Biografias de ninguém: a trajetória em processos judiciais recentes e a escrita da História

June 21, 2017 | Autor: W. Balém | Categoria: Theory and Methodology of History, Biografías
Share Embed


Descrição do Produto

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

BIOGRAFIAS DE NINGUÉM: A TRAJETÓRIA NOS PROCESSOS JUDICIAIS RECENTES E A ESCRITA DA HISTÓRIA1

Wellington Rafael Balém*

Resumo: Nesse artigo, analisamos como foram construídas e usadas as trajetórias de réus e autores nos processos judiciais do século XX e como seu estudo permite que se compreenda, para além do visível, aspectos sociais e jurídicos que implicam diretamente na análise histórica. Tendo como base empírica os processos do fundo da Comarca Caxias do Sul, RS, começamos com uma discussão sobre a memória, a verdade, a história e os processos judiciais, com o foco na questão da trajetória. Em seguida, analisamos a legislação que se aplica ao uso de processos recentes para pesquisas, especialmente no manuseio de informações pessoais e casos de segredo de justiça. E, por fim, na perspectiva da escrita da história, analisamos como a construção e o uso das trajetórias feitas no permeável campo do direito sofrem o efeito de diversas forças internas e externas que podem ser mais ou menos determinantes para se obter êxito nos resultados pretendidos.

Palavras-chave: processos judiciais; trajetórias; legislação; escrita da história

INTRODUÇÃO

As narrativas biográficas têm ocupado um espaço cada vez maior não só entre os historiadores profissionais, mas também entre jornalistas, escritores, produtores de cinema, etc. Isso reflete um forte interesse social e econômico no consumo desse gênero. Paralelamente, há um intenso debate sobre os limites éticos e legais para a produção dessas narrativas que envolvem forças de diversas origens (do meio intelectual, econômico, artístico, jurídico). As biografias produzidas em cada espaço têm finalidades e formatos distintos. Uma das áreas em que a biografia de um sujeito parece 1 *

Agradeço a leitura do manuscrito pelos professores Drs. Katani Monteiro, Luiz Alberto Grijó e Regina Weber. A responsabilidade pelo conteúdo é do autor. Mestrando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Licenciado em História pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Bolsista Capes. E-mail: [email protected]

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

ser importante é a área do direito. Em processos judiciais das mais diversas tipologias, o recurso aos antecedentes de autores e réus é constante e pode ser determinante para os rumos que um processo toma e até mesmo para a sentença final, o que também interessa quando os mesmos processos servem à escrita da História. Assim, partimos do pressuposto de que analisar como são construídas e usadas as trajetórias nos autos permite que se vá além do visível e se compreenda quais são as forças mais ou menos determinantes, internas e externas, que estão atuando e o que isso implica para os resultados do processo e para a análise histórica. Para isso, nos concentramos em processos judiciais de diversos tipos, nas esferas civil e criminal, com base na experiência da Comarca Caxias do Sul, RS, que possui um acervo com processos predominantemente do século XX, época que demanda peculiaridades teóricas, metodológicas e legais para o estudo das trajetórias a partir dessa tipologia documental2.

MEMÓRIA, VERDADE E HISTÓRIA: A TRAJETÓRIA NOS AUTOS

Augé (2003, p.30-32) considera que o século XX, em seu contexto de aceleração do tempo histórico, é caracterizado por excessos (de temas, de fonte, de fronteiras maiores ou menores) e isso aumenta quanto mais o tempo se aproxima do presente. O etnólogo francês chama essa cultura do excesso de supermodernidade. O excesso supermoderno também encontra os arquivos judiciais. Não só o aumento da burocracia, mas também a disseminação de uma cultura de judicialização (ESTEVES, 2004), aumentou exponencialmente o número de processos abertos (e arquivados), congestionando o Poder Judiciário, tornando a justiça ainda mais lenta para os casos corriqueiros, embora determinados casos contem com sua agilidade. Situação que, ao que parece, não é exclusividade do Brasil, como explica Hartog (2011, p.229-237), pois, na França, os arquivos em geral também estão cada vez mais lotados e apresentando problemas de gestão e de acesso, sendo que arquivistas e pesquisadores precisam lidar 2

A análise de toda a documentação citada é resultado do trabalho desenvolvido no Centro de Memória Regional do Judiciário (CMRJU/IMHC/UCS) de Caxias do Sul, na condição de Auxiliar de Arquivo e Técnico do grupo de pesquisa do CNPq “Memória, Justiça e Poder”, entre 2013 e 2015. Foi consultada uma base de dados que, no período, contava com cerca de 10.500 processos descritos arquivisticamente, de um total de cerca de 40 mil processos arquivados.

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

com a interferência do governo nas políticas de arquivo, especialmente nos casos de memória e reparação. Isso se reflete diretamente na forma de encarar os estudos de trajetória nos processos judiciais. A crítica documental que deve ser feita aos processos passa pela questão da verdade. A verdade jurídica que é provada nos autos tem funções específicas para o Judiciário. Já a verdade histórica são várias outras. Reis (2003) explica que, na historiografia, o debate sobre a verdade é antigo e o que se entende por essa ideia é que, antes de tudo, ela é histórica. O problema é que as informações biográficas nos autos possuem uma chancela de verdade que se estende para fora do espaço jurídico e acaba sendo aceita amplamente como verdade. Sarlo (2007) questiona se os depoimentos tomados em determinados tipos de processos correspondem, de fato, à verdade. A crítica literária argentina considera que, em primeiro lugar, a Verdade, em si, não existe, e em segundo, que os depoimentos, assim como narrativas autobiográficas, podem, devem e merecem ser submetidos a um crivo crítico. O estudioso das trajetórias nos processos recentes também esbarra na incômoda interferência da memória. É uma interferência que pode estar dada, ou estar latente. Expor informações pessoais das partes de um processo de maneira que a pessoa possa ser identificada por ela mesma ou por outros pode ser o motivo de uma ação penal contra o pesquisador. Dosse, ao tratar da História do Tempo Presente (tanto o contemporâneo contemporâneo, quando o contemporâneo não contemporâneo), explica que “essa História é uma história 'sob vigilância', a de testemunhas que podem contestar os registros históricos nos quais não se reconhecem, o que torna mais necessária uma articulação entre História e memória” (2012, p.15). Meneses (1992), quando se questiona se a história é cativa da memória, defende que a memória é identidade, ideologia e sentimento. A história, por sua vez, é um campo do conhecimento. Uma não substitui a outra, sendo que a história não pode ser a paladina (nem a algoz) da memória. Sendo assim, a história deve, antes, tratar essa memória do jurídico como parte do campo do estudo histórico da trajetória. A existência desse obstáculo quanto à identificação dos sujeitos, nos leva a entender isso como problema historiográfico também. As Ciências Sociais já estão habituadas a trabalharem sem identificar seus sujeitos, tanto em pesquisas quantitativas quanto nas qualitativas. Coradini estudou as “relações entre os interesses e lógicas

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

sociais subjacentes ao militantismo e suas mudanças” (2010, p.446) em um assentamento do MST e dialogou com sujeitos os quais poderia ter identificado, mas não o fez, pois isso não foi relevante na sua pesquisa. Do mesmo modo, é possível trabalhar com séries de processos de um tipo ou de uma temática comum onde a identificação é secundária e muitas vezes irrelevante para os resultados finais. Assim, ao trabalhar com as trajetórias em um processo mais volumoso, que possui elementos biográficos mais detalhados, ou ao se debruçar sobre séries documentais, o pesquisador precisa avaliar com cautela se os nomes pessoais são fundamentais ou só acessórios; e muitas vezes eles são necessários, mesmo que de forma indireta. No espaço da Comarca de Caxias, assim como em vários outros, certas etnias e certas famílias compunham a elite da região, o que nos permite conhecer os que não faziam parte dela. Nos processos de homicídio, inventários, testamentos e ações comerciais da Comarca, os sobrenomes fazem referência a essa etnicidade, o que é importante para a análise. Uma estratégia que os pesquisadores encontraram quando a questão étnica é importante é diferenciá-la utilizando um pseudônimo da mesma etnia, quando isso é possível. Neste artigo, como trabalhamos com processos judiciais de maneira mais ampla e, muitas vezes, levando em consideração séries extensas de processos, a identificação dos sujeitos não é relevante. Para Bourdieu (1996), a narrativa biográfica tende a fazer atribuições de sentido, a encontrar uma lógica causal ou de fim para o seu objeto. Ele entende que o habitus pode explicar empiricamente o individual, mas só é possível compreender o individual colocando-o em uma perspetiva mais ampla. Assim, para fins de estudos científicos, a “história de vida” não pode ser o foco da análise, sendo preferível a noção de “trajetória”. Essa constatação de Bourdieu contribui para se pensar historicamente a trajetória nos autos que, em geral, é fragmentada, possui construções e desconstruções de todas as ordens, possui uma lógica causal marcada, além de ter a chancela de verdade disputada entre as partes. Para além disso, e mais adequado à História, Levi (1989, p.2-5) considera que também é preciso cuidado com as distorções: os indivíduos não são escravos de modelos e não tomam decisões sem inércia ou incerteza. A literatura percebeu e os historiadores também têm trabalhado com um sujeito não linear, contraditório. Estudar o contexto de um sujeito não é enquadrar o indivíduo no contexto ou o contexto no

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

indivíduo, mas é compreender suas ações no seu ambiente de possibilidades, portanto, normais. O contexto também contribui para resolver lacunas documentais através de comparação. É o caso, para citar apenas um, de Herança Imaterial, obra na qual Levi (2000) se utiliza de um processo inquisitório movido pelo arcebispado de Turin, no século XVII, contra o tosco padre exorcista Giovanni Battista Chiesa (que é identificado). Através do estudo de sua trajetória ele compreende não só a maneira de como o padre não obteve êxito ao utilizar seu capital herdado, como também mostrou que, diferente do que se acreditava, feudos eclesiásticos podiam oferecer alguma resistência contra a domínio da Igreja. Grijó (2008) reflete sobre as fontes biográficas para o estudo de trajetórias, o que nos interessa mais de perto, pois os processos trazem fontes biográficas para além dos testemunhos e das certidões. O autor considera que, em geral, as “histórias de vida” costumam aparecer como exemplo a ser seguido, como uma fórmula de sucesso (2008, p.5). Assim, a biografia não pode ser a finalidade do estudo, mas o historiador precisa se apropriar da biografia e da documentação biográfica e utilizar a trajetória do sujeito com o objetivo de contribuir à historiografia (Idem, p.8). É o caso de outro trabalho de Grijó (2001/2002), que ao estudar parte da trajetória de Lindolfo Collor, se questiona sobre as mobilizações e deslocamentos de capitais que tornaram possível uma pessoa de fora do circuito político do Rio Grande do Sul Oligárquico ascender a cargos de elevada importância estratégica e política. E de Grynszpan (1990), que se utiliza da trajetória de Tenório Cavalvanti, não para reescrever sua biografia, mas para compreender como se davam as relações entre clientelismo e patronato no Rio de Janeiro no século XX.

A QUESTÃO LEGAL O trabalho historiográfico com processos inquisitoriais3, ou sobre o século XIX e começo do XX no Brasil4, não precisa se preocupar, em primeiro plano, com a identificação ou não de seus sujeitos. Já para o estudo de processos judiciais das primeiras décadas do século XX ao XXI, a legislação recente tornou essa preocupação 3 4

Além de Herança Imaterial, ver também GINZBURG, Carlo. O queijo e os Vermes. São Paulo: Cia das Letras, 2002 (para outro caso italiano) e GOMES, Plínio Freire. Um herege vai ao paraíso. São Paulo: Cia das Letras, 1997 (para um caso luso-brasileiro). Ver CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 1990 e CHALHOUB, 2001.

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

central. Em 18 de novembro de 2011, foi sancionada a Lei nº 12.527, conhecida como Lei de Acesso à Informação. Isso aconteceu em um contexto onde se discutiu, e ainda se discute, a necessidade da abertura dos arquivos do Estado com vistas a políticas e ações de reparação de danos e de memória causados por terrorismo de Estado. É uma lei que acompanha uma tendência internacional, já que dezenas de países possuem legislações análogas. O trabalho da Comissão Nacional da Verdade se beneficiou dessa lei para a produção dos relatórios publicados em 2014. No Brasil, no entanto, a necessidade de tornar público o acesso à informação pública já era previsto pela Constituição de 1988, estando agora regulamentada, embora não muito observada. A Lei de Acesso à Informação estende-se por todos os órgãos e poderes do Estado, e possui a ideia central de que o acesso à informação é a regra e o sigilo é a exceção. Ela considera que toda a documentação pública, produzida e armazenada por instituições públicas e não classificada como sigilosa5 é pública e está disponível a todos os cidadãos, não sendo necessário justificar o interesse nela. Isso beneficia pesquisadores de diversas disciplinas, protegendo projetos de pesquisa que envolvam a segurança da sociedade e do Estado e à “realização de estatísticas para pesquisas científicas de evidente interesse público em geral, previstos em lei, sendo vedada a identificação da pessoa a que as informações se referirem.”6 O artigo 31 da referida lei é dedicado a regulamentar a proteção às informações pessoais contidas nos arquivos e se propõe a garantir “o respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais.” O mesmo artigo estabelece que estas informações pessoais possuem caráter sigiloso pelo prazo de cem anos a partir da emissão do documento, sendo que o acesso de terceiros só pode ser feito mediante motivo ou autorização judicial, salvo em casos específicos. Mas, o § 4º do mesmo artigo define que “a restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das investigações estiver envolvido, bem como ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância.” Isto abre uma lacuna para o trabalho dos historiadores

5

Lei 12.527/2011, Art. 3º, inciso III - “informação sigilosa: aquela submetida temporariamente à restrição de acesso público em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade de do Estado.”

6

Lei 12.527/2011, Art. 31, inciso II.

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

que precisam acessar informações pessoais de uma ou de uma série de pessoas, mesmo que elas não sejam identificadas no trabalho final. A situação da pesquisa histórica em geral e dos estudos de trajetória em particular, nomeadamente os que se baseiam em documentação pública sobre os séculos XX e XXI e produzidas nesse período, são as mais afetadas por essa lei. Os processos judiciais acabaram ficando em um lugar fronteiriço, pois mesclam informações de caráter pessoal e público, sendo que os do século XX trazem consigo a obrigatoriedade de se observar a possibilidade ou não da divulgação de informações pessoais e de dispensar cuidados extras com processos que tramitam ou tramitaram em segredo de justiça. Praticamente todos os processos judiciais brasileiros do século XX precisam ser analisados tendo em mente os cuidados com as informações pessoais, mas nem todos estão sob a égide do segredo de justiça. O Código Civil de 1916, sobre o direito de família, estabelecia que “a afinidade resultante de filiação espúria poderá provar-se por confissão espontânea dos ascendentes da pessoa impedida, os quais, se o quiserem, terão direito de fazê-la em segredo de justiça.”7 O Código de Processo Civil de 1939 falava na possibilidade de segredo de justiça em casos ainda mais específicos (crimes contra a honra da mulher resolvidos na delegacia).8 O Código de Processo Penal de 1941 estabelece que investigações criminais e instrução de processos tramitem em segredo para garantir que os envolvidos não atrapalhem a investigação e para impedir que a publicidade dos processos seja usada como tribunal social.9 É o Código de Processo Civil de 1973 que estabelece que todos os processos envolvendo questões que “dizem respeito a casamentos, filiação, separação dos cônjuges, conversão desta em divórcio, alimentos e guarda de menores”10 sejam tratados como segredos. Mas, este mesmo Código também garante que os atos e a sentença sejam públicas.11 Os processos judiciais, a rigor, possuem informações públicas, referentes às questões administrativas, burocráticas e dos agentes públicos, e as pessoais, que se referem ao cotidiano, intimidade, imagem, honra, etc de autores e réus. As primeiras

7 8 9 10 11

Código Civil de 1916. Art.184. Código de Processo Civil de 1939, art. 744. Código de Processo Penal de 1941, art. 201, § 6º. Código de Processo Civil de 1973, art. 155 e inciso II. Esta discussão ainda pode ser aprofundada tomando o debate sobre o assunto nas doutrinas e nos códigos interpretados.

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

publicizáveis e as outras protegidas pela legislação. As informações de ambos os tipos interessam na análise de uma trajetória. É sabido que ações civis, como investigação de paternidade, pensão de alimentos, despejo, calúnia, difamação etc, assim como crimes e contravenções, lesão corporal, homicídio, suicídio, entre outras fazem um extenso uso de informações pessoais nas construções das trajetórias mais adequadas aos rumos que o processo deve tomar. Essas mesmas informações, sejam elas tomadas em série ou individualmente, possuem um fecundo espaço para análise, desde que não se perca de vista o problema teórico, metodológico e legal de se utilizar desses dados biográficos na escrita da história de períodos mais recentes e que possa ir além do visível e analisar as forças de determinam a construção da trajetória feita pelo Judiciário.

JUDICIÁRIO E PROCESSOS JUDICIAIS: A TRAJETÓRIA DOS AUTOS

Mesmo sem querer tentar delimitar ou explorar em demasia a existência mais ou menos autônoma de um campo do direito no Brasil, algumas reflexões de Pierre Bourdieu sobre o assunto nos ajudam a compreender o recurso à trajetória de autores e réus de processos feito nos autos pelos operadores do direito em meados do século XX. Segundo o sociólogo, uma ciência rigorosa do direito distingue-se daquilo que se chama geralmente “a ciência jurídica” pela razão de tomar esta última como objecto. Ao fazê-lo, evita desde logo, a alternativa que domina o debate científico a respeito do direito, a do formalismo, que afirma a autonomia absoluta da forma jurídica em relação ao mundo social, e do instrumentalismo, que concebe o direito como um reflexo ou um utensílio a serviço dos dominantes (BOURDIEU, 1989, p.209). Grifos do autor.

Assim, o direito nem é somente independente de outros campos, nem só instrumento dos dominantes, mas produz e reproduz de um lugar e de uma forma relativamente autônomos a autoridade do direito, cujo monopólio pertence ao Estado (BOURDIEU, 1989, p.210-211). A maneira como as trajetórias são construídas reflete

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

diretamente essa situação, sendo os processos judiciais um lugar privilegiado para observar a relação entre as pretensões universalistas dos produtores do direito e a tentativa dos aplicadores em classificar os casos particulares segundo os pressupostos mais gerais. Para poder compreender essas duas forças de representação da trajetória nos autos, também cabe observar que é preciso ter em linha de conta o conjunto das relações objetivas, entre o campo jurídico, lugar de relações complexas que obedece a uma lógica relativamente autônoma, e o campo do poder, e por meio dele, o campo social no seu conjunto. É no interior deste universo de relações que se definem os meios, os fins e os efeitos específicos que são atribuídos à acção jurídica (BOURDIEU, 1989, p.241). Grifos do autor.

Uma vez que o direito é onde se defrontam os investidos de poder e capacidades sociais e técnicas pelo direito de fazer a melhor interpretação ou aplicação da lei, em outras palavras, o “campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio pelo direito de dizer o direito” (BOURDIEU, 1989, p.212), o esforço dos operadores do direito em construir uma trajetória adequada aos seus interesses torna-se importante. Havendo também a necessidade de existir provas jurídicas (testemunhas, laudos, certidões, etc) que fundamentem as escolhas, o processo deixa espaço para o surgimento de algo que pode ser expressado pelo ditado jurídico: o que não está nos autos não está no mundo. Em termos jurídicos, essa metáfora significa a necessidade de se materializar nos autos aquilo que os operadores do direito alegam e, ao contrário, a refutabilidade daquilo que não pode ser fundamentado. Em termos históricos, além dos aspectos jurídicos, trata-se, tanto dos silêncios do processo e os interesses por trás deles, quanto dos aspectos mais amplos que exercem poder, de forma mais ou menos direta sobre os rumos de uma ação. Desde os processos julgados no começo da República, os antecedentes de autores e réus são importantes para o rumo que um processo toma e podem ser determinantes para a emissão da sentença final, como constatou Chalhoub (2001), ao analisar casos de homicídio no Rio de Janeiro da belle époque e Ferrari (2014), ao estudar defloramentos em Caxias entre 1900 e 1950. É no debate sobre esses

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

antecedentes que se revelam os aspectos da construção da trajetória nos autos e de como e com quais possibilidades e limites isso recebe a chancela da verdade. Para sustentar a acusação e a defesa, é necessário ir além do delito ou do conflito e reconstruir essas trajetórias, se utilizando deliberadamente dos recortes, criações e adaptações que possam ser provados de forma a caber nos tipos ideais que o judiciário tem por universais e espera ver no tribunal. Assim, para compreender essa trajetória, não se pode limitar a interpretação buscando o que é verdade e o que é mentira nos autos. Antes e para além disso, é preciso pensar no uso lógico, retórico e racionalizante, que o judiciário faz e utiliza da vida precedente das partes. No entanto, também cabe observar que, diferente do ditado, o que não está nos autos está, com efeito, no mundo. A racionalização jurídica faz, manifestada pela linguagem técnica e pela burocracia legal, buscando enquadrar as ações das pessoas e uma relação de causalidade linear, serve apenas para comodidade dos operadores e para a retórica dos procuradores e escrivães. Na realidade, sem querer fazer uma análise psicologizante, mas como já constatou Freud, o inconsciente age de forma determinante na pessoa e suas atitudes não podem ser reduzidas a ações, nem puramente conscientes ou racionais, nem meramente emocionais. É uma ferida narcísica da humanidade o eu não ser o senhor na sua própria casa, na metáfora freudiana.12 Mais do que isso, é no processo civilizador que Elias (1993), leitor de Freud e Weber, demonstra que o homem aprende a conter suas pulsões com medo da violência legítima do Estado, mas isso nem sempre funciona e algumas pulsões, às vezes, fazem as pessoas transgredirem as regras. Ao fazerem isso, são rapidamente classificadas como desviantes ou anômicas e são reprimidas pelo Estado, na forma de violência física e simbólica legitimas. A construção racionalizante da trajetória nos autos é uma forma de lidar com o delito, sendo o que está nos autos tão importante quanto o que não está, tendo em mente os interesses e pressões sociais e técnicas que determinam o que deve e o que não deve estar. Para a História, se partirmos do pressuposto de que delitos têm causas e que elas podem ser minimamente entendidas, elas são muito mais diversificadas, racionais ou não, e envolvem vários níveis de realidade, de consciência e de temporalidade, o que pode ser entendido pelo estudo da experiência, na sua relação 12 Ver em FREUD, S. Uma dificuldade da Psicanálise (1917) e Sobre o Narcisimo: uma introdução (1914). In: Obras Completas volume 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. E FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução.

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

entre sujeito e estrutura, e pela maneira de como isso é materializado nos autos. Ao observarmos a condução e a sentença de diversas séries de processos da Comarca Caxias, é visível que cada tipologia de processo possui especificidades no uso que faz dos antecedentes. Em casos de crimes violentos, onde os homens são numericamente predominantes, um dos usos mais clássicos é a construção de réu que viveu toda a sua vida até então como um pacato civil, sendo que, momentaneamente esteve em privação de seus sentidos, o que, se conseguisse provar, o isentava de punibilidade. Em crimes sumários de calúnia, difamação, lesão corporal leves, onde as mulheres são maioria, os procuradores se empenhavam em demonstrar que a ofendida possui todo um histórico de uma vida regrada, moralizada e recatada, sendo que a ré, possuía uma longa trajetória de precedentes criminais. A lógica se invertia quando um procurador construía a trajetória da outra parte.13 Se observarmos o direito na sua pretensão de autonomia dita pura, podemos ver em casos como uma investigação de paternidade da década de 1950, cujos autos estão no acervo do CMRJU, movida pela mãe da criança, que seu procurador se esforça desde a petição inicial em demonstrar que a autora era a mais perfeita exemplar de mulher que a sociedade poderia querer: recatada, moralizada, obediente ao homem, em uma visão da mulher normatizada pela Igreja e legalizada pelo Código Civil de 1916 que, sendo um código, se pretendia amplamente generalizável. Neste processo, argumentou-se que se ela cedeu à sedução e deixou-se deflorar é porque foi enganada pelas promessas de casamento feitas pelo réu. Pela via contrária, o procurador do réu, antes de tentar provar que ele era inocente e que não era o pai da criança, se empenha em demonstrar que a autora, na verdade, não atendia às classificações e prescrições da mulher ideal previstas nas normas sociais e na lei, reproduzindo comportamentos reprováveis pela moralidade da época, desde sua infância, portanto sua ação não poderia ser legítima. O réu, nesse sentido, seria inocente, por atender às mesmas prescrições de homem centro da sociedade e da família, legalizadas pelo mesmo código e normas morais que lhe davam uma margem de transgressão socialmente aceitável. Mais de uma vez, nos autos, o advogado do réu defende que o comportamento de seu cliente ao seduzir a autora, é 13 Os homicídios analisados por Chalhoub (2001) também apontam essa diferença entre os sexos e o autor dá uma explicação sobre a razão de os homens serem maioria nos homicídios enquanto mulheres a serem nos crimes mais brandos. Em uma explicação que dialoga com a psicanálise, o autor considera que a introjeção dos estereótipos de gênero e a necessidade de mantê-los é determinante na violência masculina nos confrontos mais diretos, enquanto que as mulheres se utilizavam de outras formas de ataque e retaliação, como as redes de difamação.

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

natural do meio masculino, sendo que quem deveria resistir e se manter pura era ela e não ele. É essa margem de interpretação e flexibilização legal para o comportamento masculino nas leis que outros homens criaram que nos revela o direito de forma não tão autônoma quanto ele gostaria de ser. Caxias, desde o início da colonização, no final do século XIX, foi um espaço de religião predominantemente católica e mesmo depois da criação do município e das diversas correntes de migrações, a cidade permaneceu com aquela religião predominante, inclusive nas elites políticas e religiosas, cujos interesses eram objetivados também pelos diversos “aparelhos ideológicos do Estado”, utilizando a expressão de Althusser.14 É desse lugar que, mesmo em meados do século XX, quando se dá a investigação de paternidade citada, que predominam a força da visão dos papéis sociais, políticos, conjugais e de gênero incidindo diretamente na maneira de como os operadores do direito administram e aplicam a lei. Se eles desconsiderassem essas representações, não só criariam um precedente legal para uma certa autonomia da mulher, como também entrariam em atrito com as visões que o próprio Judiciário reproduz como visões dominantes. Mesmo que o advogado da autora tivesse uma visão um pouco mais “progressista”, ele não teria muita autonomia para escolher e, para ter chances de jogar o jogo com a elite jurídica, da qual os advogados poderiam fazer parte, que tem o poder de decidir e dizer o que é a verdade,15 ele precisa alocar sua cliente no papel da inocente que foi enganada, mesmo que esse fosse ou não o caso, pois sua ação só assim seria reconhecida como legítima.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo de uma trajetória não pode ser feito somente com base em processos judiciais, pois tais fontes suscitam questões que vão além da esfera judicial, embora certos processos possam motivar interesses na biografia de sujeitos individuais ou 14 Bourdieu se questiona sobre quais os interesses da elite jurídica que produz e aplica o direito (1989, p.219) e adverte que no campo do direito francês (e na história recente do Brasil isso não é tão diferente), os responsáveis por produzir ou aplicar o direito dividem origens formativas e familiares em comum, compartilhando as mesmas visões de mundo, sendo que as práticas jurídicas têm pouca possibilidade de desfavorecer os dominantes e suas ideologias (1989, p.242). 15 Para Bourdieu (1989, p.225-235), o direito mantém para si o monopólio de apresentar-se como um lugar onde se pode tratar das disputas de forma neutra, distanciada dos interesses externos, de diálogo em direção à verdade, de onde se emite e aplica leis que são universais.

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

coletivos. Tem crescido o número de estudos históricos que se utilizam de processos e se esforçam para enxergar além do discursos dos operadores do direito para analisar a experiência de sujeitos, seja explorando as singularidades atomísticas, seja em sua relação entre indivíduo e estrutura. A análise de questões mais precisas na construção e uso da trajetória do indivíduo nos autos precisa ser tomada em suas especificidades movidas pelas forças e interesses de dentro e de fora do Judiciário, pois a representação dessa experiência do sujeito, além de fragmentária, é construída e usada deliberadamente com fins mais ou menos precisos e isso pode distorcer a interpretação da ação judicial como experiência histórica. As políticas de Estado e a legislação que normatizam o uso de documentação pública, de informações sigilosas e pessoais acabam, paralelamente, a partir de sua própria visão do que seja a história e do que fazem os historiadores, dizendo o que os estudiosos podem ou não fazer. Por outro lado, essa mesma legislação é o meio para que os historiadores avancem sobre a fronteira do que os produtores do direito entendem que a História é, ao tomar o cuidado devido (tanto por princípios éticos como legais) com o que a lei protege, pelo tempo que ela protege, e com o que ela torna público. Quanto mais recentes os processos comuns, de pessoas comuns, mais os sujeitos vão sendo pulverizados pela burocracia, os autos vão ficando cada vez mais técnicos e repetitivos e a especificidade da construção de uma trajetória tende a perder significado. Por outro lado, o excesso burocrático da supermodernidade permite que informações pessoais das partes sejam recuperadas de muitas outras formas. Mas, mesmo amparados pela lei, há casos judiciais destoantes em que os nomes dos indivíduos acabaram sendo divulgados pela imprensa, mesmo que o processo fosse originalmente segredo de justiça. Isso não isenta a responsabilidade que o historiador possui se esse for seu objeto. Não se trata de punir os responsáveis pela publicização, se trata do estrago irremediável que a divulgação de determinadas informações pessoais pode trazer ao sujeito. A trajetória construída e usada nos processos recentes, tem o seu potencial explicativo evidenciado na pergunta que o historiador faz a ela e o fato que ela talvez sirva ao estudo como uma “biografia de ninguém”, não torna a experiência menos representativa.

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

REFERÊNCIAS

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. 3.ed. Campinas: Papirus, 2003. BOURDIEU, Pierre. A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. In: ______. O Poder Simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1989. pp.209-255 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. Versão do texto digitalizada para fins didáticos. CORADINI, Odaci Luiz. Recursos de origem, investimentos e expectativas de retribuição na Militância do MST. Espacio Abierto – Cuaderno Venezolano de Sociologia, v.19, n.3, 2010, pp.445-473. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas: Editora Unicamp, 2001. DOSSE, François. História do tempo presente e historiografia. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.4, n.1, p.5-22, jan./jun., 2012 ELIAS, Norbert. Parte dois: Sugestões para uma teoria dos processos civilizadores. In: O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. vol.2. ESTEVES, João L. M. Cidadania e judicialização dos conflitos sociais. Revista Jurídica da UniFil, vol.1, n.1, 2004, pp.118-131. FERRARI, Elizete C. Moral e sedução: o discurso do Judiciário nos processos de defloramento na Comarca de Caxias do Sul (1900-1950). São Leopoldo, RS, 2014. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de PósGraduação em História, 2014. GRIJÓ, Luiz Alberto. Biografia, para quê? In: CORADINI, Odaci Luiz (org.). Estudos de grupos dirigentes no Rio Grande do Sul: algumas contribuições recentes. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2008, pp. 85-102. Paginação de versão digitalizada disponibilizada pelo autor.

Anais Eletrônicos do III Congresso Internacional de História Regional (2015) – ISSN 2318-6208

GRIJÓ, Luiz Alberto. Apóstata do germanismo ou alemão arrivista: a trajetória de Lindolfo Collor até a Revolução de 1930. Anos 90, Porto Alegre, v.15, p25-35. GRYNSZPAN, Mario. Os idiomas da patronagem: um estudo da trajetória de Tenório Cavalcanti. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.14, pp.73-90, out., 1990. HARTOG, François. Conjuntura de final de século: a evidência em questão? In: _______. Evidência da História: o que os historiadores veem. Trad. Guilherme João de Freitas e Jaime A. Clasen. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. LEVI, Giovanni. A herança imaterial: a trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Tradução de Cynthia Marques Oliveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. LÉVI, Giovanni. Les usages de la biographie. Annales: économies, sociétés, civilizations. Paris, EHESS, 1989, ano 44, n.6, novembro-dezembro, 1989, pp. 13251336. Texto traduzido com fins didáticos por L. A. Grijó. MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A história cativa da memória? para um mapeamento da memória no Campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n.34, p.9-24, 1992. REIS, José Carlos. História e Verdade: posições. In: ______. História e Teoria: Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. Rio de Janeiro: FGV, 2003. SARLO, Beatriz. A retórica testemunhal In: ______. Tempo passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.