Bioética e pesquisa em saúde mental

June 29, 2017 | Autor: B. Cátedra UNESCO | Categoria: Bioethics, Bioética, Bioetica
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Bioethics and research into mental health

Marlene Braz 1 Fermin Roland Schramm 1

1 Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1.480/914, Manguinhos. 21041-210 Rio de Janeiro RJ. [email protected]

Abstract This article discusses research in the field of mental health, examining the ethical issues involved and the use of Informed Consent. In order to achieve these objectives two main approaches were used: (1) a brief history of the different treatments and research with patients with mental illness or disability; (2) theoretical and conceptual analysis of the main problems concerning the mental health field, namely the notion of vulnerability, responsibility and autonomy and the use of placebo control groups. Two main questions prompted the reflection on whether the patient with a mental disorder can sign an Informed Consent, and whether the use of a placebo is acceptable. The existence of antagonistic and contradictory positions indicates that mental health research is hampered by biases that are difficult to overcome. Ethical investigation that may contribute to the healing of mental disorders should not however be overlooked merely because of the difficulties involved in its implementation. It must be borne in mind that changes occurring in the context of Psychiatric Reform in Brazil are gradually altering archaic concepts about what constitutes mental illness and how this group should be understood and treated. Keywords Bioethics, Research on vulnerable subjects, Mental disorders, Mental illness, Use of a placebo, Autonomy

Resumo Este artigo discute as pesquisas no campo da saúde mental, analisando questões éticas envolvidas e uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para alcançar os objetivos, foram seguidos dois percursos principais: (1) breve histórico dos diferentes tratamentos e pesquisas com pacientes com transtornos mentais ou deficiência; (2) análise teórico-conceitual dos principais problemas relativos ao campo da saúde mental, quais sejam a noção de vulnerabilidade, competência e autonomia e o uso de grupos-controle com placebo. Duas perguntas principais moveram a reflexão: se o paciente com transtornos mentais pode assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e se uso de placebo é aceitável. Concluiu-se pela existência de posições antagônicas e contraditórias, indicando que a pesquisa em saúde mental está minada por vieses de difícil solução. Não se pode, entretanto, deixar de lado, pelas dificuldades, as investigações éticas que contribuam para a cura dos transtornos mentais, devendo se atentar para as mudanças que vêm ocorrendo em razão da Reforma Psiquiátrica no Brasil, que tem mudado concepções arcaicas acerca do que seja doença mental e de como esse grupo deve ser compreendido e tratado. Palavras-chave Bioética, Pesquisa em vulneráveis, Transtornos mentais, Doença mental, Uso de placebo, Autonomia

DEBATE DEBATE

Bioética e pesquisa em saúde mental

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Introdução O incremento de pesquisas envolvendo seres humanos no mundo, conjuntamente com os abusos de profissionais de saúde contra populações vulneráveis, levou muitos governos a criarem Comissões Nacionais de Ética em Pesquisa com a finalidade de proteger as pessoas envolvidas em pesquisas. No Brasil, foi promulgada a Resolução CNS 196/96 e foram criadas a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) nos centros de pesquisas e universidades. Tais dispositivos têm a função principal de proteger as pessoas em situação de vulnerabilidade contra sua exploração por parte de investigadores inescrupulosos. A bioética, que já completou quarenta anos, tem-se debruçado sobre as questões envolvidas com a vulnerabilidade e a possibilidade de exploração de populações suscetíveis, seja por motivos socioeconômicos culturais, seja por problemas de saúde física ou mental. Este artigo se propõe a discutir as pesquisas no campo da saúde mental, analisando as questões éticas envolvidas, destacando as de vulnerabilidade, de autonomia e de competência moral dos pacientes com transtornos mentais e do uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para alcançar tais objetivos, seguiram-se dois percursos principais: (1) breve histórico dos diferentes tratamentos e pesquisas com pacientes com transtornos mentais ou deficiência; (2) análise teórico-conceitual dos principais problemas relativos ao campo da saúde mental, como a noção de vulnerabilidade, competência e autonomia e o uso de grupos-controle com placebo. As questões relevantes do texto são: o paciente com transtornos mentais pode assinar o TCLE? O uso de placebo é aceitável?

História insensata do tratamento dispensado aos loucos De acordo com Foucault, antes de a loucura ser dominada, os loucos viviam como errantes, embarcados na Narrenschiff ou Nave dos Loucos. Eram escorraçados para fora dos muros das cidades ou deixados vagando pelos campos ou entregues a mercadores ou peregrinos. Essa atitude era um vestígio da época inquisitorial, pois lhes era negado entrar numa igreja por presumidamente serem possuídos pelo demônio. Ao

mesmo tempo, a loucura exercia fascínio, pois pensava-se que o saber tinha que ser extraído das entranhas da terra e, no imaginário da época, o louco o possuía por inteiro, mas de forma invisível, ao contrário do sábio, que só o detinha de forma fragmentada. Por isso, o saber dos loucos era proibido1. No século XVI, a concepção da loucura passa a fazer sentido dentro do próprio campo da razão, que se deixa penetrar por ela para melhor se defender dela1. É por essa mudança que o louco será, a partir do século XVII, encarcerado em casas de internação e de loucos, o hospital. A prática de internamento, no entanto, se estende também aos miseráveis, libertinos, vagabundos e bandidos. A loucura, fazendo parte dessa visão heterogênea, será classificada ora na categoria da beneficência, ora na repressão. Todo interno é colocado no campo dessa valoração ética – e muito antes de ser objeto de conhecimento ou piedade, ele é tratado como sujeito moral1. Tais casas desaparecem no século XIX, mas não para os loucos, pois estes não conseguiam – por sua pretensa incapacidade para o trabalho – permanecer dentro das fronteiras da nova ordem burguesa. A loucura reinará sozinha nessas casas, encarcerada e silenciada. Entretanto, o convívio com libertinos, criminosos e doentes venéreos provocou uma espécie de assimilação obscura; e a loucura estabeleceu com as culpas morais e sociais um parentesco que não está talvez prestes a morrer2. Essa concepção da loucura implicou tratamentos desumanos, pois lhes eram prescritos disciplina, ameaças, grilhões e golpes tanto quanto o tratamento médico3, além de purgantes, vomitórios e sangrias. O médico era figura ausente das casas, mantendo-se afastado dos doentes mentais, deixando-os nos calabouços e nas correntes. A partir do século XVII, crescem os estudos do cérebro, já considerado a sede do espírito e, consequentemente, da loucura. Nasce a neurofisiologia e, no século XVIII, a neuropatologia. Começam a ser formuladas as bases de uma psiquiatria sem psicologia3. Nesse mesmo século, Stahl examinou as doenças mentais, discutindo o abismo existente entre o corpo e o espírito, vendo nisto um prejuízo do conhecimento das doenças e, em particular, da doença mental. Valorizava a compreensão da alma e acreditava que as emoções poderiam influir na recuperação de uma doença somática3. No século XVIII, acontece a abolição das correntes e a preocupação passa a ser investigar as enfermidades mentais, já não mais vistas como possessões demoníacas. Cresce, também, a aten-

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como uma enfermidade orgânica. Descreveu também o pensamento autístico baseado em algumas observações de Freud sobre o narcisismo3. Todos esses fatos não mudaram o objetivo da descoberta de medicamentos que sustentassem a teoria sobre a origem puramente orgânica da doença mental. Apesar do avanço no entendimento das patologias mentais, medidas cruentas continuaram sendo empregadas: duchas e banhos frios, chicotadas, máquinas giratórias e sangrias. Tais condutas se estendem até a descoberta de medicamentos, que foram substituindo tratamentos rudimentares como lobotomia, eletrochoque, choque cardiazólico, insulinoterapia, malarioterapia e contenção física. Em 1952, é clinicamente introduzida na França, através do Laborit, o primeiro medicamento antipsicótico: clorpromazina4. Este medicamento e outros que o sucederam substituíram aos poucos as terapias existentes e o uso de drogas sedativas e hipnóticas. Novos medicamentos foram desenvolvidos e hoje existem mais de 4004. Aos poucos, foi-se reconhecendo o papel dos fatores biológicos, psicológicos, sociais e culturais na gênese e na evolução das doenças mentais. Entretanto, concepções arcaicas da relação entre doença, culpa e pecado permanecem até os dias atuais, colaborando, significativamente, para a estigmatização do doente mental.

Vulnerabilidades, competência e autonomia nas pesquisas com pacientes com transtorno mental Sobre vulnerabilidade Na psiquiatria, não raramente, se mesclam ciência e ideologia, conhecimento e preconceito, aspirações libertárias e medidas repressivas5. Diante de tal constatação, como pensar as noções fundamentais relacionadas ao paciente com transtornos mentais? Eles teriam a capacidade para exercer uma autonomia plena? Começando pela vulnerabilidade, em vários estudos sobre o assunto6-11 se fala de uma gradação do menos ao mais ou de diferentes vulnerabilidades9-12. Em primeiro lugar estariam as todas as pessoas que, pelo fato de estarem vivas, podem ser vulneradas ou feridas11. Em segundo lugar estariam os suscetíveis, aqueles em situação de maior risco de serem atingidos12. Em terceiro lugar, os propriamente vulnerados, os que já foram de fato feridos12. Por último, os desmedrados, os que não tiveram a oportunidade de

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ção do médico para a classificação dessas doenças. Tais classificações, entretanto, não se atinham à própria loucura, nelas intervindo julgamento moral e atribuição de causas orgânicas.1 Continuavam a existir casas de loucos, sem a preocupação de tratá-los. Foi Philippe Pinel que assegurou um lugar à psiquiatria como especialidade médica, observando que os loucos, além de não serem delinquentes dignos de castigo, são pessoas enfermas cujo estado miserável merece toda a consideração que se deve à humanidade doente e que há que tratar de recuperar sua razão com métodos mais simples3. Pinel introduz a anamnese psiquiátrica, reorganiza o hospital e acrescenta ao tratamento físico o tratamento moral, entendido como uma reeducação do louco: respeito às normas e não aceitação de condutas inconvenientes, assinalando que a permanência demorada do médico em contato com os doentes melhora seu conhecimento sobre os sintomas e sobre a evolução da loucura3. O tratamento moral não vicejou e os cuidados preconizados não foram seguidos por todos. Continuaram a predominar a coerção para o controle das condutas, a ordem e a disciplina do manicômio e os terríveis tratamentos. No século XIX, o debate será sobre a organogênese e a psicogênese das doenças mentais, a descoberta da causa da paralisia cerebral e da histeria sem substrato anatômico ou fisiológico3. Na luta entre os organicistas e os psicólogos, saem ganhando os primeiros, segundo os quais o diagnóstico deve basear-se em causas fisiológicas, e o médico deve olhar o corpo e nele buscar a origem da doença. Na Alemanha, nessa época, Kraepelin investe na sistematização psiquiátrica, tornando a psiquiatria uma especialidade da medicina3. Kraepelin dá um ordenamento ao caos classificatório das doenças mentais, interessando-se por saber como o paciente pensa. O estudo sistemático e extenso o levou à conclusão da existência de dois tipos de doenças mentais: a demência precoce e a psicose maníaco-depressiva. Mais tarde ele incluiu a parafrenia. Também dividiu as psicoses em endógenas e exógenas – classificação que permanece até hoje. No final do século XIX, ocorre o que Zilboorg e Henri3 denominaram Segunda Revolução Psiquiátrica, que trará para a psiquiatria a psicologia. Freud será o responsável por isto, através de seu discípulo Bleuler, na Alemanha. Bleuler reviu as ideias de Kraepelin e lançou as bases para uma psiquiatria dinâmica, introduzindo o termo “esquizofrenia”, que implicava ver a doença como um conjunto de reações psíquicas e não, apenas,

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desenvolver suas potencialidades9-11, como é o caso dos indivíduos com transtorno mental e os deficientes, que jamais puderam se defender de abusos, ficando aquém das potencialidades para assumir suas vidas. Com relação à participação dos doentes mentais em pesquisas, o Código de Nuremberg de 195013 já não lhes permitia, argumentando que não poderiam dar livremente seu consentimento, o que é considerado condição necessária. Esse dispositivo incluía loucos, deficientes e crianças, entre outros vulneráveis. 1 O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento9. A Declaração de Helsinki14 de 1964 abriu as portas para pesquisas com esses grupos, conforme exposto no Item II.1: 1 – [...] Sendo possível, e de acordo com a psicologia do paciente, o médico deve obter o livre consentimento do mesmo, depois de lhe ter sido dada uma explicação completa. Em caso de incapacidade legal, o consentimento deve ser obtido do responsável legal; em caso de incapacidade física, a autorização do responsável legal substitui a do paciente. Este item foi modificado na Declaração de 199615 e passou a ter a seguinte redação: 11 No caso de incapacidade legal, o consentimento informado deve ser dado pelo responsável, estabelecido segundo a legislação do país. O que se pode constatar, comparando o Código e a Declaração, é que houve uma piora na proteção da população aqui em exame, pois não se mencionam as particularidades dos pacientes com transtorno mental. Pois a Declaração não permite identificar quem é esse paciente, em suas especificidades, nem o que é eticamente correto fazer com ele, subsumindo de fato a questão ética à mera questão legal. Em suma, fala-se genericamente em incapacidade legal e que o pesquisador deve seguir as leis de cada país. Ora, sabe-se que em países pobres ou que ainda não possuem um órgão que regulamente as pesquisas em seu território as normas são frágeis. Ao mesmo tempo, institui-se um responsável para as pessoas do grupo aqui citado, sem especificar quem seria. A principal consequência da falta de clareza foram os abusos, como foi o resultado catastrófico do estudo clínico, duplo cego com placebo, realizado em 1996 na África do Sul e em outros países em desenvolvimento16. Essa pesquisa foi acusada de abusiva, por envolver uma tentativa de capitalizar resultados à custa da exploração

de vulneráveis. Os pesquisadores contra-argumentaram que o trabalho deles só poderia ser realizado de maneira aceitável entre as mulheres pobres, que tiveram poucas escolhas em relação ao tratamento que lhes seria agraciado. Significou reconhecer que a vulnerabilidade delas as converteu em alvos preferenciais da pesquisa16. O citado estudo provocou uma mudança na Declaração de Helsinki em 200017, que confirmou restrições ao uso de placebo (item 29) e preconizou seu uso para o grupo-controle quando não houvesse outro tratamento disponível. Mas a mudança, eticamente significativa, se deu no parágrafo 30, que garantiu o acesso aos doentes participantes dos melhores métodos profiláticos, diagnósticos e terapêuticos identificados pelo estudo. A mesma Declaração foi revista em 200818: os artigos 19, 29 e 30 mudaram de numeração e tiveram nova redação, diminuindo de fato a proteção e a defesa dos interesses dos grupos vulneráveis19. Por exemplo: no Item 14, foi incluída a seguinte frase: O protocolo deve descrever acordos para os sujeitos de investigação ter acesso pós-estudo às intervenções identificadas como benéficas ou acesso a outro cuidado ou benefício apropriado19. Este enunciado retirou a obrigação de beneficiar os participantes com as novas descobertas, testadas neles, deixando isso para os acordos. Ademais, na segunda parte do artigo 32, o uso do placebo passou a ser justificável quando por razões científicas e metodológicas obrigatórias o uso do placebo for necessário para determinar a eficácia ou segurança de uma intervenção e os pacientes que recebem placebo ou nenhum tratamento não estarão sujeitos a nenhum risco de sofrer dano sério ou irreversível19. Por último, no artigo 33, há flexibilização nas exigências de se obterem os melhores tratamentos, pois os sujeitos da pesquisa podem ter acesso a intervenções identificadas como benéficas no estudo ou outro cuidado ou benefício apropriado19. Apesar das disposições internacionais em vigor e suas revisões, a da recomendação de não se utilizar placebo sempre foi uma prática costumeira na psiquiatria. Num livro escrito por Frota4, no qual o autor disserta sobre as descobertas das drogas e apresenta uma ampla revisão de artigos sobre como foram feitas as pesquisas, fica claro que o método consagrado é o uso de placebo. Porém, é bom dizer que mesmo com as mudanças na Declaração de Helsinki, a RS 196/ 96 não foi alterada. No Brasil continua proibido o uso de placebo, o que vem causando grande indignação no seio da psiquiatria.

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A prática do uso de placebo em populações de pacientes com transtorno mental tem uma série de implicações, principalmente quanto à autonomia e à competência dos sujeitos-objeto da pesquisa20. A autonomia é definida como capacidade de a pessoa humana ser agente moral e ter autodeterminação, de decidir livremente sobre sua vida e arcar com as consequências das decisões, desde que isso não afete terceiros21. O respeito deste importante princípio da bioética implica respeitar a vontade, as crenças e os valores do paciente, não instrumentalizando a sua vontade e/ou o seu ser22. Nesse sentido, os movimentos dos direitos de pessoas portadoras de disabilidades (Disability Rights)23, presentes em vários países, assumem que o maior valor a se garantir é a autonomia das pessoas, o que implica profundas mudanças nas políticas públicas e nos serviços de saúde, o que vem ao encontro das propostas da Reforma Psiquiátrica, no Brasil, que consideram essa condição de cidadania sem preconceito, fundamental para que os usuários do sistema psiquiátrico possam apresentar reivindicações sobre como, de que jeito querem ser tratados e em que sociedade pretendem viver24. No caso das pesquisas com portadores de transtornos mentais, respeitar a autonomia implica, para o pesquisador, respeitar e – se necessário – ajudar o paciente a superar sua dependência, expressar os seus valores e preferências, e envolvê-lo na decisão de se submeter ou não a uma investigação. Nesse sentido, o respeito à autonomia tem como corolário o TCLE, que pode ser visto como “instrumento da beneficência”, em que a pessoa toma livremente a sua decisão, devidamente esclarecida acerca dos procedimentos, consciente dos riscos, benefícios e consequências22. No entanto, existem circunstâncias que limitam ou impedem a obtenção do consentimento informado, entre elas a incapacidade de adultos com diminuição sensorial ou da consciência, nas patologias neurológicas ou psiquiátricas severas22. Para outros grupos como o de crianças e adolescentes, a compreensão sobre o consentimento já evoluiu, como disposto no novo Código de Ética Médica de 201025. Mas isso não ocorreu em relação aos pacientes com transtornos mentais, olhados como indivíduos sem autonomia, incapacitados judicialmente e curatelados, pela família ou pelo Estado. O estigma do doente mental como violento, podendo atentar contra a pró-

pria vida ou a dos outros, é considerado motivo que justifica intervir nas ações destes indivíduos para protegê-los dos resultados perigosos das suas escolhas ou ações26. Mas pesquisas apontam que percentualmente, em relação à população em geral, o doente mental não é mais violento27,28. Se não há autonomia, espera-se que os pesquisadores respeitem o princípio da beneficência ou não maleficência. Entretanto, observa-se muito paternalismo nessas relações. Mesmo quando se preconiza que o doente mental, fora das crises, possa ter autonomia e traçar o que se denomina “testamento vital” ou “diretrizes antecipadas”29, em relação ao que deseja que seja feito em relação a sua pessoa em tratamentos ou pesquisa, isso é completamente ignorado sob o pressuposto de sua incapacidade. De acordo com as normas éticas de pesquisa em relação às investigações clínicas ou qualitativas, seria injustificável, em qualquer hipótese, não pedir o consentimento. Exceção se faz aos pacientes crônicos, institucionalizados e sem família que os ampare e consinta na pesquisa. Entretanto, nesses casos, RS 196/96 estabelece30: IV.3 Nos casos em que haja qualquer restrição à liberdade ou ao esclarecimento necessários para o adequado consentimento, deve-se ainda observar: a) em pesquisas envolvendo [...] sujeitos em situação de substancial diminuição em suas capacidades de consentimento, deverá haver justificação clara da escolha dos sujeitos da pesquisa, [...] e cumprir as exigências do consentimento livre e esclarecido através dos representantes legais dos referidos sujeitos, sem suspensão do direito de informação do indivíduo, no limite de sua capacidade. De fato, autonomia tem a ver com poder, de acordo com o movimento de empowerment iniciado nos Estados Unidos no século XX, principalmente no fim da década de 1980: os grupos marginalizados e discriminados na sociedade sofrem de uma falta de poder que os impede de lutar pelos seus direitos e usufruir de benefícios econômicos e sociais, assim como de participar nas decisões políticas que interferem nas suas vidas. Para alterar esta situação é necessário que esses grupos aumentem as suas competências e o seu poder31. Autonomia e empoderamento são novas maneiras de perceber o doente mental, o que exige uma conduta colaborativa dos pesquisadores. Mas, para grande parte dos psiquiatras, essa posição não é sustentável, como expressa Geraldes32, para quem a ausência de autonomia se justifica porque em psiquiatria esta questão não está resolvida. Especificamente em relação ao TCLE, o autor escreve: no caso do doente mental, não

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pode ser aplicado, embora, de praxe, a família deva ser mobilizada e incentivada a colaborar32. O autor entende o consentimento como um mecanismo supletivo para a autonomia não exercida pelo paciente e diz que os estudos sobre a autonomia estão nos seus primórdios e que a bioética deve aprofundá-los para expor os obstáculos e tentar equacioná-los32. Conclui: Não nos esqueçamos que a doença mental é um processo que aniquila ou debilita profundamente a individualidade e a existência dos que por ela são afetados. Se a isto adicionarmos uma pretensa autonomia, estaremos, sem dúvida, contribuindo para piorar definitivamente a qualidade de vida do doente mental32. Outro exemplo é o de Lott5, que destaca: Pessoas incapazes envolvidas em pesquisas representam problemas um tanto diferentes [...]. Dada a redução nas habilidades cognitivas, pessoas com deficiência mental ou pessoas com demência, por exemplo, são naturalmente vulneráveis à exploração por terceiros. Por fim, Zaubler et al.33 sustentam que, historicamente, a doença mental sempre foi considerada uma patologia incapacitante, portanto o indivíduo não tem autonomia. Entretanto, de acordo com as ferramentas bioéticas aplicada à pesquisa, o TCLE é sempre requerido, por se tratar de um requisito para a inclusão de um participante em determinada pesquisa clínica, ainda que, como observa Schüklenk, esse critério absolutamente essencial torne impossível a condução de pesquisas envolvendo a participação de doentes mentais incapazes, pois se desejarmos contribuir para melhorar a situação daqueles que sofrem de doenças que implicam sua incapacidade para manifestar o consentimento livre e esclarecido, é necessário conduzir pesquisas envolvendo tal universo34. Em geral, o principal alvo das pesquisas são os doentes em crise4,35. É óbvio que não se nega, aqui, a importância de se testarem novas drogas que amenizem a crise ou quiçá que a revertam completamente, mas isso não exclui o consentimento ou os testes de competência cognitiva e morais fora dos momentos de crise36. Nesse sentido é que têm importância as Diretrizes Antecipadas ou o Testamento Vital já comentado. Existem estudos que propõem testes para saber da competência dos pacientes em darem seu consentimento. Um deles é o de Roth et al.37, que elaboraram instrumentos para aferir se o paciente consegue tomar decisões sobre seu tratamento, considerando duas condições: racionalidade da escolha e capacidade de compreender as informações. Segundo Lopes38, diversos estudos feitos para avaliar a informação dada ao paciente para obter

seu consentimento para participação em pesquisa mostram que a lembrança dessas informações, em situações diversas, é pequena ou inexistente. A autora cita um dos estudos de Irwin et al.39, destacando que na amostra examinaram-se pacientes crônicos, com diferentes diagnósticos psiquiátricos, com duração média de doença de 12,5 anos, durante a crise aguda, para os quais foi lido um termo de consentimento após as primeiras 72 h da internação. Neste aparecem as informações sobre a medicação antipsicótica, ressaltando as razões para o tratamento, os benefícios e riscos, desconfortos, efeitos colaterais e informações sobre discinesia tardia. Depois foi perguntado se haviam entendido e que repetissem a informação; por fim, foram feitas perguntas específicas de acordo com questionário estruturado abrangendo questões simples, complexas e subjetivas. Foi encontrada diferença importante entre compreensão significativa na situação de lembrança geral do termo feita pelo paciente, e quando são feitas perguntas específicas, a compreensão cai de 87% para 26%. Portanto, de acordo com esse estudo, o consentimento verbal de paciente psiquiátrico psicótico é altamente questionável38. Este relato leva ao seguinte questionamento: em que bases se dão essas avaliações? Durante as crises? Com pacientes crônicos? Para se chegar a uma convergência de opiniões é necessário determinar, em primeiro lugar, se o paciente está fora da crise e se não cronificado por anos de doença e medicamentos que podem diminuir a competência cognitiva. Pacientes com déficit cognitivo permanente, de fato, não têm condições de autonomia e precisam de alguém que os represente, protegendo seus interesses. Resta, porém, um problema, que é quem decide pela incapacidade e em que condições. Há a possibilidade de um paciente ser considerado incapaz só por recusar um tratamento36. Simplesmente não há possibilidade de se pensar autonomia quando o olhar que se lança ao paciente está eivado de ideias preconcebidas. Os loucos sofrem, ainda, uma forte carga arcaica de estigmas como: inutilidade, incapacidade, incurabilidade e defeito moral. Neste sentido, Fé36 dá o exemplo de pacientes com transtorno do pensamento, profunda ambivalência, severo comprometimento da memória ou níveis flutuantes da consciência [que] podem ser considerados incompetentes, se tais alterações os levem a tomar decisões erráticas”. Ademais, fatores circunstanciais, como a fadiga e o efeito dos medicamentos [...] podem ocasionar flutuações transitórias do estado mental e ocasionar falso resultado de incompetência, o que aponta para a conveniência de o paciente ser examinado

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O uso e abuso de psicofármacos e as pesquisas com placebo Os transtornos mentais nunca deixarão de existir. Novas patologias foram categorizadas de 1952 para cá. Passou-se de 106 tipos na década de 1950 para 292 no século XXI. Já em 1994, se dizia que o crescente número de “novas patologias” reflete os vários e, frequentemente, contraditórios valores e crenças presentes na sociedade afetando as pessoas e suas famílias41. Eis um caso exemplar: um pesquisador brasileiro35 que defende o uso de placebo com novas

drogas critica a Declaração de Helsinki, quando determina que novos métodos devam ser comparados somente com os melhores existentes, evitando-se o placebo. Se obedecido literalmente esse item inviabilizaria os estudos placebos-controlados fundamentais para a determinação da eficácia de psicofármacos35. Seus argumentos são: o estudo com placebo é essencial para comprovar a eficácia de tratamentos em razão das características da doença mental como a “heterogeneidade clínica, cronicidade e evolução muito variável”, que explicam, em parte, o fato de o placebo “induzir” alto grau de melhora de pacientes com diferentes condições psiquiátricas. O autor cita desde quadros de profunda depressão endógena, psicótica ou o estupor depressivo até uma garota que terminou um namoro e há duas semanas está com leve tristeza, um pouco de insônia, ligeira diminuição da capacidade de concentração e menos apetite35. Segundo ele, a resposta ao placebo é alta e varia entre 30% e 70% dos casos de pessoas com diferentes transtornos mentais, inclusive os mais graves, como a mania, e é exigido pelos periódicos internacionais, agências reguladoras de vários países e pela comunidade científica internacional. Diz o autor: o placebo é muito mais do que uma simples cápsula de farinha [e implica] uma intervenção terapêutica considerável. [...] Seis sessões de aconselhamento foram tão eficazes quanto medicamentos antidepressivos no tratamento da depressão maior e em um ensaio clínico complexo [...] os pacientes recebem graus de atenção que facilmente podem ser comparados a seis sessões de aconselhamento em pacientes com uso de placebo, quando comparados a outros: a melhora nos grupos-controle com placebo foi significativamente maior do que os das listas de espera [das clínicas de terapia cognitivo-comportamental] e quase tão grande quanto a obtida com os medicamentos antidepressivos35. Assim, as comparações dos efeitos terapêuticos de medicamentos ou de psicoterapias, novos ou antigos, sem o grupo-controle com placebo não permitem conclusões sobre a eficácia dos tratamentos porque a “melhora” observada pode ser causada por fatores inespecíficos35. Em suma, nos transtornos mentais, como o bipolar, os tratamentos disponíveis “estão muito longe” de produzir resultados satisfatórios, pois estudos bem feitos e amplos mostrariam que cerca de 50% dos pacientes bipolares pioram, e [n]a gênese desse péssimo estado de coisas existe, inclusive, a hipótese [...] de que o uso excessivo de medicamentos insatisfatórios estaria piorando os quadros clínicos, em médio e longo prazo35. Dentre os problemas desse raciocínio, o autor só apresentou casos de pesquisas sobre depressões, da mais leve à mais pro-

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várias vezes para que se tenha uma conclusão mais segura sobre seu nível de competência36. Sobre o principal instrumento que garante a eticidade da pesquisa envolvendo seres humanos, Hossne40 observa que ele ter-se-ia transformado em instrumento burocrático. Outro problema é o da representação legal: o consentimento dado pelas autoridades legais constituídas; e em que pesquisas e sobre quais condições o TCLE por procuração pode ser aceito5. Outras considerações devem ser consideradas, pois no caso do TCLE por procuração pode haver impedimentos na pesquisa, como a interrupção ou troca de medicamento por dificuldade de comunicação ou por falta de habilidade do representante para reconhecer uma mudança de opinião em seus tutelados5. Os mentalmente incapazes, mais suscetíveis às influências de familiares e acompanhantes, podem ficar inibidos em expressar seus desejos e interesses. Esse tipo de influência também pode vir dos pesquisadores que tendem a seduzir os pacientes a participar do estudo, levando o doente a informar a seu procurador que quer participar. Tais influências externas podem ainda emanar do próprio procurador, o que acarreta responsabilidade ainda maior para o pesquisador clínico na garantia do consentimento livre e esclarecido5. Os pacientes só podem participar de pesquisas terapêuticas se elas forem benéficas, o que pode incluir testes de drogas psiquiátricas, terapias comportamentais ou intervenções cirúrgicas. Já as pesquisas não terapêuticas são as envolvidas na fase I do estágio do estudo clínico, como testes para desenvolvimento de vacinas, de novos medicamentos para avaliar riscos e efeitos colaterais. A distinção entre pesquisas terapêuticas e não terapêuticas é pertinente, mas pode levar ao equívoco de que as terapêuticas são menos danosas e mais benéficas. Isso não é verdadeiro, já que drogas novas para doentes mentais não estão isentas de risco.

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funda, o que é problemático por elas terem causalidades diferentes. De fato, seu artigo não exemplifica casos de esquizofrenia, em que, segundo vários autores, os pacientes não são suscetíveis de melhoria dos sintomas com psicoterapias42. Do artigo citado se infere que, se o paciente fosse tratado com escuta a suas necessidades, estar-se-ia impedindo que medicamentos fossem patenteados e utilizados. Nesse sentido, o placebo (e as drogas?) serviria também para provar que melhoras são possíveis por fatores inespecíficos. Entretanto, fica sempre uma sensação desconfortável em relação à pesquisa em saúde mental: se os pacientes melhoram com sessões de aconselhamento, ou por serem examinados, perguntados e ouvidos, em razão de uma pesquisa, por que isso não acontece no dia a dia dos ambulatórios ou hospitais?

Considerações finais Este artigo induz à necessidade de se ampliar a discussão sobre o TCLE na psiquiatria: em geral, os médicos e os psiquiatras ignoram os estudos de mais de quarenta anos sobre esse tema por parte da bioética. Posições antagônicas indicam que o campo da saúde mental, especialmente o das investigações, está minado por vieses. Não se pode, entretanto, deixar de reconhecer as dificuldades quase intransponíveis de se fazerem investigações que contribuam para a cura das pessoas com transtornos mentais. Fica claro que, apesar da intenção de defendê-las, as regulamentações internacionais e nacionais não as protegem eficazmente. Nesse sentido, deve-se atentar para as mudanças

Colaboradores M Braz foi responsável pela concepção, pelo levantamento bibliográfico e redação do artigo; FR Schramm participou da discussão e da revisão final.

que vêm ocorrendo em razão da Reforma Psiquiátrica no Brasil, o que vem contribuindo para transformar concepções obsoletas sobre a doença mental e os afetados por ela. A questão do necessário consentimento ligado à autonomia desse grupo, se não for plenamente respeitada, acaba por ser um instrumento de risco e vulnerabilidade. No entanto, observase que a substituição do consentimento livre e esclarecido em primeira pessoa pode servir mais prontamente aos interesses dos pesquisadores do que aos interesses dos participantes da pesquisa, pois [a] figura do consentimento dado por meio de uma procuração não pode substituir o consentimento livre e esclarecido em primeira pessoa e precauções especiais devem ser tomadas em relação às pesquisas envolvendo indivíduos mentalmente incapazes5. O consentimento deve ser solicitado nos períodos em que os pacientes estejam fora de crises, embora alguns considerem que a ética do paciente psiquiátrico não deve estar subordinada ao que se entende por autonomia em bioética. Pela natureza controversa de muitos aspectos das bases conceituais da psiquiatria, a ética psiquiátrica tem sido julgada como “o patinho feio da ética biomédica”20. Há também a questão do status epistemológico dos conceitos, diagnósticos e categorias, pois os grandes distúrbios mais bem descritos ainda não possuem base científica totalmente conhecida. Assim, para muitos, ainda é melhor calar o sujeito com medicação e, assim, tranquilizar a sociedade, mesmo que a cronicidade não desapareça. É necessário ter coragem para mudar, pois é inadmissível que a Psiquiatria seja utilizada para cercear a liberdade, restringir direitos, oprimir cidadãos43.

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Ethical issues of the research with psychiatric drugs Marisa Palacios da Cunha e Melo de Almeida Rego 1 O artigo de Braz e Schramm trata de um tema pouquíssimo discutido e absolutamente necessário. As pesquisas que envolvem pacientes psiquiátricos trazem desafios importantes. A oportunidade de estabelecer um debate com os autores é para mim uma honra e um privilégio. Sobre a temática, muito se poderia comentar. Escolhi trazer três pontos referentes à pesquisa terapêutica com novos medicamentos psiquiátricos: a autonomia dos pacientes, o placebo e a provocação de sintomas. Participando da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) em 2001, tivemos acesso a uma carta de um pesquisador estrangeiro indignado diante da recusa da Comissão em aprovar um projeto de pesquisa que continha um braço placebo no seu desenho. O autor considerava que não aceitar a autonomia do sujeito com transtornos psiquiátricos era puro preconceito, que o placebo seria necessário em razão da falta de padrões em psiquiatria, por uma questão metodológica, portanto, e a provocação de sintomas, como o ataque de pânico, por exemplo, é não só desejável como necessária para a condução das pesquisas. Além disso, haveria um benefício importante para os sujeitos das pesquisas representado pelo sentimento de altruísmo experimentado por eles, pelo fato de estarem participando do progresso da ciência. Acerca da autonomia do paciente psiquiátrico, especificamente em relação à participação em pesquisa, a regra, no meu entender, deve ser a do direito de recusa. É claro que estamos nos referindo a projetos de pesquisa e não a tratamento, como o faz Geraldes1, citado pelos autores. A pesquisa traz um risco adicional que não está presente no tratamento já consagrado. É uma certa incerteza sobre a eficácia e segurança da nova droga. Os testes têm como objetivos estabelecer os níveis de eficácia e segurança comparativos em relação aos esquemas já consagrados de tratamento, produzindo evidências, diminuindo incertezas. Um dos consensos que a reflexão sistemática internacional sobre ética em pesquisa produziu nesses mais de sessenta anos a partir de Nuremberg foi de que o respeito às pessoas é um princípio fundamental. Ele encontra justificação em várias abordagens bioéticas, como as

principialistas, utilitarista, das virtudes ou do cuidar. No entanto, ao lado do respeito devido a todos sem exceção, há que considerar as situações de vulnerabilidade, como bem apontam os autores do artigo. Assim, não se trata de assumir que todo paciente que necessita de medicação psiquiátrica tenha que ser subtraído da possibilidade de se autodeterminar, mas também não é possível afirmar que toda e qualquer tentativa de proteção dirigida a essa população seja tomada como um injustificável paternalismo. Direito de recusa do paciente após esclarecimento na medida de seu entendimento, associado ao consentimento de um responsável significativo para o sujeito participante, parece ser a proposta que melhor protege os sujeitos desse tipo de pesquisa. Assim, à pergunta “quem assina o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)”, eu responderia que os dois, paciente e seu representante, aquela pessoa que melhor possa traduzir seus interesses. Quanto ao placebo, ao lado da resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) no 1.885, de 23/10/2008, que proíbe os médicos de participarem de pesquisa que o use, há que considerar que, em parte, uma das áreas que mais pressionaram pela transformação da Declaração de Helsinque foi a da psiquiatria. Entretanto, não há nenhuma razão para supor que pacientes psiquiátricos devam ter garantido um padrão ético diferente de outras populações de doentes. Se o paciente que possui uma enfermidade renal tem seu novo medicamento testado contra o melhor tratamento já consagrado, e não há questionamentos sobre isso, não há por que ter uma conduta diferente em relação ao paciente psiquiátrico. Se o paciente que chega em um consultório, por exemplo, em pleno surto maníaco, vai ser tratado com medicamento comercializado nas farmácias e drogarias, então há um tratamento consagrado. Não há justificativa para se aceitar um duplo padrão: com pacientes renais a conduta ética é uma e com pacientes psiquiátricos é outra, se estamos tratando de pessoas a quem se deve igual respeito? A provocação de sintomas é outro ponto que eu trago para corroborar a tese defendida no artigo de que a população é estigmatizada, o que a torna particularmente vulnerável e sujeita à exploração. A provocação de sintomas é um ponto ainda menos discutido do ponto de vista ético. O fato de um pesquisador provocar um sintoma que de

Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro. [email protected]

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DEBATEDORES DISCUSSANTS

Aspectos éticos da pesquisa com medicamentos psiquiátricos

Rego MPCMA

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outra forma não aconteceria, não naquele momento e lugar, parece uma produção de malefício que não encontra qualquer justificativa eticamente aceitável. Exemplos desse tipo de pesquisa incluem a provocação de ataque de pânico com CO2, e de fora da psiquiatria a provocação de crise de asma com metacolina, sem qualquer benefício para o sujeito da pesquisa, somente para testar eficácia de medicamento. Esse é um exemplo de uso abusivo de animais humanos para experimentação. Concluindo, como os autores, é preciso desenvolver formas de proteção dessa população respeitando sua autonomia.

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Pacientes com transtornos mentais, pesquisas clínicas e uso do placebo: tema complexo, respostas dúbias Patients with mental disturbances, clinical research and the use of placebos: a complex subject; dubious answers Volnei Garrafa

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O texto de Braz e Schramm estuda as pesquisas em pacientes com transtornos mentais na ótica da bioética, analisando fundamentalmente se o uso do placebo é aceitável e se esses pacientes podem assinar termos de consentimento informado. Inicialmente, traça um esclarecedor histórico do tratamento dispensado à loucura, passando pela discussão sobre o conceito de vulnerabilidade, competência e autonomia nas pesquisas com transtorno mental e chegando à essência da proposta que é analisar o crescente (e abusivo) uso de placebo nas pesquisas com novos psicofármacos. Os autores consideram que se trata de um campo de estudo com “posições antagônicas” e “minado por vieses”, embora justifiquem que existem “dificuldades quase intransponíveis” para a realização de pesquisas nesse campo e que as regulamentações existentes não protegem eficazmente as pessoas com transtornos mentais. Concluem que o consentimento informado deve ser solicitado nos períodos

em que os pacientes estejam fora das crises e que a ética psiquiátrica tem sido julgada como “o patinho feio da ética biomédica”, utilizando uma expressão de J. Radden1. Concordando com a maioria dos pontos do texto, embora discordando de alguns deles, vou ater-me somente a dois aspectos, até mesmo pelo exíguo espaço disponibilizado: (1) a não utilização da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos do Fundo das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como referência para discussão do assunto; (2) a falta de uma posição clara e mais contundente com relação ao uso (ou não) do placebo nas pesquisas clínicas em pacientes com transtornos mentais.

A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos Homologada pela Unesco em 2005, com apoio de 191 países, a Declaração aprofundou e ampliou a agenda bioética do século XXI, tornando-se referência para a área2. A autonomia, por exemplo – indispensável como ferramenta de estudo do tema aqui debatido –, foi desdobrada direta e indiretamente em pelo menos outros seis itens, disponíveis ao enriquecimento da discussão: Artigo 5 – Autonomia e responsabilidade individual; Artigo 6 – Consentimento; Artigo 7 – Indivíduos sem capacidade de consentir; Artigo 8 – Respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual; Artigo 9 – Privacidade e confidencialidade; Artigo 10 – Igualdade, justiça e equidade. O ponto que trata especificamente do “consentimento” reforça que A pesquisa científica só deve ser realizada com o prévio, livre, expresso e esclarecido consentimento do indivíduo envolvido. A informação deve ser adequada, fornecida de uma forma compreensível (artigo 6). No Brasil, o sistema nacional de controle ético para as pesquisas com seres humanos coordenado pelo Ministério da Saúde vem reiteradamente aprovando nos anos mais recentes novos estudos clínicos sustentados em termos de consentimento com dez, quinze e até mais de vinte páginas, de dificílima compreensão até mesmo para pesquisadores experimentados, quanto mais para a média da população brasileira, com média de escolaridade reconhecidamente

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Cátedra Unesco e Programa de Pós-Graduação em Bioética, Universidade de Brasília. [email protected]

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Enganando os pacientes: entre a autonomia e a mentira – crítica ao uso de placebo em pesquisas psiquiátricas Desde novembro de 2006 a American Medical Association (AMA) proíbe categoricamente o deceptive use (em tradução literal: uso enganoso ou ilusório...) do placebo na prática clínica3. Posição contrária, contudo, vem sendo ora sorrateira4, ora escancaradamente trabalhada pelo National Institute of Health (NIH), organismo sanitário público dos Estados Unidos da América (EUA), no sentido de alterar os fundamentos da Declaração de Helsinque, favorecendo a “flexibilização” dos referenciais éticos internacionais (especialmente com relação ao uso do placebo) por meio das tentati-

vas de lograr consenso ético para uso do chamado “duplo standard de pesquisas”, meta infelizmente lograda pelos países ricos e pelos insaciáveis laboratórios internacionais de medicamentos na reunião anual da Assembleia Médica Mundial realizada em outubro de 2008 em Seul, Coreia5. O tema é tão complexo e controverso que a revista com maior impacto mundial no campo da bioética, The American Journal of Bioethics, dedicou recentemente um número específico ao tema, com base em dois artigos referenciais assinados respectivamente por: (1) Bennett Foddy (Center for Human Values, Princeton University), que a partir das decisões de Seul/2008 ficou mais seguro para defender com vigor inusitado o uso do placebo, seja em práticas clínicas, seja em pesquisas biomédicas, a partir de três frágeis argumentos: placebos são sempre seguros; placebos são muitas vezes efetivos; placebos são ocasionalmente necessários6; (2) Franklin G. Miller (NIH) e Luana Colloca (Universidade de Turim, Itália)7, que são menos contundentes e concluem a partir de duas perguntas – os tratamentos com placebo têm potencialidade para produzir benefícios clínicos significativos? Os tratamentos com placebo são efetivos na promoção de uma resposta terapêutica sem a utilização do expediente de enganar o paciente? – e com base nas evidências hoje existentes, que é prematuro julgar se os tratamentos com placebo são eticamente justificáveis. Dada a complexidade do assunto, os editores da revista tiveram o cuidado de convocar nada menos que os diferentes autores de 13 artigos (individualmente ou em duplas ou grupos) para debater o primeiro texto e outros três para discutir o segundo, num total de 16 intervenções feitas por pesquisadores de variadas formações acadêmicas e instituições basicamente estadunidenses, com poucas exceções (Reino Unido, Itália, França e Canadá). Do total de intervenções, oito foram frontalmente contrárias aos argumentos apresentados em defesa do uso clínico do placebo, cinco foram favoráveis e as restantes três ficaram no meio-termo – favoráveis em algumas circunstâncias e contrárias em outras. As principais críticas centraramse na ação paternalística dos médicos e pesquisadores: no fato de que a verdadeira autonomia dos pacientes, como a bioética a apresenta e defende, não é respeitada na maioria das situações de uso do placebo, prevalecendo a mentira (the duty of deceive: o dever de enganar); ou seja, o paciente não tem real consciência de que está realmente recebendo placebo. Esta breve e limitada amostra permite apontar, pelo menos, que existem mais seguidores da

Ciência & Saúde Coletiva, 16(4):2045-2049, 2011

baixa. O que dizer, então, das pesquisas que envolvem pessoas portadoras de distúrbios mentais e que incluem até mesmo a utilização do placebo a partir da assinatura de outra pessoa que não o doente e denominada “responsável”? O espírito geral da Declaração sobre Bioética da Unesco expressa claramente que proteção especial deve ser dada a indivíduos sem a capacidade para fornecer consentimento: Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indivíduos não capazes de exercer autonomia (artigo 5). Além disso, reforça que A vulnerabilidade humana deve ser levada em consideração na aplicação e no avanço do conhecimento científico, das práticas médicas e das tecnologias associadas. Indivíduos e grupos de vulnerabilidade específica devem ser protegidos e a integridade individual de cada um deve ser respeitada (artigo 8). Braz e Schramm são claros ao afirmar, nas considerações finais, que o consentimento deve ser solicitado nos períodos em que os pacientes estejam fora de crises, embora registrem que alguns autores consideram que a ética do paciente psiquiátrico não deva estar subordinada ao que se entende por autonomia em bioética, o que, nesta altura do século XXI, fere frontalmente qualquer tratado que discorra sobre direitos humanos e temas correlatos. Pessoalmente defendo não só que o consentimento deva ser solicitado nos períodos em que os pacientes não estejam em crise como, obrigatoriamente, pesquisas com pacientes psiquiátricos somente deveriam ser permitidas sob esta estrita condição formal por meio das chamadas “diretrizes antecipadas” ou “testamento vital”. A ética, como a ciência, é glacial; uma tomada de decisão não pode ser, por exemplo, 50% ou 70% ética: ou ela é ética, ou não é!

Garrafa V

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posição defendida pela AMA no meio médico dos próprios EUA e em alguns países desenvolvidos do que se poderia imaginar. Com relação ao caso brasileiro e do texto aqui em análise, o assunto é mais grave, pois representativo número de pesquisadores clínicos da área de psiquiatria vem reclamando insistentemente, há anos, das limitações impostas pela regulação brasileira que, cá entre nós, pode até ser relativamente rigorosa no papel, mas na prática está distante disso. E vejam os leitores que a posição da AMA se relaciona com o campo da prática clínica e não com o campo da experimentação em psiquiatria, muito mais movediço e perigoso, principalmente para o doente. Braz e Schramm estão cobertos de razão ao afirmar que existem posições antagônicas nesse campo minado por diferentes vieses. Está na hora, portanto, em defesa dos pacientes vulneráveis – principalmente os “vulneráveis sociais”, os mais frágeis e desamparados – de o Estado brasileiro e nossa emergente democracia começarem a definir com mais clareza os limites de ação nesse campo das biociências, que tem proporcionado mais dubiedade do que segurança e certezas. Basta de respostas frágeis e dúbias! Com tanta ciência disponível e com a crescente disponibilização de novas e extraordinárias metodologias de pesquisa, já é mais do que hora de o placebo começar a ser banido do campo das pesquisas clínicas, começando exatamente pelo campo em que elas se mostram mais nebulosas e obscuras: na atenção aos pacientes com transtornos mentais. Tratar a ética psiquiátrica de “patinho feio da ética biomédica” é expediente insólito que transporta à comiseração e autopiedade. Feio e escandaloso é tratar pacientes transtornados mentalmente como se fossem iguais, acatando linear e acriticamente seus termos de consentimento ou, pior, delegando essa intransferível tarefa a outras pessoas a partir de expedientes e diagnósticos pouco claros.

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Os autores respondem The authors reply Os comentaristas Marisa Palacios e Volnei Garrafa expuseram suas contribuições ao debate e concordaram, de forma geral, com o exposto no artigo, principalmente em relação ao respeito à autonomia do paciente psiquiátrico, sem esquecer que em muitos casos não existe, de fato, autonomia. A questão que se apresenta então é de como proteger esses pacientes de abuso nas investigações. Para Palacios, deve-se solicitar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) fora das crises, não suprimindo a necessidade do consentimento de um representante legal. Para Garrafa, é importante, como expomos no artigo, o estabelecimento do Testamento Vital ou Diretrizes Antecipadas. Neste último caso, consideramos que é a melhor solução, pois, estabelecidos os desejos do paciente, fora das crises, ele poderá ser beneficiado nas investigações em que se propuser a participar. Por sua vez, Palacios aponta para outro viés da pesquisa, que é o caso de provocar os sintomas no paciente. Não citamos esses casos porque eles são cada vez mais raros e condenados pela comunidade científica. Detivemo-nos em alguns pontos principais aventados quando se trata de pesquisas com pessoas com transtornos mentais, quais sejam: vulnerabilidade, autonomia, competência e uso de placebo. Há mais pontos a serem discutidos sem dúvida, mas sempre há que se fazer um recorte em razão do espaço destinado à publicação. Garrafa não concorda com o que dissemos sobre a fragilidade das diretrizes internacionais e nacionais no que se refere à proteção desses pacientes e cita a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que no seu entendimento deveria ser a referência para discussão do assunto. Obviamente, não nos esquecemos desta Declaração; simplesmente optamos por dar ênfase à Declaração de Helsinque e à RS no 196/96, pela importância que

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Versiani M. Marcio Versiani fala sobre sua conferência no XXIV CBP. 28 jul 2006. [acessado 2011 mar]. Disponível em: http://www.abpbrasil.org.br/medicos/ noticias/exibNoticia/?not=267 Bellini N. Drogas que são movidas a esperança: milhares de pessoas participam de experimentos arriscados de remédios e próteses. Revista Problemas Brasileiros (Sesc) 2009; 39. [acessado 2011 mar]. Disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/ pb/artigo.cfm?Edicao_Id=329&Artigo_ID=5137&ID Categoria=5895&reftype=1

Ciência & Saúde Coletiva, 16(4):2045-2049, 2011

elas têm em nosso país. De qualquer forma, seria apenas citar mais uma declaração que fala em se pedir o TCLE e que os vulneráveis devem ser protegidos, sem entrar no mérito de como se dará isto na prática. Ela falha igualmente nessa proteção. Garrafa também aponta para uma suposta falta de uma posição clara e mais contundente com relação ao uso (ou não) do placebo nas pesquisas clínicas em pacientes com transtornos mentais. Parece-nos que ficou clara nossa condenação ao uso de placebo, já que ele só serve, conforme expusemos, para não permitir que drogas que não tenham efeito ou que apresentam efeitos colaterais graves entrem no mercado. Este não é um bom argumento, é simplesmente pífio. Finalizando o debate, gostaríamos de assinalar que há necessidade de novos debates sobre este assunto tão grave, e aqui deveria ser incluída a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Discordamos de Garrafa quanto à critica que faz a esse órgão regulamentador das pesquisas no Brasil. Acreditamos que ele tem cumprido, de forma inédita, o papel de regulamentação e fiscalização das investigações em nosso país. A prova é o descontentamento generalizado, no meio psiquiátrico, quanto à proibição da utilização de placebo interpretada como uma suposta discriminação da Conep em relação à pesquisa clínica com pacientes que sofrem de doenças mentais. Marcio Versiani fala sobre o assunto em sua conferência no XXIV Congresso Brasileiro de Psiquiatria1 e acrescenta, em reportagem de Nilza Bellini2: No Brasil, desde 2000, a Conep assumiu posição radical contra o controle com placebo, reprovando todas as propostas de pesquisa da fase 3. Se em outros países da América Latina os estudos com medicamentos psiquiátricos avançaram, aqui eles estão estagnados por conta disso [...] a comparação de remédios novos com os já existentes é ineficaz, sem o grupo de controle com placebo.

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