Bioética e direitos humanos: o direito à morte fundamentado na dignidade

June 26, 2017 | Autor: Camila Añez | Categoria: Utilitarianism, Utilitarismo, Direitos Humanos, Eutanasia, Dignidade
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Bioética e direitos humanos: o direito à morte fundamentado na dignidade Bioethics and Human Rights: The right to die grounded in dignity Camila Añez1

Resumo: Em 2005, a Conferência Geral da UNESCO adotou a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH). Entre os princípios a serem respeitados encontra-se o da dignidade humana. De acordo com Roberto Andorno, duas acepções dessa noção podem ser destacadas: a que defende a dignidade como um valor intrínseco e a que defende como um valor relacional. Kant defende a primeira: a dignidade é um valor absoluto, incondicional e incomparável que não depende de um preço de mercado ou afetivo para ser estabelecido. Supondo que a DUBDH considera esta noção, será que a defesa da morte digna se segue desse fundamento? Procuraremos argumentar que qualquer que seja o conceito de dignidade que se utilize, ele não será suficiente para nortear as ações relacionadas à bioética. Para isso, apresentaremos de forma breve o Utilitarismo de John Stuart Mill e as noções de liberdade e autonomia encontradas no ensaio A Liberdade. Nosso objetivo será mostrar, mesmo que rasamente, que a teoria milliana nos proporciona melhores ferramentas para lidar com os problemas de bioética, especialmente quando se trata de problemas relacionados ao direito à morte. Palavras-chave: Bioética. Dignidade. Kant. Morte Digna. Utilitarismo. Abstract: In 2005, UNESCO's General Conference adopted the Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (UDBHR), which set forth human dignity as one of its fundamental principles. According to Roberto Andorno, two meanings of this notion can be distinguished: one that defends dignity as an intrinsic value and another one, which defends dignity as a relational value. Kant defends the first one: dignity is an absolute, unconditional and incomparable value, which doesn't depend on a market or affective price to be established. Assuming that the UDBHR considers this notion, will the defense of dignified death follow that foundation? We will therefore seek to argue that whatever the concept of dignity that we may choose to use, it will not be enough to guide the actions related to bioethics. For this, we will present briefly Utilitarianism by John Stuart Mill and the notions of freedom and autonomy found in the essay On Liberty. Our purpose is to show, even in a shallow manner, that the Millian theory provides us the best tools to deal with the questions of bioethics, especially when it comes to issues related to the right to die. Keywords: Bioethics. Dignity. Dignified Death. Kant, Mill. Utilitarianism.

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Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, e Graduanda de Licenciatura em Filosofia pela mesma Universidade. Bolsista voluntária PIBIC/CNPq. Orientadora Prof.ª Dr.ª Milene C. Tonetto. E-mail: [email protected].

Bioética e direitos humanos: o direito à morte fundamentado na dignidade

Introdução

Em 2005, a Conferência Geral da UNESCO adotou a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH). A Declaração articula princípios éticos que são compartilhados por bioeticistas e profissionais da saúde de vários países com diferentes origens culturais, históricas e religiosas. No entanto, apesar de haver esse interesse em fazer prevalecer princípios éticos que sejam universais, percebe-se que há um problema anterior aos princípios, a saber, o de basear os direitos humanos e princípios bioéticos no conceito de dignidade humana. De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 1948, “a dignidade é inerente a todos os membros da família humana” (UNESCO, 1948, p.2). Entendemos que a Declaração de 2005 adota a mesma interpretação de dignidade que a de 1948, tendo em vista que ambas têm finalidades similares. No entanto, em nenhuma das Declarações há esclarecimento do que venha a ser de fato a dignidade, de maneira a nortear as ações dos indivíduos e da comunidade científica. Apenas encontramos tentativas de esclarecimentos em artigos publicados em revistas científicas e livros. Porém, tais tentativas, consideramos serem confusas, pois ora utilizam a dignidade como um princípio, ora como um valor e ora como um direito. O filósofo Immanuel Kant sustenta que a dignidade é um valor incondicionado e inerente a todos os seres racionais; ela é uma propriedade metafísica, estática, portanto, não é possível mensurá-la ou perdê-la. Contrário a este sentido kantiano, a dignidade adquire sentidos diversos e se torna passível de ser mensurada. Em outras palavras, ela pode ser perdida, negada, recuperada; serve para expressar estados mentais e socioeconômicos, para defender posições antagônicas e para descrever situações de vida. Deste modo, a dignidade seria o que Roberto Andorno chama de dignidade dinâmica. Este sentido descreve condições de vida que estão relacionadas aos interesses básicos dos indivíduos, isto é, com a noção de bem-estar. Mill já falara sobre os interesses essenciais em sua obra Utilitarismo (1863), que são de segurança, liberdade e qualidade de vida (abrigo, alimentação, trabalho). Isto leva a crer que a dignidade estaria, pelo menos nessa acepção, mais relacionada às condições de bem-estar e com o princípio da autonomia estabelecidos por Mill. Indo de encontro à definição de Andorno, aqueles que defendem o direito à morte, utilizam o conceito de “dignidade” como algo quantitativo, algo que se perde ou ganha,

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se retira ou devolve; pois se é indigno viver com sofrimento permanente – como muitos afirmam que sucede nessas circunstâncias – então, ao morrer através da eutanásia ou do suicídio assistido, o indivíduo “recupera” a sua dignidade, mesmo que não a “usufrua”. Tem-se, portanto, uma ressignificação da noção de dignidade; ou melhor, uma dupla acepção do que ela é: (i) ética (dinâmica) e (ii) ontológica (estática), sendo a primeira objeto de estudo deste trabalho. Procurarei mostrar que, se aceitarmos que a dignidade é uma propriedade moral relevante que auxilia na resolução de problemas bioéticos, a dignidade ética (dinâmica) é a mais plausível para fundamentar o direito à morte. Em seguida, argumentarei que essa tese não funciona sozinha, pois precisa de outros conceitos que a sustente. Para isso, recorrerei à teoria utilitarista de John Stuart Mill.

Dignidade ontológica e Dignidade ética

Roberto Andorno em seu livro Bioética y la dignidad de la persona (2012), procura esclarecer entre outras coisas, o que é dignidade e qual noção da mesma é utilizada na Declaração de 1948. Segundo ele, a noção de dignidade possui dois sentidos: dignidade intrínseca e dignidade ética. A primeira é a que se refere ao valor absoluto de todo ser humano em virtude de sua humanidade. Seria, portanto, a noção kantiana. A segunda noção faz referência às ações da pessoa, em suas palavras,

Em tal sentido, o ser humano se faz ele mesmo, maiormente digno quando a sua conduta está dirigida à realização do bem. Esta dignidade é o fruto de uma vida virtuosa e, portanto, admite diversos graus. Assim, pode-se dizer que um homem honesto tem mais dignidade que um vigarista. Trata-se de uma dignidade dinâmica, no sentido de que é construída por cada um através do exercício de sua liberdade. (ANDORNO, 2012, p. 73, tradução nossa).

Nesta noção de “dignidade dinâmica”, a dignidade não parece ter mais a posição de valor absoluto, adquirindo, então, um valor relacional. Relacional por que diz respeito à relação entre a pessoa e o que ela considera ser o “bem” a ser feito, ao contrário da noção intrínseca em que o valor se encontra no próprio ser. Outro ponto a ser ressaltado é que se exalta a vida virtuosa, isto é, as condutas consideradas boas em uma comunidade e que promoveriam uma vida feliz. Por fim, quando Andorno diz que a dignidade dinâmica “é construída através do exercício da sua liberdade”, parece

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afirmar que a realização do bem se dá por meio da liberdade. Ou seja, numa interpretação ampla, quando os indivíduos exercem suas liberdades, são capazes de escolher condutas valiosas que os levarão a ter uma vida boa e a realizar o bem, consequentemente, serão dignos. Esta tentativa de Andorno de esclarecer os sentidos de dignidade não parece ser suficiente para resolver problemas bioéticos, já que em algumas situações – segundo os interesses científicos ou dos indivíduos envolvidos – pode-se recorrer à utilização do sentido intrínseco2 (ontológico) e em outras, do sentido ético; mesmo sabendo que as Declarações de 19483 e 2005 adotam o sentido kantiano. Deste modo, podemos dizer que, das duas acepções apresentadas, à primeira vista a dignidade dinâmica parece ser mais plausível e poderia facilitar a defesa do direito moral à eutanásia voluntária e ao suicídio assistido; outra vantagem é que este conceito seria o mais adequado tendo em vista o uso comum que se dá ao termo. Porém, ao aprofundar-nos na investigação, verificamos que este conceito necessita de uma sustentação conceitual adicional. Mais adiante apresentaremos os motivos. Antes, consideremos alguns contraexemplos. Se aceitarmos que a única coisa que nos torna seres morais e detentores de direitos é a dignidade, sendo esta dinâmica em detrimento da dignidade estática, então concordamos que ela é um valor mensurável e adquirido, ao invés de ser um valor incondicionado e intrínseco. Pois bem, imaginemos que um indivíduo X é um ladrão e assassino, podemos dizer que ele, dada a concepção de dignidade dinâmica, ou não tem dignidade ou que a tem em pouca quantidade. Sendo assim, nós como sujeitos mais dignos que ele, poderíamos fazer o que quiséssemos com a sua vida, pois consideramos que a sua vida e suas ações não possuem valor. Se pelo contrário, aceitássemos a dignidade estática ao invés da dinâmica, poderíamos matar o indivíduo X justificando esta ação com base no princípio de retaliação de Kant. Segundo ele, 2

Deixaremos de lado a discussão acerca da noção kantiana de dignidade, por considerarmos que ela envolve acepções metafísicas de valor e, portanto, é ontologicamente cara. Apenas bastará saber que as Declarações de 1948 e 2005 aceitam-na, mas que na hora de se estabelecer direitos e exigir que estes se cumpram, a concepção que parece prevalecer é a noção dinâmica. Temos, então, uma contradição entre o fundamento dos direitos e a prática em si mesma. 3 Em artigo, Andorno afirma que “[é] certo que o direito internacional não fornece uma definição precisa da noção de dignidade, apenas se limita a afirmar que ela é intrínseca (ou inerente) a todos os membros da família humana (Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948) e que os direitos humanos derivam dela (Pactos Internacionais dos Direitos Humanos de 1966, Preâmbulo). No entanto, mesmo sendo vagas, estas duas afirmações brindam uma orientação muito valiosa acerca do significado da ideia de dignidade. (Tradução nossa) ANDORNO, R.. El principio de dignidad humana en el bioderecho internacional. Boletín del Consejo Académico de Ética en Medicina, Argentina, 8, mar. 2012. Disponível: . Acesso: 01 out. 2014.

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Todo aquele que furta torna a propriedade de todos os demais insegura e, portanto, priva a si mesmo (pelo princípio da retaliação) de segurança em qualquer propriedade possível. Ele nada possui e também nada pode adquirir; porém, de qualquer modo quer viver e isto só é possível se os outros o sustentarem. Mas uma vez que o Estado não irá sustentá-lo gratuitamente, terá que ceder a este suas forças para qualquer tipo de trabalho que agrade ao Estado (trabalhos forçados ou trabalho penitenciário) e é reconduzido à condição de escravo durante um certo tempo ou permanentemente, se o Estado assim julgar conveniente. Se, porém, ele cometeu assassinato, terá que morrer. Aqui não há substituto que satisfará a justiça. (AA, VI 333)

Agora pensemos em outro exemplo: o indivíduo Y vive na extrema pobreza – como se diz comumente, vive em condições indignas – e em virtude disso acaba roubando comida em um supermercado. Nós, pessoas dignas, independente da acepção de dignidade que aceitarmos, poderíamos fazer o que quiséssemos com ele, castigá-lo ou perdoá-lo pela mesma razão do exemplo anterior. Seguindo essa mesma lógica da dignidade dinâmica, nos casos da eutanásia voluntária e de suicídio assistido, poderíamos alegar que a dignidade se perdeu e que ajudar os indivíduos a morrerem de maneira responsável é o melhor a ser feito; mas também, como estes indivíduos não possuem mais dignidade, poderíamos torturá-los. Ou seguindo a lógica da dignidade estática (kantiana), não ajudaríamos os indivíduos a morrerem em respeito à dignidade; contrariando, inclusive, a vontade dos indivíduos. De certa forma, seria uma espécie de tortura não ajudá-los a morrerem, por mais que a intenção seja “boa”. Esses exemplos nos levam a concluir que segundo a noção de dignidade dinâmica esclarecida por Andorno, o nosso comportamento em relação aos demais seria arbitrário, aleatório, não haveria justiça e muito menos respeito pelos indivíduos contrariando a proposta das Declarações. Dito de outro modo, esta noção justifica ações moralmente indefensáveis. Igualmente ocorre com a noção kantiana, pois apesar de ser um valor intrínseco a todo ser humano, ele não garante que injustiças ocorram contra os indivíduos inocentes e culpados. Ou seja, um assassino ao matar sua vítima desconsidera qualquer valor que ela possa ter. E o Estado, segundo a explicação kantiana, pode matar o assassino com base no princípio de retaliação 4. A dignidade, portanto, não inibe que infrações e injustiças sejam cometidas. 4

Obviamente há toda uma explicação que o autor dá para justificar este direito do Estado, mas não entraremos no mérito de abordá-la, pois foge ao nosso escopo. Basta tratar de compreender a vagueza na noção de dignidade e por que consideramos que ela é contraditória. Para uma compreensão mais aprofundada, ver: SANTOS, Robinson. A concepção de justiça penal na Doutrina do Direito de

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A morte digna

Para compreendermos os argumentos pró-morte digna, devemos compreender em que consistem as práticas que abarcam este conceito. Tais práticas são a eutanásia e o suicídio assistido. A eutanásia segundo Peter Singer significa “’morte serena, sem sofrimento’, mas hoje o termo é usado para referir-se à morte daqueles que estão com doenças incuráveis e sofrem de angústia e dores insuportáveis; é uma ação praticada em seu benefício” (SINGER, 1993, p. 186). Em relação ao modo de ação, ela é classificada como ativa ou passiva. De acordo com Dall’Agnol, “[a] primeira consiste no ato deliberado de A provocar a morte de B; enquanto que na segunda, B morre porque não se inicia uma ação por parte de A para impedi-la” (DALL’AGNOL, 2004, p. 182). Por último, ela também é classificada quanto ao consentimento do paciente, podendo ser voluntária, não-voluntária e involuntária. A voluntária ocorre a pedido do paciente (ex. indivíduos com câncer avançado e terminal solicitam ajuda para morrer); a não voluntária ocorre quando não há/houve manifestação do paciente (ex. casos de indivíduos em coma irreversível); e a involuntária ocorre contra a vontade do paciente (ex. prescrever uma alta dose de morfina para aliviar a dor, porém a consequência indireta é a morte). O suicídio assistido por sua vez é a prática que tem por objetivo auxiliar o paciente a pôr fim à sua própria vida quando este se encontra impossibilitado de fazê-lo sozinho5. Neste tipo de prática, o paciente recebe a ajuda de uma equipe especializada, geralmente composta por médicos, enfermeiros e assistentes sociais, que prescreve a dose de substância letal que ele deverá ingerir por conta própria, já seja uma substância líquida através de um canudo ou uma substância gasosa onde o paciente acionará um dispositivo que a liberará, levando-o à morte. Feito isto, passemos a ver alguns países que a eutanásia e o suicídio assistido são legalizados.

Kant. ethic@ - An international Journal for Moral Philosophy, [S.l.], v. 10, n. 3, p. 103-114, mar. 2012. ISSN 1677-2954. Disponível em: . Acesso em: 10 Out. 2014. doi:http://dx.doi.org/10.5007/1677-2954.2011v10n3p103. 5 Um dos casos que mais teve repercussão foi do espanhol Ramón Sampedro, que em 1998 morreu após ingerir cianeto de potássio graças à ajuda de “mãos amigas”.

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A Bélgica permite a eutanásia ativa voluntária para pacientes adultos desde 20026 e para crianças que sofrem física e psicologicamente em decorrência de doença incurável e/ou terminal desde 20147. Já na Holanda8 a eutanásia voluntária ativa e o suicídio assistido são permitidos desde 2002 para adultos e crianças maiores de doze anos. De acordo com a lei holandesa há cinco requisitos que devem ser cumpridos em relação à petição dos indivíduos: 1) a solicitação deve ser voluntária, não restando dúvidas a respeito desta decisão; 2) insistente; 3) deve ser refletida; 4) for livre da pressão de terceiros; e, 5) deve ser escrita pelo próprio solicitante ou em casos que este não puder, por uma pessoa que não tiver interesse material com a morte dele. Entre os aspectos relevantes do estado de saúde9 dos indivíduos encontram-se: 1) prognóstico de não recuperação; 2) não houver alternativa aceitável para o paciente que alivie a sua dor; e, 3) a doença for grave e incurável. Como podemos ver, não há menção à dignidade e, sim, à autonomia e ao bem-estar dos indivíduos. Isto nos leva a pensar que a dignidade não é uma propriedade moral relevante ou se o é, precisamos aceitar que ela depende de outros conceitos para ser bem sucedida e evitar danos. Na próxima sessão veremos uma possível solução para trabalharmos as questões relacionadas à bioética, especialmente, aquelas que dizem respeito ao direito à morte.

Uma possível solução 6

Lei de 22 de setembro de 2002. Disponível em: . Acesso: 17 de mai. 2014. 7 Emenda à Lei de 2002, aprovada em fevereiro de 2014. Disponível em: . Acesso: 17 de mai. 2014. 8 SIMON LORDA, Pablo y BARRIO CANTALEJO, Inés M. La eutanasia en Bélgica. Rev. Esp. Salud Publica [online]. 2012, vol.86, n.1, pp. 5-19. ISSN 1135-5727. 9 De acordo com a Constituição da OMS “saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de males ou enfermidades” (OMS, 1946, p.1, tradução nossa), dito de outro modo, doença é ausência de saúde. Esta organização também classifica as doenças segundo as causas, sintomas, etc. Seria impossível fazer uma lista completa das doenças que levam os indivíduos a pedirem para serem submetidos a um procedimento de eutanásia [ou suicídio assistido]. No entanto, se diz comumente que eles padecem de doenças incuráveis e/ou terminais. Sendo assim, para esclarecer ainda mais o conceito de doença incurável, deverá considerar-se que estas doenças também são intratáveis – seja porque não existe tratamento para ela ou porque já se fez tudo o que se pôde, mas não se obtiveram resultados positivos; ou são degenerativas, de modo que o estado de saúde é irreversível, ou seja, não melhora. AÑEZ, C. A permissibilidade moral da eutanásia ativa voluntária e os princípio da liberdade e da utilidade de John Stuart Mill. Orientado por Milene C. Tonetto. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Filosofia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Graduação em Filosofia. Florianópolis, 2013. p. 23.

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Em relação à autonomia, encontramos em John Stuart Mill um dos seus maiores defensores. Em A Liberdade (1859), ele discursa e introduz dois princípios que servem para nortear as ações dos indivíduos e regulamentar a liberdade social e privada. O princípio da autonomia diz que “[s]obre si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano”. (MILL, 2000, p.18). De acordo com Mill, cada um é senhor do seu próprio corpo e mente, por conseguinte, tem a liberdade de escolher como quer viver e os meios para alcançar os seus objetivos. O segundo é o princípio do dano, o qual estabelece quando é legítimo interceder na liberdade dos indivíduos. Para Mill, os indivíduos devem viver suas vidas de acordo com os seus interesses, valores e crenças com os quais se identifica, pois são importantes para o bem-estar e para o desenvolvimento pessoal. Na obra Utilitarismo, Mill apresenta o princípio da utilidade, segundo ele: O credo que aceita a utilidade ou o princípio da maior felicidade como a fundação da moral sustenta que as ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrário da felicidade. Por felicidade se entende prazer e ausência de dor; por infelicidade, dor e a privação do prazer. (MILL, 2000, p. 187).

A felicidade, neste caso, é entendida como bem-estar. Mill reconhece que a felicidade está relacionada com prazer e a infelicidade com ausência de prazer, deste modo, os prazeres são fundamentais para a realização da felicidade. Os prazeres, em Mill, distinguem-se não somente pela quantidade, mas também segundo a qualidade: há prazeres inferiores - corpóreos - e prazeres superiores - mentais que dizem respeito à faculdade intelectual, estes últimos seriam mais valiosos. O utilitarismo sustenta que a felicidade é o maior valor possível e que as ações são moralmente corretas ou não na medida em que são meios adequados para atingir esse fim último. Prevendo as críticas ao seu utilitarismo, em nota explicativa Mill esclarece: “considera-se que todas as pessoas têm direito à igualdade de tratamento, a menos que alguma conveniência social reconhecida exija o contrário” (MILL, 2000, p.275). Como bem aponta Santos (2013, p. 20): “Mill defende que todos têm direito igual à felicidade e que esta noção participa do próprio princípio de utilidade.”.

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Considerando que os indivíduos são diferentes, há interesses essenciais em comum e que devem ser garantidos e respeitados na forma de direitos que protegem a nossa segurança e liberdade. Santos sugere que: A segurança provida pelo estabelecimento dos direitos e pelo seu cumprimento por partes dos indivíduos da sociedade assegura uma sociedade na qual há mais confiança entre as partes, mais liberdades para seguir projetos de vida não prejudiciais a terceiros e, consequentemente, gera uma sociedade mais feliz. Assim, a proposta milliana acerca da defesa dos direitos seria a de que a sociedade conseguiria atingir o bem-estar em maior grau se respeitassem essas regras que salvaguardam o que é necessário para o alcance do telos. (SANTOS, 2013, p. 51).

Neste ponto, poderíamos acrescentar que o direito à morte se fundamenta, principalmente, nos conceitos de autonomia e bem-estar utilitaristas, do que na dignidade propriamente dita. Pois, se aceitarmos, que os pedidos para receber auxílio à morte são autônomos, racionais e envolvem a concepção de qualidade de vida, então, a dignidade deixa de ter o status que se presume na Declaração ou da acepção proposta por Andorno. Além do mais, reconhecer como um direito que as pessoas recebam o auxílio para morrer é garantir que os direitos humanos sejam promovidos para todos os indivíduos envolvidos. Dado os problemas enfrentados pelas concepções de dignidade, ou sua falta de clareza (como no caso da dignidade ética) ou sua fragilidade e insuficiência (como no caso da dignidade dinâmica), parece ser plausível então recorrer a uma concepção utilitarista de autonomia que nos permita defender de modo substancial o direito à morte. A teoria moral utilitarista de Mill é passível de críticas por ser uma espécie de consequencialismo, mas não cabe aqui expô-las. Contudo, ela considera os indivíduos como parte da sociedade, mas também como personalidades distintas e únicas. Ele assume que o Estado tem o dever de procurar promover e garantir que seus indivíduos desenvolvam suas identidades segundo suas necessidades e interesses; é dever do Estado promover condições para que os indivíduos possam usufruir de suas liberdades e escolher seus planos de vidas. Entendemos que o direito à morte, se fundamenta nesta teoria ao invés de fundamentar-se em qualquer que seja o conceito de dignidade, pois ela fornece os melhores argumentos e melhores embasamentos filosóficos para o estabelecimento de direitos e deveres que as sociedades merecem. O mesmo se aplica para as Declarações Universais e outros documentos oficiais que visam o bem-estar dos Vol. 7, nº 1, 2014. www.marilia.unesp.br/filogenese

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indivíduos e procuram evitar que abusos sejam cometidos nas áreas da saúde, jurídica, política, entre outras.

Considerações finais

Conforme a argumentação exposta ao longo do texto há graves problemas no que tange à aceitação de uma concepção de dignidade que implique que os indivíduos possam perdê-la ou adquiri-la. Por mais que aceitemos que a acepção da dignidade dinâmica é a que fundamentaria de modo mais satisfatório o direito à morte, ela não seria suficiente, levando-nos a recorrer a conceitos mais consistentes para justificar esse direito. Também tentamos defender, que tal concepção, se tomada isoladamente, nos levaria a aceitar atitudes que são obviamente imorais. Pensamos, então, que a tese utilitarista nos dá melhores instrumentos para lidar com alguns problemas bioéticos, pois nos oferece critérios claros e intuitivos para a tomada de decisão. Ao recorrermos ao princípio de autonomia milliano e à concepção de bem-estar temos um instrumental completo para a defesa e fundamento do direito à morte, pois eles (o princípio da autonomia e a concepção de bem-estar) nos garantem que as atitudes não serão arbitrárias ou cruéis, uma vez que nos permite agir apenas em conformidade com as escolhas esclarecidas das pessoas levando em conta seu bem-estar e plano de vida. Um segundo aspecto que nos leva a pensar que a tese utilitarista seja uma melhor saída para a resolução dos problemas bioéticos é a de que ela não envolve acepções metafísicas de valor, sendo, portanto, ontologicamente econômica. Como vimos argumentando, tanto as Declarações como os teóricos dedicados às questões éticas, não apresentam qualquer definição clara do que seja a dignidade. Supor uma característica moral relevante que todos os indivíduos possuem, nos dá o ônus de explicá-la de modo satisfatório. Salvo engano, a concepção de dignidade pressuposta nas Declarações carece no mínimo de clareza e também nos deixa com uma tese ontologicamente mais cara. A tese utilitarista possui, por outro lado, economia ontológica por não pressupor qualquer característica moral relevante metafísica e parece ser mais clara por definir com exatidão o que seja autonomia e bem-estar (os dois conceitos-chave da tese). Dessa forma, parece plausível supor que uma tese utilitarista parecida com a de Mill nos ofereça um melhor aparato técnico para o enfrentamento dos problemas bioéticos e também nos oferece boas justificativas morais para a defesa da eutanásia voluntária.

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Referências ANDORNO, R. Bioética y Dignidad de la Persona. Madrid: Tecnos, 2012. DONNER, Wendy; FUMERTON, Richard. John Stuart Mill. Lisboa: Edições 70, 2011. ______. El principio de dignidad humana en el bioderecho internacional. Boletín del Consejo Académico de Ética en Medicina, Argentina, 8, mar. 2012. Disponível em: . Acesso: 24 de fev. 2014. GENTZLER, J. What is a death with dignity? In: Journal of Medicine and Philosophy, 2003, Vol. 28, nº 4, pp. 461-487. KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70. 117p. ______. Metafísica dos Costumes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. 507p. LUPER, S. A Filosofia da Morte. São Paulo: Madras, 2010. MILL, J. S. A Liberdade;Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000. MULGAN, T. Utilitarismo. Rio de Janeiro: Vozes, 2012. RACHELS, J. Os Elementos da Filosofia Moral. São Paulo: Manole, 2006. SANTOS, B. Utilitarismo e Justiça Distributiva. Uma defesa da tese de J.S.Mill. Orientado por Milene C. Tonetto. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós Graduação em Filosofia. Florianópolis, 2013. THE WORLD FEDERATION OF RIGHT TO DIE SOCIETIES. Manifesto. Disponível em: . Acesso: 31 de jul. 2013. DERECHO A MORIR DIGNAMENTE. Quiénes somos. Disponível em: < http://www.eutanasia.ws/quienes_somos.html>. Acesso: 15 de set. 2013. EXIT INTERNATIONAL. About Exit Internacional. Disponível em: http://www.exitinternational.net/page/AboutUs>. Acesso: 31 de jul. 2013. FINAL EXIT NETWORK. Our Guiding Principles. Disponível em: . Acesso: 31 de jul. 2013. FUNDACIÓN PRO DERECHO A MORIR DIGNAMENTE. Autonomía y Derechos del Paciente. Disponível em: . Acesso: 15 de set. 2013.

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