Bibliotecas Escolares e Património Cultural: A Biblioteca da Escola Industrial e Comercial de Peniche

July 3, 2017 | Autor: Miguel Santos | Categoria: Patrimonio Cultural, Bibliotecas Escolares, História do Livro
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Cadernos de Estudos Leirienses – 4 * Maio 2015

Bibliotecas Escolares e Património Cultural: A Biblioteca da Escola Industrial e Comercial de Peniche Miguel Dias Santos*

As bibliotecas escolares constituem hoje espaços multidinâmicos de informação e aprendizagem. A cultura da escrita, predominante desde as bibliotecas das civilizações antigas, como Alexandria, com os seus mais de 500 mil rolos (Chartier, 1988: 77), vai cedendo espaço à cultura dos media e à sua miríade de produtos audiovisuais, incluindo o livro eletrónico. A desmaterialização do texto escrito não coloca apenas a questão de saber se o livro passa por uma nova revolução, facto que pode configurar uma ameaça à sua existência física. A questão que aqui nos interessa explorar prende-se com o lugar do texto escrito, enquanto objeto material, no contexto da cultura dominante da eletrónica. A questão ganha pertinência nas escolas mais antigas, desde os liceus às escolas técnicas, onde, durante mais de um século, se organizaram bibliotecas que forneceram informação e conhecimento. Esses livros, como velhos tesouros bibliográficos, estão hoje escondidos sob uma fina capa de poeira do tempo, esquecidos nos braços titânicos de Mnemosyne. Os seus textos constituem hoje fontes primaciais para a história do livro e das bibliotecas e para a história da educação. Estão, ipso facto, condenados ao interesse contingente e contextualizado do investigador, do historiador ao sociólogo. A evidência sociológica não esconde, porém, que os livros são ao mesmo tempo discurso e objeto, objeto de relevância material, estética e cultural que transcende a sua natureza de texto impresso. A materialidade do texto escrito confere-lhe estatuto de património cultural. Enquanto objeto material *Subdirector da Escola Secundária de Peniche. Doutorado em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos de Desenvolvimento Turístico (CEDTUR/ CETRAD).

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pode interessar a história cultural do livro, a partir de novas abordagens, que incluem o autor, o leitor, a edição, a encadernação, a coleção, etc. Enquanto discurso, a cultura escrita é também a história das representações de uma época e de uma sociedade, refletindo as suas relações com o simbólico, com a estética. Se nos dá uma visão do mundo, a sua história é também memória e identidade, reconstruindo a tessitura das nossas relações connosco e com os outros. Serve o proémio para fundamentar a premissa de que as escolas mais antigas possuem um corpus bibliográfico que importa (re)organizar, estudar, preservar e divulgar, aproveitando as técnicas da cultura tecnológica predominante. O escopo deste texto é traçar os pródromos da história da biblioteca da escola industrial e comercial de Peniche, apresentando, de forma contextualizada, algumas das suas mais importantes coleções bibliográficas. Apesar da falta de meios, muitas escolas começam hoje a conceber que, sob os vestígios de Cronos, sejam documentos, objetos e espaços, se escondem partes da sua identidade. Vai por isso surgindo uma corrente académica que se empenha em estudar o património educativo e, em especial, com a organização de arquivos escolares e com a musealização de peças de maior valor cultural, em iniciativas apoiadas por investigação aplicada (Mogarro, 2006). O mesmo não sucede, porém, com as coleções mais antigas das bibliotecas. Organizá-las e insuflar-lhe nova vida parece significar algo mais do que a simples reconstrução da memória e, por extensão, da identidade. Significa que o passado se (re)organiza para desenhar o futuro, desconstruindo para edificar a partir de novos meios, de novos sentidos e interações. A sua desmaterialização, se por um lado acentua o distanciamento entre o espaço da biblioteca e o leitor, permite por outro lado encontrar novos públicos para os textos e, por essa via, divulgar, ao lado das bibliotecas nacionais e distritais, o património da cultura escrita. A biblioteca da primitiva escola industrial e comercial de Peniche surgiu no quadro do novo edifício da escola, inaugurado em 1959 (Santos, 2009). Importa lembrar que, ao contrário dos liceus, que tiveram enquadramento legal em 1926, o ensino técnico teve que esperar pela reforma 1948 para se definirem os instrumentos e os princípios organizativos da sua biblioteca. O estatuto do ensino profissional consignava expressamente que «em cada escola deve organizar-se uma biblioteca composta de obras que interessem ao aperfeiçoamento técnico e pedagógico dos professores e mestres e à edu346

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A biblioteca escolar.

cação geral e profissional dos alunos»1. A biblioteca escolar seria organizada dentro dos princípios de controlo ideológico exercidos pelo regime de Salazar e, por isso mesmo, mais do que «liberdade», seriam flagrantes as «limitações» a essa liberdade. Chartier lembra que existe uma tradição de «autoridade» que se atribui, ou recebe, o poder de «guiar e seleccionar»: «a família, a igreja, a escola e o bibliotecário público, prolongamento do mestre-escola» (Chartier, 1988: 121). O poder discricionário da «autoridade» do Estado e da sua «política do espírito» determinava que a «aquisição de livros, revistas ou outras publicações que não tratem de assuntos de carácter profissional depende de autorização superior»2. Na prática, cabia ao professor bibliotecário, função nova nas escolas, e ao conselho escolar (presidido pelo diretor, incluía os docente e mestres em exercício), a quem competia selecionar os textos escritos e elaborar o regulamento do serviço de consultas, exercer vigilância apertada sobre os espíritos e sobre a liberdade. Na escola Gomes Teixeira, no Porto, o 1 2

Decreto-lei n.º 37029, de 25-08-1948. Art.º 526 do decreto-lei n.º 37029, de 25-08-1948.

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diretor selecionava «cuidadosamente» os livros a adquirir, «escolhendo para o 1.º ano, de preferência, obras de histórias simples, ingénuas e atraentes, quanto possível de intenções moralizadoras, destinadas sobretudo a despertar o gosto pela leitura; e para o 2.º ano procurou já obras mais sérias, tendo em vista a formação moral e cultural dos educandos»3. Finalmente, e registe-se a ordem hierárquica das finalidades, o novo estatuto expunha a importância do combate ao analfabetismo e da emergência de a escola atender à «necessidade de orientar os alunos, de maneira a incutir-lhes o hábito de leitura». Na escola industrial e comercial de Peniche, as estantes possuíam (e possuem ainda) chaves que vedavam o acesso livre aos textos, como se fossem raridades inacessíveis e intangíveis. O controlo sobre o leitor, e sobre a leitura através das escolhas, era, neste período, total e eficaz. Enquanto espaço físico, a biblioteca da escola industrial e comercial de Peniche viveu das contingências da sua história institucional, desde a primitiva escola de desenho industrial, instalada num acanhado edifício da rua Direita, n.º 69, onde não haveria espaço para uma biblioteca. Viajando no tempo e no espaço, a primeira coleção de textos, datada de 1887, encontrou o seu território definitivo no atual edifício, inaugurado, como se referiu, em 1959. Nos primeiros anos, a frequência para leitura presencial limitava-se a pequenos períodos de uma hora, entre as 18 e 19 horas, funcionando apenas às terças e quartas-feiras. O empréstimo, gratuito, era admitido entre 5.ª e 2.ª feiras e apenas ficava acessível para a população escolar, constituída, em 1959, por 263 alunos, 14 professores e 4 mestres (Santos, 2009: 30). Apesar da incipiência dos números, a diretora da escola propunha à tutela, já em 1958, a nomeação de um docente para dirigir a biblioteca, argumentando que «o movimento» da mesma o justificava4. Não existindo dados para este período, refira-se que no ano de 1970 a biblioteca emprestou 858 volumes, a uma média de 95 títulos por mês5. O espólio bibliográfico da biblioteca de Peniche possuía, em 1956, cerca de 685 livros6 e, em 1960, data que serve de indicador para este estudo, tinha 899 títulos, que correspondiam, com os volumes repetidos, a 2195 exemplares7. Se considerarmos as reflexões apresentadas no I Congresso Nacional do 3

Escolas Técnicas, 1955, p. 117. Arquivo da Escola Secundária de Peniche, doc. n.º 444, 11-11-58. 5 Não havia empréstimo de livros no longo período de paragem letiva, entre junho e início de outubro. 6 Arquivo da Escola Secundária de Peniche, Inventário bibliográfico, 1956. 7 Arquivo da Escola Secundária de Peniche, Inventário bibliográfico, 1960. 4

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Ensino Técnico Profissional, segundo as quais uma biblioteca de ciclo deveria ter cerca de 600 livros, a escola de Peniche estaria, em princípio apetrechada para prover às necessidades planturosas de alunos e professores. A biblioteca da escola comercial e industrial de Peniche é, como muitas outras, um constructo que resulta da sua história, já antiga, datada de 1887. Mas não se pode dizer que a ideologia liberal, com a sua política de criação de bibliotecas públicas, tenha tido impacto nas escolas técnicas. Com efeito, a criação de um corpus bibliográfico deveu-se sobretudo à iniciativa da sua primeira diretora, Maria Augusta Bordalo Pinheiro, no quadro do seu modernismo pedagógico. Os primeiros livros serviam essa intenção didática, predominando por isso livros e manuais sobre desenho ornamental, disciplina estruturante dos currículos ministrados na escola, em especial rendas, costuras e bordados. A inexistência de textos em língua portuguesa pode explicar a proliferação de textos franceses e italianos, países (incluindo a Bélgica) onde as rendas tinham grande expressão técnica e económica. A existência, neste espólio, de um texto de 1863 com reflexões sobre a importância crescente das rendas na economia francesa, e a sua contextualização na exposição de Londres de 1862 (Fils, 1863), é elucidativa da vanguarda cultural e pedagógica de Maria Augusta. A primeira coleção desta biblioteca é portanto caracterizada por textos estrangeiros e importados8. Entre os diversos títulos existentes contam-se Les Dentelles anciennes (1878), Fabrique de Dentelles, La Dentelle (1891), La lingerie et la modiste, Lavori Femminili e Les petits alphabets du Brodeur, entre outros. O livro Traité pratique de la broderie et de la tapisserie, de Ermance Dufaux de la Jonchère (1885), com encadernação recente, desenvolve conceitos práticos para o fabrico de rendas e tapetes acompanhados de diálogos e gravuras ilustrativas, úteis para a aprendizagem pela imitação ou dando o mote para a inspiração criadora de algo novo e moderno. 8

A exceção, neste período, vai para o clássico da história da arquitetura portuguesa, o Diccionario Historico e Documental dos Architetos, Engenheiros e Constructores Portuguezes, de Sousa Viterbo, ainda hoje uma referência bibliográfica incontornável para os historiadores da arquitetura civil e militar e para os biógrafos.

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A coleção incluía outros livros estrangeiros que versavam temas que podiam interessar o público masculino dos cursos de formação adulta, como Le meuble (1885), de Alfred de Champeaux, e La Faïence, de Théodore Deck, onde se fazia a história dos móveis e das porcelanas. No essencial, porém, a sua existência comprova o ecletismo do espírito e da formação de Maria Augusta Bordalo Pinheiro. Os seus interesses estéticos alargavam-se no campo das artes decorativas, como testemunha a existência de vários livros temáticos, como a obra de Charles Blanc, Grammaire des arts décoratifs (1882), e pelo menos seis números da revista francesa L’ art décoratif, que se editou em Paris entre 1910 e 1913. Filha do pintor Manuel Maria Bordalo Pinheiro, Maria Augusta (18411915) dedicou-se às artes plásticas sob a influência do pai e do irmão, Columbano Bordalo Pinheiro, trabalhando e expondo pintura, faiança, desenho, rendas e artes aplicadas em geral. Expôs com o Grupo de Leão, em 1885, esteve presente na Exposição Industrial em 1888, e em diversas exposições do Grémio Artístico, onde obteve distinções com prémios em 1896 e 1898. Participou em mostras da Sociedade Nacional de Belas Artes onde obteve a medalha de honra na Secção de Arte Aplicada, em 1901. Em 1889, participou na Exposição Universal de Paris, onde obteve medalha de ouro a premiar a arte das suas rendas. Obteve outros prémios e medalhas, mas o seu nome ficaria ligado à defesa e divulgação das rendas de Peniche (e também Vila do Conde e Viana do Castelo), procurando mantê-las na tradição dentro de pressupostos de modernidade estética e artística. Sobre a arte de Maria Augusta, Afonso Lopes Vieira escreveu este texto laudatório, em 1915, data da sua morte: «Era uma fé heroica, com efeito, a que animava a Senhora que a todos nos deu tão alto exemplo, criando uma arte moderna dentro da tradição antiga, e uma arte que é a mais delicada e feminina de todas – arte de urdir prodigiosos flocos da mais débil e harmoniosa arquitetura, os quais parecem saídos das mãos de silfos, que em ritmos hieráticos, dançando à lua, condenassem neblinas, luares, espumas, tudo que espiritualiza a graça aérea e que é – a Renda. A maravilhosa rendeira foi quem entre nós orientou e enobreceu esta arte de encanto. Ela logrou fazer da renda vulgar, industrial, de Peniche, que operárias habilidosas, sim, mas sem cultura nem gosto, nem terem que lhos mostrasse, urdiam sem ideal – ela conseguiu fazer da renda gorda das operárias os seus modelos sublimes de poesia. Assim pode ser criada, como obra de arte moderna, a Renda Portuguesa […]»9. 9

Atlântida, n.º 2, 15-12-1915, p. 14.

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A biblioteca da escola de desenho industrial de Peniche, que em 1912 passaria a chamar-se escola Josefa de Óbidos, evocando a passagem desta pintora por Peniche, continuou, na transição de século, associada à família Bordalo Pinheiro. Com efeito, duas coleções importantes, ainda hoje em parte existentes, têm a sua responsabilidade editorial. A primeira coleção, de que foram publicados 56 volumes, é a Bibliotheca de Instrucção Profissional, conhecida como «Manual do Operario», e constitui a única coleção especializada em temáticas sobre educação e formação técnica e profissional. Iniciada por Tomás Bordalo Pinheiro, irmão de Rafael e Maria Augusta, professor de desenho de máquinas e diretor das oficinas da Escola Industrial Afonso Domingos, em Leiria, teve a colaboração de professores do ensino técnico e naval, engenheiros e técnicos industriais. Destaca-se a colaboração do pintor João Ribeiro Christino da Silva (18581948), professor de desenho na escola industrial Marquês de Pombal, que redigiu os quatro volumes da secção dedicada à história da arte em narrativa simples, que visavam a popularização das principais correntes artísticas, da arte antiga à arte moderna (Silva, 1907). O reconhecimento público da qualidade e inovação didática deste projeto editorial justificou a atribuição do «Grande Prémio» da Exposição Nacional do Rio de Janeiro, em 1908, e o seu elevado interesse pedagógico explica que alguns volumes tivessem segunda edição. Redigida por um pequeno corpo de redatores, constituído por Tomás Bordalo Pinheiro, Henrique Lopes de Mendonça, Guilherme Ferraz, Henrique Silveira e J. Andrade Folhas, a bibliotheca de instrucção profissional facultava aos alunos «noções gerais» sobre conteúdos técnicos e científicos que, de certa forma, refletiam o estado das artes em Portugal e na Europa, muitas vezes em forma de antologia ou coletânea de textos (Pinheiro, 1941). A coleção dividia-se em seis grandes áreas temáticas: «Elementos Gerais» (de várias disciplinas técnicas), «Mecanica», «Construcção Civil», «Construcção Naval», «Manuaes de Offícios» e «Conhecimentos geraes de industrias». Iniciada em 1900, teve atualizações nas décadas posteriores e tornou-se referência obrigatória em todas as escolas profissionais, ultrapassando o contexto da reforma de 1948. Há uma segunda coleção no catálogo bibliográfico cuja história se cruza 351

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com a família Bordalo Pinheiro, mas igualmente com a história da I república, nomeadamente a história dos movimentos intelectuais e a conturbada participação de Portugal na Grande Guerra. Intitulada Os livros do Povo, de que estavam referenciados ainda oito títulos, foi publicada pela «Livraria Profissional», a mesma que editava a Biblioteca Profissional, da família Bordalo Pinheiro. Ficava, aliás, tudo em família. O editor, Pedro Bordalo Pinheiro, era filho de Tomás e sobrinho de Rafael e Maria Augusta Bordalo Pinheiro. A coleção incluía 16 secções: Educação Infantil, Educação Geral, Educação Cívica, Educação Profissional, Educação Física, Higiene Prática, Domínio de Portugal, Arte e Literatura, Portugal na História, Vida Social, Vida no Campo, Vida Comercial, Vida Marítima, Vida Industrial, Vida Colonial e Vida Militar. A secção «Educação profissional» tinha a responsabilidade do pai, Tomás Bordalo Pinheiro, e seguia de perto, nos temas e conteúdos, a coleção da Bibliotheca de Instrucção Profissional. Títulos como O que deve saber: o serralheiro, Como se medem terras e Como se fazem queijos prestavam ensinamentos práticos aos profissionais do campo e da indústria. A coleção Os livros do Povo era, como se comprova, um projeto editorial ambicioso que integrou, como em França, a chamada biblioteca republicana (Chartier, 2001). Isto é, constituiu parte do projeto cultural e ideológico da república, participando na educação cívica, na alfabetização das populações e na edificação de uma mundividência republicana. A escola primária, primeira instância educativa, encontrava na biblioteca republicana um complemento para a edificação do cidadão numa perspetiva iluminista, de transformação e aperfeiçoamento do Homem até à plena realização pessoal e coletiva. A coleção «Os Livros do Povo» reivindicou por isso o estatuto, assumido pelos seus responsáveis, intelectuais republicanos, de formar cidadãos livres e responsáveis, amando a pátria e trabalhando para o seu engrandecimento. Na esteira das propostas de António Sérgio, pregavam a educação para o trabalho como parte da formação cívica e essencial para o desenvolvimento económico do país. Essa intencionalidade ideológica não se deduz apenas dos títulos da coleção. Foi estampada na última página de cada volume, recomendando-se que os Livros do Povo deviam ser comprados e distribuídos 352

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«pela gente da cidade e pela gente dos campos, pelas crianças e pelos adultos, nas escolas e nos lares, em toda a parte em que haja uma consciência a desabrochar, um cérebro a formar, um espírito a conduzir» (Mendonça, 1916: 64). Não espanta, por isso, que ao lado de matérias técnicas como O que deve saber o serralheiro e Serração de madeiras, a coleção incluísse títulos como Educação e Democracia, Como se estuda, Todos devem ler, A boa educação e Educação Física. Constituída por cerca de 40 livros de pequeno formato (14x10), com 64 páginas e custo módico de 4 centavos (40 réis)10, os livros do povo não podem dissociar-se do projeto demopédico do grupo de intelectuais que se juntou em torno da revista Atlântida, surgida nos finais de 1915. Dirigida por João de Barros, a revista tinha como proprietário e editor Pedro Bordalo Pinheiro e alguns dos seus colaboradores, casos de Joaquim Manso e Henrique Lopes de Mendonça, publicaram livros do povo. O grupo da Atlântida empenhou-se na causa da guerra dos aliados, sustentando a participação de Portugal no conflito em nome dos valores civilizacionais da cultura ocidental e da sua expressão latina, tese explanada por Joaquim Manso no «livro do povo» Portugal perante o mundo latino (1916) (Santos, 2010). Os seus textos, em prosa e poesia, exacerbavam o sentimento patrióticos dos portugueses e instigavam o seu apoio em defesa da república e dos valores democráticos. Essa partilha de ideais e de valores encontra-se na coleção «Os Livros do Povo», em textos como Portugal contra a Alemanha, editado em 1916, no ano da beligerância formal com o império de Guilherme II. Para Lopes de Mendonça, que dirigiu a coleção de textos historiográficos, ao assumir como missão histórica a defesa moral da «justiça e do direito», Portugal engrandecia-se aos olhos da humanidade: «Estamos na lógica da nossa missão histórica. Através da guerra que nos impuseram, o sangue português continua a derramar-se pela obra de paz e de fraternidade humana, que os nossos antepassados encetaram pela comunicação das raças, desconhecidas entre si» (Mendonça, 1916: 55). A educação cívica incluía por isso a educação patriótica e militar, em textos como Tributo de sangue e A mocidade e o dever militar da autoria do capitão Henrique Pires Monteiro, oficial próximo do grupo de oficiais do Partido Democrático. Nas décadas de 30 e 40, a biblioteca foi enriquecida com livros enqua10

Com a guerra e o aumento do custo de papel, das tintas, etc., o preço passou depois para 5 centavos (50 réis).

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drados ideologicamente nas grandes opções políticas do Estado Novo. A política imperial do regime e o reforço dos valores nacionalistas e patrióticos, assumindo a tradição histórica como exemplo de um destino glorioso a perseguir, espelha-se em duas coleções da biblioteca escolar. A Agência Geral das Colónias promoveu um conjunto de textos que confirmavam a grandeza histórica da pátria, espalhada por um vasto território intercontinental, e a missão civilizadora dos portugueses. Títulos como Roteiro da mocidade do império (Silva Tavares, 1938), Fronteiras do território nacional no ultramar (Moura Brás, 1943), Do conselho ultramarino ao conselho do império (Marcelo Caetano, 1943) cumpriam o programa educativo do salazarismo. Esse programa coroava os esforços do regime para edificar nos portugueses uma consciência imperial, procurando moldar os espíritos na crença das virtudes da raça e na existência de um destino coletivo que se expressava, de forma determinística, na atividade colonial. Os valores patrióticos encontram-se plasmados numa coleção patrocinada pelo Secretariado de Propaganda Nacional, dirigido por António Ferro, e incluía títulos como Historiazinha de Portugal (Adolfo Simöes Müller, 1943), História do soldado raso que era príncipe dos poetas (Virgínia de Castro e Almeida, 1942) História das correntes quebradas (Virgínia de Castro e Almeida, 1943) e História triste do diabo à solta (Virgínia de Castro e Almeida, 1943). As duas coleções, como aliás tantas outras, privilegiam o discurso historiográfico, muitas vezes romanceado, permeável à intencionalidade moralizante e morigeradora. Entre os autores consagrados, contam-se escritores que comungavam com os valores nacionalistas do Estado Novo. Adolfo Simöes Müller (1909-1989), jornalista e escritor, foi autor de livros para crianças e jovens, adaptando episódios históricos, como a travessia do atlântico por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, e romanceando biografias, como a de Edison. Adaptou vários clássicos da literatura nacional, como os Lusíadas, a Peregrinação e as Pupilas do Senhor Reitor, entre outros. A sua Historiazinha de Portugal narra, em linguagem acessível, episódios selecionados da história de Portugal, com que procurava açodar a vis patriótica das crianças portuguesas. A década de 60 reforçou a componente ideológica da biblioteca escolar de Peniche. Predominam, em primeiro lugar, as fontes históricas: as fontes medievais, com as crónicas dos reis das primeiras dinastias; e fontes modernas, com destaque para a «epopeia» dos descobrimentos e a expansão ultramarina. As biografias, úteis para fixar os heróis do passado e servir de farol 354

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aos aprendizes coevos, revelam os feitos «heroicos» de cavaleiros, conquistadores, poetas e santos, ocupando o Panteão dos heróis da «Raça». Nas 41 biografias existentes na biblioteca de Peniche predomina a categoria de história infantil, útil para uma população escolar em início de alfabetização. A maioria pertence às coleções «Grandes Portugueses» e «Grandes Portuguesas», patrocinadas pelo Secretariado Nacional de Informação, sob direção de Virgínia de Castro de Almeida, José Estêvão Pinto e Teresa Leitão de Barros. Entre as personagens históricas biografadas contam-se D. Afonso Henriques, Nuno Álvares Pereira, Luís de Camões, Vasco da Gama, D. Francisco de Almeida, S. João de Brito, Marquês de Pombal e, no campo feminino, a Rainha D. Leonor, Filipa de Vilhena e D. Maria I, entre outras. A narrativa histórico-biografia era diligentemente atribuída a escritores, não especialistas, porque importava garantir a sua eficácia didática na elaboração da memória coletiva, modelando a identidade nacional através da «política do espírito». Forjava-se essa memória, em primeiro lugar, selecionando criteriosamente os períodos históricos e as personagens que marcaram a época de ouro da história nacional, ou que, como Pombal e D. Maria, refletiam a ideologia dominante. Ficavam no silêncio os períodos recentes, considerados decadentes pela historiografia nacionalista do Estado Novo, nomeadamente o século XIX e a I República, vistos como períodos de anarquia e violência (Santos, 2012). A promiscuidade entre a ideologia e a história pode vislumbrar-se na coleção «Henriquina», doze volumes integrados nas comemorações do centenário da morte do Infante D. Henrique, o mais celebrizado navegador. O Infante simbolizava a gesta dos descobrimentos e os valores tradicionalistas da portugalidade (e da própria luso-tropicalidade), numa época em que os ventos da história ameaçavam o património colonial português. O centenário do Infante desenhou-se numa época em que a ameaça independentista obrigava ao reforço da ideologia imperialista, afirmando a nação multicultural e multiterritorial como um dos mitos coloniais mais fortes do Estado Novo. O predomínio de títulos de cariz político-ideológico e doutrinário, mesmo sob a capa de um discurso cientificamente rigoroso, é consistente com o papel nuclear que a escola e a «política do espírito» tinham na política do Estado Novo. Neste grupo incluímos os textos político-ideológicos, como os discursos e textos de intervenção de Salazar, os livros sobre problemas corporativos ou questões da candente política ultramarina. Predomina nesta categoria a coleção de livros incluída na Campanha Nacional de Educação 355

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de Adultos, iniciada em 1954, que tinha, em 1960, 70 títulos e que chegaria aos 147 títulos (Melo, 155). Encontram-se na biblioteca de Peniche 161 volumes, porque muitos estão repetidos. A Campanha Nacional de Educação de Adultos visava combater o analfabetismo mas acabou por reforçar as bibliotecas escolares. A coleção tinha, afinal, uma função ideológica importante, contribuindo para a consagração dos valores político-ideológicos do regime, dentro da sua matriz tradicionalista-católica, ruralista e moralizante. Ancorada nestes valores, a campanha nacional de adultos e a sua coleção de livros devia contribuir para a modelação de uma sociedade marcada pela humildade, submissão, resignação e trabalho. Pobre e sofredor, temente a Deus, o português ordeiro e trabalhador impunha-se como uma espécie de «Homem novo» (Fernando Rosas, 2001), que afinal era velho de séculos, dentro das Virtudes que vêm de Longe (Série Educativa H, n.º 4). A sublimação do ruralismo e da humildade como marca ideológica encontra-se em muitos dos livros da coleção como A gente canta na aldeia, Serões rurais, O nosso lar ou Quem casa quer casa. Paradoxalmente, a mesma visão ideológica reforça o idealismo nacional através da promoção das ambições espirituais da raça, no contexto da tradição histórica e da sua pretensa missão civilizadora, espalhando a fé e o progresso. Quais eram as «virtudes» da raça portuguesa?: «Mas o que importa não esquecer é o facto dessas virtudes serem as próprias virtudes do povo português: fé, amor ao trabalho, espírito de sacrifício, culto apaixonado da honra e do dever, coragem inquebrantável, um grande amor à Pátria e aquela antevisão do futuro que é o génio da nossa Raça e nos deu sempre o primeiro lugar entre as nações quando se trata de começar uma nova era para a Humanidade. O génio de Sagres e do Infante D. Henrique, com que descobrimos novos mundos” (Honra de Ser Português, coleção Educativa, série H, n.º 1, 142) O plano de publicações desta Campanha de Adultos estava dividido, numa primeira fase, em séries de A a O, sendo a série A para obras que versavam sobre «Doutrina» e a B sobre «Informação e Propaganda». As restantes séries, integradas na subcategoria de «coleção educativa», incluíam títulos como a «Educação supletiva de adultos», «História Pátria», «Geo356

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grafia de Portugal», «Arte Portuguesa. Etnografia e Folclore», «Literatura e Pensamento Português», «Educação Moral e Cívica», «Educação familiar», «Educação Sanitária», «Educação Física e Desportos», «Aperfeiçoamento Profissional», «Organização Corporativa. Previdência Social. Segurança no Trabalho», «Agricultura. Pecuária. Indústrias Caseiras. Artesanato» e «Livros Recreativos». Todos os livros da coleção abriam com uma citação de Salazar, que assim se assumia como mentor e guia ideológico da nação, aspirando igualmente, apesar da «humildade» pressurosamente reivindicada, a figurar no Panteão da hagiografia nacional. Este era, portanto, um projeto educativo e cultural ambicioso, vocacionado para os adultos que não frequentavam a escola e para as crianças escolarizadas ou em processo de escolarização. Mas o seu alcance programático estendeu-se a outras instituições educativas e corporativas, sendo oferecido a Casas do Povo (Homem, Torgal, 1982) e a escolas profissionais, como a escola industrial e comercial de Peniche. Conclusão A análise, sumária e contextualizada, das principais coleções de livros existentes na biblioteca da escola secundária de Peniche, herdeira da escola industrial e comercial, mostra que esta biblioteca esconde tesouros bibliográficos que merecem ser divulgados, estudados e protegidos. Com efeito, o manuseamento de vários anos, as deslocações constantes provocaram desgaste nos livros mais antigos e alguns exigem já uma intervenção urgente para evitar a sua degradação fatal. As principais bibliotecas nacionais começaram já a digitalizar os seus livros mais valiosos, tornando-os acessíveis a um público global. Quando terão as escolas visão e instrumentos financeiros para digitalizar o espólio das suas bibliotecas? Quando o fizerem, os seus livros e textos mais antigos reiniciam uma nova viagem no tempo, rompem o ciclo de inanidade. A velha utopia da biblioteca universal, de Alexandria, fica mais perto de concretizar-se através da universalização das várias bibliotecas espalhadas pelo mundo. E com elas transfere-se para o domínio global parte da memória de um povo e de uma época. Referências Bibliográficas – Arquivo da Escola Secundária de Peniche. – Atlântida, Lisboa-Rio de Janeiro, 1915-1918.

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Cadernos de Estudos Leirienses – 4 * Maio 2015

– BARATA, Paulo J. S. (2005) – «As bibliotecas no liberalismo: definição de uma política cultural de regime». Análise Social, vol. XL (174), 37-63. – LABOR, Revista da Escola Comercial e Industrial de Peniche, 1970. – CHARTIER, Roger (1988) – A aventura do livro do leitor ao navegador. São Paulo: Fundação da Editora Unesp. – CHARTIER, Roger, CAVALLO, Gugliemo, (2001) – Historia de la Lectura en el mundo occidental. Madrid: Althea, Taurus. – Escolas Técnicas, 1955. – FILS, Fergunson S. (1863) – Les Dentelles aux Fuseaux et Les Dentelles Mécaniques. Paris: Eugéne Lacroix Éditeur. – MELO, Daniel (2004) – A Leitura Pública no Portugal Contemporâneo 1926-1987. Lisboa: ICS. – MENDONÇA H. Lopes de (1916) – Portugal contra a Alemanha. Lisboa: Livraria Profissional. – MOGARRO, Maria João (2006) – «Arquivos e Educação: a Construção da Memória Educativa». Sísifo – Revista de Ciências de Educação. Lisboa: Instituto de Educação. – Ó, Jorge Ramos do (1999) – Os anos de ferro: o dispositivo cultural durante a “política do espírito”, 1933-1949: ideologia, instituições, agentes e práticas. Lisboa: Editora Estampa. – PINHEIRO, Tomás Bordalo (1941) – Bibliotheca de Instrucção Profissional. Desenho de Machinas. 2.ª edição. Lisboa: Livraria Porfissional. – ROSAS, Fernando (2001) – «O salazarismo e o homem novo: ensaio sobre o Estado Novo e a questão do totalitarismo». Análise Social, Vol. XXXV (n.º 157), 1031-1054. – SANTOS, Miguel Dias (2009) – Contributos para a história do ensino técnico-profissional em Peniche. Peniche: Escola Secundária de Peniche, 1-50. – SANTOS, Miguel Dias (2010) – «Patriotismo e Propaganda na Acção da Elite Intelectual Republicana Durante a Grande Guerra». Biblos. Coimbra, Faculdade de Letras, s. VIII, 157-174. – SANTOS, Miguel Dias, “Imperialismo e Ressurgimento Nacional. O Contributo dos Monárquicos Africanistas”, in Estudos do Século XX, n.º 3, Coimbra, Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, 2003, pp. 83-112. – SANTOS, Miguel Dias, Santos (2012) – «Violência Política na I República: memória e historiografia». Fragmentos de um Tempo Movente. A propósito da República. Maia: Edições ISMAI, Centro de Publicações do Instituto Superior da Maia, 11-25. – SILVA, J. Christino da (1907) – Elementos de História da Arte, vol. 1, «Arte Antiga». Lisboa: Bibliotheca de Instrucção Profissional . – TORGAL, Luís Reis, HOMEM, Amadeu Carvalho (1982) – «Ideologia salazarista e “cultura popular” – análise da biblioteca de uma casa do povo». Análise Social, vol. XVIII (72-73-74), -3.°-4.°5.°, 1437-1464.

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