Bimusicalidade. Aforça cultural do corpo e das emoções

June 3, 2017 | Autor: Bernardo Rozo L | Categoria: Ethnomusicology, Bolivian studies, Etnomusicologia, Etnomusicología, Musicalidade E Teatro
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Bimusicalidade. Aforça cultural do corpo e das emoções1 Bernardo E. Rozo López2 [email protected] (UFBA) Resumo: Analisamos o papel dos etnomusicólogos que atuam nos países do Sul, tais como Brasil e Bolívia, para superar a ilusão da dicotomia êmic-étic e assim propor o conceito de multimusicalidade como estratégia de pesquisa, principalmente de linguagens musicais nãoocidentais; isto é: a) aprender a música com o corpo (aprendizagem-compreensão de novas linguagens sonoras, a través do uso da memória corporal (inscrição), assimilando o corpo como entidade complexa que produz conhecimento musical); b) e aprender os valores e conceitos sobre a música com a força cultural das emoções (projetar a formação de trabalhadores de campo que, na hora da interação com outros seres humanos, se situem como sujeitos empáticos e éticos). Assim, visando um objetivo de longo prazo, convocamos à discussão sobre possíveis mudanças na estrutura curricular na disciplina etnomusicológica, nas nossas academias, para inserir nelas os conceitos, métodos, comportamentos e produtos musicais das culturas musicais tradicionais não-ocidentais. Palavras-chaves: Metodologia. Memória. Corpo. Disciplinaridade. Multimusicalidade. Poder.

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O início

Em 1960, desde uma universidade do norte que começava a ser “intervinda” pela diversidade musical do Sul (até então, uma experiência inédita), Mantle Hood propunha o conceito de bimusicalidade3, entendida esta como uma aptidão (natural?) para a assimilação de mais do que apenas uma cultura musical. Através deste conceito, nosso autor chamava nossa atenção sobre os desafios da aprendizagem de músicas de outras culturas (onde o pesquisador torna-se aprendiz), os quais implicavam: a) aguçar e liberar a percepção auditiva e a memória tonal; b) lograr a interdependência das diferentes partes, funções e sentidos que constituem o corpo, e; c) conhecer e desenvolver a arte da improvisação como recurso complexo de interpretação4. Agora, se Hood propunha o desenvolvimento da bimusicalidade por aquele músico ocidental interessado nas músicas não-ocidentais, como poderia se pensar a bimusicalidade desde o Terceiro Mundo, onde os pesquisadores somos parte das culturas que estudamos? É possível pensar na bimusicalidade para aprender as músicas de nossa própria sociedade? Uma 1

Comunicação científica apresentada no III Encontro da Associação Brasileira de Etnomusicologia. São Paulo. SESC Pinheiros. Novembro, 2006. CD-ROM 2 Músico e antropólogo boliviano. Doutorando em Etnomusicologia pela PPGMUS-UFBA. 3 Hood, Mantle, 1960. “The challenge of bi-musicality”. Ethnomusicology Vol. IV, No. 2. Pp. 55-59. 4 Hood. Ibid. P. 59.

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bimusicalidade de nós mesmos? Será possível a bimusicalidade no desenvolvimento de uma etnomusicologia nas cidades de Salvador e La Paz, por exemplo? Dada a enorme diversidade musical do mundo inteiro, pensemos não apenas numa bimusicalidade e sim nas condições de possibilidade de uma multimusicalidade, sob o princípio fundamental de interpretar e talvez compreender os sentidos e significados profundos dos materiais sonoros. Uma opção prática que implica talvez, muito suor e motricidade. Vejamos. 2.

O etnomusicólogo como sujeito situado

Além da aptidão técnico-musical, pensemos na multimusicalidade como um conceito que nos ajuda a tomar posição como sujeitos, repensando nossa “observação participante” durante o trabalho de campo. Tem-se demonstrado que os seres humanos podemos participar e nos identificar com mais do que uma comunidade sócio-cultural, de maneira quase simultânea, adquirindo e desenvolvendo mais de uma linguagem cultural, e ali obter vários graus de competência para estar em condições de construir múltiplas identidades5. É assim que entendemos a identidade do etnomusicólogo: uma identidade que depende da sua multiplicidade e matização. Esta multiplicidade de identidades tende a se ativar de uma maneira crítica justamente no trabalho de campo, ou seja, no encontro com outros sujeitos que também têm identidades múltiplas (são músicos, luthiers, aprendizes, bailarinos, mestres e professores, aqueles que ao mesmo tempo são camponeses, artesãos, motoristas e dirigentes políticos e sindicais). Mesmo assim, estamos cada vez menos preparados para reconhecer a posição dos sujeitos que se encontram no trabalho de campo, e estamos cada vez mais acostumados a achar que devemos trabalhar apenas com aspectos “tangíveis” (no sentido de serem fenômenos objetivos e concretos), deixando assim de lado outros temas tais como: as dinâmicas do poder, o peso das nossas emoções e as relações com aqueles que “nos informam”. Ainda se acredita que se abordamos estes temas, nos perderemos nos obscuros confins do desconhecido e irremediável.

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Entre vários trabalhos, destacamos o de Bárbara Kirshenblatt-Gimblett realizado entre os imigrantes e seus descendentes nos Estados Unidos, em 1992. Citado por Cirio, Norberto P. 2006. “La bi-musicalidad: una metodología relegada para el conocimiento de una cultura musical distinta”. Documento eletrônico.

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De fato, o pesquisador observa desde apenas um ângulo particular: a idade, o gênero, sua condição de estranho e a associação com o regime neocolonial, influem na sua aprendizagem6. E, no entanto a posição do etnomusicólogo continua privilegiada na intersecção da cultura e o poder, esse “outro” ainda fica condicionado pela assimetria do poder. Esse “outro” não pode falar com franqueza, precisamente por causa da opressão que experimenta (as pessoas subordinadas evitam com freqüência o discurso literal direto e adotam modos mais oblíquos de relacionamento no uso de metáforas, ironia, respostas mordazes e a burla provocativa). Estamos falando dos ressentimentos e das aspirações sob condições de repressão, dos conflitos e ironias ocasionadas pelas diferenças de classe, raça, gênero e orientação sexual7. Neste sentido, o conceito de multimusicalidade, conota o de sujeito situado8, já que põe em vigência a necessidade de tomar consciência destas diferencias (que permitem ou inibem certos tipos de discernimento). A multimusicalidade poderia ser de utilidade para movimentarmos com agilidade nesta distinção e assim, abandonar os sortilégios com os quais o poder nos conjura. Neste sentido, nos escritos sobre a ira e aflição de um Caçador de Cabeças, Renato Rosaldo propõe a idéia de sujeito situado: um sujeito cujo ofício se alimente da força cultural das emoções9, podendo se tornar em um forte paradigma de equilíbrio na pesquisa cultural, isto é: reconhecer ao outro como humano e evitar o empenho clássico de procurar representá-lo (falar em nome de), para tomar consciência do que ocorre além do razoamento acadêmico e ingressar ao mundo das emoções, com avidez de aprender delas. Daí a importância da abordagem experiencial nas pesquisas etnomusicológicas: “viver-o-que-seestuda” na pesquisa, pode ser uma opção que possui uma riqueza intransferível de conhecimento e construção de sentidos. Por tanto, “observação participante” tem que ser um princípio de trabalho que vá além de ajudar ao nativo em suas “tarefas domésticas”; implica mais um grau comprometido de intimidade cultural, implica o adquirir outra visão das coisas. Assim, a participação em eventos culturais que não necessariamente sejam sonoros pode resultar em uma

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Rosaldo, Renato. 2000. Cultura y verdad: la reconstrucción del análisis social. P. 213. Rosaldo, Ibid. P. 215 8 Rosaldo, Ibid. Pp. 23-44 9 Rosaldo inspira-se no que Clifford Geertz denomina “a força cultural dos padrões culturais”, entendida esta como “… à minuciosidade com a qual um patrão se internaliza nas personalidades dos indivíduos que o adotam, determinando [assim] a centralidade ou marginalidade que [esta tem] nas suas vidas”. Geertz, Clifford. Islam Observed. 1968. P. 111. Citado por Rosaldo. Ibid. P. 42. 7

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abertura para o outro (sem precisar de canibalismos). Para isso, além de uma prolongada estadia no “terreno”, será preciso ter uma abertura mental de clara predisposição. 3.

Além da rigidez: a sabedoria das dores do corpo

Além das relações humanas, como poderia ser a multimusicalidade uma metodologia de pesquisa etnomusicológica? A pensamos em termos de aprender a música, não só com a prática, o ouvido, o manual ou a partitura; e sim de apreendê-la também com o corpo. Embora Hood falasse da imitação como uma outra forma de aprendizagem musical oral, na verdade, cremos que ela pode – e deve - ser vista como um recurso muito mais complexo do que a simples reprodução mecânica e relativamente passiva de uma ação ou movimento motriz. Vemos na imitação um recurso de confiança que depende dos sinais do próprio corpo. Rubén López Cano nos introduz aos novos marcos teóricos que pouco a pouco estão concedendo cada vez mais importância ao corpo no universo musical10. Conceitos como autopoiesis, enação, propriocepção, emoções musicais, semiotização corporal da música, discursos corporais da música, cognição musical, entre outros, estão sendo incorporados na análise musical e seus processos de construção de motricidade, musicalidade e percepção. Também neste sentido, Ramón Pelinski reconhece que a corporalidade da experiência musical colabora de maneira determinante na práxis musical, e afirma que ela também determina na construção de significados na música. Segundo o autor, os humanos temos condições neurofisiológicas que possibilitam que compartilhemos nossa experiência musical de forma intersubjetiva, incidindo inclusive, na construção social do significado da música11. Neste sentido, além do reconhecimento das posições identitárias dos sujeitos e das próprias, a multimusicalidade implica também uma relação dialógica com o próprio corpo. Referimos-nos à interiorização alternativa da música, fazendo-a corpo. Um tipo de memória corporal que inscreva a música nos nossos corpos. Aprendizagem, então, que se traduz em dores, gestos e disposições corporais; em suma, uma linguagem que se inscreve de forma perene no corpo.

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Cano, Rubén L. 2005. “Los cuerpos de la música. Introducción al dossier Música, cuerpo y cognición”. Documento electrónico. O autor menciona, por exemplo, os trabalhos de análise musical da Teoria Ecológica (Gibson, 1986; William Luke Windsor, 1995 e 2004; Eric Clarke, 2005; e André Oliveira e Luis Oliveira, 2003); da Teoria Cognição Inativa (Varela, Thompson e Rosch 1991; Mark Reybrouck, 2001 e 2005; e Raúl Lopez Cano, 2004); e da Teoria das Contingências Sensoriomotoras (O'Regan e Noë, 2001; e Alicia Peñalba, 2004). 11 Pelinski, Ramón. 2005. “Fragmentos sobre corporalidad y experiencia musical”. Citado por Cano. Op cit.

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O final

A etnomusicologia deve ser um sinônimo de saber escutar não apenas os sons, mas também, escutar ao “outro”. Saber escutar com a pele e as marcas que nela vão ficando escritas. Como poderíamos os etnomusicólogos aprender da sabedoria dos nossos corpos musicais, na medida em que aquilo nos ajude a nos situar como sujeitos no trabalho de campo? Entra tantas possíveis, uma opção é inserir o assunto no processo mesmo de formação disciplinar inicial nas academias. Como pensar em uma multimusicalidade nas academias de Brasil, da Bolívia? Algumas das possíveis respostas às questões acima formuladas implicariam a necessidade de várias formas de apertura das nossas instituições. Analisemos o caso Brasileiro. Pensar tal vez em: a) pesquisar e sistematizar as diversas culturas musicais tradicionais existentes (capoeira, candomblé, música africana, música afro-latina, entre outros); b) constituir programas de ensino sobre estes sistemas musicais tradicionais como parte dos programas de Grade Curricular (valor específico de carga horária); c) instaurar novas disciplinas teóricas e práticas (instrumentos nativos, sistemas de notação não-ocidental, epistemologia ou filosofia musical, história da construção social do corpo, música e corporalidade, dança como linguagem musical, etnocoreografia, etnocenografia, etc.); d) contratar os mestres da música não-ocidental como professores docentes permanentes; e) consolidação de espaços de interação prática ligados à aprendizagem, tais como os Laboratórios de Pesquisa (com bibliotecas especializadas e Bases de Dados com materiais de áudio para a consulta permanente e descentralizada); f) realizar atividades dirigidas ao desenvolvimento de um pensamento etnomusicológico nos níveis de Graduação e Licenciatura em música; g) estabelecer projetos com embaixadas e consulados de outros países, e, finalmente; h) produzir materiais a serem divulgados fora das escolas. Será que apenas desde o surgimento de novas formas podemos pensar numa reforma? Esta poderia ser uma estratégia voltada à ampliação dos conceitos sobre o que poderia considerar-se um nível superior de aprendizagem em música, sobre tudo em termos de diversidades cultural. Por isso, esperamos que estas idéias possam contribuir ao desenvolvimento das nossas academias, ainda que tais tarefas possam comportar diversas dificuldades e, sobre tudo, complexas mudanças na vida institucional delas. Decisões estas que podem se transformar no reflexo da força cultural dos nossos corpos, interesses e paixões. 5.

Notícias recentes 5

Em Buenos Aires a carreira de antropologia corre o risco de desaparecer devido aos conflitos político-partidários ao interior de algumas das universidades. Na França, esta disciplina começa a deixar de ser uma disciplina independente, para se fundir a outras em um conjunto denominado "Ciências históricas". Na Espanha, o Ministério da Educação está procurando integrar e fundir a antropologia com a sociologia, enquanto que nos Estados Unidos, a CIA começou a recrutar antropólogos para investigar e conhecer o funcionamento de grupos terroristas, assim como entender as respostas sociais às pandemias e imigrações em massa, com o principal objetivo de facilitar à CIA e às tropas norte-americanas, a adaptação à mentalidade do “inimigo”. O que é que tem a ver isto com nossas Escolas? Estas notícias nos lembram a forte herança da antropologia sobre a etnomusicologia. E, justamente na antropologia, podemos observar um contexto acadêmico que exige de todos nós, uma revisão dos objetivos e procedimentos éticos do afazer científico, assim como também uma tomada de posição clara e imediata. Achamos que, o que poderíamos fazer, é mais do que redigir Protocolos Éticos para botá-los na Internet. O que podemos fazer, é olhar-nos ao espelho e começar a pensar profundamente no que encontrarmos nesta ação construtiva.

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Bibliografia Augé, Marc 1998 El viaje imposible. Ed. Gedisa. Barcelona. Barfield, Thomas (Ed.) 2000 Diccionario de antropología. Victoria Schussheim Trad. Siglo Veintiuno Editores. México Cirio, Norberto Pablo 2001 “La bi-musicalidad: una metodología relegada para el conocimiento de una cultura musical distinta”. In: Revista Agrileira. Número 1. http://www.agrileira.com/numeros/1/investigacion_01_bimusic_c.htm [Consulta: 23-06-06] Cotrell, Stephen 2004 “Bimusicality, Western Art Msic, and ethnomusicology”. In: SEM Anual Meeting. http://www.conferences.indiana.edu/sem2004/abstract10-25-04-Fix.pdf [Consulta: 23-06-06] Dolmetsch Online Music Dictionariy “Bimusicality”. In: Dolmetsch Online Music Dictionariy http://www.dolmetsch.com/defsb2.htm [Consulta: 23-06-06] Encarta 2006 “Bimusicalidad en la teoría y en la práctica”. In: Etnomusicología. Microsoft® Encarta® 2006 [DVD]. Microsoft Corporation, 2005. Geertz, Cliford 1987 El antropólogo como autor. Ed. Paidós. Barcelona. Hood, Mantle 1960 “The Challenge of Bi-musicality.” Ethnomusicology Vol. IV, No. 2. Pp. 55-59. 1971 The ethnomusicologist. McGrow-Hill Book Company. New York. 1985 Interview in UCLA’s Institute of Ethnomusicology. Los Angeles: Regents of the University of California. No. 1 961-1974. 1999 Interview by author. Tape recording. November 19. Austin, Texas. Hood, Mantle and Boris Kremenliev. 1959 Proposal to Establish an Institute of Ethnomusicology (Comparative Musicology). University of California. Los Angeles Jiménez, David M. “Bimusicalismo y composición”. In: UNAM – ENM. http://www.tuobra.unam.mx/publicadas/011124165629-.html [Consulta: 23-06-06] Merriam, Alan 1964 The anthropology of music. Northwestern University press. Evanston, Illinois Myers, Helen 1992 Ethnomusicology. An introduction. The Norton/Grove Handbook in Music. W.W. Norton & Company. New York. Nettl, Bruno 2005 The study of ethnomusicology. Thirty one issues and concepts. Urbana: University of Illinois press. Illinois. Nketia, J.H. Kwabena 1998 “The Scholarly Study of African Music: A Historical Review.”. In: The Garland. s/d 2000 Interview by Jacqueline Cogdell DjeDje, No. 1 February 2000, Westwood, California. O’flynn, John 2005 “Re-appraising ideas of musicality in intercultural contexts of music education”. In: International Journal of Music Education. Vol. 23: 191-203. Pelinski, Ramón 2006 “¿Qué es Etnomusicología?” In: III Congreso de la IASPAM. Edición a cargo de Ramón Pelinski y Vicent Torrent. 23 de Mayo de 1997. Edición de SIBE 2006. Villa Elisa. Rosaldo, Renato 2000 Cultura y verdad: la reconstrucción del análisis social. Abya-yala. Quito. Rourke, Mary 2006 “Ethnomusicology founder Mantle Hood, 87, dies”. Nota de prensa publicada en Los Angeles Times. 10-0805. Reproducida en The Arizona Republic. Online Print Edition. Jun 23. http://www.azcentral.com/arizonarepublic/local/articles/0810death10.html [Consulta: 23-06-06]

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