar os nomes de cada uma das favelas cariocas. A trilogia das favelas é composta pelas canções Aqueles morros (1982), Saudação às favelas (1985) e As favelas que não exaltei (1987). Depois de ouvir as canções: Com a ajuda de um mapa da cidade do Rio de Janeiro (impresso ou no computador), marque a localização de todas as comunidades exaltadas por Bezerra da Silva. Como elas estão distribuídas pelo território? Considerando o cotidiano cantado em outras canções, o que este mapa pode nos dizer sobre a organização da cidade?

A trajetória de vida de Bezerra da Silva é um retrato fiel de como é vivenciada uma forma de opressão que caracteriza o elitismo cultural no Brasil

imagens: divulgação

Com Jackson do Pandeiro e para ele, Bezerra da Silva compôs e gravou discos tocando vários instrumentos

de compositores anônimos, achou para si, digamos assim, um filão mercadológico e o sentido político de sua arte”.1 Assim, em 1977, arriscou deixar a antiga profissão e viver apeVIANNA, L. Bezerra da Silva: Produto do morro. Zahar, 1998, pág. 33

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nas de música quando conseguiu seu primeiro emprego formal trabalhando como instrumentista na orquestra da Rede Globo, na qual tocou violão clássico e se destacou por ser um dos poucos ritmistas que sabia ler partituras. Em 1984, pediu demissão e foi tentar carreira como intérprete apostando no frágil sucesso que tinha feito até então. Em certo sentido, “deu certo”. Entre os anos 1978 e 1993 gravou 15 discos e profissionalizou-se como intérprete, assim como aprofundou sua relação com aqueles a quem sempre fez questão de enaltecer: os compositores de verdade. Vivia subindo os morros, com um gravador em punho, na busca de compositores: pedreiros, mecânicos, bombeiros, camelôs, enfim: “a favela”. Nesse período, esteve contratado pela RCA e apesar do sucesso nacional e da grande vendagem de discos (ganhou muitos prêmios, discos de ouro, platina e platina duplo), não teve grande retorno financeiro e sentiu na pele a dupla exploração (tanto a institucional quanto a explícita) exercida pela grande gravadora. Ao perceber as estratégias de rou-

bo da empresa, rompeu contrato em 1993. Depois disso, gravou mais alguns discos, sendo um deles, em 1994, com Moreira da Silva e Dicró, Os três malandros in concert, que ficou bastante conhecido. Nos anos 1990 e 2000, teve certo reconhecimento, até mesmo fora do mundo do samba, e teve músicas gravadas por artistas como Marcelo D2 e Frejat. Morreu em 2005, aos 77 anos, deixando uma vasta obra de mais de 20 discos gravados. Além do roubo de parte de sua remuneração por uma grande gravadora no seu período de maior sucesso, Bezerra ainda teve que dar troco. Fato típico de um país em que o “pobre paga pelo crime dos ricos”. Assim, enfrentou o preconceito em relação ao seu estilo de música, seja de setores do próprio mundo do samba, que não viam valor de excelência musical em sua obra, seja da mídia em geral, que o cunhou de maneira preconceituosa como “cantor de bandido”. Seu “Sambandido” – uma analogia negativa ao “sambalanço”, da época – remete àqueles que são designados como favelados e

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que não se resignam ao moralismo da cultura dominante. Apenas no fim da vida e postumamente sua obra foi reconhecida por valores positivos, que não mercadológicos, ainda que num meio muito restrito e que apropria-se

dela, na maioria das vezes, de forma exótica e acrítica às críticas que ele mesmo propunha. Hoje, a indignação coletiva e a criminalização que sofrem outros representantes de gêneros musicais oriundos das periferias, como os funkeiros e o

rappers – para quem Bezerra é, reconhecidamente, uma influência –, indicam que as formas de opressão material e cultural que caracterizam o elitismo cultural no Brasil pouco se alteraram e que Bezerra da Silva ainda tem muita lenha pra queimar.

Etapa II UPPs: veja bem, fique na sua e nem dê mancada Atividade II

Heróis ou vilões?

As Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) compõem um programa lançado pela Prefeitura do Rio de Janeiro no fim de 2008. A iniciativa foi planejada, coordenada e instaurada pela Secretaria de Segurança Pública e tem como eixo fundamental a atuação da polícia com o objetivo de “retomar permanentemente as comunidades dominadas pelo tráfico”. 2 Segundo seu plano inicial, utiliza-se dos mais modernos princípios de policiamento comunitário existentes, cuja estratégia se baseia na parceria entre a população local e as forças policiais. Mobilizando um grande contingente policial, sua retórica de guerra se fundamenta na existência de um inimigo definido, o tráfico, e na recuperação de territórios, o que possibilitaria ao Estado brasileiro reaproximar-se daquelas populações. Assim, transformar uma “cidade partida” numa “cidade inteira”. Conforme promete a colorida cartilha do programa, ilustrada por Ziraldo, os policiais seriam os primeiros a chegar, trazenAs informações oficiais sobre o programa podem ser acessadas no site da UPP: www.upprj.com.

O ajudante de pedreiro Amarildo de Souza desapareceu em julho de 2013 após policiais da UPP da Rocinha o levarem para uma averiguação. O caso gerou repercussão e protestos

do consigo, em seguida, aquilo que transformaria os habitantes desses territórios em verdadeiros cidadãos: “o direito de ir e vir, a educação, a saúde, a limpeza, a justiça, o conforto e mais segurança”. 3 Os resultados obtidos pelas UPPs até agora instauradas estão ricamente registrados e divulgados pela prefeitura do Rio, seja pela internet, seja a partir da frequente cobertura midiática. Porém, a despeito dos casos de sucesso reivindicados pelos responsáveis pelo programa, as UPPs se tornaram alvo de uma série de críticas e protestos.

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Ziraldo, Cartilha UPP: A conquista da paz.

Muitas críticas podem ser dirigidas à concepção das UPPs ou à maneira como foram inseridas, no contexto carioca. É comum, por exemplo, mostrar a correlação entre a sequência de “territórios” escolhidos e a localização dos bairros mais nobres do Rio, ou das áreas centrais para os megaeventos de que a cidade foi e será palco nos últimos anos e nos próximos. Esta crítica explicita a lógica da cidade-empresa, que redefine os rumos do planejamento urbano, não só do Rio de Janeiro, mas de todas as cidades com esse potencial. Também é bastante claro, anos depois do início do programa, que ele não cumpriu o objetivo mani-

festo de levar às comunidades a cidadania: dos bens e serviços públicos prometidos, pode-se dizer que apenas as bases avançadas da polícia – construídas e chamadas de contêineres – chegaram a todas elas. A existência de um aparato punitivo para controlar a população do Rio de Janeiro é baseada na premissa de que a favela é a origem de toda a criminalidade da cidade, o que não é absolutamente verdade. A ideia de guerra ao tráfico traz consigo uma situação de exceção. O Estado escolhe os alvos que, dado o contexto de confronto bélico, podem e devem ser exterminados. A situação excede a “lei interna” do Estado. Ao mesmo tempo, desumaniza o alvo, permitindo que ele seja morto sem “culpabilidade”, sem necessidade de investigação, sem o direito a reparações e justiça. A identificação do inimigo abstrato, o crime, que justifica a atuação pesada nas comunidades, foi potencializada por décadas de expansão do comércio de substâncias entorpecentes. Nos morros cario-

A morte de Eduardo, 10 anos, baleado por agentes da UPP do Complexo do Alemão, no dia 2 de abril de 2015, desencadeou uma série de protestos contidos violentamente pela polícia

cas rapidamente se estabeleceram os elos finais de um circuito produtivo e comercial que ultrapassa em muito as fronteiras das favelas. A guerra ao tráfico, componente tão essencial para a retórica das UPPs, falha duas vezes. Primeiro, porque não chega nem perto de cumprir seus objetivos, uma vez que não atinge – pelo contrário,

protege – “o ladrão que está escondido lá embaixo, atrás da gravata e do colarinho”, e que de fato controla o circuito de comercialização de drogas e o fornecimento do produto, do crédito e das armas necessárias para o funcionamento de seus pontos de venda na favela. Segundo, porque enquanto enxuga o gelo diariamente, a guerra

imagens: agência brasil

exercícios II

A trilogia das favelas de Bezerra da Silva é um viva à Sociologia do reconhecimento. Nela, como em toda a sua obra, Bezerra exalta um modo de vida que dá identidade a um grupo de pessoas, que ali se reconhece. Além disso, nessas três canções, ele nunca deixa de lembrar que, apesar de gostar de todos os morros, o seu é o Morro do Cantagalo. Olhando para o bairro onde você mora, responda: Quantas pessoas moram ali? Como é o dia a dia delas? O que você tem em comum com a sua vizinhança? O que você tem de diferente dos seus vizinhos? O que você faz no seu bairro? O que você faz fora dele? Por quê? Um dos elementos que ajudam a dar identidade a um grupo são as gírias que utiliza. Bezerra registrou muitas gírias utilizadas em seu tempo e seu lugar na música A gíria é a cultura do povo. Este texto e toda a sua obra estão repletos de gírias. Identifique as gírias utilizadas no texto.

Descreva o significado de cada uma. Escolha dez gírias mais utilizadas e investigue a sua origem. Você se considera parte de algum grupo ou comunidade? Quais gírias você e o seu grupo utilizam? Quais delas só o seu grupo utiliza? A obra de Bezerra da Silva dá pouco destaque para a violência sofrida por mulheres e LGBTs. Esse tipo específico de violência foi documentado em algumas das entrevistas contidas no documentário Santa Marta: duas semanas no morro, de Eduardo Coutinho. Depois de assistir ao documentário, discuta com seus colegas: Quem são essas pessoas? Como essa violência aparece? Quem a executa? Por quê? Há diferença no tipo de violência praticado contra migrantes, pobres e negros em geral? Procure canções do Bezerra em que a violência de gênero aparece.

A violência policial na cidade do Rio de Janeiro tem ganhado destaque nos últimos anos

alimenta e fortalece uma das polícias que mais matam no mundo, fato reconhecido por uma série de órgãos nacionais e internacionais, agências de notícias e grupos de direitos humanos. Em 2013, uma série de acontecimentos convergiu para que esse tema ganhasse destaque nacional. A maior exposição da cidade devido aos preparativos para a Copa do Mundo – antecedida pela Copa das Confederações – provocou um acirramento da estratégica pacificação que aglutinava os governos municipal, estadual e federal. A atividade das UPPs se intensificou no entorno das áreas

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cruciais para as obras de adequação da cidade ao “padrão-Fifa”. Ao mesmo tempo, o ano foi marcado, no Brasil todo, por uma escalada de protestos e manifestações contra a forma como os eventos estavam sendo encaminhados – o processo decisório, as imposições da Fifa, as remoções forçadas, os gastos com os estádios – que se incorporaram a outros temas que vinham mobilizando a população em torno da política urbana, como o custo dos transportes e a habitação. A maneira como o aparato policial agiu durante os protestos

revelou, para os holofotes nacionais e internacionais, um comportamento mais do que conhecido para grande parte da população pobre do Rio de Janeiro. Ficou explícito que as características que as polícias herdaram do passado e cultivaram nas favelas as tornaram instituições despreparadas para lidar com certos tipos de evento – frequentes em qualquer democracia –, como grandes manifestações de rua, que viraram palco de uma violação em série de direitos, em que prevalece a violência desproporcional e o abuso de autoridade. Foi nesse contexto que ganharam maior projeção, inclusive internacional, os crimes praticados pelos agentes das UPPs. O caso Amarildo – até onde indicam as investigações, um inocente assassinado pelos policiais da UPP da Rocinha – foi entre muitos o que teve maior repercussão, e desencadeou uma série de protestos. O desenrolar do processo judicial é muito ilustrativo do papel que os órgãos do Estado desempenham em blindar seus agentes e instituições, e também da conivência da mídia em difundir, até o último minuto possível, uma versão oficial que não era sustentada pelos fatos. Contraditoriamente, este caso serviu de estopim para a organização de diversos movimentos comunitários numa rede de diálogo para o enfrentamento da violência policial. Como afirma Carlos Eduardo Barbosa (Duda), o líder comunitário da Rocinha, o sentido de comunidade nasceu com a necessidade de construir e reconstruir em mutirões as casas levadas pela chuva no início da história da Rocinha. Como lembra Bezerra, “antes aqueles morros não tinham nomes / foi pra lá o elemento homem / fazendo barraco, batuque e festinha”. Agora, esse mesmo sentimento aglutina moradores em torno daquilo que mais os afeta, o combate ao medo permanente e o desejo de receberem o respeito que merecem.

imagens: shutterstock/divulgação

Etapa III Caso Amarildo, o estopim A negligência do Estado em fornecer direitos à população que habita as favelas não deve, porém, apoiar a falsa ideia de que o Estado se manteve afastado daquelas áreas. Como bem lembrou o líder comunitário da Rocinha, Duda, em entrevista para o documentário O estopim, durante anos a favela serviu – e ainda serve – de plataforma para a inauguração de obras, monumentos e também, obviamente, para a arrecadação de votos em época de eleição. Periodicamente, esses “candidatos caô aparecem sem gravata, dizendo que gostam da raça, bebendo cachaça, comendo em lata de goiabada e visitando terreiro pra pedir ajuda. Mas o povo não é bobo e nem o guia que estava incorporado, que fez questão de alertar que esse político é safado: Meu irmão se liga / No que eu vou lhe dizer / Hoje ele pede seu voto / Amanhã manda a polícia lhe bater”. Entre todas as críticas, certamente uma prevalece: a violência policial. As UPPs são o mais recente símbolo da relação violenta que o Estado brasileiro estabelece com a sociedade, em particular com a população mais pobre. Não se pode dizer que isso seja uma novidade. Primeiro, porque a história brasileira é marcada por fraturas sociais profundas e pelo uso perene da violência para coibir modos de vida alternativos e conter transformações mais radicais. Segundo, porque as UPPs atualizam, com uma aparência modernizada, velhos mecanismos de isolamento e neutralização dos choques entre o mundo do asfalto e o mundo da favela. É simbólico, nesse sentido,

O estopim (2014) é um documentário de Rodrigo Mac Niven, que narra a trajetória do Caso Amarildo

que a primeira UPP tenha sido instalada no Morro Santa Marta, comunidade incrustrada na Zona Sul carioca, cujos moradores tiveram seu cotidiano violento documentado já em 1987, por Eduardo Coutinho, em Santa Marta: Duas semanas no morro. Sob o pretexto de combater o crime, e supostamente proteger os moradores locais, o Estado submeteu, desde muito cedo, as favelas a um clima de controle e vigilância permanentes. Bezerra da Silva registra, em uma de suas canções, a localização dos distritos policiais do Rio de Janeiro, que estão sempre filmando a rapaziada. Como consequência, todo e qualquer habitante da favela se tornou, aos olhos da polícia, um potencial suspeito. Bezerra da Silva também registra que várias vezes dançou para averiguação, foi preso, ainda que tenha se mantido uma folha penal onde nada consta. Assim se criou um ambiente de abusos em que a

polícia, a despeito da lei, manda, comanda e desmanda. Os crimes pelos quais a polícia é geralmente responsabilizada variam de ameaças diversas até o assassinato, passando pelas frequentes invasões de casas, abuso de autoridade, agressão física e tortura. Conforme argumenta o jurista João Baptista Damasceno, e outros especialistas, também para o filme O estopim, a prática desses crimes sempre existiu. Porém, a ditadura civil-militar aprimorou o aparato policial e fortaleceu seus instrumentos, dentro do Estado. Esse “modelo de terror”, criado inicialmente para conter a subversão política, não foi desarticulado com a redemocratização do País. Hoje, esse aparato conta com milícias urbanas e rurais que envolvem policiais militares, empresários, fazendeiros, jagunços, traficantes, etc. Um consórcio público-privado que atinge, sobretudo, pobres, negros, índios, sem-terra e sem-teto.

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