Biografema, \'studium\', \'punctum\', fotografia: quase um método

May 26, 2017 | Autor: Ewerton Ribeiro | Categoria: Roland Barthes, Fotografia, Punctum, Studium, Biografema
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BIOGRAFEMA, STUDIUM, PUNCTUM, FOTOGRAFIA: QUASE UM MÉTODO

Ewerton Martins Ribeiro*

RESUMO: Neste ensaio, delineio o método biográfico concebido com foco no biografema, perspectiva biográfica idealizada por Roland Barthes em que o foco sai da trajetória diacrônica do biografado para ser dedicado a um específico fragmento de sua vida. Para compor tal método, mobilizei os conceitos de punctum e studium, também de Barthes, deslocando-os do seu campo de origem, a fotografia, para o campo da narrativa textual, e então mobilizando-os de forma a serem reproblematizados nesse novo contexto. PALAVRAS-CHAVE: Roland Barthes; biografema; punctum; studium; fotografia.

* [email protected] Mestre em Literatura Brasileira pela UFMG e escritor, autor de A grande marcha (2014).

RÉSUMÉ: Dans cet essai, j´aborde la méthode biographique que j´ai conçue basée sur le biographème, perspective biographique idéalisée par Roland Barthes dans laquelle le focus se déplace de la trajectoire diachronique de la personne en question vers un fragment spécifique de sa vie. Pour composer la méthode par laquelle ce biographème a été rédigé, les concepts de punctum et studium, également conçus par Barthes, ont été déplacés de leur champ d´origine, la photographie, vers celui de la narrative textuelle, et ils ont été alors mobilisés de manière à être reproblématisés dans ce nouveau contexte. MOTS-CLÉS: Roland Barthes; biographème; punctum; studium; photographie.

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1. NASCENTES. Dicionário etimológico da Língua Portuguesa, p. 111. 2. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3. 3. HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 2009. 4. HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 2009. 5. HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 2009.

Biografia vem do grego bíos, vida, e graph1 (ou graphein2): escrever. Uma vida escrita, portanto – ou, dizendo de outra forma, o ato de escrever uma vida. Coforme o Houaiss, trata-se de um “gênero literário”3 em que se faz a narração “dos fatos particulares das várias fases da vida de uma pessoa ou personagem”.4 Na biografia, é narrada “a história da vida de alguém”.5 Se no Houaiss fala-se em gênero literário, os debates recentes sobre a liberdade ou não de se publicar, no Brasil, biografias não autorizadas, trouxeram à tona o entendimento desse gênero também como jornalístico – e, por que não, histórico. Neste ensaio, o ato biográfico será considerando-se essas três perspectivas. Em minha dissertação de mestrado, defendida em maio de 2015, compus uma biografia do escritor mineiro Fernando Sabino – mais especificamente, uma biografia escrita sob a égide do biografema, conceito concebido por Roland Barthes. Dessa perspectiva, foquei-me não na trajetória diacrônica de Sabino (ainda que de alguma forma a tenha abordado), mas sim em um específico aspecto de sua vida: a escrita e publicação da biografia romanceada Zélia, uma paixão, livro que Sabino escreveu e publicou em 1991 e que marcou uma inflexão em sua carreira de sucesso. Já nas primeiras pesquisas que realizei com vistas a escrever a dissertação, percebi que, para Barthes (ainda que ele

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não o tenha dito explicitamente), fazer um biografema é, de algum modo, fazer um retrato da vida do personagem (tendo como posição antinômica a ideia de se fazer um filme da vida da pessoa, método tão comum nas biografias mais comerciais). Assim, mantendo no horizonte essa perspectiva metafórica do retrato, mobilizei e manipulei outras reflexões de Barthes de forma a consolidar uma possibilidade de biografia-biografema que se relacionasse mais pormenorizadamente com a ideia da fotografia. Para compor essa perspectiva biográfica, mobilizei os conceitos barthesianos de punctum e studium – além do conceito de biografema, naturalmente. O que fiz foi deslocar esses conceitos – o punctum e o studium – do campo da fotografia, que é onde Barthes os concebeu, para o campo da biografia, de forma a reproblematizá-los neste. Minha intenção com este ensaio é mapear a metodologia que criei e usei, de forma a apresentá-la como possibilidade biográfica viável e consonante com as mais recentes problematizações feitas sobre a biografia nos campos do jornalismo, da literatura e, principalmente, da história. Para contextualizar tal metodologia, cabe passar, primeiramente, pelo entendimento do que seja uma biografia no sentido tradicional e do que sejam essas citadas problematizações. É o que faço a seguir.

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DA BIOGRAFIA AO BIOGRAFEMA

6. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3

7. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 2. 8. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 2.

9. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 5.

Em O historiador e seu personagem: algumas reflexões em torno da biografia, a historiadora Vavy Pacheco Borges rascunha alguma definição para o termo: “Biografia: espécie de história que tem por objeto a vida de uma só pessoa”.6 Em seu ensaio, Vavy vai fazer entender que a biografia é um gênero, além de literário, também histórico. Positivamente, com Vavy encontramos a biografia situada congenitamente na imbricação entre literatura, história e jornalismo. Retomando um argumento de Jean Orieux em A arte do biógrafo, a historiadora diz que a biografia nasce de “uma longa intimidade”7 entre biógrafo e biografado, seja esta uma intimidade de facto, seja esta uma intimidade temática. “A biografia é um casamento”,8 metaforizou – e, como todo matrimônio, é dada aos seus particulares imbróglios. Os problemas que se colocam, ao se propor escrever a história de um personagem – chame-se isso de biografia, estudo de caso, microhistória ou trajetória, itinerário, percurso – em nada são diferentes dos que se enfrenta em qualquer trabalho de pesquisa histórica. São os mesmos, mas, ao que me parece, olhados através de uma lente de aumento [...]. Encontram-se bastante imbricados.9

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O que Vavy vai demonstrar que são muitos esses problemas potenciais pertinentes ao fazer biográfico, e que, se não lhes dermos a devida atenção, eles podem comprometer a qualidade e a pertinência de uma biografia de diferentes formas. Um dos principais problemas que acometem os biógrafos tradicionais é o “ideal de contar a verdade”10 de uma vida, como se efetivamente existisse uma grande verdade, maior, soberana, sobre uma existência – uma verdade única que, a partir de um grande esforço, pudesse ser alcançada e, finalmente, reportada. O risco de que nos alerta Vavy é o seguinte: de tão “íntimo” que se torna do seu biografado ao fazer o seu esforço de pesquisa, esse biógrafo passa a acreditar, de forma um tanto positivista, que enfim o conheceu total e definitivamente.11 O curioso é que esse disparate leva o biógrafo a outro, uma segunda crença: a crença em sua capacidade de, por meio da linguagem, representar o seu biografado com objetividade, identidade e precisão, tal como ele “é”. Aqui, o biógrafo desconsidera não apenas a impossibilidade de alcançar tal verdade única, mas também o caráter precário da linguagem, que é inevitavelmente dada ao equívoco, à contradição, à parcialidade. Ou seja, ele desconsidera a incapacidade que a linguagem teria de registrar essa verdade com precisão caso ela existisse. RIBEIRO. Biografema, studium, punctum, fotografia: quase um método

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10. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3.

11. Aqui, a semelhança entre a relação biógrafo/biografado e a que se estabelece num casamento em crise (em que o marido e a esposa reiteram diariamente: “você não é a pessoa com quem me casei!”) não é mera coincidência: seja na relação biógrafo/biografado, seja nas relações erótico-amorosas, o conhecimento que se tem da alteridade será sempre precário.

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Se assim descrito o problema pode parecer tolo, sua demarcação pormenorizada se justifica em uma rápida visita à livraria: basta uma passada d’olhos nas biografias que hoje abundam nas prateleiras para perceber que o discurso biográfico preponderante parte dessas duas crenças. É profícuo mobilizar alguns entendimentos correntes no campo da história, sobretudo na reflexão histórica contemporânea, para circunscrever problematicamente esse “ideal da verdade”. Na história – e também no jornalismo, se pensarmos mais na teoria que na prática da profissão – já se preconiza não ser viável o estabelecimento de verdades absolutas sobre os fatos. Ao contrário, entende-se com algum nível de consenso que só são possíveis construções de sentido, estas sempre em afirmação ou refutação de uma construção de sentido anterior. Aqui estou pensando principalmente com Foucault, quando este diz que

12. FOUCAULT. Microfísica do poder, p. 28.

As forças que entram em jogo na história não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta. Elas não se manifestam como formas sucessivas de uma intenção primordial; como também não têm o aspecto de um resultado. Elas aparecem sempre na álea singular do acontecimento.12

Aqui, o que é possível depreender de Foucault é que, sendo o acaso da luta uma variável constante, e não havendo

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uma destinação, não haverá uma verdade final, posto que não há resultado: as verdades serão sempre provisórias, sempre precárias; sempre construções de sentido. E estarão, ainda, sempre na iminência de se confrontarem com versões contraditórias de si, embate do qual uma das partes sairá vitoriosa (e se tornará então a verdade provisória da vez) enquanto a outra sairá subjugada, relegada ao esquecimento. O que se está dizendo aqui é que as relações de força e poder são permanentes e intrínsecas ao processo de construção do saber. Daí a relevância de se mobilizarem entendimentos do campo da história para a projeção de um trabalho biográfico na área de literatura. Tendo em vista esse problema, Vavy Pacheco Borges fala sobre um “escopo difícil”13 de certas biografias (justamente aquelas que contam com espaço privilegiado nas gôndolas das livrarias), que visam “cobrir a história de uma vida do berço ao túmulo, tentando inutilmente abarcar toda a riqueza incomensurável de uma vida”.14 O mote, nesse sentido, é mais uma vez o precário ideal de contar uma suposta verdade absoluta sobre certa existência. Nesse sentido, é o saber histórico que pode colaborar com o biógrafo para que ele não incorra em tais deslizes na hora de lançar seu olhar para o tempo que já se foi: de uma perspectiva menos pretensiosa, pode o biógrafo finalmente assumir que história (portanto, biografia) é representação, RIBEIRO. Biografema, studium, punctum, fotografia: quase um método

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13. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3.

14. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3.

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15. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 6.

16. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 2.

17. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 6.

18. RANCIÈRE. A partilha do sensível, p. 58.

não encarnação da realidade. Vavy Pacheco sintetiza essa ideia com menos palavras: “Não se chega ‘ao passado’, mas se constroem representações do passado”.15 Em seu ensaio, a historiadora sugere que a precariedade da nossa percepção da alteridade é o que subjaz a nossa dificuldade em biografar. Os problemas de interpretação de uma vida são riquíssimos, pois nos defrontam com tudo que constitui nossa própria vida e as dos que nos cercam. Num círculo vicioso, exigem de nós autoconhecimento e preocupação com a compreensão dos outros seres humanos; mas, ao mesmo tempo, podem acabar por reforçar em nós tudo isso.16

Nesse sentido, serão as fontes encontradas que vão (ou ao menos deveriam) estabelecer “os limites, os níveis em que podemos nos aprofundar na vida de uma pessoa”.17

não é propor engodos, porém elaborar estruturas inteligíveis”.19 Em foco, mais uma vez, a precariedade da linguagem. Eneida Maria de Souza vai dizer que, no exercício da crítica biográfica, “o apelo ao ficcional atua como procedimento que formaliza o texto e o molda segundo princípios comuns à arte da escrita”.20 Ou seja, Eneida diz que a crítica biográfica prevê a ficcionalização dos dados. Ela explica: “Ficcionalizar os dados significa considerá-los como metáforas, ordená-los de modo narrativo, sem que haja qualquer desvio em relação à ‘verdade’ factual”.21 Essa inexistência de desvio em relação à verdade factual só pode se dar por meio de uma premissa: a ética do escritor em buscar, como regra, entrar em harmonia22 com os dados documentais do biografado, como vai dizer Barthes em A câmara clara.

Um bom biógrafo é o que aceita que as fontes encontradas encerram, ao mesmo tempo, a potencialidade e as limitações do seu trabalho biográfico. Ele assume que o resultado de seu trabalho será sempre precário e reluzirá sua própria limitação, a limitação da sua perspectiva em face do inapreensível todo. Daí o espaço inevitável que surge para a imaginação no registro que fazemos do que houve — como entrelinha Jacques Rancière em A partilha do sensível: “O real precisa ser ficcionado para ser pensado”.18 Mas Rancière alerta: “Fingir

Para que se alcance uma verdade que seja ao mesmo tempo inteligível e ética sobre a realidade, é preciso ficcionalizar o real.

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As considerações de Philippe Lejeune em O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet, ainda que na maioria das vezes tenham sob o foco a autobiografia, colaboram para esta reflexão preliminar sobre o fazer biográfico. E, principalmente, colaboram para a elaboração de uma definição mais profunda para o termo biografia.

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19. RANCIÈRE. A partilha do sensível, p. 53.

20. SOUZA. Crítica cult, p. 9.

21. SOUZA. Crítica cult, p.11.

22. BARTHES. A câmara clara, p. 33.

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23. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 14. 24. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 53.

Lejeune define a autobiografia como uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”.23 Da biografia, por sua vez, Lejeune lembra o que diz ser seu sentido antigo e mais comum: a “história de um homem (em geral célebre) escrita por outrem”.24 Somadas, as definições de Lejeune e de Vavy Pacheco (e, por que não, do dicionário Houaiss) colaboram para que aqui se possa rascunhar uma definição própria de o que seja uma biografia: A biografia é uma narrativa retrospectiva histórica, literária e jornalística que uma pessoa real faz da existência de outrem (em geral célebre, mas não necessariamente), tendo por objeto sua diacrônica trajetória individual, em particular a história de sua personalidade e de sua interação com o mundo.

25. BARTHES. O efeito de real, p. 131-136.

Em oposição a todas as formas de ficção, a biografia e a autobiografia são textos referenciais: exatamente como o discurso científico ou histórico, eles se propõem fornecer informações a respeito de uma “realidade” externa ao texto e a se submeter portanto a uma prova de verificação. Seu objetivo não é a simples verossimilhança, mas a semelhança com o verdadeiro. Não o “efeito de real”, mas a imagem do real. Todos esses textos referenciais comportam então o que chamarei de pacto referencial, implícito ou explícito, no qual se incluem uma definição do campo do real visado e um enunciado das modalidades e do grau de semelhança aos quais o texto aspira.26

Em suas reflexões, Lejeune retoma o efeito de real de Barthes25 para pensar a (auto)biografia. A leitura que o pensador faz é bastante interessante para a problematização do funcionamento de um texto biográfico – inclusive no sentido de se perceber o quanto uma abordagem positivista (como ocasionalmente é a do próprio Lejeune) pode ser restritiva a uma reflexão que se queira contemporânea sobre a biografia. Diz Lejeune:

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Com Vavy Pacheco, aqui já se disse que “não se chega ‘ao passado’, mas se constroem representações do passado”;27 nesse ponto, Vavy aponta para o equívoco que é tentar “cobrir a história de uma vida ‘do berço ao túmulo’, tentando inutilmente abarcar toda a riqueza incomensurável de uma vida”.28 Nesse sentido, é possível depreender da argumentação de Vavy um recado para Lejeune: se é preciso abdicar do “ideal de contar a verdade”29 de uma vida (tendo-se em vista não haver uma verdade única), também já não se faz mais tempo de se falar em “prova de verificação” entre realidade e representação, tampouco de aludir à semelhança entre a representação e o verdadeiro. Faz-se, sim, o tempo de se pensar em uma ética da relação que se estabelece entre o simbólico e o referencial. RIBEIRO. Biografema, studium, punctum, fotografia: quase um método

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26. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 36.

27. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 6.

28. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3. 29. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3.

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Nesse sentido, passo por Lejeune neste ensaio menos para construir, e mais para desconstruir alguns saberes sedimentados sobre a questão biográfica. Afinal, já se estabelecera aqui o equívoco que é imaginar uma alegoria como capaz de retratar o real com fidelidade. Com Vavy (e também com Barthes), evidenciou-se o quanto se faz tortuoso o caminho de um biógrafo que se proponha a alcançar o verdadeiro de uma vida por meio de sua representação em semelhança. Nesse sentido, com eles, torna-se impossível não refutar um argumento que se proponha, em signo, verificável no que diz respeito à sua relação com o referente.

30. Eneida Maria de Souza vai falar em uma “desestabilização do referencial” (Crítica cult, p. 23) ao tratar desse ponto. “A desestabilização do referencial produz, com efeito, a invenção e a estetização da memória, esta não mais subordinada à prova de veracidade” (Crítica cult, p. 23, grifo meu).

Na biografia (no movimento mesmo de significação de um referencial por meio da linguagem), a percepção desse referencial é subjetiva30 (pois depende do olhar do biógrafo, que é perspectivo), plural (pois pode variar de biógrafo para biógrafo, ou seja, de perspectiva para perspectiva) e sempre precária (na medida em que um signo nunca é capaz de abarcar toda a complexidade do seu referente; ao contrário, o reduz a uma chave de entendimento). Em face a essas constatações, já não cabe mais exaltar ideias como semelhança ao referencial, sugerindo para tal relação uma prova de verificação. Tal movimento parece tentar abarcar de forma simplista e redutora uma realidade discursiva que é complexa e irredutível.

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Nesse sentido, a biografia não está em oposição a todas as formas de ficção, como sugere Lejeune; pode, ao contrário, se dar em diálogo com elas – como se faz exemplo o próprio livro de Fernando Sabino, Zélia, uma paixão, qual motivou a minha dissertação de mestrado (dissertação que, por sua vez, motivou a elaboração do método biográfico que se detalha aqui). Quanto à verdade, o objetivo agora não é mais alcançá-la, abarcá-la, mas sim se aproximar dela à mínima distância impossível, como num sonho mesmo, e sentir, como que caducamente, o seu hálito imponderável. Essa é a relação que a imaginação biografemática estabelece com a verdade: entra em contato com ela ao tempo em que a estabelece; e a estabelece em harmonia – diria ética – com a realidade referencial. No pacto referencial de Lejeune, “a fórmula deixaria de ser ‘eu abaixo-assinado’ e passaria a ser ‘juro dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade’”.31 Adaptando Lejeune: no sentido mais contemporâneo que se propõe aqui, a fórmula passa a ser “juro dizer uma verdade, somente uma verdade, nada mais que uma verdade”. Positivamente, o próprio Lejeune já havia rascunhado uma problematização às assertivas de seu pacto. Ele diz em dado momento:

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31. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 36-37.

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32. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 36-37.

raramente a forma do juramento é tão abrupta e total: uma prova suplementar de honestidade consiste em restringir a verdade ao possível (a verdade tal qual me parece, levando-se em conta os inevitáveis esquecimentos, erros, deformações involuntárias etc.) e em demarcar explicitamente o campo ao qual o juramento se aplica (a verdade sobre tal aspecto de minha vida, sem me comprometer sobre tal outro aspecto).32

biográfica, para além do regime referencial (sem que seja necessário, para isso, abrir mão dele como – veja só a nossa ironia vocabular – referência33).

Ainda assim, Lejeune não alcança a questão principal, que é anterior a qualquer argumento sobre “esquecimentos, erros, deformações involuntárias” – afinal, seus termos consideram subliminarmente a utópica possibilidade de que, fosse possível superar de alguma forma esses equívocos, poder-se-ia enfim alcançar alguma verdade absoluta sobre a vida biografada, utilizando-se para isso a linguagem. Esse é o entendimento de Lejeune que se propõe, aqui, superar. É preciso demarcar em ordem direta: já é tempo de não mais se considerar (nem mesmo em termos de oposição, como faz Lejeune) a hipótese de alguma verdade absoluta: cabe, finalmente, introjetar que a verdade depende sempre da apreciação que se faz da realidade, e que tal apreciação é por natureza singular, perspectiva, e por isso precária.

Lejeune considerara um desafio da biografia literária o fato de ela “pretender ser ao mesmo tempo um discurso verídico e uma obra de arte”.34 Ao meu ver, não se trata exatamente de um desafio: assumindo-se o que já se disse aqui sobre o caráter impossível do verídico, o que antes se tomava por problema se transfigura em potencialidade. E, positivamente, Vavy Pacheco já resolvera sem muita dificuldade esse ponto: ela demarcara que a biografia oscila entre o conhecimento e a arte, entre a ‘ciência’ e a ‘arte’, entre a história e a ficção,35 e que é justamente nessa oscilação que ela se encontra, em vez de se perder: “as reflexões atuais que aproximam a história e a ficção mostram como muito sutis os limites entre as duas”,36 diz. Nesse sentido, Vavy aponta a biografia como “um espelho ao mesmo tempo científico e poético, ou seja, ao mesmo tempo natural e mágico”37 de uma vida. Essa é a sua potencialidade, muito mais que um desafio a ser superado.

Como Vavy nos sugere, verdade não é: a verdade são. Pois é a partir desse entendimento que se propõe, neste método, a consideração do regime ético – e estético – da concepção

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Uma definição para “verdade”: representações hipotéticas, precárias, plurais, portanto perspectivas, e potencialmente antagônicas de algo que reside no plano metafísico e que não pode ser plenamente acessado no plano físico.

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33. Trata-se de em suma de considerar a referência como um ponto de partida para a biografia, nunca como linha de chegada.

34. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 61.

35. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3.

36. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 5. 37. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 7.

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38. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 18. 39. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 21.

De toda forma, ainda que pertinente, a ideia de “espelho” já não parece ser a melhor opção para a metáfora que se pede aqui. Pensemos então a biografia como um retrato – finalmente. Um retrato pintado à mão pelo biógrafo, com as tintas de sua preferência, e em seu particular estilo; um retrato fotografado pelo biógrafo, com a luz de sua preferência, o enquadramento de seu gosto, no ínfimo instante do seu clique emocional. Ao falar em fotografia, começo a me afastar da ideia básica de biografia para aproximar-me do conceito de biografema proposto por Barthes. É aonde devo chegar ao fim dessas poucas páginas ensaísticas.

significação. Eu, quando aqui escrevo, encarno também uma espécie de personagem; o pesquisador que produz o seu trabalho.

Quando fala sobre autobiografias, Lejeune acusa que, ocasionalmente, “a narração em terceira pessoa pode comportar intromissões do narrador em primeira pessoa”.38 Lejeune chama a atenção para “a evidência de que [nesses casos] a primeira pessoa é um papel”.39 Lejeune está correto, mas ele poderia ser mais preciso se generalizasse: em uma biografia, todo enunciado, em primeira, segunda ou terceira pessoa, remete a um papel.

No início deste texto, falei em serem muitos os potenciais problemas pertinentes ao fazer biográfico. Alguns deles podem ser delineados retomando-se as reflexões de Lejeune – que incorre, por exemplo, no equívoco de usar a palavra “identidade” para dizer: “na biografia, o autor e o narrador estão por vezes ligados por uma relação de identidade”,40 ao que completa: “essa relação pode permanecer implícita ou indeterminada, ou ser explicitada, por exemplo, em um prefácio”.41

Todo personagem é um papel – e é nesse sentido que se busca aqui ir além de Lejeune. Eu, quando surjo em primeira pessoa neste ensaio, não transmito encarnando a pessoa real que escreve, o referente; remeto-me a ela por meio de uma significação – uma significação precária (e diria afetada, em se tratando do meu discurso acadêmico) como toda EM  TESE

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Somos todos personagens. O que se quer dizer aqui é que narradores devem ter suas relações de semelhança (e de suposta identidade) com o autor problematizadas. Tanto quanto podem e devem ser problematizadas as relações de semelhança e de suposta identidade entre o sujeito que foi biografado e a imagem que de tal sujeito é construída por meio da linguagem.

Há que se repudiar esse uso do termo e reafirmar: diga-se o que quiser em prefácios, nunca haverá identidade,42 tendo-se em vista o sentido próprio do termo, entre autor e narrador. Nem em uma autobiografia escrita em primeira pessoa (em que se jure – “em um prefácio” ou página a

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40. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 38. 41. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 38.

42. “Identidade” para o Houaiss: “qualidade do que é idêntico”. “Idêntico” para o Houaiss: aqui “que em nada difere”. (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa). Reafirmo: uma representação necessariamente difere do seu referente.

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página, caso se prefira – só dizer a verdade, nada mais que a verdade) nem em uma biografia escrita em terceira pessoa. A linguagem, por natureza, é um engodo em relação ao que referencia; sua relação com o referente é simbólica, portanto precária.

43. BARTHES. A câmara clara, p. 33.

44. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 42.

45. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 37. 46. Cf. Análise de Discurso, livro de Eni Pulcinelli Orlandi, professora da Unicamp – uma ótima introdução à Análise do Discurso.

Ao se substituir o termo identidade por semelhança, e perpassar a ideia de semelhança com a perspectiva de harmonia elaborada por Barthes (o biógrafo que “entra em harmonia”43 com a realidade da existência do biografado), aproximamo-nos do que se vem entendendo aqui como uma profícua possibilidade biográfica. Gide teria sugerido que “as memórias só são sinceras pela metade, por maior que seja a preocupação com a verdade: tudo é sempre mais complicado do que o dizemos. Talvez se chegue mesmo mais perto da verdade no romance”.44 A ironia é que aqui temos Gide citado pelo próprio Lejeune, que o retoma para problematizá-lo. Em dado momento de O pacto autobiográfico, Lejeune cita um “sistema de explicação que implica a ideologia do historiador”.45 Aí o pensador rascunha algo sobre a posição discursiva46 (pensando aqui nos termos da Análise do Discurso de linha francesa) a partir da qual o biógrafo profere a sua narrativa, posição necessariamente perpassada pela historicidade do biógrafo, por sua ideologia, pelo contexto social em que ele se insere e por seus afetos, suas paixões. Com EM  TESE

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tudo isso em vista, como insistir em pensar na relação entre referente e significação em termos absolutos? “Tentarmos compreender um personagem é já uma forma de gostar dele, de apreciá-lo”,47 acerta Vavy Pacheco Borges em seu O historiador e seu personagem. Pois, de tal afeto, decorre um outro risco do biógrafo aqui ainda não abordado: o risco de, em sua visão retrospectiva, se ver seduzido por certa perspectiva determinista. “Sabendo como tudo acabou, o historiador corre o risco de construir para seu personagem ‘um percurso orientado’, muitas vezes disfarçado atrás de ideias de ‘destino incontornável’, ‘vocação irresistível’, etc...”.48 Essa construção de sentido a posteriori é bem sintetizada pelo sociólogo Duncan J. Watts já no nome que oferece a um best-seller seu: Tudo é óbvio: desde que você saiba a resposta. No livro, Watts exemplifica a facilidade com que nos valemos do senso comum para conferir novos sentidos para o passado a partir dos desdobramentos do presente — e demonstra como esse procedimento normalmente se faz combustível para os equívocos de interpretação da realidade. “O resultado é que ele [o senso comum] é maravilhoso para dar sentido ao mundo, mas não para compreendê-lo”.49 (WATTS. Tudo é óbvio: desde que você saiba a resposta, p. 39). É nesse sentido que Vavy nos diz: “é preciso se pensar tanto nas determinações da sociedade (em que o/a biografado/a se criou e viveu) quanto no papel do ‘acaso’, tomando-se RIBEIRO. Biografema, studium, punctum, fotografia: quase um método

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47. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 6.

48. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 7.

49. WATTS. Tudo é óbvio: desde que você saiba a resposta, p. 39.

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50. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 6.

51. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 7. 52. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 7. 53. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 7.

54. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 5.

55. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 5.

como tal os inúmeros pequenos fatos e incidentes para os quais não se conhecem explicações”.50 Em outras palavras, é preciso desconfiar, no processo biográfico, de tudo aquilo que muito facilmente se propõe como um saber conclusivo acerca do ser a que se quer biografar. Vavy orienta o biógrafo a pensar sobre como se deu a vida do biografado em particular, fugindo dos lugares-comuns generalizantes: “os atores históricos (nós todos) não são modelos de coerência, de continuidade, de racionalidade”,51 lembra; assim, “não mais se concebe a biografia como uma evolução linear com um encadeamento de causas e efeitos”52: ao contrário, é preciso pensar sempre “as tensões entre o vivido e o imaginado e desejado; entre a razão e a paixão”;53 entre o coerente e o inoportuno. Para a teórica, a psicanálise tem grande importância e traz importante contribuição para o fazer biográfico. Segundo Vavy, ela colaborou “para mostrar a importância do detalhe”,54 “para iluminar a questão de se atribuir uma racionalidade ao indivíduo; para mostrar a importância da ‘dominância subjetiva’; para mostrar a dificuldade de se provar muitos desses aspectos e como somente se pode captá-los por formas muito indiretas”.55

principais aspectos que colaboram para distinguir (não por oposição, mas por singularidade) o biografema da biografia tradicional. Ainda que Vavy Pacheco Borges tenha escrito as suas reflexões em torno da biografia já neste século 21, ela vai afirmar, ao tempo de sua escrita, que “não há métodos canônicos para se escrever a história de uma vida, ou falando comumente, para se produzir uma biografia”.56 Daí a relevância do exercício que se faz aqui. O biografema, de sua parte, se apresenta como opção metodológica (ainda que tratar o termo por “método” por si só me soe ousadia). Sobre o conceito, o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Luciano Bedin da Costa, diz o seguinte em seu Estratégias biográficas: biografema com Barthes, Deleuze, Nietzsche e Henry Miller: “não há fórmulas para tais estratégicas biográficas”.57 Sem sugerir uma fórmula, rascunho um método, ou melhor, delineio as premissas da minha particular estratégia — o retrato.

Ora, curiosamente, o detalhe e a subjetividade são aspectos centrais da perspectiva biografemática. São eles os

Antes, uma definição barthesiana mais clara de biografema. Barthes não alcança a sua definição para o conceito em um golpe só. Ao contrário, vai rascunhando-o com calma no decorrer de sua obra, distraidamente, como que sem intenção formal. Em Sade, Fourier e Loyola, livro de 1971, o filósofo faz alguns primeiros apontamentos sobre o tema.

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56. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 5.

57. COSTA. Estratégias biográficas, p. 13.

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Para tanto, usa a si mesmo como objeto de análise, e com isso oferece uma proposta para o termo.

58. BARTHES. Sade, Fourier e Loyola, p. XVII.

59. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 6.

Se eu fosse escritor, já morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: “biografemas”, cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão; uma vida esburacada, em suma, como [...] um filme à moda antiga, de que está ausente toda palavra e cuja vaga de imagens [...] é entrecortada, à moda de soluços salutares, pelo negro apenas escrito no intertítulo, pela irrupção desenvolta de outro significante.58

outro lado, Barthes também fala em desenvoltura. Tal desenvoltura foi o que aqui motivou a mobilização de conceitos concebidos por Barthes no campo da fotografia – o punctum e o studium, aos quais não tardo a me remeter – e a aplicação deles em perspectiva narrativa, biográfica. Barthes ainda fala em “outro significante”, capaz de ir tocar o futuro do biografado. De fato, a biografia é um outro significante: uma representação, que como representação não estabelece uma relação de identidade com o seu referente, mas de harmonia (diria ética); e que assim se faz capaz de, autonomamente, em função de sua congênita mobilidade, dirigir-se ao futuro, rompendo com qualquer ideia de inexorabilidade do destino. Com o biografema, o futuro do passado é reescrito.

Perceba-se que, para produzir o biografema, Barthes não demanda um biógrafo qualquer: pede um biógrafo que seja, especificamente, amigo e desenvolto. Cabe aqui retomar que tal relação de “amizade” entre biógrafo e biografado fora elencada também por Vavy Pacheco quando a historiadora afirma que tentar “compreender um personagem é já uma forma de gostar dele”.59 Positivamente, assumir esse afeto, essa espécie de paixão que inevitavelmente se estabelece entre biógrafo e biografado na produção de uma biografia, me parece ser um primeiro passo para se superar a perspectiva positivista da produção biográfica à qual, entre outros, Lejeune alude. Por

Em A câmara clara, livro de 1979, Barthes retoma o conceito de biografema, evoluindo em sua problematização. Nesta obra, publicada apenas um ano antes de seu falecimento, o teórico reflete sobre a sua relação com a fotografia e um seu desejo algo ontológico de descobrir a qualquer preço o que a fotografia é em si; o seu “traço essencial”,60 aquele que poderia distingui-la em meio à ampla comunidade das imagens. Na abordagem que faz da fotografia, Barthes traça um paralelo que colaborará na compreensão dos sentidos inerentes ao seu conceito de biografema.

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60. BARTHES. A câmara clara, p. 13.

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61. BARTHES. A câmara clara, p. 34.

Ela [a fotografia] me permite ter acesso a um infrassaber; fornece-me uma coleção de objetos parciais e pode favorecer em mim um certo fetichismo: pois há um “eu” que gosta do saber, que sente a seu respeito como que um gosto amoroso. Do mesmo modo, gosto de certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam tanto quanto certas fotografias; chamei esses traços de “biografemas”: a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema com a biografia.61

O biografema permite ajustar o zoom biográfico a não mais que um detalhe da vida do biografado. O objetivo desse ajuste é finalmente possibilitar a percepção daqueles detalhes, daquelas ranhuras, daquelas nuances que só podem ser vistas de perto, em atenção dedicada. O biografema fomenta essa perscrutação. 62. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 5.

63. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 5.

Vavy Pacheco dedica parte de seu ensaio para mostrar “a importância do detalhe”62 e a importância que ele tem “para iluminar a questão de se atribuir uma racionalidade ao indivíduo; para mostrar a importância da ‘dominância subjetiva’; para mostrar a dificuldade de se provar muitos desses aspectos e como somente se pode captá-los por formas muito indiretas”.63 Positivamente, uma forma de se obter uma impressão honesta do todo é por meio da parte, do detalhe: a parte possibilita essa percepção exemplar, criativa, subjetiva, indireta do todo.

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A parte possibilita uma percepção não generalizante de um conjunto, é o que se pode dizer. Em vez de investigar, de um sujeito, o transcorrer histórico de toda a sua vida, como que numa panorâmica; em vez de biografar-lhe a vida de forma ampla, tal como se faz numa biografia tradicional (de viés jornalístico e poder-se-ia dizer comercial), como fosse um filme hollywoodiano; é profícuo mirá-lo como que pela lente de uma teleobjetiva. Mas não de um ponto distante, como se faz com tal lente; cabe manter-se colado a ele, de forma a inevitavelmente focalizar-lhe apenas uma pequena parte sua – e ser afetado por ela. Em meu trabalho sobre Fernando Sabino, foquei minha teleobjetiva em um ponto, fotografando-lhe uma específica passagem da existência: a escrita e o lançamento de Zélia, uma paixão. Interessaram-me, pois, a produção do livro, os acontecimentos prévios relacionados a ele e as consequências de sua publicação — o que, vale dizer, me levou tanto ao início de sua juventude, em especial às cartas trocadas com Mário de Andrade, como aos últimos dias de sua vida, quando, ensimesmado em seu apartamento em Ipanema, Sabino quis morrer só.64 Tal método permitiu que eu enxergasse um Sabino inédito. É em A câmara clara que Barthes desenvolve, para além do biografema, os conceitos filosófico-estéticos de studium e de punctum. Barthes concebe tais conceitos para interpretar

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64. Pois não é assim também como uma boa fotografia? Ao retratar um ínfimo instante, remete-nos inevitavelmente aos passados vividos e não vividos – e a toda a potência de futuro presente no presente.

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a fotografia; na minha investigação eu os mobilizei como recurso para lançar um olhar dedicado à vida de um personagem e construir um seu biografema.

65. BARTHES. A câmara clara, p. 34.

A ideia adveio de uma específica colocação de Barthes: “a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema com a biografia”.65 No ensejo desse paralelo proposto pelo filósofo (e já que a proposta deste método é fazer, em metáfora, uma espécie de fotografia de um momento/aspecto do sujeito a ser biografado), coube deslocar os conceitos de studium e punctum do campo da fotografia para o campo da biografia – isso, contudo, mantendo íntegras as suas estruturas conceituais, gestadas com precisão pelo pensador francês.

Para o francês, o studium é aquilo que da foto desperta moderadamente o interesse: ele tem a ver com um afeto médio, quase com um amestramento. Diz Barthes: o studium é aquela “aplicação a uma coisa, o gosto por alguém, uma espécie de investimento geral, ardoroso, [...] mas sem acuidade particular”,68 que fazemos sobre algo. Coligidos, alguns trechos de A câmara clara fazem Barthes explicar muito claramente o seu entendimento para o termo, que aqui passa a ser também o meu. O studium é o campo muito vasto do desejo indolente, do interesse diversificado, do gosto inconsequente: gosto / não gosto, I like / I don’t. [...] É da ordem do to like, e não do to love; mobiliza um meio desejo, um meio querer; é a mesma espécie de interesse vago, uniforme, irresponsável, que temos por pessoas, espetáculos, roupas, livros que consideramos “distintos”.

Aqui, a investigação de studium e punctum do retrato que se faz do personagem é o que vai possibilitar a escritura de uma biografia sua. O STUDIUM E SUA INDOLÊNCIA

66. BARTHES. A câmara clara, p. 28.

67. BARTHES. A câmara clara, p. 29.

Reconhecer o studium é fatalmente encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em harmonia com elas, aprová-las, desaprová-las, mas sempre compreendê-las, discuti-las em mim mesmo, pois a cultura (com que tem a ver o studium) é um contrato feito entre criadores e consumidores. [...] Isso ocorre um pouco como se eu tivesse de ler na Fotografia os mitos do Fotógrafo, fraternizando com eles, sem acreditar inteiramente neles.69

Para Barthes, studium e punctum são perspectivas de apreciação que dizem da capacidade de uma foto despertar ou não o interesse do espectador; de tal foto “existir” ou não para ele.66 O studium, para Barthes, remete à vastidão; ele diz respeito à percepção ampla que o espectador tem da imagem. O que diz Barthes sobre o studium: “ele tem a extensão de um campo, que percebo com bastante familiaridade em função de meu saber, de minha cultura”.67 EM  TESE

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68. BARTHES. A câmara clara, p. 31.

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69. BARTHES. A câmara clara, p. 33.

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O studium é, de certa forma, indolente. Não desperta a paixão, mas o apreço; em vez de ferir, manifesta-se pacificamente. O punctum, por sua vez, surge justamente para quebrar o studium; contrariá-lo.

percepção, não me atravessa, nela não há punctum; não me punge verdadeiramente. Em outras palavras: a intensidade e a forma com que a foto desperta o interesse do espectador ajudam a dizer se nela há studium e punctum ou apenas o primeiro.

O punctum é um ponto da imagem – e, aqui, por analogia, um aspecto da biografia – que a extravasa de forma a despertar a atenção da recepção de forma aguda e pungente. Para Barthes, o punctum é uma espécie de ferida, de picada.

Muitas fotos, infelizmente, permanecem inertes diante do meu olhar. Mas mesmo entre as que têm alguma existência a meus olhos, a maioria provoca em mim apenas um interesse geral e, se assim posso dizer, polido: nelas, nenhum punctum: agradam-me ou desagradam-me sem me pungir.72

A PICADA DO PUNCTUM

70. BARTHES. A câmara clara, p. 31.

71. BARTHES. A câmara clara, p. 33.

Mas não é o espectador que vai buscar o punctum (tal como ele investe conscientemente sobre o studium): “é ele [o punctum] que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar”.70 Nesse sentido, quando eu tomo uma fotografia nas mãos, eu busco apreciar dela o seu plano geral, e não ser ferido por algum detalhe seu. Se um detalhe desponta da imagem e me fere, isso não se dá em função de um prévio interesse meu em sua busca. O punctum, nesse sentido, é um acaso. Positivamente, Barthes vai dizer que “o punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)”.71 O punctum é um acaso que fere.

Pense naquela biografia que, apesar de ter despertado o seu interesse durante a leitura, não te arrebatou, em nenhum momento, por nenhum aspecto (o detalhe) em particular. Esta, portanto, é uma biografia sem punctum. Pense agora naquele outro texto biográfico que, à revelia, lhe fez pensar na vida do personagem biografado por dias. Estou falando daquele texto que, em determinada passagem, te fez exclamar algo como “Puxa! Por essa eu não esperava!”. Esta é uma biografia que, além de studium, contém um punctum.

A foto que desperta o interesse é aquela que contém um punctum e nos faz encontrá-lo; que nos encontra como uma flechada. Se o interesse que a foto me desperta não fere a minha

O punctum dessa biografia é aquilo que te faz se emocionar; é aquilo que te afeta, que provoca uma catarse de seus próprios sentimentos por meio do texto. Seu punctum é esse aspecto que lhe toca de forma especial, atípica, pungente.

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72. BARTHES. A câmara clara, p. 33.

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O retrato-biografia que contém um punctum é perpassado pela paixão.

73. BARTHES. A câmara clara, p. 57.

Barthes sugere que esse punctum pode estar delimitado ou não, e que, a despeito disso, ele será sempre um suplemento: o punctum, diz Barthes, “é o que acrescento à foto e que todavia já está nela”.73 No sentido que Barthes lhe atribui, o punctum é, apesar de imanente, algo que só tem relevo a partir da mirada alheia, e não de forma autônoma à recepção. O punctum depende da recepção. Em Barthes, o punctum é aquilo que projeta a existência do que é retratado para além dos enquadramentos da foto. Aqui, por analogia, o punctum é o que projeta a existência do que é tratado na biografia para além de seus limites próprios de narrativa. Sobre isso, digo por meio do texto de Barthes:

74. BARTHES. A câmara clara, p. 57-58.

Diante de milhares de fotos, inclusive daquelas que possuem um bom studium, não sinto qualquer campo cego: tudo o que se passa no interior do enquadramento morre de maneira absoluta, uma vez ultrapassado esse enquadramento. [...] No entanto, a partir do momento em que há um punctum, cria-se (advinha-se) um campo cego [...]. O punctum é, portanto, uma espécie de extracampo sutil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver.74

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Havendo punctum, há, na biografia, um extracampo sutil; havendo punctum, o “retrato” que a biografia faz do biografado lança o desejo para além daquilo que ela, a biografia, dá a ver. STUDIUM E PUNCTUM APLICADOS À BIOGRAFIA

A ideia deste ensaio é conceituar a ideia de uma biografia-biografema levando-se em consideração o paralelo que Barthes faz: “a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema com a biografia”.75 Com esse seu argumento, Barthes possibilita aproximar, em metáfora, o biografema da fotografia. Assim como a fotografia é um recorte em História, o biografema é em biografia. O biografema, diz-se aqui, extrapolando Barthes, é um retrato. Por meio da perspectiva do studium, considerei, para a construção do biografema, em minha dissertação, o plano amplo (com alguma coisa de crônico, ainda que recortado a um específico acontecimento) do período em questão da vida de Fernando Sabino. Mobilizando o conceito do punctum, alcancei (ou melhor, fui alcançado por) aquilo que de seu biografema partiu da cena em minha direção de forma a me pungir, ferir, tantalizar. O studium, que é o plano amplo da fotografia – ou seja, o decorrer de toda a biografia, em si –, afeta o leitor medianamente. O punctum, que é um ponto específico que parte do

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meio do retrato em sua direção – ou seja, algo que, do meio de tantas palavras, sequestra a atenção –, o fere de morte. Ou de vida. O paradoxo do punctum é que, ao ferir de morte, ele vivifica. 76. BARTHES. A câmara clara, p. 53. 77. BARTHES. A câmara clara, p. 53.

78. BARTHES. A câmara clara, p. 56.

Para Barthes, “o studium está, em definitivo, sempre codificado”,76 ou seja, tem sua mensagem constituída segundo um código — portanto, é acessível à recepção. “O punctum não”;77 não necessariamente. O que Barthes sugere é que muitas vezes o efeito do punctum é “seguro, mas não é situável, não encontra seu signo, seu nome; é certeiro e no entanto aterrissa em uma zona vaga de mim mesmo; é agudo e sufocado, grita em silêncio”.78 O que Barthes quer dizer com isso é que o acesso ao punctum depende da recepção: é a própria recepção que, individualmente, o encontra (ou não) e lhe confere o sentido de sua existência. Efetivamente, o punctum é uma perspectiva de apreciação singular, que pode ser consciente ou inconsciente. Barthes também demarca essa questão importante: a existência do punctum independe de uma percepção consciente que o espectador venha a ter desse punctum. Com Barthes, descobrimos um espectador pungido, ferido, tantalizado por algo que ele vislumbra em um retrato, em uma vida. Perguntamos a esse espectador: “Mas o que é que tanto te toca nessa imagem? O que é que, desta vida, te toca tão profundamente a ponto de te deixar assim, como

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que ferido?”. Para Barthes, seria perfeitamente aceitável ouvirmos o seguinte em resposta: “Não sei! Não consigo identificar o que me punge, não consigo destacar o que me fere, sou incapaz de delimitar as características e dimensões disso que me tantaliza!” Para Barthes, importa é se o punctum fere ou não, e não se acreditamos ou não estarmos sendo feridos por um punctum. Cabe ainda dizer que, se o punctum é algo que salta do retrato na direção do espectador, a capacidade de um ponto em particular funcionar como punctum para certo espectador depende de uma íntima sintonia entre ele e aquilo que ele observa. Em outras palavras: aquilo que para mim pode despontar como um punctum, para você pode soar completamente insosso, integrando apenas o studium daquilo que observamos. O punctum, assim, não é universal. Ao contrário, costuma surgir embasado por uma referência pessoal, um contexto restrito. Já se disse aqui que o que ora desponta para um biógrafo como punctum pode em nada coincidir com aquilo que ao leitor vai ferir, pungir, tantalizar, de um mesmo tópico. Exemplifico. No livro A câmara clara, Barthes analisa uma série de fotografias de forma a nelas localizar studium e punctum. Em certo retrato, Barthes vai suspeitar que o punctum da imagem são uns sapatos de presilhas usados por uma

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79. BARTHES. A câmara clara, p. 56.

mulher. Contudo, depois de alguma reflexão, acaba chegando à conclusão que, para si, o punctum daquela imagem era, na verdade, um colar que a personagem trazia no pescoço, e não os sapatos.79 Barthes explica o motivo de aquele colar ser, para ele, em específico, o punctum da foto: tal colar era semelhante a um colar que o filósofo sempre vira sendo usado por uma pessoa de sua família por quem ele tinha afetuosa memória. É preciso ter em mente que o punctum tem certas características próprias, mas sua definição enquanto tal passa, em última instância, pelo crivo da recepção.

80. FOUCAULT. Microfísica do poder, p. 30.

Foucault ajuda a contextualizar a ideia de que o saber que aqui se constrói, por efetivo, é assumidamente perspectivo. Trata-se de um saber construído por um sujeito que “olha de um determinado ângulo, com o propósito deliberado de apreciar, de dizer sim ou não, de seguir todos os traços do veneno, de encontrar o melhor antídoto. Em vez de fingir um discreto aniquilamento diante do que ele olha, [...] é um olhar que sabe tanto de onde olha quanto o que olha”.80 Nesse sentido, esta perspectiva biográfica segue na contramão da intenção de se atingir o estatuto de verdade universal: aqui, a intenção é a de partir ao encontro de uma íntima verdade, que se dá na ciência do pesquisador de sua precariedade enquanto biógrafo. Como colocou Dominique Viart, EM  TESE

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numa biografia, mais do que a verdade de uma vida, o que é posto em questão é a arqueologia do próprio desejo de escritura e de, sobretudo, suas improbabilidades. Ao escrever sobre o outro, aquele que escreve estaria ao mesmo tempo atestando sua impossibilidade de lidar com a vida deste outro em si mesmo.81

O argumento de Dominique contextualiza o princípio desta metodologia biográfica: a impossibilidade do biógrafo de lidar com a vida de um outro enquanto alteridade. Positivamente, ao biografar Fernando Sabino eu acabei pondo em questão, basicamente, a arqueologia do meu desejo de escritura; meu páthos – e as impossibilidades dessa minha paixão. Pois esta é a razão condutora da metodologia biográfica que apresento aqui: o biógrafo como, por natureza, uma vítima da paixão. Em seu livro Estratégias biográficas: biografema com Barthes, Deleuze, Nietzsche e Henry Miller, Luciano Bedin da Costa – que fora coorientado por Dominique Viart em Lille, na França – distingue metodologicamente o ato de biografemar do ato de biografar, focando nas particularidades do primeiro método, em que pese elas nem sempre serem necessariamente antagônicas às particularidades da biografia tradicional. Nesse sentido, Luciano Bedin aponta o biografema como uma potência de vida que, ao mesmo tempo,

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81. COSTA. Estratégias biográficas, p. 11.

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82. COSTA. Estratégias biográficas, p. 12. 83. Aqui mesmo eu comentei que “o paradoxo do punctum é que, ao ferir de morte, ele vivifica”. Positivamente, esse é um paradoxo não só do punctum, mas do biografema, mesmo.

84. COSTA. Estratégias biográficas, p. 12. 85. COSTA. Estratégias biográficas, p. 12. 86. COSTA. Estratégias biográficas, p. 12.

87. COSTA. Estratégias biográficas, p. 45.

“inevitavelmente nos coloca diante de uma microexperiência de morte”.82 Faço minhas as suas palavras,83 de forma a dizer que, no biografema, a consciência histórica cede lugar à consistência biográfica. Ao invés de apegar-se à cronologia, historiografia, linearidade, memória, profundidade, causa, finalidade, contexto, intenção, influência, profundidade, e conjunto (palavras de ordem de uma consciência histórica), a consistência biográfica se vê enamorada de séries disjuntivas, fragmento, paradoxo, efeito, superfície, a-historicidade, acontecimento, esquecimento, do que é errante e fugidio. Ao lidar com isto que não se prende, o biografema inevitavelmente nos coloca diante de uma microexperiência de morte. De que forma, então, é possível capturar as inúmeras mortes em vida e as constrangidas vidas na morte?84

pautou um marcado critério de construção biográfica: a opção por fragmentos de texto, em vez daquelas tradicionais massas imensas (e não raro insossas) de palavras. “O biografema [...] não é avesso a biografia. Ele faz parte desta sendo-lhe ao mesmo tempo exterioridade”,88 diz Luciano Bedin. Trata-se de um tipo de biografia ao mesmo tempo em que é alheio à biografia, dadas as suas singularidades. Trata-se de um paradoxo. O biografema se “envereda também ali onde a vida parece mais escassa”,89 diz o pesquisador. Enveredando-se por lá, veja bem, ele descobre vida em abundância; a vida que fere e que, por isso, não raro, tende a ser obnubilada.

O biografema é um recurso sofisticado que serve de instrumento para uma abordagem biográfica que não se quer simplista. O biografema é sofisticado.

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89. COSTA. Estratégias biográficas, p. 16.

É esta a vida que me interessa. É esta a vida que este método biográfico se propõe perscrutar.

Luciano Bedin pergunta “de que forma, então, é possível capturar as inúmeras mortes em vida e as constrangidas vidas na morte?”.85 E diz ainda que, no biografema, “a consciência histórica cede lugar à consistência biográfica”.86 Ora, um método em que a consciência história cede lugar à consistência biográfica é como um convite à imaginação. Nesse sentido, pensei a consistência biográfica na medida de um apego “às séries disjuntivas, ao fragmento, ao paradoxo, ao efeito, à superfície, ao inusitado, ao a-histórico, ao acontecimento, ao esquecimento, ao expressável, ao que foge”.87 Essa reflexão BELO HORIZONTE

88. COSTA. Estratégias biográficas, p. 13.

*** Luciano Bedin da Costa afirma algo curioso em seu livro: “A escritura biografemática surgiu-me como tentativa de sustentar alguma forma provisória ao condenado a desaparecer, ao prestes a ser fuzilado pelos acontecimentos ditos importantes”.90 Com Bedin, posso afirmar que a escritura biografemática

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90. COSTA. Estratégias biográficas, p. 15.

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91. FOUCAULT. Microfísica do poder, p. 28. 92. BORGES. O historiador e seu personagem: algumas reflexões em torno da biografia, p. 2.

– e seus tantos deslocamentos que faço – surgiu-me, no que diz respeito à vida de Fernando Sabino, como tentativa de fazer aparecer o provisoriamente desaparecido: fuzilar os acontecimentos ditos corriqueiros com certa luz crítica ao lugar-comum; iluminar o entendimento fácil, rasteiro, jogando a luz justamente sobre o comprometimento de sua facilidade. Para mim (e para Luciano), o biografema parece ser uma forma de escapar ao destino historiográfico, este que se dá a partir de constantes disputas de força e poder, como comenta Foucault: “As forças que entram em jogo na história não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta”.91

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira (Saraiva de bolso), 2012.

Vavy Pacheco Borges afirma que “a vida, na atual crise de valores, aparece como um valor inconfessável”.92 De fato, este é o maior entendimento deste (quase) método: o de que a vida, em seus aspectos mais complexos, é um valor. Pois continuemos falando sobre o que importa: continuemos falando sobre vidas.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 3.0. Objetiva, 2009. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

E escrevendo-as (bíos, graph), cientes de nossa tão bela precariedade.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 5ª edição, 2003.

REFERÊNCIAS

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2009.

BARTHES, Roland. O efeito de real. In: ______. O rumor da língua. Trad. António Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1984, p. 131-136 (Coleção Signos, 44).

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