Biopoder em Foucault: aspectos empírico-criminológicos da gestão da vida e da morte das pessoas

June 13, 2017 | Autor: Marina Lima | Categoria: Criminología Crítica
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

BIOPODER EM FOUCAULT: ASPECTOS EMPÍRICOSCRIMIONOLÓGICOS DA GESTÃO DA VIDA E DA MORTE DAS PESSOAS MARINA LIMA FERREIRA Nº USP 7636795

Orientadora: Professora Ana Elisa Liberatore Silva Bechara

SÃO PAULO OUTUBRO/2015

FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

BIOPODER EM FOUCAULT: ASPECTOS EMPÍRICOSCRIMIONOLÓGICOS DA GESTÃO DA VIDA E DA MORTE DAS PESSOAS MARINA LIMA FERREIRA Nº USP 7636795

Trabalho apresentado como Relatório Final de pesquisa para Defesa de Tese de Láurea, direcionado ao Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Orientadora: Professora Ana Elisa Liberatore Silva Bechara

SÃO PAULO OUTUBRO/2015

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos: Que não são, embora sejam. Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos. Que não tem cultura, têm folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

(Eduardo Galeano).

RESUMO Uma “genealogia dos saberes sujeitados”: é essa provocativa proposta de Foucault que nos inspira a realizar o presente trabalho. Um estudo sobre o como do biopoder, em sua gestão da vida e da morte das pessoas, a partir de um saber-arma em meio ao qual se disfarçaram blocos e blocos de saberes históricos. Como proposta, pretendemos uma passagem por conceitos especialmente importantes na obra do autor, tais como a noção na não-essencialidade, as próprias construções de biopoder e de saber-poder, as definições intrincadas de soberania, disciplina, gestão, verdade, para manejá-las e torná-las aptas a sustentar as experiências de controle de populações que apresentamos. Ainda, seguimos com a intenção de responder algumas questões importantes: que vidas valem a pena ser vividas - ou serem feitas viver? Que mortes são plenamente matáveis? Quais são os mecanismos de que se utiliza o governo dos homens para definir quem vive e quem morre? Questionam-se, nesse contexto, aquelas estruturas socialmente construídas em torno do “marco do quem sou eu”, que precarizam a vida de alguns em prol da purificação do geral. Criticam-se os discursos de verdade não verdadeiros, e o armamento de saberes de que se utilizam em sua estratégia de dominação - especialmente quando tais saberes invocam o mesmo direito formal e burguês que desde sempre conhecemos. À anticiência, em especial; a elas estamos nos direcionando, mesmo que de forma aparentemente desordenada, obscura e direcionada ao acaso.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO / 5

1. POR UMA APROXIMAÇÃO ANTI-ESSENCIALISTA 1.1 Introdução: da governamentalidade / 9 1.2 O Estado como o efeito móvel de um regime de “governamentalidade múltipla” / 11 1.2.1. Noções de biopoder / 12 1.2.2. Soberania-disciplina-gestão: tecnologia governamental e instrumentalização / 14

2. PODER-SABER E O CONTROLE DE POPULAÇÕES 2.1 Da construção poder-saber em Foucault / 18 2.2 Os intelectuais e o poder: saber-poder aplicado ao controle social / 20 2.2.1

Lombroso e a experiência positivista / 23

2.2.2

Mezger e a experiência nacional-socialista / 28

2.2.3

Experiência brasileira: produção etiológica e reminiscências escravagistas / 37

2.2.3.1 Estudo

nº 1.

Exame criminológico,

função-psi

e

impedimentos à progressão de regime / 43

3. DA INSUFUCIÊNCIA DO SABER-PODER DOGMÁTICO: TEORIAS DA PENA E MANUTENÇÃO DO STATUS QUO 3.1 Sobre a ideologia / 53 3.2 O discurso de verdade dogmático das finalidades da pena / 55 3.2.1

Teorias retributivas / 57

3.2.2

Teorias preventivas / 58

3.2.3 Teorias unificadas / 60 3.3 Das finalidades latentes: a pena e sua referência perpétua a outra coisa que não ela mesma / 61

4

BIOPODER

E

ENCARCERAMENTO:

EFEITOS

EMPÍRICO-

CRIMINOLÓGICOS DA GESTÃO DA VIDA E DA MORTE DAS PESSOAS 4.1 Da dinâmica carcerária e a conveniente gestão para a morte: a democracia do sujeito adestrado / 68 4.2 “Co-culpabilidade” e vulnerabilidade / 72 4.3 Estudo nº 2. “Em defesa da sociedade”: prisões preventivas e decisões judiciais / 75

5 FAMÍLIA, ESCOLA, UNIVERSIDADE, MERCADO: O VALOR-VIDA E SUA CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA 5.1 Valor-vida e valor-trabalho / 82 5.2 Substrato técnico, representação esquemática e filosofia de gestão dos instrumentos de poder na sociedade moderna / 85 5.2.1

Enunciado da verdade e normalização / 90

5.2.2

Políticas de reconhecimento e precarização da vida: o marco do “quem é você” / 93

CONCLUSÕES / 96

REFERÊNCIAS / 98

INTRODUÇÃO “Afinal de contas, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos específicos de poder”1.

Por muito tempo a instituição prisional foi tida como nada menos que uma estrutura de racionalidade fundamental e permanente, que seria por essência vinculada ao justo e ao bem. No entanto, após o seu “fracasso” proeminente a prisão é revelada, ao menos dentro dos círculos acadêmicos, como um verdadeiro - e esperado - “sucesso” em termos de deposição, de segregação e de eliminação de parcelas cuidadosamente selecionadas da sociedade, em prol de uma aspirada normalização. Nesse sentido, tornase patente o combate que se institui entre o poder, em seus diversos feixes, destinado aos titulares da norma, e aqueles que estão, por sua vez, externos à norma - e que, por isso, constituem tantos “perigos”, por assim dizer, aos obedientes. Frente ao exposto, busca-se encarar, para além do aparato carcerário, as estruturas de poder, em suas tantas capilaridades, como estratégias globais que se utilizam, de uma maneira nem sempre clara ou racionalmente palpável, de técnicas locais de dominação: desde o conjunto dos aparelhos de aprendizagem, a forma como se apoiam e como atuam, até as múltiplas sujeições ao longo da vida - da criança ao adulto, da prole aos pais, do ignorante ao erudito, do aprendiz ao mestre, da família à lei, do doente ao médico, do encarcerado aos homens livres, etc. Assim, por meio de uma análise teórico-empírica das instituições e dos seus operadores, intenciona-se desmistificar a existência de um “todo” social, para o qual se direcionam todos os esforços. Na verdade, acreditamos que, dentre as tantas experiências de poder que perpassam os sujeitos em suas relações interpessoais, aquela que nos chama mais atenção é, justamente, a iminência de um racismo biológico-social interno2, desvelado e institucionalizado; um racismo que a sociedade exerce sobre ela mesma, sobre os seus próprios elementos, sobre os seus próprios produtos. Aquele da purificação permanente, que tem como contexto o combate travado não entre duas raças, mas entre aquela que é considerada a verdadeira e a única e a outra, sub-raça, que permanente e continuamente se infiltra no corpo social - recriando-o a partir dele mesmo.

1

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 29. 2 FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., pp. 72-73.

5

O biopoder se coloca como meio de gestão da vida e da morte de pessoas que são constantemente alocadas dentro da raça ou da não-raça, funcionando como uma estratégia global de manutenção dos conservadorismos sociais. Aqui se encaixa o direito, a prisão e a totalidade dos operadores da dominação - mesmo que em suas expressões menos aparentes. Em contrapartida, tem-se tanto no discurso quanto na técnica jurídica uma pré-disposição ao mascaramento do antagonismo, sob a falácia da obrigação legal de obediência e de retidão que, em teoria, recai sobre todos. Ora, o que se pretende demonstrar, combativamente, é que o direito não só aparece é instrumento de dominação, mas também um veiculador de dominações [e sujeições] intrínsecas não apenas à lei, mas a todas as instituições, regulamentos e aparelhos que a aplicam3. Dito isso, importante destacar que o enfoque, aqui, não será o direito tão somente, ou o poder punitivo em si. Para além, buscam-se os poderes - em sua microfísica - que dele decorrem; o poder em suas capilaridades e lineamentos últimos, em suas formas mais localizadas, sobretudo no ponto em que se prolonga adiante das regras de direito, consolidando-se nas instituições que nos são mais banais. Assim, a partir desse exercício de imersão nas extremidades menos jurídicas do exercício de poder, pretende-se chegar, quiçá, à compreensão de como os níveis mais imediatos de contato interpessoal, institucionalizados na família, na escola e na universidade, por exemplo, funcionam como vetores de um verdadeiro biopoder. Um biopoder, para nós, direcionado não ao corpo, mas às massas, que se veem constantemente geridas - seja para a vida, seja para a morte -, por meio de fenômenos concomitantes de inclusão, de construção, de exclusão e de repressão, que recaem contínua e gradualmente sobre indivíduos bem delimitados no seio social. Ante o exposto, parte-se de uma divisão prévia em cinco capítulos. O primeiro se dispõe a uma aproximação anti-essencialista, no seio da teoria foucaultiana, por meio da dissecação das racionalidades que sustentam a noção de “Estado” -, passando pelo conceito de governamentalidade e, finalmente, por aspectos do biopoder em si. O que se pretende, portanto, é a insurgência contra a ideia de que o Estado seja órgão central e único de poder, ou de que a inegável rede de poderes das sociedades modernas seja

3

FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 31.

6

apenas uma extensão dos efeitos do Estado, um simples prolongamento do seu modo de ação4. O segundo capítulo, por sua vez, foca-se no assim chamado “poder-saber”, como forma de introdução à operacionalização dos discursos em instrumentos do governo dos sujeitos e das populações. Investiga-se o saber, aqui - o jurídico, em especial remetendo-se às relações de poder que o constituem, visto que não existe saber neutro. O que se procura demonstrar, por conseguinte, é que todo saber é político, performático e produtivo5; não por ser de alguma forma apropriado pelo Estado, mas sim, por servir como instrumento de dominação6. Busca-se delimitar, nesse sentido, os operadores da dominação em suas expressões menos aparentes e, ao mesmo tempo, mais sensíveis, de forma a compreender de que modo a própria dominação, em si, cria aparelhos de saber “verdadeiros” sobre os quais ela se apoia - aparelhos de saber-poder esses que são, para nós, uma eficiente fábrica de sujeitos. Serão expostas, ainda, três experiências distintas, individual e marcadamente ligadas aos propósitos deste trabalho, como se verá. Em seu turno, o terceiro capítulo remonta à insuficiência do saber-poder dogmático ou, em outras palavras, a sua suficiente atuação instrumentalização pelo conservadorismo social. O discurso penal não pode ignorar os elementos do poder, vez que eles denunciam o saber político que direciona o direito. Desnudar a dogmática penal para que se clarifique o seu aspecto controlador: o que se quer é atribuir à dogmática o estatuto de técnica de poder. Já o quarto capítulo pretende abarcar especificamente a problemática do cárcere, que talvez seja a mais velada e, ao mesmo tempo, a mais transparente de nossas instituições repressivo-positivas. Parte-se da ideia, portanto, de que a prisão se constitui não como um mal necessário e suportável, mas sim, como uma construção social, em todas as suas vicissitudes, moldada para ser exatamente o que é: uma máquina de segregação e aniquilação de pessoas prévia e posteriormente excluídas da sociedade normalizada, bem como um aparato especialmente destinado à produção da violência. Por fim, o quinto e último capítulo propõe não o direcionamento centralizador da crítica, mas sim, a sua disposição nas diversas camadas da sociedade, cada uma delas, 4

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 25ª Ed.. São Paulo: Graal, 2012, p. 16. FOUCAULT, Michel. Le gouvernement de soi et des autres. Cours au Collège de France (1982-1983). Paris: Seuil/Gallimard, 2008, p. 59. 6 “Mas a relação é ainda mais intrínseca: é o saber enquanto tal que se encontra dotado estatutariamente, institucionalmente, de determinado poder. O saber funciona na sociedade dotado de poder. É como saber que tem poder”. FOUCAULT, Michel. Microfísica... Cit., p. 28. 5

7

em suas capilaridades, responsáveis de certa forma pelo modo como alguns são geridos para a vida e outros para a morte, de acordo com o papel que desempenham - ou deixam de desempenhar. Enseja-se assim, a uma análise mais pormenorizada daqueles que são o espelho do Estado, de “suas” práticas e de “suas” instituições. Apenas assim, na nossa visão, será possível compreender o biopoder “de baixo para cima”, e não o contrário; tomando contato com o que vem a compor o “baixo”, de modo a tentar delinear como cada vida gerida, da forma como o é, torna-se um reflexo do que queremos verdadeiramente como sociedade, ainda que isso não nos seja claro nem racional7.

7

Considerar o indivíduo, dessa maneira, um efeito do poder e, ao mesmo tempo, o seu intermediário. “O poder transita pelo indivíduo que ele constituiu”. Cada sujeito passivo de uma dada relação de poder é, assim, o sujeito ativo, ele mesmo, em outras relações distintas. FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 35.

8

1. POR UMA APROXIMAÇÃO ANTI-ESSENCIALISTA 1.1 Da governamentalidade As análises acerca da governamentalidade em Foucault se contextualizam em uma perspectiva anti-maquiavélica de concepção da arte de governar. Isso porque o “príncipe” de Maquiavel é, por definição, o único em seu principado, ocupando uma posição de exterioridade e de quase transcendência em relação a ele; por outro lado, colocam-se as modernas práticas de governo como práticas múltiplas, no sentido de que o poder exercido pelo príncipe seria apenas mais uma modalidade - como o são os poderes do pai na família, o do professor na escola, o do psiquiatra no manicômio etc.8. Importante mencionar aqui, ainda que brevemente, a utilização por Foucault do método conhecido como genealógico, que trabalha com a restituição de certas condições de aparição de singularidades, em contraposição à análise historicista que, partindo de noções gerais, apenas retraça formas e “evoluções”, forjando continuidades9. O que se delineia, dessa maneira, é a insurgência do questionamento sobre as perspectivas históricas que tomam o seu objeto como dado, sem o devido conhecimento das condições históricas que motivam determinada relação deste objeto com sua historicidade. Por isso, tal método se fixa nas rupturas e nas descontinuidades, não se permitindo estudar o Estado como essência, mas como efeito10; e mais, orienta-se o estudo não a partir da figura do Estado, mas da noção de governo e de governamentalidade, em todas as suas especificidades e formas de ação - na medida em que a genealogia está na dimensão das forças, dos pontos móveis e transitórios que se distribuem pela estrutura social. Feitos estes esclarecimentos, a governamentalidade se coloca como “o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber e economia política, e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança” 11. Isso se demonstra, por sua vez, quando se desloca o foco da análise não para o governo do território, mas para o governo de coisas; estas coisas, das quais o governo se 8

FOUCAULT, Michel. Microfísica... Cit., pp. 410-411. GAUTHIER, CLAUDE. À propos du gouvernement des conduites chez Foucault, CURAPP, La Gouvernabilité. PUF, 1996, p. 21. 10 “Que atrás das coisas há ‘algo inteiramente diferente’: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas”. FOUCAULT, Michel. Microfísica... Cit., p. 58. 11 FOUCAULT, Michel. Microfísica... Cit., p. 429. 9

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encarrega, são as pessoas, sempre em suas relações com outras coisas - as riquezas, os recursos, os costumes, as formas de agir e de pensar, dentre outras. Governo, portanto, é a correta disposição das coisas de que se assume o encargo, com o intuito de conduzi-las a um fim que seja conveniente. Trata-se, assim, da disposição das coisas, e da utilização de táticas para tanto ou, comumente, da utilização ao máximo das leis como táticas. A governamentalidade se relaciona, pois, com o fazer, por diversos meios, com que fins determinados possam ser atingidos. Dessa maneira, age-se direta e indiretamente sobre a população, por meio de técnicas que atuarão, tantas vezes, sem que se note. A governamentalização do Estado, nesse sentido, mantém a população consciente ante o governo e mesmo ante os seus interesses [gerais], porém inconsciente em relação àquilo que se quer que ela faça, e ao modo como os seus interesses constituem tanto alvo quanto instrumento fundamental no âmbito das táticas de controle. Por decorrência do exposto, as noções de governamentalidade se constroem a partir da análise das técnicas de governo, das ações e abstenções, das práticas que constituem a materialidade tangível do Estado. Disso advém que o Estado não se coloca nunca, em Foucault, como um universal, como fonte de poder em si mesmo. O Estado são fatos12. Destarte, o estudo da governamentalidade envolve o debruçar sobre uma nova racionalidade política, que se apoia em dois elementos fundamentais, quais sejam, (i) uma série de aparelhos específicos de governo; e (ii) um conjunto de saberes, mais precisamente, de sistemas de conhecimento. Essas técnicas e saberes, por sua vez, aplicarse-ão sobre a população não como método de conquista e de posse, mas sim, de produção, de organização e de desenvolvimento das suas propriedades, com fins minuciosamente definidos. Nesse contexto, o foco se desloca da essência do Estado - daí o antiessencialismo - e de sua suposta legitimidade, ou não, para desenvolver esse conjunto de dispositivos concretos, por meio dos quais se exerce materialmente o poder. Por conseguinte, contrariamente à concepção tradicional de um poder descendente, autoritário e meramente sancionador, propõe-se uma concepção disciplinar que repousa sobre

12

LASCOUMES, Pierre. La gouvernamentalité: de la critique de l’État aux technologies du pouvoir. Le Portique, 13-14/2004, p. 03 e ss.

10

técnicas concretas de enquadramento populacional, que permite o controle, mesmo que à distância, do seu amplo leque de condutas13. Para que se chegue à compreensão do ordinário do poder, assim, é necessário que a análise esteja centrada não no “mito do poder”, mas nas múltiplas e complexas práticas de governamentalidade, que se utiliza de técnicas e formas racionais para o seu exercer, como se pretende desenvolver em seguida.

1.2 O Estado como o efeito móvel de um regime de “governamentalidade múltipla” "L’une des premières choses à comprendre, c’est que le pouvoir n’est pas localisé dans l’appareil d’État et que rien ne sera changé dans la société si les mécanismes de pouvoir qui fonctionnent en-dehors des appareils d’État, au-dessous d’eux, à côté d’eux, à un niveau beaucoup plus infime, quotidien, ne sont pas modifiés" 14.

Partindo da ideia de que há uma pluralidade de formas de governo, e, consequentemente, uma multiplicidade de táticas de dominação, tem-se que a constituição de um saber do governo é absolutamente indissociável da constituição de um saber sobre todos os processos referentes à população em sentido lato15. O “poder de governo”, portanto, não é uno, e tampouco se concentra no que se coloca tradicionalmente como o Estado. Nesse sentido, a supervalorização lírica do Estado - como “monstro frio frente aos indivíduos” - ou, por outro lado, a sua redução a meras funções administrativas, não podem permanecer, visto que o Estado não possui tal unidade, tal individualidade, tal rigorosa funcionalidade16. Assim, se o Estado é hoje o que é, é graças a esta governamentalidade, ao mesmo tempo interior e exterior a ele. O Estado, tanto em sua sobrevivência quanto em seus limites, deve ser compreendido, necessariamente, com base nas táticas gerais de governamentalidade. Aloca-se o Estado, pois, menos como causa e mais como efeito; menos que um ator autônomo e mais como um agregado de resultados. O Estado são os 13

Destaca-se, aqui, que o que se propõe com a presente pesquisa é a análise de tais condutas em sentido lato, mesmo que a crítica foucaultiana tenha se voltado, em grande parte, para as técnicas de controle do corpo do indivíduo. Dito isso, o que se busca é a ampliação da análise, com foco no respaldo destas mesmas técnicas não propriamente no indivíduo, mas no corpo social enquanto massa. 14 “Uma das primeiras coisas a se compreender, é que o poder não está localizado no aparelho do Estado, e que nada mudará na sociedade se os mecanismos que funcionam fora dos aparelhos do Estado, abaixo deles, ao lado deles, em um nível mais ínfimo, cotidiano, não forem modificados”. Tradução livre. In FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, T. II, Paris : Galimard, 1994, p. 406 e ss. 15 FOUCAULT, Michel. Microfísica... Cit., p. 426. 16 “O Estado não é mais do que uma realidade compósita e uma abstração mistificada, cuja importância é muito menos do que se acredita”. FOUCAULT, Michel. Microfísica... Cit., pp. 429-430.

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centros decisórios, as formas e os tipos de controle, as relações dispostas entre poderes locais e autoridades centrais; o Estado nada mais é que o “efeito móvel de um regime de governamentalidade múltipla”. Com isso, pretende-se lutar contra a ideia de que o Estado seria órgão central de poder, ou de que a inegável rede de poderes das sociedades modernas seria nada mais que uma extensão dos efeitos do Estado, um simples prolongamento de seu modo de ação. Procura-se a distinção no poder, nessa medida, de níveis macros e micros de exercício, de modo a tornar explícitas as relações de poder que se diferenciam daquelas ligadas ao Estado e aos seus aparelhos. Isso significa dizer que os poderes não se localizam em um ponto específico da estrutura social, mas sim, funcionam como uma rede de dispositivos a que nada escapa, a que não existe exterior possível. Rigorosamente, o poder não existe; existem práticas ou relações de poder17. Justifica-se, assim, a busca do poder em ato, determinado em seus mecanismos, em seus efeitos, em suas relações e em seu exercer em tantos e diversos níveis da sociedade, em campos e extensões tão variadas. Dito isso, para além da racionalidade aparente das instituições, é preciso compreender não o “quem”, mas o “como” do poder em suas regras tácitas, impostas por diversos e por vezes invisíveis instrumentos de gestão, suas significações em termos de poder e de difusão de modelos cognitivos. Feitas tais considerações, faz-se possível a análise do biopoder, em seus aspectos relacionais e produtivos, e na sua utilização e transformação pelas formas mais gerais de dominação do aparelho de Estado.

1.2.1

Noções de biopoder

A busca do poder em ato, por Foucault, permeou os seus muitos estudos acerca do poder disciplinar. As disciplinas, por assim dizer, seriam dispostas como técnicas, dispositivos, mecanismos e instrumentos de poder; seriam métodos responsáveis por permitir o controle minucioso do homem-corpo, em todas as suas operações, de modo a assegurar a sujeição constante de suas forças. O poder disciplinar, portanto, seria apto a trabalhar o corpo dos homens, produzindo comportamento; a disciplina, aqui, é a fábrica do tipo de homem necessário,

17

FOUCAULT, Michel. Microfísica... Cit., pp. 16-17.

12

no contexto capitalista europeu, à manutenção da sociedade industrial dos séculos XVII e XVIII. Poder disciplinar posto, assim, em tríade: controle do tempo, controle do espaço e registro continuo de conhecimento - sendo a vigilância um de seus principais instrumentos18. Visível, pois, a caracterização dessas técnicas de poder como essencialmente centradas no corpo, e no corpo individual. Eram todos aqueles procedimentos pelos quais se assegurava a distribuição dos corpos, seu alinhamento, sua colocação em série, e a organização, em torno do indivíduo, de um campo de vigilância. São essas mesmas técnicas as incumbidas de otimizar os corpos em sua força, por meio de uma economia estrita do poder exercido em hierarquia, em controle, em uma tecnologia disciplinar do trabalho. Ora, a partir da segunda metade do século XVIII, entretanto, aparece uma nova tecnologia de poder que, apesar de não excluir as disciplinas em sua técnica, vai integrá-las e modificá-las - ao mesmo tempo em que nelas se implanta. Logo, apesar de, sem a disciplina, a nova mecânica do poder não poder ser o que veio a ser, fato é que ela se embuste do poder disciplinar, aplicando-se do contrário de forma totalmente diversa. A nova tecnologia do poder dirige-se não ao homem-corpo, mas à vida dos homens, ao homem-vivo, ao homem-espécie19. Desta feita, instala-se uma nova tecnologia que se faz dirigir à multiplicidade dos homens, enquanto massa global; tomada de poder, portanto, massificante. A preocupação, a partir do advento dessas novas técnicas - embutidas de disciplina sem disciplina serem -, traz relação com a espécie humana, com o homem-vivo em seu meio de existência, sobre o qual recaem fenômenos coletivos que só aparecem - em seus efeitos econômicos e políticos - no nível da massa20. Destarte, otimização não dos corpos, mas de um estado de vida; desconsiderase o indivíduo no nível do detalhe, passando a análise àqueles mecanismos globais, que atuam como maximizadores das forças em busca de estados também globais de equilíbrio, e que têm como polo de intervenção, justamente, o “como” da vida. Não há que se falar, entretanto, na substituição de uma tecnologia por outra, vez que são ambas introduzidas de forma a se sobrepor. Diferenciam-se, d’outro lado, o seu caminhar, no sentido em que se abre espaço para uma nova forma de agrupamento 18

FOUCAULT, Michel. Microfísica... Cit., pp. 21-23. FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., pp. 288-289. 20 FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 293. 19

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dos efeitos de massas próprios da população, em busca do controle de uma série de eventos fortuitos que podem ocorrer numa massa vida. Por conseguinte, equilíbrio global, visando a segurança do conjunto em relação aos seus perigos internos21. É dizer, a partir do fim do século XVIII e início do XIX, o poder se incumbe da vida, cobrindo toda a superfície a se estender do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante tecnologias de disciplina, em parte, atuando conjuntamente às tecnologias de regulamentação. Poder incumbido tanto do corpo quanto da vida; biopoder, por conseguinte22.

1.2.2

Soberania-disciplina-gestão: tecnologia governamental e instrumentalização

Uma vez colocado o biopoder como aquele incumbido da vida, há que se voltar para a sua concretude, enquanto fato de dominação. Ainda, faz-se necessário pensar os discursos e técnicas que, em sua função, dissolveram no interior do próprio poder este fato, especialmente, os discursos e técnicas do direito. Essencial, portanto, compreender como o direito serviu tanto ao mascaramento da relação soberania-obediência, quanto como instrumento de dominação veiculando relações não de soberania, mas de dominação em sentido global, em suas múltiplas formas23. Logo, deve o direito ser examinado sob o aspecto das sujeições que põe em prática, sempre apreendido em seus lineamentos últimos, nos pontos em que se prolonga e se investe de instituições de gestão. “Um direito da soberania e uma mecânica da disciplina: é entre esses dois limites, creio eu, que se pratica o exercício do poder”

24

. Demarcada, pois a

heterogeneidade25 entre a soberania - muito mais presente nas legislações, na organização do direito público formal e burguês - e a disciplina - que, em seu discurso próprio, é alheia à própria lei. Isso significa que as disciplinas não compartilham do discurso da regra, enquanto efeito da vontade soberana; não são derivadas da regra jurídica, mas sim, por outro lado, derivam-se da norma, definindo um código de normalização.

21

FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 297. FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 302. 23 FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 31. 24 FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 45. 25 Apesar da dita heterogeneidade, não se deixa passar o fato de que os discursos disciplinares venham a invadir cada vez mais o direito e, igualmente, os procedimentos de normalização colonizem cada vez mais os procedimentos da lei. FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 46. 22

14

A norma, por sua vez, é aquele elemento responsável por circular entre o disciplinar e o regulamentador, que se aplica tanto ao indivíduo-corpo quanto à população, e que permite que se controle a ordem disciplinar do corpo, ao mesmo tempo em que regulamenta toda uma população. Sociedade de normalização, pois, como uma sociedade em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulamentação26. Aqui, o poder disciplinar se apresenta em sua dupla propriedade: é anomizante, no sentido de sempre por de lado certo número de indivíduos, ressaltando a anomia do irredutível, e, ao mesmo tempo, é sempre normalizador, inventando a todo momento novos sistemas recuperadores, estabelecendo a regra propriamente. “Um perpétuo trabalho da norma na anomia caracteriza os sistemas disciplinares”, colocada a norma enquanto princípio da divisão e a normalização, por sua vez, como prescrição universal para todos os indivíduos27. Ora, e por traz de toda normalização, por trás de todo regramento das condutas, está, justamente, o governo; governo, aqui, compreendido não no sentido estrito de instância suprema das decisões executivas e administrativas nos sistemas estatais, mas, em sentido lato, como uma série de mecanismos e de procedimentos destinados a conduzir os homens, a dirigi-los, a geri-los em sua conduta28. Este exercício de poder, em seu turno, enquanto gestão de pessoas, envolve não somente atos de obediência e de submissão, próprios da soberania, mas, principalmente, atos de verdade. Afinal, os sujeitos envolvidos nas teias de poder não se colocam como meros expectadores, mas também como atores no procedimento de manifestação de verdade, procedimento este que diz respeito à circulação, em toda a sociedade, de discursos de verdade que os sujeitos, independentemente de serem esses discursos verdadeiros, admitem e fazem funcionar29.

26

FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 302. FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. Curso dado no Collège de France (1974-1975). São Paulo: WMF; Martins Fontes, 2010, pp. 68-69. 28 FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. Curso dado no Collège de France (1979-1980). São Paulo: WMF; Martins Fontes, 2014, p. 13. 29 « Il y a vraisemblablement, dans toute culture, dans toute civilisation, dans toute societé, en tout cas dans notre culture, notre civilisation et notre societé, un certain nombre de discours vrais concernant le sujet qui, indépendamment de leur valeur universelle de vérité, fonctionnent, circulent, ont le poids de la vérité, et sont admmis pour tels » ; FOUCAULT, Michel. Subjectivité et verité. Cours au Collège de France (19801981). Paris: Seuil/Gallimard, 2014, p. 13. 27

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Uma vez colocado em funcionamento um dado regime de verdade30, sempre considerado em sua dimensão sócio histórica, este faz alavancar todo o processo de normalização dos sujeitos, concorrendo diretamente à sua gestão e à efetivação, por certo, de efeitos bastante específicos. Gestão-submissão-verdade, pois. Dito isso, importante a definição de dois focos de análise, sejam eles, os regimes chamados políticos e os regimes de saber. Sobre o primeiro, este serve a designar um conjunto de procedimentos e de instituições por meio das quais os indivíduos se veem comprometidos - constrangidos, por que não? -, de forma mais ou menos premente, a obedecer decisões, decisões essas que emanam de uma autoridade que, no âmbito de certas unidades territoriais, exerce soberania31. Por outro lado, as considerações sobre o regime de saber o colocam como o ponto de articulação entre os regimes de verdade e o político, tornando-o definitivamente mais complexo32. Nesse sentido, é indispensável notar a especificidade da noção de governo aqui retratada, na medida em que, mesmo onde a exigência política não age, mesmo onde a obrigação política não atua, o domínio pode levar o indivíduo a remeter-se à vontade alheia33. O dirigido, o governado, portanto, é aquele que quer que o outro lhe diga o que deve querer e que quer, ao mesmo tempo, a vontade do outro34. As técnicas de direção, aqui, desmuniciadas de qualquer estrutura jurídica, correlacionam uma com a outra vontades que permanecem inteiras, mas cujo jogo é tal, que uma quer sempre o que a outra quer que ela queira. São combinações muito sutis, destarte, que se organizam entre o desenvolvimento de um poder político-administrativo e toda uma série de instituições de direção de consciência. Não se nega a heterogeneidade de forma entre um e outro; no entanto, a sua coexistência, seus vínculos e pontos de apoio recíprocos não deixam de ser evidentes35. A busca por uma sociedade normalizada passa, por conseguinte, pela imposição de um regime geral de existência, por uma ideia de intervenção permanente, 30

Entendido como a força dada pelos indivíduos a certos atos de verdade; FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 85. 31 FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 86. 32 FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 93. 33 “Remeter-se, submeter-se: é sobre isso que precisamos refletir; essa submissão da vontade de alguém à vontade de outro na direção”. FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 208. 34 “Há o seguinte: há alguém que guia a minha vontade, que quer que a minha vontade queira isto ou aquilo. Eu não cedo minha vontade, continuo a querer, mas a querer a cada instante o que o outro quer que eu queira. As duas vontades permanecem continuamente presentes. Uma não desaparece em beneficio da outra”. FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 209 e ss. 35 FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 211.

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tanto de um indivíduo sobre o outro quanto entre estes e as instituições macro, perante as quais aqueles que não são dirigidos “caem como folhas mortas” 36. O biopoder, enquanto fato de dominação e de governo, investe sobre a por meio de um poder normalizador, que inclui e exclui determinadas pessoas, conforme estejam dispostas ou não a quererem o que se quer que elas queiram; de fazerem o que se quer que elas façam. Com base em padrões normalizadores e em nome dos que devem viver, estipula-se quem deve morrer37. Afinal, “a verdade é a norma”

38

, que decide, veicula,

propulsa efeitos de poder; que julga, condena, classifica, obriga, destina os indivíduos a uma dada maneira de viver ou a uma dada maneira de morrer. Fazer viver, deixar morrer: gestão da vida e da morte das pessoas, portanto.

36

FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 239. ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p. 96. 38 FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 29. 37

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2. PODER-SABER E O CONTROLE DE POPULAÇÕES 2.1 Da construção poder-saber em Foucault Ao longo de toda a obra de Foucault o poder vem abordado como ato de eficácia produtiva, de riqueza estratégica, de positividade - para além de seu aspecto meramente repressivo. Faz-se, também, a relação entre o exercício das táticas de poder e a formação de domínios de saber, a partir daquelas práticas políticas ditas disciplinares39. Aqui, portanto, a investigação do saber não deve remeter a apenas um sujeito de conhecimento que seria a sua essência, a sua origem, mas sim, às relações de poder que o constituem. Em outras palavras, não há saber neutro. Todo saber é político e serve como instrumento de dominação, na medida em que a sua gênese não se dá em lugar algum que não em relações de poder40. O que se sustenta é que cada saber enquanto tal se encontra dotado estatutariamente, institucionalmente, de determinado poder; e o que faz com que o poder se mantenha e seja aceito é simplesmente o fato de ele não pesar apenas como uma força que diz “não”, mas sim, permear, induzir, produzir discurso e formar saber 41. Todo ato discursivo é ato de poder, que cria realidade e incorpora realidade. Ao formar saber e, ao mesmo tempo, produzir discurso, o poder é investido na constituição das verdades e do próprio saber. Não haveria, assim, qualquer saber que escapasse à engrenagem do poder; este, por sua vez, vai integrar cada discurso acolhido pela sociedade, dentro da política geral de verdade que ela veicula. O poder-saber, assim, coloca-se como elemento de um dispositivo de natureza bastante estratégica42. Na análise de Fragoso, o saber é posto tanto como fim quanto como instrumento do poder e, enquanto instrumento, vê-se convertido em técnica. O sabertécnica é o que protege o poder e mantém o seu controle. Com o saber controlado, o poder produz a verdade, ditada por ele, que é o responsável por selecionar o saber que lhe interessa. Poder que estabelece os critérios da verdade e, destarte, implanta uma forma de saber determinada43, que o confirma e (re)produz. Há que se desnudar toda a dominação que se faz presente dentro do poder e que se estende por meio das mais variadas formas de veiculação. Nesse interim, tem-se no

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FOUCAULT, Michel. Microfísica... Cit., pp. 20-27. FOUCAULT, Michel. Microfísica... Cit., p. 28. 41 FOUCAULT, Michel. Microfísica... Cit., p. 45. 42 De fato, ter razão na ordem do saber histórico, dizer a verdade da história é, por isso mesmo, ocupar uma posição estratégica decisiva. FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., pp. 204-205. 43 FRAGOSO, Cristiano. Autoritarismo e sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 116 e ss. 40

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poder a imposição de uma verdade que é a ele interessante, e que se utiliza, sempre que lhe convém, do expediente do direito. O poder perpassa as regras jurídicas, as estabelece, e constrói junto a elas discursos de legitimação. No interior da relação poder-saberverdade, o direito é linguagem oportuna para manifestar os ditados do poder, e para repelir quem a eles se opõe44. Não só, o direito, assim como a medicina, é saber-poder que opera a realidade. Isso se explica no fato de, uma vez marcado por um poder que presumidamente veicula, por meio de seus discursos de verdade, o verdadeiro, o saber dos juristas se associa à realidade e impõe a ela uma espécie de sobrepoder45. Enquanto detentor de todos os critérios de verdade de seu conteúdo, o saber-poder científico, como o direito, integra sutilmente a realidade, mesmo que se saiba que o que vem formulado em textos teóricos como saber seja convertido de outro modo na prática real46. Aqui, na medida em que se relacionam o poder e a prática discursiva, deduzse a forma de atuação das instituições, marcadamente violenta no mais dos casos. Ora, há que se entender a violência como o exercício físico de uma força inteiramente desequilibrada47, sem supor que o “bom poder” ou o poder pura e simplesmente não sejam também físicos. A única saída, portanto, é a crítica do fato da instituição, do seu funcionamento, dos seus enunciados, dos efeitos de desconhecimento que perturbam, logo de saída, os aspectos supostamente verdadeiros do seu discurso de verdade48. Tornar visível o desequilíbrio de poder essencial à constituição das instituições e dos indivíduos, sujeitos e intermediários das relações de poder que são por elas [as instituições] neutralizadas ou que, ainda, atuam tão somente nos espaços por elas definidos. Trazer à margem o jogo das marcas do saber - qualquer que seja o seu conteúdo efetivo -, o seu estatuto; o fato de o saber funcionar como poder, e que esse poder se apresenta como realidade no interior da qual se situam as pessoas49. Saber interno ao exercício do poder e útil a ele; eis a definição de saber-poder, enquanto via da qual se utiliza o governo dos homens pela verdade. A partir do saber,

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“O poder não se esgota no modelo jurídico, nem na sua criação, nem na sua aplicação, mas as práticas jurídicas, entendidas como tecnologia, podem revelar a manifestação do poder em todo seu esplendor”. ZACCONE, Orlando. Indignos... Cit., pp. 57-58. 45 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 166. 46 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 226. 47 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 19. 48 “O problema é saber como e por que razões chegou um momento em que o dizer-a-verdade pôde autenticar sua verdade, pôde se afirmar como manifestação da verdade, na medida em que, justamente, aquele que fala pode dizer: sou eu que detenho a verdade”. FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 47. 49 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., pp. 230-237.

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trata-se de colocar toda a problemática em termos de práticas constitutivas de domínios, dentro dos quais as oposições entre realidade e ideologia podem exercer os seus efeitos50. Trata-se de, propriamente, trabalhar a anarqueologia do saber, por meio do estudo dos regimes de verdade, dos tipos de relação que veiculam as manifestações de verdade, a partir dos sujeitos que são seus operadores, suas testemunhas, seus objetos51. Insurgir contra os saberes é o que propõe este capítulo, dentro de um eixo prática discursiva-enfrentamento de poder. Não exatamente no que diz respeito ao seu conteúdo, mas sim, contra os efeitos centralizadores de poder que são vinculados às instituições; contra a ambição de poder que toda pretensão de ciência traz consigo 52; fazer a “rebelião das massas racionais”

53

, contrariamente à expansão das formas sociais

capazes de tamanha violência. Nesta análise, o que se pretende é o estudo e a crítica das relações de poder e da dominação a elas intrínseca, enquanto vinculadas a uma série de técnicas discursivas ou seja, dispositivos de saber e de poder transferíveis, na medida em que identificados como técnicas54. Passa-se, por conseguinte, a considerações acerca das tecnologias positivas de poder aplicadas ao controle social, por meio do acumulo do saber, do qual decorrem efeitos de poder que fabricam, que sabem, e que se multiplicam a partir de seus próprios efeitos55.

2.2 Os intelectuais e o poder: saber-poder aplicado ao controle social: Partindo de uma definição de controle social apta a demonstrar os efeitos correlatos às noções de saber-poder, seria possível aloca-lo como “o conjunto de sistemas normativos (religião, ética, direito etc.) cujos portadores, através de processos seletivos e estratégias de socialização, estabelecem uma rede de contenções que garantem a fidelidade das massas aos valores do sistema de dominação; o que, por motivos inerentes aos potenciais tipos de conduta dissonante, se faz sobre destinatários sociais

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FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 12. FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., pp. 91-92. 52 FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., pp. 14-15. 53 ANITUA, Gabriel Ignacio. História dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2008, p. 30. 54 FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 226. 55 FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso dado no Collège de France (1973-1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 41. 51

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diferencialmente controlados segundo a classe a que pertencem” 56. Se é controle social, é poder. Aqui, entretanto, faz-se necessário o traçado de algumas considerações acerca da divergência foucaultiana em relação a alguns aspectos centrais à teoria marxista, marcante, esta última, no conceito trazido por Lola. De fato Foucault não trabalha uma teoria a respeito do que seria o poder em essência, mas sim, de seus modos de atuação enquanto prática historicamente construída. Isso porque, para o autor, não se pode identificar o poder como coisa, como objeto ou como propriedade; impossível, nesse sentido, a contraposição entre uma classe dominante e detentora do poder e uma classe dominada. Afinal, o poder se situaria ao nível do corpo social, e não acima deste. Nesse sentido, Foucault não trabalha com a ideia de que haja uma estrutura binária de poder, caracterizada pela relação única entre as classes dominante e dominada, já que o exercício do poder não poderia se perfazer em uma só direção. Ou seja, o poder não pode ser tido como fluxo que parte de um grupo a outro tão somente57. Logo, não são as estruturas sociais que determinam as relações de poder, mas são as suas relações micro que constituem finalmente as estruturas sociais. Negação, portanto, da ideia de que o poder teria por papel a manutenção das relações de produção, e a reprodução da dominação de classe. Por outro lado, não se descarta em qualquer momento o fato de as relações de poder servirem a interesses econômicos: o poder não se colocaria a serviço de um interesse econômico dado - considerado como condição primeira, como sua essência -, mas sim, viria a ser usado como estratégia de controle da população politicamente considerada58. No entanto, não há que se dizer que não existam importantes congruências entre uma e outra obra. O próprio Foucault diria que não há diferença entre ser historiador e ser marxista, destacando, ainda, uma terceira regra do jogo que seria a comunistologia59. De modo a nos mantermos pelo caminho da congruência, contudo, que se permita a alteração da definição de controle social apresentada. O controle social se coloca, destarte, como o conjunto de práticas normalizadoras cujos intermediários, através de estratégias de saber e de poder, estabelecem uma rede de critérios de verdade que permitem a reprodução e a manutenção 56

CASTRO, Lola Anyar. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2005, p. 50 e ss. GARCIA, Agnaldo; SOUZA, Eloisio Moulin de. Um diálogo entre Foucault e o Marxismo: caminhos e descaminhos. Revista Aulas, nº 3, dez. 2006/mar. 2007, p. 13. 58 GARCIA, Agnaldo; SOUZA, Eloisio Moulin de. Um diálogo... Cit., pp. 14-15. 59 FOUCAULT, Michel. Microfísica... Cit., p. 232. 57

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dos valores interessantes ao expediente da norma; o que recai sobre os sujeitos, enquanto prática de governo, de maneira diferencial, segundo as relações de poder das quais são intermediários60. Os intelectuais, por sua vez, fazem parte de todo esse sistema de saber-poder, enquanto agentes da consciência e do discurso. O papel do intelectual não se dá, assim, de forma a coloca-lo “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda verdade; o intelectual é, pois sim, instrumento da verdade - na ordem do saber - e do discurso - na ordem na consciência. A teoria, em seu turno, não expressa, não traduz, não aplica uma prática; ela é uma prática, associada, aqui, ao saber-poder veiculado pelos intelectuais61. Feitos tais esclarecimentos, procura-se neste capítulo sair em busca de filiações - nunca anacronismos; sair à procura do passado das verdades constitutivas de um dado número de táticas de controle social aqui demarcadas - e diretamente vinculadas à reprodução da ordem dentro de determinados eixos político-econômicos e sociais. Para tanto, escolhemos passar, de forma mais detalhada, por aspectos das experiências positivista-lombrosiana e nazista, além da etiológica brasileira característica de nossa “Nova Escola Penal”. Frise-se, não se quer propriamente apontar o “nascimento” do controle social, o que seria um erro, tampouco vinculá-lo exclusivamente à criminologia positiva62. Em contrapartida, o que se busca é a localização da crítica, aqui, no império do cientificismo, na dominação estratégica de critérios de verdade pretensamente objetivos que viriam, tão logo, utilizar-se de estereótipos de delinquentes na produção da figura do “inimigo comum”. A ideia é que se caminhe, por conseguinte, pelos saberes técnicos orientados, em três marcos diferentes, ao fortalecimento do controle social e à manutenção do sistema ao qual serviram, com traços não episódicos de racismo institucionalizado. Demonstraremos, assim, como a fidelidade cega [ou não] às determinações científicas acaba por construir caminhos para qualquer correção, carregando, com base em ideais de 60

Outra definição interessante se nota em Giorgi: “se puede también decir que control social es el processo (histórico) de construcción de la relación entre poder y desviación: poder de definir las normas y de etiquetar a quien de ellas se desvía, poder de inducir conformidad y de reprimir la disconformidad, poder de trazar la diferencia entre lo normal y lo patológico, poder de corregir castigando y de castigar corrigiendo”. GIORGI, ALESSANDRO de. Tolerancia cero: estrategias y prácticas de la sociedade de control. Barcelona: Virus Editorial, 2005, p. 38. 61 FOUCAULT, Michel. Microfísica... Cit., pp. 131-132. 62 Até porque já se fala em sistematização e controle da ordem, em matéria repressivo-penal, desde a formalização da Escola Clássica, baseada no livre-arbítrio, nas garantias legais, na medida da pena, na racionalização do controle a partir das conceituações da dogmática penal. CASTRO, Lola Anyar. Criminologia... Cit., pp. 42-44.

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normalidade ditos neutros, os pressupostos da ordem política imposta - e irredutível frente aos seus dissidentes.

2.2.1

Lombroso e a experiência positivista

Das técnicas de controle social comumente trazidas ao campo do saber criminológico, talvez àquelas vinculadas ao positivismo - o biológico, em especial - sejam as que mais apresentem reminiscências, ainda que metodologicamente superadas. Introdutoriamente, acerca do método positivista, iniciamos vinculando o seu funcionamento à suposição prévia da existência de leis gerais aptas a determinar fenômenos da natureza. A observação reiterada do particular possibilitaria, assim, a indução das causas em nível geral. Isso porque existiria um determinismo das relações humanas e naturais, passível de ser pesquisado não a partir da interrogação intelectual, mas da pesquisa empírica, que permitiria a descoberta, a partir de um juízo positivo, das causas de um dado fenômeno. Nesse sentido, a realidade seria reduzida à sua pura existência objetiva, reunindo elementos puros e, portanto, cautelosamente reconstruídos. Daí decorre o rigor, a princípio, associado ao positivismo científico, visto que a compreensão errônea de um fenômeno seria impeditiva do acesso às suas causas. Assim, é possível alocar os elementos centrais do positivismo científico em três grandes determinantes: (i) a causalidade, responsável por determinar a possibilidade de estudo da ação pela reação, e da compreensão das causas pelos fatos; (ii) a neutralidade, como forma de “objetificação do objeto”, de modo a possibilitar o seu juízo de fato e a sua quantificação; (iii) a própria quantificação, dado o conhecimento positivo como universal, neutro, que convida a uma taxionomia e à descrição de um todo por suas partes. A partir destas premissas, restaria o crime reduzido às suas objetividades. Dito isso, é certo que o método positivista buscou a retirada de todo elemento psicológico do criminoso, valendo-se do pressuposto da diferenciação entre pessoas normais e pessoas criminosas. Para a criminologia positivista, portanto, o crime seria produto de degenerados63, que poderiam [e deveriam] ser estudados objetivamente, em prol da previsibilidade e da defesa social. Não somente, a consideração do crime como 63

Sobre a teoria da degenerescência, esta encontra respaldo em Morel, que veio a fundamentá-la no principio da transmissibilidade da tara “hereditária”. Aqui, formou-se o núcleo do saber médico sobre a loucura e a anormalidade na segunda metade do séc. XIX, o que trouxe efeitos consideráveis sobre as doutrinas racistas e sobre as práticas eugênicas a elas associadas, influenciando toda uma literatura, toda uma criminologia, toda uma antropologia. Aqui, tem-se a peça teórica da maior medicalização do anormal. FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 301.

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produto de degenerados - ou a degenerescência como gênese do crime - caminha paralelamente à criação de uma rede de hereditariedade dos elementos desviantes, o que explicaria a emergência de anomalias nos descendentes de anormais64. Conhecer os fenômenos para poder prevê-los; este seria o grande objetivo - e objeto - dos saberes criminológicos positivistas, que se fizeram notar ao tratarem os problemas sociais como questões meramente científicas, com a [falsa] pretensão de se excluírem as questões de valor. Desse modo, tomando-se a ordem legal como dada, o comportamento criminoso se colocaria como manifestação da natureza antissocial interna do indivíduo, incapaz de compreender e, muito menos, de controlar as forças causais ligadas ao seu comportamento. A defesa da ordem, nesse ínterim, não poderia se dar por outra forma que não pela correção da natureza do sujeito - quando não pela sua neutralização - frente à exposição a perigo não apenas de sua prole, mas de toda a sociedade. O enfoque se coloca, dessa forma, não na conduta, mas no sujeito, sempre considerado em um contexto de ordem posta e intangível - não importando a violação, mas sim, a aniquilação do violador. Notável, nesse ínterim, a aliança entre saber científico e controle social, na medida em que a representação de uma ideia de patologia social que, necessariamente, deveria ser erradicada, tem efeitos positivos na sustentação, também, da necessidade de erradicação dos sujeitos patológicos, permanentemente associados à ameaça da ordem. Dito isso, a criminologia lombrosiana - sendo Cesare Lombroso um dos mais destacados [se não o mais] expoentes da antropologia criminal aliada ao positivismo biológico - é notadamente conhecida pela difusão de um saber que se baseia, primordialmente, na recorrência à natureza como forma de criminalização. Busca, portanto, do atavismo, dos desvios originários, pautada na necessidade, aqui, de demonstração da imoralidade como expressão do primitivo, do atrasado, do selvagem. Tanto se faz presente este tipo de associação que, nas primeiras páginas de sua mais famosa obra - “O homem criminoso” -, Cesare Lombroso traz ao leitor “crimes” cometidos entre pessoas, mas também entre animais e até mesmo plantas,

64

“Esse corpo de fundo, esse corpo atrás do anormal, é o corpo dos pais, dos ancestrais, da família, é o corpo da hereditariedade”. LOMBROSO, Cesare. O homem criminoso. In FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 274.

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como forma de demonstração que as causas do delito, vistas em largos traços, seriam as mesmas entre esses três grupos65. Parte o autor, aqui, da ideia de que, primordialmente, o crime estaria universalmente difundido - como regra entre os selvagens, e não como exceção. Posteriormente, passa a diminuir, porém deixando traços de sua origem até a nossa época. Esta constatação, em seu turno, leva o autor a crer que se o crime não cessa de se produzir nem nas raças mais cultas e evoluídas, sua causa reside no atavismo66. Daqui decorre uma série de pesquisas antropométricas realizadas pelo autor, em tentativas de se chegar à real embriologia do crime. Testa curta, córtex pouco desenvolvido, olhos profundos e velozes, anomalias cerebrais, orelhas de abano, cabelos negros e encaracolados, maxilares fortes; todas estas características tidas como reminiscências atávicas nos colocariam diante de um sujeito criminoso, facilmente reconhecido por meio do conhecimento instintivo das fisionomias. Nesse contexto, não nos parece complicado visualizar a aproximação entre os saberes médico e jurídico67, sendo o próprio Lombroso médico de formação. Afinal, se o crime é a manifestação da selvageria e da doença, se a loucura moral se manifesta no crime, a sua incidência não poderia ser controlada que não pela sujeição dos delinquentes a doses de tratamento68 em casas de correção que, não é de se espantar, eram conhecidas antes por nosocômios da moral, e não pela nomenclatura atual - presídios. Ainda, um ponto importante da teoria lombrosiana seria, justamente, a associação desses saberes para a otimização dos julgamentos dos sujeitos. Afinal, não é possível negar o processo penal, pois nele se faz o julgamento moral69; entretanto, não se poderia tampouco falar em sentenças pré-definidas, uma vez que o processo de moralização deveria se seguir, necessariamente, da atuação positiva da clínica, corporificada nos médicos, nos psicólogos, nos assistentes sociais. 65

LOMBROSO, Cesare. O homem criminoso. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1983, pp. 3-28. Idem, p. 74. 67 “Da concepção médica, eles emprestaram o quadro de patologia, infecção, imunização e tratamento; das crenças do darwinismo social, eles derivaram sua posição pessimística da incorrigibilidade da natureza humana e dos defeitos morais inatos das classes inferiores (...)”; PLATT, Anthony. The child savers: the invention of delinquency. In SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia da repressão: uma crítica ao positivismo em criminologia. Rio de Janeiro: Forense, 1979. 68 Tal colocação é facilmente observada se se atenta para o léxico de determinadas expressões jurídicas que, igualmente, se aplicam ao saber médico. Uma delas é a própria dosimetria da pena, largamente utilizada pelos juristas sem maiores reflexões. Outra: a palavra prontuário que, para os médicos, traz as informações clínicas importantes do paciente, enquanto que, para os juristas, é o conjunto de informações documentais importantes sobre a prisão do infrator, bem como sobre sua vida pregressa. 69 Julgamento pautado, por sua vez, em noções apropriadas do darwinismo social, especificamente a seleção natural, para a formulação de uma teoria de “elevação do conjunto da raça humana”, a partir da erradicação daqueles elementos que constituíssem perigo à ordem social. 66

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A busca do “monstro natural”, cada vez mais marcado por aspectos de moralidade; o monstro seria a contranatureza, e o estudo dos delinquentes, em Lombroso, deveria necessariamente passar pelo fundo de monstruosidade a compor os pequenos desvios, as pequenas anomalias, as pequenas irregularidades. Afinal, o indivíduo a ser corrigido está por detrás de fenômenos correntes e regulares em sua irregularidade70. Atomiza-se a monstruosidade moral, de comportamento, que faz transpor a velha categoria de monstro para o domínio da criminalidade pura e simples71. A criminalidade é monstruosa; da criminalidade possível associada ao monstro, galga-se à ideia de que, no fundo, todo criminoso poderia ser um monstro, alimentando a suspeita sistemática de monstruosidade no fundo de qualquer criminalidade. Paralela e paradoxalmente, a definição do indivíduo a ser corrigido caminha cada vez mais junto à ideia de que alguns seriam incorrigíveis, o que vai demandar um número de intervenções específicas, uma nova tecnologia de reeducação e de correção. O eixo da corrigibilidade incorrigível72 vai servir de suporte a todas as instituições específicas para anormais que se desenvolveram no decorrer do século XIX. O indivíduo anormal se delimita por essa espécie de monstruosidade apagada, por uma incorrigibilidade retificável e progressivamente investida nos aparelhos de retificação. A criminologia positivista lombrosiana, destarte, vem impregnada de controle social na busca das razões do crime, utilizando-se, para isso, de novas tecnologias do poder de punir. Investigam-se elementos que podem ser considerados a razão do aparecimento da patologia criminosa, a sua gênese, o princípio de sua repetição e de sua imitação pelos outros; a punição tenta neutralizar o suporte do crime, dando a ele uma natureza e, ao criminoso, uma fronte natural a ser caracterizada. A criminalidade alcança o nível da natureza, o que exige um saber naturalista da criminalidade. Saber-poder aplicado à tarefa de construção do criminoso como criminoso73. Aqui, de fato, a partir do momento que qualquer desvio, anomalia ou retardo se relaciona à criminalidade, e esta, à degeneração, vê-se que a criminologia, ancorada pelas ciências-psi, passa a ter ingerência indefinida nos comportamentos humanos - sendo o indefinido sempre inalcançável. Ao mesmo tempo, dando-se o poder de passar por cima

70

FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., pp. 47-49. FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 63. 72 FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 50. 73 FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., pp. 74-78. 71

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da doença, ligando o desvio das condutas a um estado hereditário e definitivo, dá-se ao poder criminológico e psiquiátrico a possibilidade de não procurar mais curar74. E a partir dessa noção de degeneração, bem como das análises da hereditariedade, dá-se lugar a um verdadeiro racismo histórico, étnico, contra o anormal; contra toda uma gama de indivíduos que, sendo portadores de um estigma, de um estado, ou de qualquer defeito, poderiam transmitir a seus herdeiros o anormal trazido dentre de si, com consequências absolutamente imprevisíveis. É, portanto, um racismo responsável pela detecção, no interior de um grupo, de todos aqueles que poderiam ser efetivamente portadores do perigo, o que levou, é claro, a uma série de interferências no campo do racismo dito tradicional. Disso, aproveita-se a psiquiatria como ciência da proteção científica da sociedade, da proteção biológica da espécie. Desprendidas da ideologia da cura, as ciências-psi podem tomar propriamente o lugar da justiça, da higiene e do controle sociais, enquanto instâncias gerais de defesa da sociedade contra os perigos que a minariam do interior75. Nesse sentido, no contínuo biológico da espécie, a distinção e a hierarquia das raças, e a sua qualificação como boas ou como inferiores, tudo isso leva a uma maneira de fragmentar o campo biológico do qual se incumbiu o poder, defasando, dentro da população, alguns grupos em relação aos outros76. Destarte, o discurso racista se prontificou, tão logo, a levar adiante a guerra às raças em vieses sociobiológicos, e com finalidades essencialmente de conservadorismo social - bem como, em largo número de casos, de dominação colonial propriamente dita77. Racismo aliado ao biopoder e à gestão da vida e da morte das pessoas. Quanto mais espécies desaparecidas, quanto mais anormais eliminados, menos degenerados povoarão a espécie. A morte do outro é a segurança pessoal; a morte da raça ruim, inferior, do degenerado, é o que deixa a vida em geral mais sadia e mais pura78. A raça é a condição de aceitabilidade, aqui, de tirar a vida em uma sociedade de normalização. A função assassina do Estado, assim, alargada em seu nível máximo, assegura-se desde que este Estado funcione no modo do biopoder e do racismo, o que foi por certo utilizado em maior escala pelo regime totalitário nazista, como se verá a seguir. 74

FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 276. FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 277-278. 76 FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 304. 77 FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 75. 78 FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 305. 75

27

2.2.2

Mezger e a experiência nacional-socialista

“Tudo o que é útil ao povo é direito; tudo o que o danifica é ilícito”79.

Construídos em um contexto de profícuo desenvolvimento da estrutura dogmática da teoria do delito80, os estudos de Mezger se inseriram, inicialmente, em toda uma tentativa de superação do conceito positivista de ciência, a partir da fundamentação do caráter científico da atividade jurídica em suas especificidades. Nesse contexto, apesar de tanto as ciências da natureza quanto as chamadas “ciências do espírito” possuírem um objeto determinado e um método próprio de investigação, aquelas se voltariam ao seu objeto sob o ponto de vista causal-explicativo, enquanto estas se devotariam ao método de compreensão referente à questão do valor, o que se denominou dogmática compreensivo-axiológica. Separam-se, assim, o ser do valor, as esferas ontológicas das axiológicas, e, finalmente, a criminologia da dogmática jurídico-penal81. Entretanto,

justamente

Edmund

Mezger,

professor

catedrático

da

Universidade de Munique e autor de um tratado de direito penal que foi uma das obras dogmáticas mais acabadas da época, não só colaborou, anos mais tarde, com a reforma penal imposta pelo regime nacional-socialista, como também deu cobertura, sob pretensões de cientificidade, às leis repressivas e racistas que marcaram todo um sistema baseado na superioridade da raça ariana e na pureza do sangue. Ora, os Estados mais assassinos são, forçosamente, os mais racistas, do que não escapa o regime nazista; este é, na verdade, o regime de condução do racismo ao seu nível máximo. Não há Estado mais disciplinar que o nazista, tampouco há outro onde as regulamentações biológicas sejam adotadas de maneira mais densa e insistente. O biopoder de fato sustentou a sociedade nazista, cujos objetivos mais imediatos passavam, por certo, pelo controle das eventualidades dos processos biológicos82.

79

Máxima enunciada pelo Dr. Hans Frank, presidente da Academia para o direito alemão, e rapidamente convertida em palavra corrente. In MEZGER, Edmund; GRISPIGNI, Filippo. La reforma penal nacionalsocialista. Buenos Aires: Ediar, 2009, p. 70. 80 Tomando por base a corrente neokantista, a teoria do delito passou a ser elaborada de modo que cada uma de suas categorias básicas - tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade - se referissem a valores específicos derivados dos fins do direito penal, que o penalista deveria necessariamente compreender (e não apenas observar ou descrever). MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger y el derecho penal de su tiempo: estudios sobre el derecho penal en el nacionalsocialismo. 4. Ed., Valencia: Tirant lo Blanch, 2003, p. 31. 81 MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger... Cit., pp. 32 e ss. 82 FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 309.

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Dito isso, vale aportar, aqui, quais categorias jurídico-penais foram apropriadas - e reapropriadas - da República de Weimar, período histórico ambíguo e cronologicamente anterior ao nazismo, de modo a compreender como o saber dogmático foi habilitado à legitimação de um sistema penal do terror, munido de um poder assassino, que mais se assemelha ao velho poder soberano de matar. Neste ponto, uma das mais significativas reminiscências dos projetos de código penal de Weimar foi, sem dúvida, o sistema da dupla reação sancionatória, que determinava ao autor culpável de um delito a consequência da pena e, ao perigoso, culpável ou não, a medida de segurança, aplicada ou não conjuntamente à pena. O que se procurava era, portanto, dar resposta a três tipos de delinquentes, nos moldes de Von Liszt: para o delinquente ocasional, deveria a pena ser tão somente intimidatória; aos delinquentes perigosos, porém, corrigíveis, aplicar-se-iam a medida de segurança e correção; para o delinquente perigoso e incorrigível, por outro lado, era prescrita a conversão da medida de segurança em uma espécie de pena indeterminada83. Destaca-se que tal projeto não se converteu em direito vigente até 1933, em pleno período nazista, a partir de sua introdução no código pela “lei do delinquente habitual”. Destarte, apesar de seus maiores abusos terem se configurado durante o nacional-socialismo, suas bases higienistas já se deixavam notar ainda no período anterior, como se depreende das palavras do próprio Lizst:

"Tal como un miembro enfermo envenena todo el organismo, así el cáncer de los cada vez con mayor rapidez crecientes delincuentes habituales penetra en nuestra vida social... Se trata de un miembro, pero del más importante y peligroso, en esa cadena de fenómenos sociales patológicos que acostumbramos a llamar con el nombre global de proletariado. Mendigos y vagabundos, prostituidos de ambos sexos y alcohólicos, estafadores y gentes del mundo galante en el más amplio sentido de la palabra, degenerados psíquicos y físicos. Todos ellos forman un ejército de enemigos básicos del orden social, en el que los delincuentes habituales constituen su Estado mayor”84. E ainda, em suas indicações sobre a resposta penal frente a este tipo de delinquência: “La prisión perpetua o, en su caso, de duración indeterminada, en campos de trabajo, en «servidumbre penal», con estricta 83 84

FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 309. MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger... Cit., p. 42.

29

obligación de trabajar y con el máximo aprovechamiento posible de la fuerza de trabajo; sin excluir como pena disciplinaria la pena de azotes, y con la consiguiente pérdida obligatoria y duradera de ios derechos civiles y políticos, para marcar el carácter deshonroso de la pena”85. Dessa forma, seria mesmo desnecessária a pena de morte, uma vez que as sanções anteriormente previstas já serviriam aos fins de inocuização. Frente a esta regulação perpétua e permanente dos tempos, das atividades e dos gestos; frente a esta ordem que envolve e penetra os corpos, trabalhando-os e normalizando-os; frente a esta “grande nervura de prescrições” 86, a pena de morte restaria supérflua. Notável, ademais, as indesejáveis - ou não - permanências etiológicas positivistas na nova dogmática penal, que pretendia afastá-las a priori. O foco no sujeito, a criação de um marco penal especial contra uma classe determinada de pessoas, sem que se considerasse a própria classe do delito. Tudo isso fez com que a medição da pena pelo fato passasse a se voltar completamente ao autor. Anos mais tarde, tais construções seriam utilizadas como suporte científico de uma práxis penal que, sem quaisquer precauções e reservas, condenou ao internamento, em cerca de oito anos, mais de 16 mil pessoas87. Não bastasse, tais obscenidades seriam ainda legitimadas por tratadistas como Mezger, que reforçou as muitas prisões dos “inimigos do povo”, pela Gestapo, por meio de sua teoria da “culpabilidade pela condução da vida”. Esta, por sua vez, demarcaria objetivamente a culpa, relacionando-a à mera contrariedade da conduta do agente às normas morais vigentes; isso porque, segundo a doutrina nacional-socialista, a pena em sentido lato88 nada mais seria que o meio necessário para a manutenção da comunidade popular89, sendo este objetivo a sua única justificativa90. Aos dissidentes - “estranhos à comunidade”

91

-, restaria o endurecimento

do controle e a entrega às polícias, como maneira de se custodiar os incorrigíveis. 85

MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger... Cit., p. 42. FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 4. 87 Que foram, muito provavelmente, levadas a campos de concentração sem que se façam recordar. Afinal, os tais criminosos não poderiam ser vítimas do nacional-socialismo, e muito menos assassinados pela sua Justiça. FROMMEL, Monika. La lucha contra la delincuencia en el nacionalsocialismo. Estudios Penales y Criminológicos XVI, 1993, pp. 5 e ss. 88 Incluída aqui a medida de segurança. 89 A comunidade do povo era um organismo de essência de mesma espécie. FRAGOSO, Cristiano. Autoritarismo... Cit., 151. 90 MEZGER, Edmund; GRISPIGNI, Filippo. La reforma... Cit., pp. 54-58. 91 Estabelecia o programa nazista que somente poderia ser cidadão quem fosse companheiro do povo. E só era companheiro do povo quem tivesse sangue alemão; por isso, nenhum judeu poderia ser companheiro do 86

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Tais saberes incorreriam, necessariamente, na sua positivação sob a forma de leis como a de “Vagabundos e Meliantes”, de 1933, que, como indicado no próprio nome, permitia a aplicação de medidas que desconsiderariam por completo as atuais noções de culpabilidade92, visto que não exigiam a prévia comissão de um delito. Além disso, há que se destacar que o fato de a pena limitada pela culpabilidade poder ser substituída ou complementada por uma medida de segurança de duração indeterminada - e fundamentada em um conceito tão vago como a perigosidade traduz uma concepção do direito penal muito próxima da tese amigo-inimigo, tão cara à manutenção do Estado nacional-socialista. Garantias apenas ao delinquente ocasional, vez que integrado ao sistema; critério de perigosidade e ausência de limitações, em seu turno, ao criminoso habitual, que reflete os seus questionamentos acerca do sistema em sua forma de conduzir a vida93. Dessa maneira, não obstante tenham aparecido alguns focos de resistência 94, a dogmática penal construída na passagem da República de Weimar para a instituição do nacional-socialismo abriu espaço a um sistema legal de medidas comprometidas, basicamente, com o extermínio dos marginais sociais - prostitutas, mendigos, vagabundos, delinquentes habituais -, por meio de medidas esterilizadoras, de internamentos por tempo indeterminado e de penas a serem cumpridas nos campos de concentração. Ainda, apesar de suas disparidades teóricas, se há algo que pode ser globalmente computado aos penalistas alemães da época é de terem sido demasiadamente consequentes com a pureza de seus postulados dogmáticos, alheios à realidade socioeconômica e política que os circundavam, e sem atentar ao poder que estes saberes

povo. Ainda, quem não fosse cidadão só poderia viver na Alemanha como hóspede e estaria sujeito a legislação especial. Somente cidadãos poderiam exercer cargos públicos; o Estado deveria se preocupar primeiro com as condições de vida dos cidadãos e, em não sendo possível cuidar de toda a população, os não-cidadãos deveriam ser expulsos, e a imigração de não-alemães deveria ser impedida. FRAGOSO, Cristiano. Autoritarismo... Cit., 135. 92 Em se considerando o injusto como o objeto da valoração penal, a culpabilidade se coloca como o juízo dessa valoração. Isto é, o juízo de reprovação da culpabilidade deve ter por objeto a realização não justificada do tipo de injusto e por fundamento a imputabilidade, como conjunto de condições pessoais mínimas que capacitam o sujeito a saber o que faz. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3. Ed. Curitiba: ICPC; Lumen Iuris, 2008, p. 281. 93 MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger... Cit., pp. 64-65. 94 Menciona-se, por exemplo, a teoria da não exigibilidade, de Freudenthal, pautada na impossibilidade de reprovação de uma determinada conduta nas situações em que não se poderia exigir comportamento diverso do agente. Teorias como esta, entretanto, foram entusiasticamente rechaçadas por penalistas dispostos a acatar as disposições nacional-socialistas - o que incluía a pretensão do regime de sua disponibilidade total sobre os cidadãos. MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger... Cit., p. 57.

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encerravam. A eles se computa, portanto, o não questionamento acerca da ambição deste poder, e da pretensão que o “ser ciência” traz consigo. Ora, o poder não se dá nem se detém; poder é ato. E mesmo alheios, aparentemente, aos efeitos de verdade produzidos pelo seu saber e pelas regras de direito que delimitaram formalmente o poder à época, cientistas como Mezger conduziram e reconduziram este poder. Feito o triângulo, poder-direito-verdade95, não há como dizer se foram as Universidades e seus catedráticos os arrastados pelo espírito da época, ou se foram eles que arrastaram a sociedade àquele espírito. No entanto, não se busca aqui pessoalizar a propulsão destes discursos verdadeiros, visto que a veiculação dos efeitos de poder se dá a partir de múltiplas relações que perpassam, caracterizam e constituem o corpo social - que não se estabelecem, por sua vez, sem o funcionamento de um discurso verdadeiro. Isso posto, destaca-se também a contribuição ao regime nazista feita por juristas em seus postos políticos e, especialmente, pela própria administração da justiça96. Não é de se espantar, destarte, com o fato de que muitos juízes acabaram sendo levados posteriormente ao Tribunal de Nuremberg, por conta da extrema dureza de suas sentenças em situações de escassa gravidade e importância, voltadas contra sujeitos específicos, apenas por sua pertença aos grupos considerados estranhos à comunidade do povo alemão - como as prostitutas, os mendigos, os homossexuais, os ciganos etc.97. Por outro lado, o que mais impressiona nas referidas sentenças não é o seu grau de crueldade, mas a fundamentação em que se baseiam os juízes, no auge de seu rigor dogmático e das regras hermenêuticas tradicionais, facilmente aplicadas na determinação de conceitos como “ação desonesta”, “ultraje à raça” ou “pena adequada à culpabilidade”, com a mesma frieza dirigida às questões jurídicas tidas em abstrato. Tal é a perversão da aparência de neutralidade atribuída à dogmática98, que foi esta utilizada exaustivamente para legitimar decisões igualmente perversas, propagando colocações como a de Mezger, ao dizer que a justiça nacional-socialista se 95

FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 28. A máquina administrativa, com seus efeitos de poder incontornáveis, passa pelo funcionário medíocre, nulo, impotente, que constitui a burocracia moderna tanto quanto as formas mecânicas de poder, como o nazismo ou o fascismo. O grotesco de alguém como Hitler ou Mussolini estaria absolutamente inscrito na mecânica do poder. FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 12. 97 MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger... Cit., pp. 74 e ss. 98 Neutralidade tamanha que encobriu por muito tempo juristas como o próprio Edmund Mezger, considerado até a sua morte, em 1962, e ainda algum tempo depois, um dogmático puro e acima de todas suspeita de colaboração com o regime nazista. MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger... Cit., p. 78. 96

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vincularia a duas finalidades claras - (i) a responsabilidade do indivíduo frente à comunidade popular e (ii) a sua separação desta, uma vez sendo o delinquente parte danosa tanto ao povo quanto à raça99. Não nos escapa, nesse sentido, o peso da autoridade acadêmica como forma de legitimação científica do direito penal do horror, baseado em disposições biologicistas100 e racistas, responsáveis por atrelar a “defesa da sociedade” à aniquilação dos elementos da população prejudiciais ao povo alemão e à raça ariana101. Isso se demonstra a partir de publicações como a “Política criminal sobre fundamentos criminológicos”, de Mezger, que desde o prólogo plantava a necessidade de se adaptar o direito penal ao novo Estado e aos seus ideais atrozes, traduzindo-os em categorias dogmáticas. Este mesmo autor, como membro da Comissão da Reforma do Direito Penal nacional-socialista, participou ativamente da redação de textos legais impregnados pela ideologia nazista, introduzindo ao Código Penal alemão, por exemplo, a analogia como fonte de criação de tipos penais - sempre que a ideia jurídica que lhe servisse como fundamento e o são sentimento do povo alemão assim o requeressem102. Defendeu, além disso, a teoria dos “tipos de autor”, que já havia trazido à tona em épocas anteriores; isso significou afirmar que determinadas características biológicas e psíquicas favoreciam a comissão de delitos, abrindo espaço para a criação de leis contra aqueles sujeitos que trouxessem consigo os tais elementos danosos ao povo, leis, portanto, de claras conotações racistas, e instrumentalizadoras das relações estabelecidas entre os saberes jurídico e médico103. Ademais, intimamente relacionada com o aparato teórico dos tipos de autor está, também, a já mencionada teoria da “culpabilidade pela condução de vida”, de modo a fundamentar a pena do delito doloso em casos de inimizade ou cegueira jurídicas. Pouco depois, participou Mezger da conferência inaugural acerca da “lei para o 99

MEZGER, Edmund; GRISPIGNI, Filippo. La reforma penal... Cit., p. 60. Mezger não só admitia a existência de indivíduos incorrigíveis, por exemplo, como coadunava com um dos pontos centrais à teoria de Lombroso, ao dizer que, não obstante os seus exageros particulares, poderia se ter por certa a existência de um grande número de delinquentes cuja estrutura psíquica era diferente daquela das pessoas normais. MEZGER, Edmund; GRISPIGNI, Filippo. La reforma penal... Cit., p. 63. 101 A “proteção” do povo configuraria, assim, finalidade da pena, enquanto ao conceito material de delito restaria a traição, a quebra do dever de fidelidade do indivíduo para com a comunidade do povo alemão. MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger... Cit., p. 77. 102 MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger... Cit., p. 85. 103 Tanto a medicina quanto a biologia, bem como a recém surgida criminologia - que se alimentava de ambas as anteriores - já falavam em eugenia e em esterilização, por exemplo, tanto de doentes mentais como de portadores de doenças hereditárias - tudo como caminho à higienização social. MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger... Cit., pp. 172-173. 100

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tratamento dos estranhos à comunidade”, à luz da chamada biologia criminal, uma das obsessões do autor à época. Em relação a esta ultima, convém destacar algumas de suas obscenidades, como a própria definição do estranho: Artigo I. Estranhos à comunidade §1 É estranho à comunidade: 1. quem, por sua personalidade ou forma de condução de vida, especialmente por seus extraordinários defeitos de compreensão ou de caráter é incapaz de cumprir com suas próprias forças as exigências mínimas da comunidade do povo, 2. quem a) por uma atitude de negação ao trabalho leva uma vida inútil, dilapidante ou desordenada, e com isso molesta aos outros e à comunidade; ou por tendência ou inclinação à mendicância ou à vagabundagem, ao trabalho ocasional, pequenos furtos ou outros delitos menos graves, ou em estado de embriaguez provoca distúrbios, ou por estas razões infringe gravemente seus deveres assistenciais; ou b) por seu caráter antissocial perturba continuamente a paz da generalidade, ou 3. quem por sua personalidade ou forma de condução de vida revela que sua mente está dirigida à comissão de delitos graves104. (Grifos nossos). E, ainda, as sanções a ele [estranho] destinadas, sempre para assegurar ou a sua inserção como membro útil, ou para aniquilá-lo, de modo que não pudesse seguir “danificando a comunidade do povo”: §6 (1) Quem, por repetida manifestação criminal, assim como por qualquer outra forma de condução de vida e por sua personalidade revele uma tendência a atos puníveis graves, será castigado como delinquente inimigo da comunidade a uma pena de reclusão por tempo indeterminado, na medida em que não seja aplicável outra pena mais grave (...). (2) O delinquente inimigo da comunidade será condenado à pena de morte, se assim requer a proteção da comunidade do povo ou a necessidade de justa expiação. (3) Se o juiz se convence de que não se pode esperar a reinserção do inimigo na comunidade do povo, colocá-lo-á como incorrigível à disposição da polícia (...). §10

104

Tradução livre do espanhol. É possível encontrar a lei completa em: MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger... Cit., p. 193 e ss.

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(1) Se um homem, por repetidos ataques à moral, assim como que por sua personalidade revela uma tendência ou uma inclinação a tais atos, terá decretada pelo juiz, junto à pena ou à disposição pela polícia, a sua castração, se assim o exige a segurança pública. (2) Será entendido como ataque à moral que motive a castração: a coação a ações desonestas, o ultraje, os abusos desonestos com menores, os atos desonestos intimidatórios, os atos desonestos entre homens105, as ações desonestas realizadas publicamente, o homicídio, as lesões e o maltrato aos animais motivados pelo prazer sexual, assim como a embriaguez plena, quando neste estado se realizam quaisquer destes atos (...). §11 (1) Os estranhos à comunidade de quem se possa esperar uma herança indesejável para a comunidade do povo, serão esterilizados. (Grifos nossos). Conforme se depreende dos trechos destacados, a dogmática aplicada ao terror formula não só a sanção, mas o próprio tipo penal, de acordo com os postulados nazistas. Dessa forma, desde o primeiro momento torna-se claro que a única fonte de direito e a única base de todas estas elucubrações - desde a questão de demarcar a responsabilidade do indivíduo frente o povo até a necessidade de regeneração racial106 seria a vontade do Führer, a quem teria sido transmitida a formação consciente das sãs concepções do povo alemão107. Tratava-se, assim, de assegurar o controle total, atribuindo-se às polícias um poder utilizável a todo tempo contra inimigos do regime de qualquer caráter - desde os inimigos políticos até os sociais e os da raça. As nova leis culminariam, destarte, em uma política de depuração e de seleção racial, de uma verdadeira “limpeza étnica”, que não só se dirigiu contra os judeus, mas contra ciganos, negros, polacos, ucranianos, russos, bem como contra os “antissociais” e os demais estranhos à comunidade que, mesmo arianos, não eram dignos de inclusão como verdadeiros membros do povo. Aos de menor valor,

105

Um dos pontos de grande preocupação da Grande Comissão De Reforma do Direito Penal, a qual pertenciam, além de Mezger, outros muitos professores de prestígio, era justamente castigar a homossexualidade masculina, como meio de “conseguir mediante a força ética da lei penal uma barreira contra a expansão de uma prática imoral”. MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger... Cit., p. 107. 106 “Pois a raça e qualquer outra peculiaridade condicionada hereditariamente determinam não só diretamente a forma de delinquir do sujeito, mas também toda a sua atitude social dentro da comunidade, que se manifestará criminologicamente à sua maneira, em um ou outro sentido” [tradução livre do espanhol]. MEZGER, Edmund. Kriminalpolitik. In MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger... Cit., p. 142. 107 MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger... Cit., p. 139 e ss.

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imperfeitos, portanto, restaria a internação nos campos de concentração e, finalmente, a morte. A população classificada, mensurada e dividida, teria boa parte de sua composição higienizada, nas formas da esterilização e da castração, para que se evitassem aquelas descendências indesejáveis - tudo alicerçado pelas teorias acerca da herança biológica do sujeito, tão difundidas à época. Não obstante, à outra parte caberia ser eliminada, a partir da atuação de uma série de mecanismos de poder aparentemente legítimos. Deu-se ao terror uma base jurídica; obrigou-se à criação de instrumentos jurídicos ad hoc, de leis e de disposições, tudo como licença à barbárie. Orientados ficaram funcionários, pessoal técnico, juízes, policiais - todos levando em prática a política da selvageria. E mais: tudo pensado não por psicopatas assassinos, mas por homens normais, catedráticos, tratadistas, frequentemente citados por suas obras doutrinárias, reverenciados pelo seu saber e por suas engenhosas construções teóricas. O poder de matar, o poder de vida e de morte, na sociedade nazista, é dado não pura e simplesmente ao Estado, mas a toda uma série de indivíduos. No limite, todos teriam o direito de vida e de morte sobre o seu vizinho, ainda que fosse pelo comportamento de denúncia. E como objetivo, não se tinha simplesmente como norte a destruição das outras raças; esta é de fato uma das faces do projeto, sendo a outra expor sua própria raça ao perigo absoluto e universal da morte. O risco de morrer, a exposição à possibilidade de destruição total: este é um dos princípios inseridos entre os deveres fundamentais da obediência nazista108. Tem-se, pois, na sociedade nazista, o extraordinário: é uma sociedade que generalizou absolutamente o biopoder, junto ao poder soberano de matar109. Forte representação da mais fundamental dimensão da normalização social, qual seja, a purificação permanente, a experiência nacional-socialista permanece como a maior expressão de até onde pode chegar o racismo interno, exercido pela sociedade sobre ela mesma, sobre os seus próprios elementos, sobre os seus próprios produtos.

108

“Que se chegue a um ponto tal que a população inteira seja exposta à morte. Apenas essa exposição universal de toda a população à morte poderá efetivamente constitui-la como raça superior e regenerá-la definitivamente perante as raças que tiverem sido totalmente exterminadas ou que serão definitivamente sujeitadas”. FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 310. 109 O Estado nazista tornou absolutamente coextensivos o campo de uma vida que ele organiza, protege, garante, cultiva biologicamente e, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar quem quer que seja - não só os outros, mas os seus próprios. FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 311.

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O que é preciso se atentar, entretanto, é que tal experiência de controle e de posterior erradicação social, legitimada por respeitados saberes - como o jurídico -, está muito mais próxima da nossa realidade do que se imagina, como se pretende expor a seguir. Apenas o nazismo, é claro, levou até o paroxismo o jogo entre o direito soberano de matar e os mecanismos do biopoder. Mas tal jogo está efetivamente inscrito, há que se afirmar, no funcionamento de todos os Estados110.

2.2.3

Experiência brasileira: produção etiológica e reminiscências escravagistas

Partindo do pressuposto de que a criminologia é e será sempre ideologicamente comprometida, devemos colocá-la concretamente no contexto das relações sociais de poder - vez que todo sistema punitivo legislado implica uma política social geral que o legitima. Importa-nos, portanto, dar a devida atenção à maneira com que a tradicional hierarquia social brasileira - regulada, até fins do século XIX, pela subjugação direta dos escravos - pôde manter, até os dias atuais, os laços verticais de patronagem e de controle de pessoas “livres”. O que se pretende, assim, é a análise do funcionamento da justiça criminal, no Brasil, numa perspectiva histórica, de modo a identificar quais as percepções acerca do sentido da punição que têm orientado as práticas dos operadores nesse campo, bem como o papel das elites dirigentes no que diz respeito às políticas de segurança pública do país111. Junto a isso, deve-se focar nos esforços empreendidos pelo positivismo etiológico e por seus partidários nacionais à formulação da criminologia como uma área de conhecimento pretensamente científico, e à caracterização do comportamento criminoso como manifestação da natureza antissocial interna do delinquente. Há aqui, o que se demonstrará adiante, a formação e manutenção de uma verdadeira aliança entre os cientistas sociais e a classe dominante - juntos na difusão da ideia de existência de uma dita patologia social¸ que deveria ser, por sua vez, completamente erradicada. Dito isso, quando se passa a analisar a conjuntura político-econômica do Brasil colonial e imediatamente pós-colonial, visualiza-se um espaço social de convivência entre escravos negros e pobres recém-alforriados, dominados por uma 110

FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 312. ALVAREZ, Marcos César. Apontamentos para uma história da criminologia no Brasil. In KOERNER, Andrei (org.). História da justiça penal no Brasil: pesquisas e análises. São Paulo: IBCCRIM, 2006, p. 130. 111

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recente burguesia comercial - à periferia da não tão recente economia capitalista mundial - e por uma elite política receosa pelas ameaças aos seus privilégios e propriedades. O advento, aos poucos, de centros urbanos maiores e mais complexos era, afinal, uma preocupação: escravos e não-escravos pobres apresentavam problemas especiais de controle, sendo preciso o estabelecimento de um conjunto de novas técnicas de repressão, em suplemento ao controle dos proprietários sobre os seus escravos aliadas, tais técnicas, à extensão desse controle também sobre o crescente número de libertos ocupantes dos espaços urbanos112. Era preciso manter a ordem113. Nesse contexto, a polícia se montou como um reflexo das ideias e das metas do grupo dominante na política nacional; demonstra-se o policiamento, assim, como tática eficaz de monitoramento e de controle de massas, apta a conter todo comportamento que não se encaixasse no esperado e adequado à sensibilidade das pessoas normais. Desde a sua gênese, portanto, as políticas de vigilância, controle e punição se fundaram sobre aspectos bastante discriminatórios, não apenas se voltando às “classes perigosas”, mas fazendo circular concepções e estigmas que impregnaram profundamente o senso comum ao longo do tempo114. Isso num contexto em que, aos pobres, restavam as pequenas trocas, o comércio de rua informal, os serviços mal pagos, a mendicância, o roubo. A eles cabia fazer o seu melhor em um espaço econômico organizado ainda, em grande parte, em torno da escravidão, inexistindo largas oportunidades para pessoas livres, não-letradas, sem habilidades - que não mecânicas -, negras, mulatas, estrangeiras. Os pobres eram ameaças vivas e constantes aos direitos de propriedade, além de identificados como subclasse indecorosa, suja, escandalosa, imoral. Sobre eles, todos os aparelhos de vigilância deveriam se voltar, submetendo-os a fronteiras de comportamento especialmente estabelecidas para repreendê-los em seus modos e em suas transgressões. A eles, milhares de sanções disciplinares, violências e prisões, pela mera violação da ordem pública, execráveis aos olhos da população ordeira, ainda que sem

112

HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro. California: Stanford University Press. 1993, pp. 272274. 113 “(...) a colonização foi o primeiro desenvolvimento do racismo como genocídio colonizador. A emancipação brasileira precisava desses discursos biopolítico para manter a ordem no Império tropical”. BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2. Ed., Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 176. 114 ALVAREZ, Marcos César. Apontamentos para uma história da criminologia no Brasil. In KOERNER, Andrei (org.). História da justiça penal... Cit., p. 132.

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vítimas115. A perseguição e a captura de poucos assassinos e ladrões, de fato, funcionava como a fachada de uma missão persistente de limpeza das ruas, organizada e regulada por mecanismos institucionais repressores, legitimados nos círculos elitizados. Com o fim da escravidão, como coloca Adorno, “a imagem de uma sociedade cindida entre senhores e escravos, sustentada em linhas de sociabilidade que preservavam a distância e a hierarquia, fundamentos de uma sociedade autoritária e desigual, dissipase. Em seu lugar, emerge uma imagem difusa de horror e medo: os pobres invadem o espaço urbano, comparecendo com suas ‘idiossincrasias’ - os maus costumes, a ignorância, a insubordinação, a incompreensão dos valores prevalecentes em uma civilização -, atrapalhando a marcha do progresso, depondo contra as virtualidades futuras da nação” 116. Destarte, tem-se no controle da multidão medida de urgência na sociedade urbano-industrial recém-formada, em que o modelo jurídico-político idealizado pelas elites se confronta com a reação de uma população excessivamente insubmissa117. E, diante desse quadro, o poder punitivo não pode se exercer na mera ocorrência de infrações, mas sim, deve passar a atuar diretamente sobre os indivíduos incontidos, através deles, não pelo que eventualmente tenham feito, mas sobre o que são, serão ou possam ser118. Nos moldes de Holloway, a polícia, em sua primordial tarefa de agente disciplinadora de escravos, deixa um persistente legado nas técnicas de controle policiais: uma permanência intrinsicamente bárbara e genocida. Paralelamente, na Academia, passa-se a dar forma a um discurso normalizador do saber jurídico; o criminoso, assim, em toda a abjeção de seus desvios de comportamento, é aquele que não se conforma com os critérios de normalidade, sejam estes naturais, sociais ou morais. Aos miseráveis opõese, assim, a tradição secular do controle pela força, que progressivamente abre alas a tecnologias de poder mais sutis, concomitantes à repressão violenta dos selecionados.

115

“O controle manifestava-se de diversas formas, como as rondas noturnas, que detinham sem maiores explicações negros que circulavam na cidade após o toque de recolher, os regulamentos sobre o porte de armas, a venda de bebidas alcoólicas, a proibição da prática da luta de capoeiras. A polícia utilizava ad hoc a criminalização da vadiagem, o que lhe permitia controlar a circulação dos indivíduos suspeitos e impor vigilância contínua sobre o comportamento dos indivíduos pobres”; KOERNER, Andrei. Punição, disciplina e pensamento penal no Brasil do século XIX. São Paulo: Lua Nova. 68, 2006, p. 219. 116 ADORNO, Sérgio. A gestão filantrópica da pobreza urbana. São Paulo em perspectiva, v. 4, n. 2, p. 09, abr-jun, 1990. 117 ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil. São Paulo: Método, 2003, pp. 61-62. 118 ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas... Cit., pp. 40-44.

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Nesse ínterim, em fins do século XIX e início do século XX, o saber jurídico se permeia de questões envolvendo desde o problema da convivência entre as raças, até a preocupação com o aumento da criminalidade em segmentos específicos da população. Houve até mesmo quem falasse, como o fez Paulo Egídio, em uma relação própria entre “progresso” e “criminalidade”, em que a sua marcha aparentemente paralela viria a ser determinada por leis quase científicas119. Abertas as portas, portanto, à entrada e ao estabelecimento de um “novo”

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método científico de combate à criminalidade. Afinal, como um saber normalizador, capaz de identificar, qualificar e hierarquizar - de forma pretensamente neutra - os fatores naturais, sociais e individuais envolvidos na gênese do crime e na evolução da criminalidade, a criminologia poderia transpor muitas das dificuldades que as doutrinas clássicas de direito penal, baseadas na igualdade ao menos formal dos indivíduos, não conseguiam enfrentar, em meio às transformações pelas quais passava a sociedade brasileira à época121. Já em termos de estilo, o que se tornará dominante na incorporação da antropologia criminal no Brasil é, especificamente, um ecletismo teórico, a partir do qual diversas teorias foram simplificadas e justapostas sem que houvesse nenhum trabalho intelectual mais rigoroso. O que se mostrou comum em todas elas, por outro lado, foi a busca de uma verdadeira moralização da sociedade, dentro de um amplo projeto político fundado sobre os ideais de ordem e de estabilidade122. De fato, aqui, o saber criminológico se viu mais valorizado por sua utilidade política e administrativa do que por sua exatidão científica. Pelos motivos mais diversos, médicos e juristas verão como decepcionantes os resultados obtidos acerca da produção de conhecimento sobre o crime, principalmente no que diria respeito à qualidade dos dados estatísticos alcançados. 119

EGÍDIO, Paulo. Estudos de sociologia criminal: do conceito geral do crime segundo o método contemporâneo. São Paulo Tipografia e Edição da Casa Eclética, 1900, p. 258. In ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas... Cit., p. 63. 120 Apesar de, no início do século XX, as ideias básicas da antropologia criminal já serem alvo de pesadas críticas no contexto europeu, foi de fato em torno da polêmica em torno das ideias lombrosianas que paulatinamente a criminologia se institucionalizou, tanto como campo de conhecimento quanto como campo de intervenção. E é, paradoxalmente, num momento de decadência de certa forma da escola italiana que se encontraram, nos países latino-americanos, “verdadeiros eldorados na nova escola”. ALVAREZ, Marcos César. Apontamentos para uma história da criminologia no Brasil. In KOERNER, Andrei (org.). História da justiça penal... Cit., p. 137. 121 ALVAREZ, Marcos César. Apontamentos para uma história da criminologia no Brasil. In KOERNER, Andrei (org.). História da justiça penal... Cit., p. 142. 122 ALVAREZ, Marcos César. Apontamentos para uma história da criminologia no Brasil. In KOERNER, Andrei (org.). História da justiça penal... Cit., p. 141.

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Em Cândido Mota, por exemplo, um dos grandes expoentes brasileiros na distinção da criminalidade segundo um critério de raça123, expõe-se a dificuldade encontrada em realizar pesquisa criminal no Brasil, visto que os contínuos cruzamentos e misturas raciais inviabilizariam a identificação precisa da contribuição dos tipos raciais para o incremento da criminalidade. Nestes termos, é construída a recepção da criminologia, enquanto saber normalizador, no debate jurídico brasileiro - voltado à etiologia do sujeito criminoso, considerado em sua anormalidade, seja ela em termos biológicos, sociais ou morais. A criminologia não permanece, destarte, como simples retórica cientificista sobre o crime, mas vem influenciar concretamente as políticas criminais locais. As recém-chegadas ideias criminológicas, nesse sentido, terão papel decisivo na aplicação das novas formulações: desde a diferenciação das “categorias de irresponsáveis” em João Vieira e Tobias Barreto, primordialmente, mas também em Viveiros de Castro, Clóvis Beviláqua, e nos já citados Cândido Mota e Paulo Egídio, propagandistas do naturalismo antropológico-criminal lombrosiano, até os desenlaces da sociologia criminal como base à compreensão da fraqueza moral dos criminosos. Dessa maneira, em prol dos ideais de defesa social, vai-se formando uma nova escola penal, de cunho deveras cientificista, como aparece em Viveiros de Castro. A teoria do delito, portanto, altamente embasada na antropologia criminal, trata de difundir como propostas o (i) tratamento das causas do crime; (ii) a classificação dos criminosos; e (iii) o tratamento da profilaxia e da terapêutica do delito124. Critica-se, aqui, a imutabilidade dos critérios de justiça e a questão do livre-arbítrio, vez que, como novos fundamentos de punir, teríamos a garantia da ordem pública, assolada pela temibilidade do delinquente. Por conseguinte, o fundamento da pena se desloca da ideia de responsabilidade, já que o “agente perigoso” deveria ser punido, por suas condições, quer fosse responsável, quer não. Afinal, ninguém deveria se expor ao sacrifício para o “divertimento dos loucos”

125

. Conjuntamente, destaca-se o importante papel exercido

pelo saber clínico, em face de uma política criminal de caráter classificatório e profilático 123

“(...) os latinos têm mais propensão às rixas, ofensas físicas e crimes contra a pessoa, os teutões e eslavos dedicam-se mais aos crimes contra a propriedade e ao caftismo, ao passo que, entre os pretos e pardos predominam os crimes contra a propriedade”. MOTA, Cândido Nazianzeno Nogueira da. A justiça criminal na capital do Estado de São Paulo. São Paulo: Tipografia a Vapor Espíndola, Siqueira & Cia., 1895. In ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas... Cit., p. 65. 124 Idem, pp. 84-87. 125 ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas... Cit., p. 93.

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- classificar para individualizar; individualizar para punir -, que expunha a então acreditada insuficiência do direito para lidar com o fenômeno criminoso. Destaca-se que a urgência na separação dos delinquentes e a preocupação com o caráter racial do crime se fizeram caminhos fáceis rumo à manutenção de um racismo institucionalizado no território brasileiro. Ora, não havia nada mais sonoro às elites que a afirmação da necessidade de “aperfeiçoamento da raça”; da diminuição do crime - e da consequente “regeneração social” - pela diminuição dos criminosos, sendo necessidade prévia a determinação de seus caracteres peculiares, que os diferenciavam dos indivíduos normais, puros em costumes e em moral126. Nessa esteira, é certo que a difusão da antropologia criminal e a concomitante cientifização do direito penal foram estratégias de controle social aptas à contenção das massas de indesejáveis. Em todos os seus desdobramentos discursivos e não discursivos, portanto, a sua práxis contribuiu de maneira relevante com o enraizamento de preconceitos e de estigmas há muito já conhecidos, seja a respeito do crime seja a respeito do criminoso. Confunde-se o “combate ao crime” com a visada normalização da sociedade, tarefa essa centrada na ideia de “moralização produtiva”, pode-se dizer. A educação dos deseducados, a cura pela internalização dos valores dominantes, o recorte estigmatizador da população trabalhadora pobre - e negra -, todos estes aspectos se fizeram presentes na economia política da defesa social que, conforme proferido por Cândido Mota, implicaria numa “prontidão permanente contra todos aqueles que ameaçam potencialmente ou efetivamente a sociedade” 127. A aplicação do saber penal em defesa da sociedade acaba por projetar a maximização dos aparatos de controle, permanecendo inalterados, contudo, os quadros de seletividade dos quais sempre se utilizaram. Torna-se clara, assim, a sua função real de controle de massas inconvenientes, permanecendo apenas no plano simbólico a tutela de interesses ditos sociais e gerais128. Ante todo o exposto, fato conclusivo é que, a despeito do declínio das ideias biodeterministas após o fim da Segunda Guerra Mundial, as ideias criminológicas e seus desdobramentos - tanto no campo do direito quanto no campo médico -, deixaram marcas 126

A criminalidade só deixaria de existir, enfim, quando “desaparecesse para sempre o homem que a germinou”. MOTA, Cândido, In ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas... Cit., p. 103 e ss. 127 A criminalidade só deixaria de existir, enfim, quando “desaparecesse para sempre o homem que a germinou”. MOTA, Cândido, In ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas... Cit., p. 149 e ss. 128 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 5. Ed., São Paulo: Saraiva. 2013, p. 186.

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significativas no ordenamento jurídico brasileiro, nas políticas de segurança pública e mesmo nas mentalidades dos operadores do direito dos administradores da ordem pública129. 2.2.3.1 Estudo nº1. Exame criminológico, função-psi e impedimentos à progressão de regime “Que o exame psiquiátrico constitua um suporte de conhecimento igual a zero é verdade, mas não tem importância. O essencial do seu papel é legitimar, na forma do conhecimento cientifico, a extensão do poder de punir a outra coisa que não a infração. O essencial é que ele permite situar a ação punitiva do poder judiciário num corpus geral de técnicas bem pensadas de transformação dos indivíduos”130.

Apresentado parcialmente nosso substrato teórico, o que se intenciona, aqui, é trabalhar a primeira parte empírica deste trabalho, a partir de uma análise que tomou por base um parecer técnico-científico assinado por esta autora, em parceria com outros dois estudantes da graduação, dois advogados e uma psicóloga, todos coordenados por Maurício Stegemann Dieter, Professor de Criminologia do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)131. Buscou-se trabalhar de forma crítica, no referido parecer, a exigência do exame criminológico para a progressão de regime, a partir dos frequentes requerimentos do Juiz da Vara de Execuções Criminais da Comarca de São Vicente, São Paulo (SP), nos autos de processos criminais com acusados patrocinados pela Defensoria Pública do Estado. Esta análise parte, portanto, do estudo dos laudos psiquiátricos apresentados como resposta a tais requerimentos, formulados por profissionais do Instituto de Medicina Social e de Criminologia do Estado de São Paulo (IMESC), juntados sobre a rubrica de “exame criminológico”. Ora, o exame criminológico nos parece ser uma das melhores ilustrações possíveis do que se pretendeu chamar a “função-psi”, enquanto disciplina de todos os indisciplináveis132. A análise pormenorizada dos laudos permitirá que se demonstre, assim, como ainda se sustenta em nosso sistema a pressão contínua de um poder que, 129

ALVAREZ, Marcos César. Apontamentos para uma história da criminologia no Brasil. In KOERNER, Andrei (org.). História da justiça penal... Cit., p. 146. 130 FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 17. 131 O citado parecer acabou por se tornar um artigo, sob o título “Laudos psiquiátricos, exame criminológico e progressão de regime carcerário: uma análise crítica”, assinado pelos mesmos autores e apresentado no II Encontro Brasileiro de Criminologia Crítica, em Vitória. 132 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., pp. 106-107.

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aliado ao saber-poder jurídico, não tem por objeto direto a falta, mas a virtualidade do comportamento do sujeito. Poder exercido através da intervenção sobre o comportamento, sobre o corpo, sobre o gesto, sobre o discurso, enfim, sobre a etiologia do indivíduo133, submetido ele àquele que, sendo o senhor da verdade, manipulará tudo o que o que for apresentado pelo examinado. A análise será feita, portanto, sob dois vieses, um legal, mais rápido e menos trabalhoso, e outro apoiado na crítica criminológica, que permitirá a passagem ao estudo concreto dos laudos, demarcando as devidas relações com o tema deste trabalho. Dito isso, cabe a nós, introdutoriamente, recorrer às atuais determinações presentes no ordenamento jurídico brasileiro acerca da aplicação do exame criminológico, a saber: (i) a Lei de Execução Penal (LEP) - lei 10.792/03 -, em especial no que se refere às alterações trazidas pela sua reforma, em 2003; (ii) a súmula 439, do Superior Tribunal de Justiça (STJ); e (iii) a súmula vinculante nº 26, do Supremo Tribunal Federal (STF). Em se tratando da Lei de Execução Penal, tem-se que, até o ano de 2003, a tutela do exame criminológico e de sua necessidade se dava nos seguintes termos: Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo Juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior e seu mérito indicar a progressão. Parágrafo único. A decisão será motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação do exame criminológico, quando necessário. (Grifo nosso). É de se notar, assim, que o exame criminológico viria a ser mencionado e permitido, desde que fosse sempre pautado pela estrita necessidade. Como requisitos à progressão, assim, nesses moldes, temos requisito objetivo de cumprimento de pena, adicionado o “mérito” do sentenciado e, ainda, a precedência de parecer da Comissão Técnica de Classificação e de exame criminológico como requisitos subjetivos. Em contrapartida, após a dita reforma, não se manteve qualquer previsão expressa sobre a exigência de fato do exame criminológico, mantidos apenas o requisito temporal objetivo, de cumprimento de 1/6 da pena privativa de liberdade, e o subjetivo de comprovação de bom comportamento carcerário. Seguem os termos legais atuais:

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FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 65.

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Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo Juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. (Grifo nosso). Ora, nesta esteira, ainda que não pareça clara a não exigência do exame para que se concretize o direito à progressão para regime mais benéfico, adicionam-se as duas súmulas supracitadas, que se colocam como se segue:

Súmula 439, STJ. Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada. (Grifo nosso).

Súmula vinculante nº 26. Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico. (Grifo nosso). Destarte, não há dúvidas de que se fala unicamente em possibilidade da determinação do exame criminológico, e nunca em exigibilidade. Disso resulta que a progressão de regime carcerário é direito subjetivo do acusado, e apenas os requisitos legal e expressamente exigidos devem ser considerados na sua concessão, restando a realização de exame criminológico restrita ao limite das singularidades do caso concreto. Só se realizará o exame em situações excepcionais, tendo os dispositivos mencionados o condão de impedir a sua requisição para todo e qualquer caso indiscriminadamente. O que se verá é que, nos casos aqui analisados, verifica-se uma tremenda banalização do exame, para casos que não despertam, a priori, maior atenção, além de os laudos trabalhados serem praticamente idênticos, associando o “demérito” dos presos unicamente às suas próprias conclusões, sem que haja qualquer violação dos deveres dispostos para os primeiros. A terapêutica se exerce, em cada um dos casos estudados, de forma regrada e sem qualquer simetria, sem nenhuma reciprocidade entre o indivíduo encarcerado, ora examinado, e o médico, fonte do poder e de domínio.

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Uma verdadeira penalização do “ser” do indivíduo - ou daquilo que se diz que ele é para que ele seja -, em detrimento do seu agir. A manipulação das convicções pessoais dos apenados, de seus valores morais, da não assimilação do caráter criminoso de seus atos, da ausência de arrependimento; é isso que compõe os laudos sobre os quais nos debruçamos. Segue a análise. Partiu este estudo, de cunho essencialmente qualitativo, de 19 laudos, referentes a indivíduos cujo tempo de permanência no cárcere variava, à época da pesquisa, entre um ano e doze anos. Desses laudos, apenas seis traziam manifestações favoráveis à progressão, contra outros 13 contrários. Daqui, dois pontos importantes decorrem: o primeiro diz respeito às infrações cometidas pelos indivíduos submetidos ao exame, quais sejam, roubos, na porcentagem de 34% dos casos; porte de arma de fogo de uso restrito, referente a 14% dos casos e tráfico de drogas, na proporção de 13%. Ainda, em 24% dos casos, os examinados estavam envolvidos em crimes diversos e, nos 15% restantes, não foi obtida essa informação. Quanto ao segundo ponto, importa-nos destacar que, em sua grande maioria, os pontos trazidos pelos psiquiatras responsáveis pelos laudos eram praticamente idênticos em quase todos eles, tendo sido possível montar dois grandes “grupos argumentativos”, que se repetiram incessantemente em todos os exames com demonstrações contrárias à progressão. São eles:

1. (i) Não houve diminuição do potencial criminógeno; (ii) não absorção de valores socialmente aceitos; (iii) critica rebaixada sobre o delito cometido; (iv) arrependimento originado da reprimenda recebida; (v) não assumir parcela de culpa e debitála a fatores externos.

2. (i) Mantém discurso egocêntrico e racionalizado, destituído de convicção e de ressonância afetiva; (ii) apresenta discernimento sobre seus atos, porém, com crítica comprometida em relação aos atos praticados, gravidade e consequências; (iii) pouca capacidade para tolerar contrariedades, frustrações ou privações; (iv) não denota valorização às regras e normas sociais ou consideração às demais pessoas, priorizando a satisfação pessoal; (v) descaso (embora com conhecimento) aos valores éticos, morais ou sociais ou com a vida humana; (vi) incapacidade de sentir e demonstrar culpa ou arrependimento.

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Assim, em todos os laudos que tiveram como conclusão a negativa da progressão de regime, os dizeres do médico foram pautados ou no primeiro, ou no segundo grupo, independentemente do histórico pessoal relatado pelo examinado. Claramente, as conclusões apresentadas não se articulavam às situações descritas, o revela, no mínimo, uma tremenda burocratização do trabalho dos psiquiatras envolvidos. De fato, a uniformização de análises que, enquanto individualizantes, em tese, não poderiam ser uniformizadas, demonstra o desequilíbrio total de poder nestes casos, em que não há compartilhamento, não há qualquer reciprocidade em nível informacional. A linguem não circula, não é desinteressada e veicula, independentemente do seu sentido, a vontade única e exclusiva do médico134. Veja-se, em todos os laudos, é possível reestruturar o curto caminho (per)seguido pelo psiquiatra em seus questionamentos, na medida em que todos os sujeitos, sem exceção, são avaliados pelos exatos mesmos aspectos: faz-se um breve histórico familiar, passa-se posteriormente à analise física do indivíduo - com destaque à impressão do médico acerca de sua higiene e de suas vestes -, anota-se a postura do examinado diante da prática do delito, questionam-se os seus planos. “Comparece ao exame com vestes, aparência e higiene adequadas. Consciência lúcida e atento à entrevista. Orientado no tempo, espaço e circunstâncias. Tem suficiente noção da natureza e finalidade deste exame. Postura e atitudes convenientes à situação”. (Trecho 01 - grifos nossos). Perguntas idênticas para respostas diversas, porém interpretadas igualmente pelo avaliador; não há qualquer interrogação sobre a verdade dos fatos relatados, o que se quer é que o indivíduo assuma subjetivamente a realidade manipulada pelo médico135, que restitua os seus fatos históricos como sintomas de existência, que se isente da responsabilidade moral - por mais que não se questione mais, formalmente, a responsabilidade no momento da execução - através da culpa. “Sem alterações do humor, mantendo-se linear e incongruente com o relato oral. Relato de fatos sem alterações nas 134

FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 182. “(...) o médico e aquele que vai manipular a realidade de maneira que o erro se torne verdade. É o intermediário que olha para a verdade e o erro e dá um jeito para que a forma da realidade baixe ao nível do erro para transformá-lo em verdade”. FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 163. 135

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manifestações afetivas (algo embotado afetivamente). Inteligência dentro dos limites da normalidade. Juízo e crítica algo rebaixados. Bom contato com o entrevistador. Postura compatível com a situação”. (Trecho 02 - grifos nossos). O exame criminológico nada mais é, em seu interior, que o meio de constituição de um horizonte de anomalias136 que se coloca sobre o examinado. Este, notadamente ignorado em sua dimensão “eu” e desconsiderado em todas as suas particularidades - o que se observa pelo uso de expressões extremamente amplas e conceitualmente questionáveis -, vê sua existência estabilizada dentro de sua prática tida por criminosa. O que acontece, na verdade, é uma série de dobramentos; o exame criminológico permite dobrar o delito, tal como é qualificado na lei, com toda uma série de outras coisas que não são o delito, mas sim, comportamentos, maneiras de ser, que vêm apresentadas como a causa, a origem, a motivação, o ponto de partida mesmo do delito137. O examinado “confessa”, praticamente: delimita-se um corpo biográfico formado por todo o sistema da família, do emprego, do registro civil. É todo esse corpus da identidade que se deve finalmente confessar138. “Questionado quanto aos fatos que lhe valeram a condenação, informa que ocorreram por no começo era de menor e de maior continuou e depois que o pai faleceu, a mãe estava precisando. Alega estar arrependido. Sobre suas pretensões futuras informa arrumar serviço e mudar de vida”. (Trecho 03 - grifos nossos). A apresentação dos laudos permite que se visualize o deslocamento do nível de realidade da infração, pois o que as condutas sobre as quais se debruçam não infringem de forma alguma a lei. Afinal, que lei proíbe que o agente seja afetivamente desequilibrado? Nenhuma lei impede os distúrbios emocionais, nem a formação de um orgulho pervertido. Estas são qualificações puramente morais. O que de fato esse tipo de exame constitui é um duplo psicológico-ético do delito. “Deslegalizada” a infração para que apareça por trás dela o seu duplo, ou seja, não

136

FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 354. FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 14. 138 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 199. 137

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o que faz dela um delito em sentido legal, mas sim, uma irregularidade em relação às regras morais139. Veja-se: “O periciado apresenta estruturação na criminalidade, aderência aos valores marginais, ausência de mecanismos contentores internos, prejuízos de autocensura, postura dissimuladora e discurso egocêntrico, racionalizado, destituído de convicção e de ressonância afetiva: apresenta discernimento sobre seus atos, porém, com crítica comprometida em relação aos atos praticados, gravidade e consequências”. (Trecho 04 - grifos nossos). Têm-se,

aqui,

verdadeiros

diagnósticos

que

buscam

reafirmar

a

responsabilização do sujeito a partir de suas características subjetivas, como se o exame criminológico fosse um instrumento cientifico apto a aferir a periculosidade, sempre baseado no “índice de contaminação” do examinado pelo crime. Um discurso falso, pretensamente científico que, ainda assim, carrega consigo o peso do verdadeiro, muito por conta - se não inteiramente - do indivíduo que fala. Ora, o saber-psi detém, senão da verdade em seu conteúdo, pelo menos de todos os critérios da verdade, sendo possível a sua associação à realidade propriamente dita, realidade esta que opera e sobrepõe140. A todo tempo, as perguntas se direcionam de tal forma ao interrogado que, analisados os laudos, já se sabe que as respostas dadas, uma a uma, não informam verdadeiramente o médico. Estas apenas servem como munição para o seu saber, e significam apenas no interior de um campo de saber que já está inteiramente constituído no médico141. “Demonstra pouca capacidade para tolerar contrariedades, frustações ou privações: não denota valorização às regras e normas sociais ou consideração às demais pessoas, priorizando a satisfação pessoal, mesmo em detrimento aos princípios básicos fundamentais, descaso (embora com conhecimento) aos valores éticos, morais e sociais ou com a vida humana; incapacidade de sentir e demonstrar culpa ou arrependimento, não reunindo no momento as condições subjetivas necessárias para progressão de regime e/ou de se conduzir sem supervisão direta, restrição ou contenção”. (Trecho 05 - grifos nossos). Patente a prescrição de que, para que se deixe viver, a vida deve ser vivida, higiênica e saudavelmente, de acordo com um paradigma previamente determinado. No 139

FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 15. FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 166. 141 FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 231. 140

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interior deste paradigma, através e ao redor dele, direito e medicina se apropriarão do corpo, da mente, da alma, da vida das pessoas - do seu presente, do seu passado e do seu futuro -, determinando o que para elas é melhor, ao mesmo tempo em que prescreve o proibido142. Reafirma-se: neste jogo terapêutico de ordens, a verdade nunca está de fato em jogo143. A partir da realidade biográfica que é retirada do examinado, instaura-se de uma vez por todas a qual ele tem de se identificar caso queria se curar. O indivíduo avaliado e examinado deve aceitar o seu tratamento sem protestar e, no momento em que o seu reconhecimento na identidade posta, que a operação de verdade se consuma144. O poder psiquiátrico domina, subjuga e confere êxito à empreitada do domínio, principalmente em seu sentido de direção da consciência, em termos de dar à realidade um poder materialmente coativo. No interior deste mecanismo disciplinar, o poder se valida como se fosse o poder da própria realidade. Aqui, encontram-se assim dispostas todas as funções-psi, da patológica à criminológica: todas intensificam o real, onde quer que seja preciso fazer a realidade funcionar como poder145. O interrogatório psiquiátrico, que move o exame criminológico, é essencialmente disciplinar, uma vez que vincula o indivíduo à sua identidade, obriga-o a se reconhecer no seu passado e em um número restrito de acontecimentos em sua infância. Dessa forma, o produto do exame nada mais é que uma confissão extorquida, que apresente sinais anunciadores da criminalidade patológica que se manifesta no sujeito146. O poder psiquiátrico entroniza a vida de um indivíduo como tecido de sintomas patológicos, sendo a sua prova uma perpétua prova de entrada nos sistemas punitivodisciplinares147. “Questionado quanto aos fatos que lhe valeram a condenação, informa que ocorreram porque “ambição”. Alega estar arrependido”. 142

GENELHÚ, Ricardo. O médico e o direito penal v. 1: introdução histórico-criminológica. Rio de Janeiro: Revan, 2012, pp. 30-35. 143 Não é em função de sua estrutura racional que a verdade do médico se impõe como verdadeira, mas sim, em função do sujeito que as produz. O relatório de peritos tem, assim como os relatórios da polícia, uma espécie de privilégio no sistema de justiça que se sobrepõe a qualquer outro relatório, na medida em que o seu estatuto de perito confere ao seu pronunciamento um valor de cientificidade. FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., pp. 10-11. 144 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., pp. 189-201. 145 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., pp. 218-236. 146 “Conte-me o que você é, conte-me a sua vida, conte-me o que se queixa a seu respeito, conte-me o que você faz e o que você diz, forneça-me sintomas, não para que eu saiba que doente você é, mas para que eu possa ser um médico diante de você”. FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 349. 147 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., pp. 352-357.

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(Trecho 06 - grifos nossos). “Acha que foi um erro que cometeu na vida, desde então sofreu bastante e está acabando de pagar sua dívida. Não tem pretensão de continuar praticando delitos, conseguiu casar e tem um trabalho. Não valeu a pena porque passou sofrimento na cadeira, passou dias de fome e dias isolado, sempre longe dos filhos e da família. Acha que não compensou”. (Trecho 07 - grifos nossos). Maximizado na instância judiciária, o poder psiquiátrico se utiliza da desqualificação de quem os produz. São noções encontradas perpetuamente nos textos, “incapacidade de sentir e demonstrar culpa”, “pouca capacidade para tolerar contrariedades”, “prejuízo de autocensura”, “discurso egocêntrico”, “não absorção dos valores socialmente aceitos”, “crítica rebaixada”. Tais noções trazem a função de repetir tautologicamente a infração, de modo a inscrevê-la e construí-la como traço individual. Dobrar o sujeito no personagem do delinquente, colocando a sua conduta como um estado de generalidade e intendendo mostrar, assim, que aquele já se parecia com seu crime antes mesmo de tê-lo cometido148. “Entendemos que não houve diminuição do potencial criminógeno, não absorvendo ainda valores socialmente aceitos, alegando arrependimento quanto aos fatos pelas consequências da reprimenda recebida, e apresenta crítica algo rebaixada sobre o delito cometido não assumindo sua parcela de culpa sobre os fatos que lhe valeram a condenação e debitando seus atos a fatores externos”. (Trecho 08 - grifos nossos). O exame criminológico faz funcionar o domínio da perversidade. A noção de perversão é o que permite costurar os conceitos médicos e judiciários, graças à reativação de categorias elementares da moralidade. O médico se torna, destarte, efetivamente um juiz, não no nível da responsabilidade jurídica dos indivíduos, mas no de sua culpa real149.

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FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., pp. 14-18. Interessante a representação, aqui, da culpa. O que se quer é que o examinado, em sua confissão, esteja “batendo à porta”, no limiar, reivindicando o seu lugar junto à sua sociedade, reivindicando a sua reintrodução na medida em que está fora. E, para tanto, requer-se de fato o reconhecimento do sujeito enquanto delinquente, através da manifestação do remorso e da vontade de ser reintegrado. Dizer a própria falta e manifestar-se como pecador: o sujeito examinado deve manifestar sua consciência em relação à sua culpa, mostrar a sua verdade e, ao mesmo tempo, apagar-se. Exige-se a penitência e, perversamente, mesmo que o interrogado demonstre arrependimento, como visto em diversos laudos, é entendido pelo médico que não houve de fato compreensão da culpa. Vide: FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., pp. 188-196. 149

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A decisão de punição não se volta ao sujeito jurídico de uma infração, portanto, mas a um sujeito que é portador de uma série odiosa e bem definida de traços de caráter150. Conclusivo, pois, encontrar neste gênero de discurso, propriedades importantes. A primeira é que, a serviço do biopoder, o poder psiquiátrico que se manifesta no instituto do exame criminológico pode determinar, direta ou indiretamente, uma decisão de justiça que diz respeito, no fim das contas, à liberdade ou à detenção de um homem. No limite, o poder que se exerce decide sobre a vida e sobre a morte do sujeito. A segunda, por sua vez, é a constatação de que a instituição judiciária munida de saber médico detém os discursos de sua verdade, discursos estes formulados por “aquele que sabe”, unicamente por seu status cientifico. Discursos, por fim, que podem matar e que, cotidianamente matam, enquanto presentes no âmago da instituição judiciária151. E no ponto em que se vêm encontrar a instituição destinada a administrar a justiça, de um lado, e as instituições qualificadas para enunciar a verdade, do outro; no ponto em que se encontram o tribunal e o cientista, onde se cruzam instituição judiciária e saber médico, nesse ponto são formulados enunciados pretensamente verdadeiros e que, curiosamente, colocam-se alheios a todas as regras mais elementares de formação de um discurso cientifico152. Um poder que não é nem o judiciário, nem o médico, mas o normalizador. Um poder que, na medida em que é impossível que se funde em verdade, só pode praticar algo como a defesa social. De um lado, a perversão; de outro, o indivíduo perigoso: aqui se funda em teoria a existência de toda uma cadeia ininterrupta de instituições médicojudiciárias. Aqui está, destarte, o núcleo teórico do exame criminológico153. Diante do exposto, há que se reforçar que o padrão normativo-disciplinar instaurado desde o século XIX está presente e permanece eficaz na contemporaneidade. As doutrinas médico-jurídicas associam sem cessar o racismo biológico à discriminação do sujeito para criar a figura social do delinquente, percebido como perigo real ou potencial à boa ordem. Como resultado: uma clara tendência a punir os mais vulneráveis à revelia de seus direitos cívicos e, por que não, humanos154. 150

FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., pp. 21-31. FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., pp. 06-07. 152 FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 11. 153 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 320. 154 GENELHÚ, Ricardo. O médico... Cit., p. 13. 151

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3. DA INSUFICIÊNCIA DO SABER-PODER DOGMÁTICO: TEORIAS DA PENA E MANUTENÇÃO DO STATUS QUO. 3.1 Sobre a ideologia Em meio a uma série de discursos de verdade que, independentemente de serem verdadeiros ou não, colocam-se como tal e se impõem sobre a realidade, faz-se necessária a compreensão da ideologia para que se chegue, enfim, à sua mecânica. Pretendemos, portanto, neste capítulo, seguir um breve (des)caminho que vai de Marx a Foucault para, munidos das definições aqui tratadas, seguirmos à crítica do saber-poder jurídico-penal dogmático em sua manifestação oficial. Em Karl Marx, a estrutura de qualquer sociedade vem constituída de dois níveis, a saber: a infraestrutura e a superestrutura. A primeira se formaria pela base econômica da sociedade em questão, ou seja, pela unidade das forças produtivas e das relações de produção. A superestrutura, por sua vez, seria formada também por dois níveis distintos, quais seja, o nível jurídico, composto pelo direito e pelo Estado, e o nível ideológico, constituído por diferentes ideologias morais, jurídicas, políticas, religiosas. Assim, a infraestrutura seria aquela a determinar, enquanto base, toda a estrutura social, suportando e constituindo a superestrutura155. Nesse sentido, o conceito de ideologia em Marx passa, necessariamente, pela noção de aparência; afinal, a ideologia seria propriamente uma aparência distorcida socialmente produzida, resultado de uma gama de práticas sociais. Ao mesmo tempo em que faz deformar a realidade, adulterando a consciência, a ideologia expressa essa mesma realidade, encerrando um duplo aspecto: a captação do real e o seu mascaramento. Representaria, assim, algo como um erro cognitivo, a partir de um conjunto de práticas que escondem sua própria razão de ser e invertem a realidade social, através da produção de abstrações sucessivas acatadas pela sociedade - que acaba por esconder a essência de si própria156. Nesta concepção, a ideologia se opera, portanto, por meio de mecanismos recorrentes, como as inversões, ideais às suas finalidades: naturaliza-se indevidamente o que é, na verdade, historicamente construído; generaliza-se o que específico, mascarando os interesses particulares de classe; pretende-se uma autonomia inexistente; e,

155

GARCIA, Agnaldo; SOUZA, Eloisio Moulin de. Um diálogo... Cit., p. 04. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. The German Ideology. 3. Ed., Moscow: Progress Publishers. 1976, pp. 29-42. 156

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principalmente, apresenta-se uma dimensão normativa simbólica que não se realiza faticamente. A falsa consciência no interior de um sistema de dominação entre as classes levaria à alienação, responsável por aprisionar a essência humana aos mecanismos de repressão, por meio da atuação de um sem número de processos históricos, econômicos e sociais. O rompimento com o laço ideológico, destarte, promoveria no homem a sua reconciliação consigo, como um reencontro com a sua natureza e a sua origem. Em Foucault, entretanto, apesar de não se negar por completo a ideologia, não há congruência na sua utilização como forma de análise, recusando-se o autor a realiza-la nestes termos. Em seu entendimento, não caberia fazer com que os homens enxergassem o que não são capazes de verem sozinhos; na verdade, caberia aos próprios sujeitos encontrar, por si próprios, o projeto, as táticas, os alvos de dominação, uma vez que cada indivíduo se constitui pelas práticas sociais que o marcam157. Assim, a noção de ideologia dominante deve se deslocar para a de saberpoder e esta, por sua vez, desloca-se para a ideia de um governo pela verdade, mesmo que por meio de inverdades. A atitude do autor, por conseguinte, não é a de suspender todas as certezas, mas sim, partir da premissa de que nenhum poder é dado de fato, nenhum poder é inconteste e nenhum poder, destarte, deve ser aceito logo de saída. Não há qualquer legitimidade intrínseca ao poder; a sociedade civil é história e o contrato social é blefe, e o que se sustenta é a não-necessidade, a princípio, de todo poder, qualquer que seja158. Tão logo, a luta não deveria se confundir com uma “tomada de consciência”, já que há muito a consciência como saber está adquirida pelas massas e a consciência, como sujeito, está ocupada pela classe dominante. A luta deve ser contra o poder, contra o governo dos homens em seus espaços mais invisíveis e insidiosos159. Nossa proposição: uma (an)arqueologia dos saberes, pautado na nãonecessidade essencial de todo poder. O que implica que não se faça uma divisão binária entre o que seria a ciência, de um lado, intrinsecamente verdadeira, e o que seria a ideologia. D’outra maneira, leva-se em consideração a multiplicidade dos regimes de 157

“Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores de censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade”. FOUCAULT, Michel. Microfísica... Cit., p. 131. 158 FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 72. 159 FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 73.

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verdade existentes, junto ao fato de que todo regime de verdade, seja ele científico ou não, comporta formas específicas de vinculação da manifestação do verdadeiro ao sujeito que a opera160. A partir daí, a ciência se coloca e se define como apenas um dentre os muitos outros regimes de verdade possíveis e existentes, o que nos leva a questionar como o regime de verdade, mesmo o não verdadeiro, constrange pouco a pouco os homens, a partir não de sua essência, não de seu grau de “verdadeiro de pleno direito”, mas da força que se presta ao “é verdade”. Passagem do verdadeiro apartado do falso, rompido do falso, para uma história da força da verdade - e aos vínculos pelos quais os homens se amarram a ela quando de sua manifestação161. Outra cautela a ser tomada, ademais, diz respeito à referência ao saber-poder como forma de manutenção de estruturas. Apesar da escolha do termo, salienta-se que a ideia de manutenção dos discursos de verdade dominantes em seu devido lugar não se dá de maneira estática. Não haveria conservação em sentido estrito, visto que o saber-poder é necessariamente inventivo, e detém em si os princípios mesmo de sua transformação e inovação162. Sua dinâmica de renovação é o próprio princípio da manutenção. Feitos os esclarecimentos anteriores, assim, passaremos à crítica do saberpoder-dogmático posto, com pretensões de neutralidade, como ciência apta a fundamentar as finalidades da pena em bases puramente racionais. Assim, o questionamento da pena que se segue não pretende chegar a uma essência do que seria a pena163; o que se quer é alocá-la na rede de poderes que a mantém, compreendendo em que níveis se conecta, a que estruturas serve. Concluir, por fim, que apesar de não buscarmos o que a pena é, sabemos que seu discurso dogmático de base se refere, na verdade, a algo ela certamente não é.

3.2 O discurso de verdade dogmático das finalidades da pena

“Em sociedades desiguais, aplicar penas criminais não significa quantificar punições, mas administrar conflitos ideológicos e 160

FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., pp. 73-74. FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 74. 162 FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 45. 163 Uma vez que se deve desconfiar da noção de essência, da noção de natureza humana - esta é sempre um constructo no interior da luta pelo poder. ELDERS, Fons. In CHOMSKY, Noam; FOUCAULT, Michel. Natureza humana: justiça vs. poder - o debate entre Chomsky e Foucault. Editado por Fons Elders. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014. 161

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emocionais conforme parâmetros autoritários ou democráticos de controle social. Absolver ou condenar acusados criminais não são decisões neutras, regidas pela dogmática como critério de racionalidade, mas exercício de poder seletivo orientado pela ideologia penal, quase sempre ativada por estereótipo, preconceitos e outras idiossincrasias pessoais (...)” 164.

Quando se limita o estudo do direito penal à sua feição dogmática, restringindo-o no interior de sua lógica jurídica clássica, o que se faz é partir do pressuposto de que suas normas se aplicam igualmente ao conjunto da população. Entretanto, o que se defende, aqui, é a insuficiência do saber-poder dogmático, no sentido de que não há materialmente uma ordem social que seja justa, tampouco existem bens jurídicos gerais e comuns a serem protegidos. Pelo contrário, deve-se abandonar a ilusão de que a penalidade reprime delitos e que, nesse papel, pode ser severa ou indulgente, voltar-se para a expiação ou procurar obter uma reparação, aplicar-se em perseguir o indivíduo ou em atribuir responsabilidades coletivas. Os sistemas punitivos só podem ser analisados em concreto e não podem ser explicados unicamente pela armadura jurídica que carregam165. A pena organiza a marginalia. Como coloca Cirino166, “a proteção seletiva de bens jurídicos dos grupos sociais hegemônicos pré-seleciona os sujeitos estigmatizáveis pela sanção penal” - especialmente no que toca aqueles contingentes marginalizados do mercado de trabalho e do consumo social, como sujeitos privados dos bens jurídicos econômicos e sociais protegidos pela lei penal. O saber dogmático configura-se, dessa forma, como verdadeiro poder que, enquanto tal, é força a serviço de uma ideia167. Desta feita, não nos parece correta a análise do discurso penal que ignora os elementos de poder, elementos esses que, justamente, denunciam o saber político que compõe, direciona o direito. A dogmática penal deve ser desnudada em seu aspecto controlador, configurador positivo da vida social, visto que configura uma técnica de poder. Há que se entender que, por mais que se atribuam funções à pena criminal de cunho manifesto, declarado -, tais funções são produtoras de realidade, e aproveitam diretamente à gestão das populações. Passemos, assim, a uma rápida construção do discurso oficial, para redefini-lo em sua dimensão latente.

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SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal... Cit., p. vi. FOUCAULT, Michel.Vigiar e punir: nascimento da prisão. 39. Ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 24. 166 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal... Cit., p. 11. 167 BURDEAU, Georges. L’État. Paris: Seuil, 1970, p. 25. 165

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No caso da pena criminal, o discurso doutrinário oficial de sua teoria se constrói na perspectiva de suas funções declaradas, quais sejam, as funções retributivas da pena (teorias absolutas) e aquelas ditas preventivas (teoria relativa).

3.2.1 Teorias retributivas Em sentido absoluto, a pena, como retribuição, aplica-se em expiação da culpabilidade, reconhecida a sua imprescindibilidade enquanto forma de se apagar tanto o crime quanto suas marcas da consciência coletiva - e não da do indivíduo, verdadeiramente168. A expiação seria aliada, assim, à restauração da ordem jurídica interrompida. Destacam-se, nesse contexto, dois defensores célebres da retribuição enquanto função da pena criminal: Kant e Hegel. O primeiro faz conceber a pena em sua vertente retributiva na medida em que comporia ela um imperativo categórico, como máxima passível de ser convertida em lei universal169. A justiça retributiva seria, ela mesma, lei inviolável, segundo a qual todo aquele que mata deve morrer, para que cada um receba o valor de seu fato e a culpa o sangue não recaia sobre o povo que não puniu seus culpados170. Ainda, adiciona-se que a obediência à lei que alguém prescreve para si mesmo, resguardada a autonomia da vontade, seria a própria liberdade171. A desobediência à lei seria, pois, um atentado à liberdade e à autonomia do próprio indivíduo que, do ponto de vista racional, estaria plenamente de acordo com a sua punição172. Atribui-se a pena pela simples razão de o indivíduo haver delinquido; afinal, jamais um homem poderia ser tomado como instrumento dos desígnios de outro. 168

RODRIGUES, Anabela Miranda. A determinação da medida da pena privativa de liberdade. Coimbra: Coimbra Editora. 1995, pp. 158-160. 169 A lei prescrita pelos sujeitos para si mesmos - afirmando-se autônomos - não é, pois, uma lei particular, mas sim, incondicional, categórica e universal. SAFATLE, Vladimir. A forma institucional da negação: Hegel, liberdade e os fundamentos do Estado Moderno. Kriterion: Belo Horizonte, nº 125, jun./2012, p. 159. 170 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal... Cit., p. 462. 171 Em consonância, sustenta Murphy: “Laws may require of a person some action that he does not desire to perform. This is not a violent invasion of his freedom, however, if it can be shown that in some antecedent position of choice he would have been rational to adopt a Rule of Law (and thus run the risk of having some of his desires thwarted) rather than some other alternative arrangement such as the classical State of Nature"; MURPHY, Jeffrie. Marxism and retribution, in A. Duff & D. Garland, A reader on punishment. Oxford: Oxford University Press. 1994, p. 52. 172 Rawls aperfeiçoa esta assertiva, na medida em que vê o contrato social não como um fato histórico (com o que coaduna Kant), mas sim, como um modelo de decisão racional. Assim, um homem racional nunca consentiria com uma prática que levasse benefício a outro à custa do primeiro. Por este raciocínio, como o homem só é livre e autônomo quando racional, são as vontades do homem racional que devem ser respeitadas, em consideração à sua liberdade e à sua autonomia; MURPHY, Jeffrie. Op. Cit., pp. 55-56.

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Hegel, em seu turno, justifica primariamente a pena, enquanto retribuição, tomando por base o direito enquanto “vontade livre”, sendo o ordenamento jurídico a própria liberdade efetivada173. A pena encontraria justificação, assim, na necessidade de se restabelecer a vigência da vontade geral, simbolizada na ordem jurídica - negada, por sua vez, na vontade autônoma do delinquente. Nessa medida, o crime viria definido como negação do direito, sendo a pena, propriamente, a negação da negação e, portanto, reafirmação do direito. Negar a negação seria a única forma de se chegar, portanto, à nova afirmação da vontade geral, de modo a reestabelecer a ordem jurídica quebrada. Por outro lado, a crítica jurídica do discurso retributivo da pena criminal, produzida por adeptos da prevenção especial e geral, tem por objeto a natureza expiatória da retribuição, na medida em que a compensação de um mal por outro mal configura mero “ato de fé”, não sendo meio democrático tampouco científico de punição. Ademais, o mito da liberdade é dado indemonstrável, pressuposto, para os retribucionistas, para a aferição da culpabilidade do autor. Tal impossibilidade leva, por conseguinte, à assunção da culpabilidade não enquanto fundamento, mas como limitação da pena; deu-se prosseguimento, nesse sentido, ao desenvolvimento de uma nova série de teorias.

3.2.2 Teorias preventivas Para aquelas denominadas teorias preventivas da pena, não haveria que se falar em retribuição do delito, voltando-se a atenção aos fins preventivos associados, aqui, ao ideário da punição. Basicamente, o que determinaria a imposição de uma pena, nos termos de sua função, seria a não reincidência do apenado. As teorias preventivas acabaram por tomar duas vertentes: a prevenção geral e a prevenção especial. Senão vejamos: a chamada prevenção geral, que aparece nos estudos de Bentham, analisa a pena como meio de controle da violência, no sentido de que a certeza de sua aplicação174 bastaria para diminuir essa violência, para evita-la em nível geral. A simples cominação penal, a mera ameaça da pena, serviria de aviso aos desavisados - ações injustas têm reação; aplicada a pena, está cumprida a ameaça feita.

173

SAFATLE, Vladimir. Op. Cit., p. 150. “A punição, mesmo em suas formas mais repulsivas, perde seu caráter odioso quando existe a certeza que ela será aplicada: quando sabe que ela é certa, nem mesmo o mais duro facínora vai querer se expor à possibilidade de sua aplicação”; BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. 2. Ed., Belo Horizonte: Autêntica. 2008, p. 35. 174

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Igualmente, a prevenção geral se dispõe em dois grandes grupos, um de feição negativa e outro, cronologicamente mais tardio, de feição positiva. Aqui, a prevenção geral negativa seria aquela apta a criar no ânimo do agente certo tipo de “coação psicológica”, como aparece em Feuerbach175, por meio da qual se conteriam condutas delitivas antes mesmo de sua realização176. Já a prevenção geral positiva seria direcionada a confirmar a vigência da lei penal, bem como a sua prontidão para incidir em casos concretos. A pena teria o condão, assim, de orientar a população acerca do cumprimento das normas em geral. Autores como Welzel e Roxin definem a prevenção geral positiva - também chamada teoria da integração ou da prevenção, simplesmente - como demonstração da inviolabilidade do direito, necessária à conservação da confiança na ordem jurídica. Outros autores como Jakobs, em contrapartida, absolutizam a função de prevenção geral positiva, concebendo uma teoria totalizadora da pena, sustentando que esta teria a função de afirmar a validade da norma violada por meio da negação da infração177. Dessa forma, a função positiva da prevenção geral não escapa aos postulados tipicamente contratualistas, quais sejam, o de aceitação das normas sociais por todos os membros da sociedade - como se a qualidade de cidadão de fato se estendesse a todos - e a aceitação da punição, por conseguinte, por decorrência da infração destas mesmas normas178. Em seu turno, a prevenção especial, teoria difundida com maior intensidade entre os séculos XIX e XX, pauta-se pela aplicação da pena diretamente sobre o delinquente, sendo a sua função atuar exclusivamente sobre ele - com o objetivo de que este, em particular, não tornasse a delinquir. A sentença penal deveria ser individualizada, dessa maneira, conforme o necessário e suficiente à prevenção do crime. Tal como ocorre no programa da prevenção geral, a função preventivoespecial da pena também se desenvolve sob duas facetas: a prevenção especial negativa, incidente sobre aqueles “incorrigíveis”, levaria à neutralização do criminoso, incapacitando-o em suas práticas criminosas; por outro lado, a prevenção especial positiva trazia consigo o ideal da correção, da ressocialização, da reeducação do 175

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal... Cit., p. 467. As principais críticas, neste ponto, eram referentes à ineficácia inibidora da do rigor da execução penal na medida em que não seria a gravidade, mas a o risco/probabilidade da punição que desestimularia a prática de crimes -, e, ainda, à falta de um critério limitador, o que transformaria a prevenção geral negativa em verdadeiro terrorismo estatal. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal... Cit., p. 468. 177 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal... Cit., pp. 468-469. 178 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal... Cit., p. 469. 176

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apenado179. Os juízes, em sua sentenças, estariam livres de um verdadeiro “mal-estar”, desonerando-se da ideia de punição - “o essencial da pena que nós, juízes, infligimos, não creiais que consista em punir; o essencial é procurar corrigir, reeducar, curar” 180. A crítica jurídica que foi posta é a que afirma que o Estado não teria o direito de melhorar as pessoas segundo os seus critérios morais próprios, não podendo o condenado ser compelido ao tratamento penitenciário. Ademais, o conhecimento generalizado da ineficácia corretiva da pena privativa de liberdade - nossa “pena por excelência” -, a constatação de todos os seus inconvenientes, estaria aqui encoberta pelo questionamento simplista de qual seria outra solução possível, além desta completamente detestável181.

3.2.3 Teorias unificadas As teorias conhecidas por unificadas foram as responsáveis por uma tentativa de agrupar os fins da pena - expostos nas teorias isoladas - em um conceito único, recolhendo os aspectos mais destacadas daquelas anteriormente tratadas. A retribuição e a prevenção seriam, portanto, distintos aspectos de um mesmo e complexo fenômeno, sendo que o seu tratamento apartado era o que impedia a superação de suas deficiências. A pena representaria, portanto, a retribuição do injusto realizado; a prevenção especial positiva mediante a correção do autor; a prevenção especial negativa como segurança social; a prevenção geral negativa enquanto intimidação de potenciais criminosos e, por fim, a prevenção geral positiva como reforço da confiança na ordem jurídica182. Destarte, partiu das teorias unificadas a busca de uma construção que tornasse possível aglutinar os fins retributivos e preventivos da pena, a partir de uma definição precisa dos vários estágios da concretização da lei penal, a saber, a cominação, a aplicação e a execução. As ideias de prevenção deveriam ser centrais aos dois últimos estágios e, no que diz respeito à cominação, a formulação teórica da retribuição desempenharia um papel limitador das exigências da prevenção, a partir dos conceitos de culpabilidade e de proporcionalidade. No ordenamento jurídico brasileiro, o Código Penal claramente consagra as teorias unificadas, determinando a aplicação a pena conforme seja necessário e suficiente 179

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal... Cit., p. 465. FOUCAULT, Michel. Vigiar... Cit., p. 15. 181 FOUCAULT, Michel. Vigiar... Cit., p. 218. 182 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal... Cit., p. 470. 180

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para reprovação e prevenção do crime, tal como disposto no artigo 59 deste dispositivo183. Reprovação, aqui, enquanto retribuição da culpabilidade e prevenção, por sua vez, abrangendo tanto a neutralização e correção do agente infrator quanto a intimidação geral e a manutenção da confiança na ordem. Por fim, a crítica jurídica que aqui se coloca é que, apesar de formuladas com intenção de saneamento, as teorias unificadas nada mais são que a justaposição de concepções bastante distintas do fenômeno da pena, o que não só levaria a um prejuízo lógico quanto poderia estender de alguma maneira o âmbito de aplicação penal convertida em meio de reação apto a qualquer emprego. Feitos estes apontamentos, traçado o caminho em direção ao que a pena não é. Que se abandonem a prolixidade e o zelo: passemos à delimitação de suas funções positivas.

3.3 Das finalidades latentes: a pena e sua referência perpétua a outra coisa que não ela mesma184 Está fora de cogitação que uma punição faça expiar um crime, a não ser de maneira metafórica. Está fora de cogitação que uma punição faça que um crime não tenha existido, já que existe. Em compensação, o que poderá ser anulado são todos esses mecanismos de interesse que suscitaram, no criminoso, esse crime, e que poderão suscitar, nos outros, crimes semelhantes185. Fala-se em uma economia do poder de punir, em que o interesse de um crime se coloca em sua integibilidade, em sua racionalidade. A punição é função social complexa e não se dá em mecanismos simplesmente negativos, repressivos de poder. Enquanto técnica de poder, a realidade penal apresenta uma série de efeitos positivos e úteis que ela tem por encargo sustentar186. Dessa forma, foi preciso chegar ao que a pena não é para, posteriormente, por meio de uma crítica interna, desnudá-la em seus efeitos positivos de poder - para além dos negativos, que lhe são concomitantes. O que se busca é situar a pena e, essencialmente, a pena privativa de liberdade, não como um dado natural posto, como uma instituição apta a gerir os problemas sociais; mas sim, como uma construção, sempre articulada a uma

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SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal... Cit., p. 471. FOUCAULT, Michel. Vigiar... Cit., p. 26. 185 FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 97. 186 FOUCAULT, Michel. Vigiar... Cit., pp. 25-27. 184

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dada especificidade histórica, fracassada em ser o que não é e triunfante, por outro lado, em sua formulação enquanto poder disciplinar, enquanto governo dos homens. Ora, os fins penológicos presentes nos discursos acríticos, em si mesmos, não conseguem explicar concretamente um sistema punitivo. Do contrário, a pena traz significações que independem do crime e da dinâmica da criminalidade; sua função não passa pelo agir em benefício de toda uma sociedade187, nem pela reintegração do condenado, tampouco há de fato um sujeito abstrato de direitos e deveres sobre o qual recai a pena. Isso é apenas o que as agências que dominam o poder querem que saibamos, é o que elas nos deixam saber, é apenas a parte legível do discurso188. A pena recai sobre um sujeito determinado, selecionado, estereotipado previamente pelas agencias de programação criminalizante. Seria ingenuidade, se não hipocrisia, acreditar que de fato a lei é de todos, feita por todos para todos. Na verdade, a lei - de que decorre a pena - é feita por alguns e se aplica a outros; obriga a priori a totalidade dos cidadãos, mas se dirige essencialmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas. Nas palavras de Foucault, nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um de seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem189. A pena, destarte, não existe nos moldes anteriormente elencados. O que existem são práticas punitivas específicas, dentro de um dado marco histórico, no interior de um respectivo sistema de produção - que tende a se utilizar de formas de punição que correspondam, por sua vez, às suas relações produtivas190. Logo, a pena, enquanto fenômeno social que só se analisa concretamente, não se desliga do processo de produção; e a pena de prisão é, verdadeiramente, uma fábrica de sujeitos. Nesse sentido, o caminho foucaultiano nos leva a relacionar a funcionalidade da pena, nas sociedades modernas, à emergência do poder disciplinar. O poder de punir, concretizado na civilizada pena de prisão, serviria como veículo de adestramento, a partir da investidura do corpo dos mecanismos de poder, que atuariam através dele para esquadrinha-lo, retirando produtividade das suas forças. Os efeitos positivos da prisão,

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“A sociedade no seu conjunto existe apenas na imaginação dos juristas”. PASHUKANIS, Evgeny Bronislavovich. Law and the violation of law, in Law and Marxism. London: Pluto Press, 1989. 188 GENELHÚ, Ricardo. O médico... Cit., p. 54. 189 FOUCAULT, Michel. Vigiar… Cit., p. 229. 190 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 19.

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resultantes de suas funções ditas latentes, configurariam, portanto, uma tática política de dominação que viria a definir essa moderna tecnologia do poder de punir191. Logo, a referencia do sistema de justiça criminal, consolidado na pena, a algo que se sabe não ser verdadeiro; a formação isolada de saberes jurídico-dogmáticos acerca das finalidades da pena; a sua instrumentalização como forma de se legitimarem as instancias punitivas de controle; tudo isso constitui uma engrenagem apta a validar os procedimentos de submissão política do corpo, junto à manutenção como está de um sistema de produção baseado na transformação do indivíduo em força útil. Prisão-castigo e prisão-aparelho; mostra-se a pena privativa de liberdade em seu duplo funcionamento: jurídico-econômico de um lado, técnico-disciplinar de outro192. Dessa maneira, as finalidades centrais à imposição da pena versariam sobre a pretensão de transformar o indivíduo violento, agitado e irrefletido em uma peça capaz de desempenhar o seu papel, no seio do sistema de produção da vida material, com perfeita regularidade193. No entanto, ressalta-se, aqui, que a análise da aplicação da pena no Brasil, consideradas as suas finalidades, deve necessariamente levar em conta que o processo de transformação de nossos dispositivos de poder se deu de forma diversa do ocorrido nos avançados países industrializados europeus. É certo que a emergência da disciplina no Brasil vai requerer que se pensem certas especificidades, na medida em que não se sustenta que a normalização nos alcançou de forma abrangente, generalizada, tampouco o fez a industrialização. Em contrapartida, não se trata de diminuir a importância desses mecanismos194. De fato nosso sistema de justiça incorporou a tecnologia normalizadora, especialmente quando da entrada da criminologia nos espaços de discussão195. Entretanto, o que nos é peculiar é a combinação mais acentuada de espaços de vigência da norma e da disciplina, junto a espaços de clara repressão, exclusão e violência explícita. O esquadrinhamento social, efeito característico da tomada pelas disciplinas, não se operou no território brasileiro de maneira tão acabada quanto nos países que nos exportaram tais

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FOUCAULT, Michel. Vigiar... Cit., p. 27 e ss. FOUCAULT, Michel. Vigiar... Cit., p. 219. 193 FOUCAULT, Michel. Vigiar... Cit., pp. 229-230. 194 RAUTER, Cristina. Criminologia e subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 19. 195 Vide item 2.2.3 deste trabalho. 192

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métodos. Os métodos pátrios foram diversos, e marcados pela convivência, no nível da práxis social, de novas e velhas estratégias196. Assim, forma-se um espaço de esquadrinhamento mais ou menos generalizado onde convivem outros, de repressão violenta e sem sutilezas, que seguem sendo a forma de que se valem as instâncias de dominação - dentre as quais se destaca o aparato estatal - para a manutenção do status quo. Todavia não sejam esses dizeres interpretados como uma declaração de fracasso da pena e da prisão; sua suposta falência é sucesso mascarado. A prisão se mantém como peça chave do sistema punitivo, a despeito de suas falhas aparentes e de todas as críticas negativas que recebe, em decorrência do caráter secreto de sua própria irracionalidade197. Ante o exposto, nesse contexto repressivo-disciplinar e contrariamente a qualquer perspectiva de correção, de reeducação, de reintegração ou de contenção da criminalidade, elencam-se alguns aspectos de sucesso da dinâmica funcional do sistema punitivo brasileiro. Em sua função expurgatória, a pena se dirige diretamente à captação da marginalia, da ralé social, colocando-se a prisão como meio eficiente de governo de parcelas não assimiláveis e bem definidas da população, brutalizadas em sua pobreza, em sua cor e em seus modos. A pena serve à regulação da miséria e a manutenção do cárcere, enquanto gueto judiciário, serve ao armazenamento dos refugos do mercado198 atrás de seus muros, escondidos em prol da limpeza [de classe] do espaço público. Em sua função de desempoderamento, a pena se faz associar à debilitação intencional dos apenados, tornados mais vulneráveis em sua vulnerabilidade. O aparato punitivo, essencialmente o carcerário, atinge violentamente a esfera de liberdade pessoal e a incolumidade física e psíquica dos indivíduos, que em meio à segregação forçada, à quebra de laços familiares e comunitários, à imposição de obediência e à exigência de conformismo, ficam quase que inteiramente destituídos de quaisquer chances de reintegração199. Já a função de estigmatização, pela qual responde a pena, é relativa à produção e à reprodução do estigma da criminalidade, que se impõe sobre o indivíduo 196

RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 23. MATHIESEN Thomas. O caminho do século XXI: abolição, um sonho impossível? In Conversações Abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo: IBCCRIM. 1997, p. 275. 198 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2. Ed., Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 12 e ss. 199 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição... Cit., pp. 215-217. 197

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captado e o torna, automaticamente, desenquadrado, desumano, anormal, imoral, patologicamente dependente200. A violência é intrínseca à privação da liberdade; o cárcere concentra insegurança e precariedade, e invisíveis os apenados que nele entram e dele saem desamparados, não só destituídos de seu conjunto de identidade como, paralelamente, instituídos em um espiral de drástica rotulação. Apontamos uma quarta função, a função de distanciamento, referente à verdadeira barreira social que se impõe entre o indivíduo rotulado como criminoso e a sociedade. A exclusão não é momentânea e, em tantos casos, tampouco revogável, tendendo a ser uma via de mão única. É pouco provável que “se reconstruam as pontes queimadas no passado”

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. Há pouca ou nenhuma assistência destinada ao egresso do

sistema prisional durante o seu processo de reajustamento, situação que se impõe como um grande paradoxo frente à lógica mercadológica de “incorporação ou morte”. Ora, não só o apenado é deixado à revelia; seja pelo “risco” que envolve a sua contratação, sendo ele pessoa perigosa, seja pela falta de qualificação técnica, o egresso não consegue sequer ser empregado, no exato momento em que aparecem seus antecedentes202. Ainda, uma quinta função, que colocamos como função de desvio, convida à reflexão sobre como a pena parece se preocupar em demasia com os chamados “crimes de rua”, desviando o foco de outras infrações recorrentes - e não relacionadas àquela população pega a todo o momento pelo “radar” da criminalidade. Não se pode deixar escapar a verdadeira gestão diferencial dos ilegalismos que se impõe, na medida em que a lei penal, aliada ao aparelho judiciário, é instancia que possibilita e assegura as condições de exploração que grupos de indivíduos exercem sobre outros na sociedade203. A clientela preferencial do aparato de punição é determinada, a (in)justiça penal é seu mecanismo dominação e a prisão, por sua vez, configura-se como instituição central de todo esse estratagema - vez que reprime a criminalidade das classes inferiores e imuniza aquela ligada às elites de poder econômico e político204. Quanto ao que denominamos função de ação, trata-se de colocar a questão punitiva como “dividendo eleitoral”, em prol de uma aparência de “atividade devida” por parte do Estado. O direito penal assume, deliberadamente, uma feição simbólica, que visa

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WACQUANT, Loïc. Punir os pobres... Cit., pp. 09-15. BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 23. 202 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição... Cit., p. 218. 203 RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 19. 204 SANTOS, Juarez Cirino. 30 anos de Vigiar e Punir. Trabalho apresentado no 11º Seminário Internacional do IBCCRIM, out./2005, São Paulo, p. 8. 201

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produzir na opinião pública o sentimento de tranquilidade de um legislador atuante, como resposta ao sentimento generalizado de insegurança que, curiosamente, é difundido205. Na prática, o “monstro da criminalidade” cresce e se veicula pelos meios de comunicação em massa; nada se faz concretamente, ao menos nada diverso de tentativas manifestamente frustradas de combate ao crime por meio da criação de leis penais mais duras, o que já se sabe ser inútil. Por fim, a função de imposição das condições vigentes vem vinculada ao “princípio da menos elegibilidade” - less eligibility - trabalhado por Rusche e Kirchheimer, que se baseia no pressuposto de que as condições de vida no cárcere e as oferecidas pelas instituições assistenciais devem ser inferiores às das categorias mais baixas dos trabalhadores livres206, de modo a constranger ao trabalho e a salvaguardar os efeitos dissuasivos da pena207. As tantas reformas inacabadas do sistema punitivo, assim, servem a deixa-lo exatamente como ele é, em pífias condições, de modo com que sua clientela específica prefira aceitar as condições de vida e de trabalho de que dispõe, na exata maneira como elas se impõem, e por piores que sejam. Ora, exposto o aparelhamento entre punição e instituição carcerária, desvinculadas agora do que de fato não são, não há dúvida de que o sistema serve a produzir e a reproduzir delinquência208. E a gestão do crime é produtiva na medida em que se define como tática política de submissão. Normalizadas as classes subalternas, moralizadas as instituições, expurgados os indivíduos perigosos, ensinadas as regras do trabalho, ocultadas as ilegalidades dos opressores; o sistema, em sua funcionalidade, bloqueia o risco de generalização política das transgressões e impede o questionamento da ordem estabelecida209. Seja retributivo, seja preventivo o marco; a instrumentalização do saber-poder dogmático-jurídico de forma acrítica e pretensamente neutra sempre estará a serviço da manutenção e da reprodução das estruturas de dominação. Nenhuma reforma transpassará

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“Nos últimos anos (…), a forte tendência a sentir medo e a obsessão maníaca por segurança fizeram a mais espetacular das carreiras”. Um mistério, já que, “pelo menos nos países que se dizem avançados, vivemos em sociedades que sem dúvida estão entre as mais seguras que já existiram”. BAUMAN, Zygmunt. Confiança... Cit., p. 13. 206 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição... Cit., p. 14. 207 Tal princípio voltará a ser tratado com maior cuidado adiante. 208 FOUCAULT, Michel. Vigiar... Cit., pp. 252-255. 209 FOUCAULT, Michel. Vigiar... Cit., pp. 258-263.

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as finalidades mais capilares, invisíveis, intocáveis da punição penal: a única transformação cabível é a sua superação.

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4. BIOPODER E ENCARCERAMENTO: EFEITOS EMPÍRICOCRIMINOLÓGICOS DA GESTÃO DA VIDA E DA MORTE DAS PESSOAS 4.1 Da dinâmica carcerária e a conveniente gestão para a morte: a democracia do sujeito adestrado210 Ao passarmos pela constituição do biopoder em torno das noções de soberania e de disciplina e pela constituição do saber-poder enquanto mecanismo de governo dos indivíduos, de propagação das esferas de controle e de reprodução e manutenção, de certo modo, do status quo dominante, três horizontes se colocam: (i) saber e poder são de fato intrínsecos, sendo aquele uma estratégia deste; (ii) as ciências humanas funcionam, historicamente, como ponto de apoio a técnicas cada vez mais elaboradas de gestão das massas humanas, para controla-las, fixa-las, fabricá-las, finalmente; (iii) o modo de funcionamento deste dispositivo apresenta uma face repressiva, mas não se subsome a ela. Cabe à estratégia dos saberes a instrumentalização de táticas de adestramento progressivamente menos visíveis e mais capilares211. Ainda nessa toada, é possível perceber que, em meio ao nosso particular contexto de normalização inacabada, a implementação de estratégias de controle social que armaram as instituições em defesa da sociedade, deu-se de modo a conjugar, de maneira bastante intensa, os mecanismos repressivo-violentos ligados à noção de soberania e aqueles positivo-disciplinares que nos reportam à disciplina212. O cárcere, por sua vez, nos parece a junção máxima desses dois aspectos, o que justifica a pretensão deste capítulo. Alguns esclarecimentos são necessários, todavia, antes da aproximação da dinâmica carcerária enquanto gestão de vida e morte. Veja-se, na clássica teoria da soberania, o direito de vida e de morte era um importante atributo, senão o seu atributo central. Ora, dizer que o soberano é detentor desse direito significa dizer, na verdade, que

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“Se entendemos por democracia o exercício efetivo do poder por uma população que não está dividida nem hierarquizada em classes, parece evidente que estamos bem distantes da democracia. Não há a menor dúvida de que vivemos sob um regime de ditadura de classe, de um poder de classe que se impõe pela violência, mesmo quando os instrumentos dessa violência são institucionais e constitucionais, e, segundo a definição anterior, não podemos falar em democracia”. FOUCAULT, Michel. In CHOMSKY, Noam; FOUCAULT, Michel. Natureza humana... Cit., p. 50. 211 RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., pp. 15-16. 212 Afinal, permanecerão existindo no Brasil, em maioria absoluta, os depósitos de presos, estes espaços mais ou menos caóticos, cuja finalidade é apenas a exclusão e o castigo, ao lado de outras instituições, onde já se opera a implantação de uma tecnologia disciplinar. RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 31.

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ele pode fazer morrer e deixar viver; em todo caso, é como se o súdito não fosse, de pleno direito, nem vivo nem morto - é por causa exclusiva da vontade soberana que o súdito tem direito de estar vivo, e ser deixado como tal, ou de ser feito morto213. A partir do século XIX, com o desenvolvimento de um novo direito político, por assim dizer, não se tem propriamente uma substituição, mas uma complementação desse velho direito de soberania - fazer morrer, deixar viver - com uma noção nova que o perpassa, que o modifica e que, ao mesmo tempo, inverte a sua ordem: o biopoder vem, amparado pelas técnicas disciplinares normalizadoras, fazer viver e deixar morrer214. É nesse momento, em que o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver - e no “como” da vida -, que a morte se coloca como o seu limite evidente, o seu termo, a extremidade do poder. O novo exercer do poder da morte, por sua vez, em um sistema político que se centra no biopoder, não poderia se dar de outra forma que por intermédio do racismo. Este é o mecanismo fundamental do biopoder215. O racismo é operado, portanto, como instrumento de uma tomada de poder massificante, sobre o homem-espécie, sobre o seu comportamento, sobre os seus hábitos, sobre a sua higiene. Esse exato cuidado com a vida é o que trouxe consigo a exigência contínua crescente de uma morte em massa; a inclusão de certa vida nos cálculos do poder implica, necessariamente, a exclusão de outras, ao menos no que se refere ao “fazer viver”. Afinal, o poder normalizador inclui e exclui as pessoas em categorias, com base em seus padrões, estipulando quem deve viver e quem deve morrer216. Diferença crucial para o direito de soberania, destarte, é que a ação primeira do poder estatal é a de fazer viver, e não apenas aquela de impor a morte. Por outro lado, estando a população no centro de interesses do Estado e de suas instituições, pode ela ser a qualquer tempo massacrada quando necessário. O biopoder permite o exercer de uma função estatal verdadeiramente assassina: fazer viver é deixar morrer217. É nesse sentido que toda a promoção da vida de alguns levará à privação de outros, em seus direitos civis, econômicos, humanos no ápice. Para os ninguéns, a vida significa sobrevivência, em que o corte irrestrito de suas garantias chega a reduzir a sua 213

“O direito de vida e de morte só se exerce de uma forma desequilibrada, e sempre do lado da morte. O efeito do poder soberano sobre a vida só se exerce a partir do momento em que o soberano pode matar”. FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 286. 214 FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 287. 215 FOUCAULT, Michel. Em defesa... Cit., p. 295-304. 216 ZACCONE, Orlando. Indignos... Cit., pp. 95-96. 217 ZACCONE, Orlando. Indignos... Cit., p. 97.

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existência ao mínimo denominador comum da mera vida nua218. Expõe-se à morte, multiplica-se o risco de morte, deixa-se à beira da morte, seja ela a morte matada, a morte política, a expulsão ou a mera rejeição. Dito isso, é no grande encontro entre desenvolvimento e barbárie que se aplica a pena das sociedades civilizadas, apenas a ponta de toda a cadeia de privações que envolve aqueles sobre os quais ela se aplica. A privação da liberdade, e não só da liberdade, como se sabe, é hoje o destino menos grave - o mais grave ainda é a morte matada219 - daquelas vidas sem valor de vida, “vidas humanas cujo caráter de bem jurídico foi tão reduzido, que sua manutenção perde todo o valor para os seus titulares e para a sociedade”

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. A prisão é a reprodução da ordem burguesa sem os elementos que

possam perturbá-la221. A violência é abominável e, justamente por isso, foi retirada aos poucos da vista sem se extinguir. Do confortável ponto de vista da experiência privada de uma ampla gama de privilegiados, a violência é invisível, tendo sido ela encerrada em territórios segregados e isolados, exportada para lugares distantes, em geral sem maior interesse para a vida das pessoas civilizadas. Aqui se coloca o cárcere, uma das maiores senão a maior -, mais radicais e mais desesperadas experiências de não pertencimento ao mundo que se pode ter222. A instituição de sequestro que é o cárcere - junto à qual caminham as escolas, os hospitais, o exército - tem a sua dinâmica disposta sempre em forma de barreiras, e não pura e simplesmente barreiras físicas. Trata-se, pois sim, de uma ruptura profunda da pessoa do preso com os seus papeis anteriormente exercidos, seja em casa, no trabalho ou entre um grupo de amigos. O indivíduo encarcerado é violado em sua subjetividade para atender, assim, enquanto ninguém, ao seu mais novo eu: o eu-encarcerado. O papel de preso se sobrepõe agora sobre todos os outros, restando poucas indicações do status social do indivíduo no mundo externo223.

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ZACCONE, Orlando. Indignos... Cit., p. 102. Não nos escapa que, como destaca Zaccone, a regulamentação sobre a vida é correlata à desqualificação, à banalização progressiva da morte pelo biopoder, fazendo com que os Estados tenham produzido, por meio de suas agencias policiais, muito mais letalidade que as guerras do último século. ZACCONE, Orlando. Indignos... Cit., p. 130. 220 ZACCONE, Orlando. Indignos... Cit., pp. 126-127. 221 OLMO, Rosa del. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2004, p. 63. 222 ZACCONE, Orlando. Indignos... Cit., p. 133. 223 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 8. Ed., São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 25. 219

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A individualização é coercitiva, envolvendo uma ruptura, ao menos a priori, de toda e qualquer relação que não seja controlada pelo poder ou ordenada de acordo com a hierarquia prisional. À pessoa em situação de prisão mostra-se que tal situação talvez não seja tão situacional assim. O contato com o mundo extramuros é tão restrito que, nos casos de reestabelecimento dos laços perdidos, o detento pode se tornar verdadeiramente incapaz de enfrentar aspectos simples, em aparência, da vida diária, como a convivência interpessoal, a organização de horários, a procura de ocupação224. Aos ninguéns encarcerados cabe apenas o despir de sua concepção de si mesmo, num ritual agonizante de “mortificação do eu”. Rebaixamentos, degradações e humilhações; as barreiras colocadas entre o indivíduo preso e o mundo externo assinalam uma sistemática profanação do eu225, em que o encarcerado se vê obrigado a ser modelado, conformado e codificado em objeto da máquina administrativa, caso queira ser um bom preso226. Neste ponto, podemos alocar o aparente paradoxo entre as noções de soberania e disciplina nos cárceres brasileiros. Neles, o fazer morrer convive com o deixar morrer de modo que, ou se atende à disciplina do cárcere pela via repressiva - o preso é feito morto; mecanismo da soberania -, ou se atende a essa mesma disciplina pela via da normalização do comportamento - o preso é deixado morrer; mecanismo da disciplina. Em seus efeitos positivos, o biopoder atua sobre a pessoa presa de modo que preso morto é o bem comportado. O bom preso é aquele que nada mais sabe fazer do que obedecer e perpetuar a rotina do cárcere227. É aquele que reúne em si a contradição de ser

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“Na prisão o governo pode dispor da liberdade da pessoa e do tempo do detento. A partir daí, concebe-se a potência da educação que, não em só um dia, mas na sucessão dos dias e mesmo dos anos, pode regular para o homem o tempo da vigília e do sono, da atividade e do repouso, o numero e a duração das refeições, a ração e a qualidade dos alimentos, a natureza e o produto do trabalho, o tempo da oração, o uso da palavra e, por assim dizer, até o do pensamento, aquela educação que, nos simples e curtos trajetos do refeitório à oficina, da oficina à cela, regula os movimentos do corpo e até nos momentos de repouso determina o horário, aquela educação, em uma palavra, que se apodera do homem inteiro, de todas as faculdades físicas e morais que estão nele e do tempo em que ele mesmo está”. CHARLES, Lucas. De la reforme des prisons. In FOUCAULT, Michel. Vigiar… Cit., p. 221. 225 GOFFMAN, Erving. Manicômios... Cit., pp. 22-24. 226 Vide os estudos sobre a desculturação e a aculturação em BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Introdução à sociologia do direito penal. 6. Ed., Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 183 e ss. 227 “Em primeiro lugar, a legalidade de qualquer ordem administrativa deve ser garantida, vale dizer, o condenado deve obedecer, não importa quão injusta e impropria possa ser a ordem (...). Muito embora a tese de que os prisioneiros são sujeitos de direito e são portadores de proteção legal tenha merecido certo reconhecimento, a execução das penas é, na prática, controlada por regulamentos puramente administrativos, que podem ser arbitrariamente interpretados e que não passam de instruções para uso interno dos corpos administrativos”. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição... Cit., p. 217.

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um ótimo preso, imprestável porém, para a vida fora dos muros, onde teria novamente que lutar para ser feito viver, algo que há muito desaprendeu228. Na vida fora dos muros, o egresso recodificado em sua existência leva consigo o estigma do ex-presidiário perigoso, anormal, selvagem, carente afetiva e materialmente, sem cultura. Caso retorne por muitas vezes à prisão, ganha ainda o status de incurável. Despolitizada, então, a questão do crime229. Descaracteriza-se a transgressão à lei como oposição política, preservando-se os discursos dominantes sobre o poder. A rebeldia adoece em face das normas vigentes e as massas se veem controladas em todo o seu potencial político, em tudo o que representam enquanto ameaça ao Estado e aos seus aparatos230. A gestão sobre a vida e sobre a morte do indivíduo - e de um indivíduo bem delimitado, frise-se - se realiza covenientemente, preparando-o para o cumprimento regular de seu papel na democracia do sujeito adestrado: submeta-se ou seja punido. Insiste-se na selvageria dos selecionados, fadados por sua natureza indolente de desrespeito às leis, que os conduz à delinquência. Insiste-se no perigo que representam, onde mais uma vez surgem o Estado e as leis, como salvadores, frutos da necessidade de ordenar o caos, de conter o irracional e a anarquia. Tudo converge para o sucesso das práticas de marginalização, que produzem a população criminosa e a administram em nível institucional. E dizer que a prisão produz o delinquente, pois sim, “é dizer que ela cumpre plenamente seu papel enquanto dispositivo do controle social” 231. 4.2 “Co-culpabilidade” e vulnerabilidade Ao afirmarmos que a figura do criminoso é produzida pelas instituições que, oficialmente, dizem trabalhar para contê-los, há que se afirmar que o deslocamento da “culpa” pelo tão falado incremento da criminalidade a parcelas específicas da população deve ser atribuída em muita medida à própria sociedade232 - corresponsável, sobretudo, quando desabastece o indivíduo de cidadania, quando o enquadra no estereótipo do criminoso criado, quando o personifica em seus preconceitos. Logo, a partir da assunção da possibilidade de a sociedade organizada ser responsável pela injustiça das condições sociais deploráveis da população marginalizada, 228

RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 106. RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 105. 230 RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 120. 231 RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 119. 232 GENELHÚ, Ricardo. O médico... Cit., pp. 55-56. 229

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torna-se igualmente possível a assunção da co-culpabilidade. Isso significa dizer que, em boa parte, as alternativas de comportamento individual são diretamente dependentes do status social de cada indivíduo, o que levaria a uma distribuição desigual de cotas pessoais de liberdade e determinação conforme a respectiva posição de classe a escala social. Àqueles indivíduos de status social inferior, portanto, menos liberdade e maior determinação, podendo configurar situações em que a motivação anormal da vontade chega a nível insuperável e insuportável. E em situações sem alternativas, não existiria espaço para a culpabilidade; a responsabilidade penal individual, em tantos casos, dificilmente seria plena233. Admite-se, assim, ser o juízo de culpabilidade intrinsecamente dependente da avaliação do indivíduo concreto e socialmente referido, dentro de suas possibilidades reais de orientação. Nesse sentido, quando a infração é cometida por alguém a quem se negou uma série de possibilidades dadas a outros, a igualdade acontecerá tão somente quando a parte da responsabilidade pela realização de determinado tipo de injusto for suportada pela sociedade na mesma medida em que esta foi injusta. Ao lado de um sujeito culpado existiria, por conseguinte, uma coculpabilidade; ou seja, haveria uma parte da culpabilidade com a qual a sociedade deveria arcar, em razão das tantas possibilidades “sonegadas”. Que assumisse, pois, a parcela de responsabilidade que lhe incumbe pelas possibilidades que negou ao delinquente, em comparação àquelas que proporcionou aos obedientes. Contudo, pesada crítica se dirige contra a noção de co-culpabilidade: afinal, esta parece subestimar em larga escala a seletividade criminalizante, parecendo propor a quase aceitação do funcionamento natural do sistema penal, desde que este fosse compensado posteriormente, nos limites de sua própria aplicação. O marco da coculpabilidade, portanto, não nos parece adequado. Visando solucionar tal impasse, Zaffaroni passa a propor, d’outro lado, a chamada culpabilidade pela vulnerabilidade, referindo-se esta última à situação na qual um indivíduo se coloca quando o sistema penal o seleciona e o utiliza como instrumento de justificação de seu próprio exercício de poder. Ora, é sabido que o sistema penal se orienta por certos estereótipos; são recolhidos os caracteres dos setores mais

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AYOS, Emilio Jorge. Delito y pobreza: espacios de intersección entre la política criminal y la política social argentina en la primera década del nuevo siglo. São Paulo: IBCCRIM, 2010, p. 83.

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marginalizados e humildes234, em clara demonstração de que a vulnerabilidade frente a este sistema não se distribui de forma similar235. Donde, por mais que o sistema se apresente como igualitário - atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas - e justo - em busca da prevenção do delito, estando restrita sua intervenção aos limites da necessidade -, seu desempenho promove, na verdade, o etiquetamento, a degradação e a estigmatização de uma clientela que lhe é específica236. A vulnerabilidade agrega, pois, um novo aspecto à noção anterior da coculpabilidade: a seletividade criminalizante. Isso se justifica na medida em que a busca pela igualdade material não pode se restringir, dessa maneira, à limitada análise da situação econômica e da formação intelectual do sujeito, conglobando igualmente a sua posição diante do sistema penal estruturalmente seletivo - ou seja, a sua vulnerabilidade perante as agências de sequestro do sistema. Tomando este caminho, a vulnerabilidade, em seu aspecto individual, é diretamente proporcional ao risco de ser o indivíduo incriminado pelo sistema de justiça criminal e, consequentemente, selecionado pelas agências de controle. Tem-se, portanto, uma maior possibilidade de invasão institucional propriamente dita, tanto por fatores antecedentes à intervenção penal - vulnerabilidade primária -, quanto por aqueles que a sucedem - vulnerabilidade secundária. Nessa medida, faz-se necessário à aferição da vulnerabilidade - e de suas consequências para a análise da culpabilidade - levar em conta tanto o sistema social no qual se desenvolveu o indivíduo - e as precariedades sociais a ele inerentes -, quanto o seu processo de prisionalização237, tão logo a intervenção penal se faz presente.

234

Não se sustenta, com isso, que a pertença a um estrato social ou a situação familiar produzam no indivíduo uma maior motivação para o comportamento desviante, mas que uma pessoa que provém destas situações sociais deve ter consciência do fato de que seu comportamento acarreta uma maior probabilidade de ser definido como desviante ou criminoso, por parte dos outros, e de modo particular por parte dos detentores do controle social institucional, do que outra pessoa que se comporta do mesmo modo, mas que pertence a outra classe social ou a um meio familiar íntegro. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica... Cit., pp. 111-112. 235 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 5. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 72-73. 236 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. Ed., Rio de Janeiro: Revan. 2007, pp. 25-26. 237 Concebida como a assunção das atitudes, dos modelos de comportamento, dos valores característicos da subcultura carcerária, interiorização esta que é inversamente proporcional às chances de reinserção na sociedade livre. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica... Cit., pp. 184-185.

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O condicionamento criminalizante é orientado por estereótipos238 criados e não superados; reitera-se, a criminalização, a imposição as penas e o cárcere se constroem enquanto mecanismos de marginalização, que produzem a população criminosa, previamente vulnerável, e a administram em nível institucional, adaptando-a a funções próprias que qualificam, assim, esta particular zona de marginalização239. E contra elas, o brado: “em defesa da sociedade”! 4.3 Estudo nº 2. “Em defesa da sociedade”: prisões preventivas e decisões judiciais “(...) qual era a singular e frágil e contingente economia das relações de poder que lhe haviam servido de suporte e a tinham feito passar por aceitável, apesar da sua inadequação a seus objetivos, inadequação de ponto de partida, inadequação de ponto de chegada? Portanto, em vez de estabelecer como medida da prisão e da sua reforma possível a delinquência mesma ou o homem mesmo, tratava-se de ver como essa prática do aprisionamento, essa prática da punição em nossas sociedades, havia por um lado modificado a prática real dos ilegalismos, mas constituído também esse par entre sujeito de direito e homem criminoso, sujeito de direito e homo criminalis, em que se perdeu e continua se perdendo infindamente nossa prática penal”240.

A sempre inacabada reforma das instituições penais foi o terreno fértil de implementação de novas estratégias de controle social sobre os indivíduos, a partir de toda uma série de saberes guardiões dos ideários de defesa da sociedade. Tais saberes, por sua vez, não mascararam de fato a verdade das práticas judiciárias, mas as revestiram, articulando-se a elas de modo indissociável, produzindo efeitos concretos sobre a vida e a morte das pessoas241. Nesse sentido, o que a ideologia da defesa social242 desenhou como novidade - e que apresenta profunda permanência na práxis jurídica atual - é, justamente, a transposição do problema jurídico de atribuição da responsabilidade para outra coisa que não é propriamente jurídica, mas que versa sobre a periculosidade do indivíduo. O 238

“Os órgãos do sistema penal selecionam de acordo com esses estereótipos, atribuindo-lhes e exigindolhes esses comportamentos, tratando-os como se se comportassem dessa maneira, olhando-os e instigando todos a olhá-los do mesmo modo, até que se obtém, finalmente, a resposta adequada ao papel assinalado”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. 5. Ed., Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 133. 239 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica... Cit., pp. 183-184. 240 FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 74. 241 RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., pp. 18-20. 242 O relativo à atitude anterior do delinquente (culpabilidade) adquire um significado moral-normativo (desvalor, condenação moral) ou simplesmente sociopsicológico (revelador de periculosidade social). BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica... Cit., p. 43.

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questionamento que se faz é se o indivíduo é perigoso, e sendo ele um deles, deve ser posto de lado243. O trabalho que aqui se faz, portanto, foi fruto de pesquisa qualitativa - como o foi também a análise dos laudos psiquiátricos244 - que se propõe a mostrar como a ideologia da defesa social, em permanente busca dos indivíduos perigosos, perturbadores da ordem, ameaçadores da segurança pública, permanece presente em um universo de 507 decisões judiciais, todas relativas a processos iniciados na cidade de São Paulo (SP) neste ano de 2015. Quanto às decisões, todas são conversões de prisões em flagrante em prisões preventivas, o que configura a passagem do indivíduo - ainda não penalmente responsável, frise-se - ao primeiro estágio da vida intra-grades. O indivíduo é, agora, preso provisório, e compõe as fileiras formadas pelas mais de 222 mil pessoas que aguardam julgamento presas no país245 - todos perigosos e, por isso, vigiados. A seleção dos trechos que aqui aparecem, por sua vez, foi feita a partir de um único critério: a sua intensa repetição nos modelos utilizados pelos juízes no momento da decisão. São apenas seis trechos, mas que se aplicam a um universo de casos muito superior a este número. Quanto à sua identificação, cada um trará apenas o número do processo - os nomes dos investigados foram substituídos por letras, em proteção à sua identidade. Segue a análise.

Saliento que a ordem pública está ameaçada com a sua soltura, pois o crime de tráfico traz consequentes nefastas para a sociedade (...). Friso pela quantidade de drogas e pela quantia de R$820,40 apreendida na posse do averiguado, bem como pelo depoimento da testemunha R., o qual relatou o tráfico realizado, presume-se, em sede de cognição sumária, a periculosidade do indiciado a indicar fazer do crime meio de vida. (Proc. 0032133-23.2015.8.26.0050 - Abril/2015 - Grifos nossos).

A primeira decisão escolhida, talvez uma das mais caricatas do conjunto, fala em defesa social sem medo de dizer seu nome. A ameaça à ordem pública é presumida

243

FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 22. Vide item 2.2.3.1 neste trabalho. 245 Dados do último levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), datado de junho de 2014. Disponível em: . Consulta em 01/10/2015. 244

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nos crimes de tráfico, como o presente, em face de suas consequências nefastas para a sociedade. O traficante, depreende-se, é o inimigo social por natureza, construído como criminoso em toda a sua condição imaginária de periculosidade246, contra o qual se justifica a existência de uma reação social homogênea, que se arma de um continuum protetor extensivo a toda a sociedade247 - como uma totalidade de valores e de interesses que certamente não é. Ora, o tráfico é o meio de vida do traficante; o tráfico é proibido e imoral; o traficante é perigoso. Outro ponto importante, aqui, é a referência aos autos. Em todas as decisões, o que precede a decisão propriamente é o parágrafo “Consta que (...)”, geralmente recheado de depoimentos de policiais, todos idênticos em discurso e em forma. A presunção de periculosidade se dá toda sobre esta forma de veiculação de verdade, uma verdade institucional, à qual o acusado necessariamente deve se adequar. Torna-se fácil, assim, aferir o verdadeiro do discurso do investigado: se sua versão é compatível com a dos autos, ele diz a verdade248. Caso contrário, “está se defendendo”. O investigado se submete totalmente à fala de quem o detém249.

O crime de roubo tem pena máxima superior a quatro anos e o averiguado X é reincidente especifico, está cumprindo pena e em liberdade reitera em condutas criminosas, colocando em risco a ordem pública. A despeito de o averiguado Y não ser reincidente, a ordem pública está ameaçada com a sua soltura, pois o crime de roubo está colocando em pânico toda a população, que se vê encarcerada em casa, enquanto criminosos estão a solta pelas ruas, ou seja, respeitados posicionamentos em contrário, a prática de roubo, por si só, já coloca o roubador como uma pessoa que desestabiliza a ordem pública. Inclusive dos fatos narrados acima é impossível a substituição da custódia por outras medidas cautelares. Ademais, são necessários os seus encarceramentos por conveniência da instrução criminal, já que são necessárias as suas presenças pessoais para fins de reconhecimento. (Proc. 0036539-87.2015.8.26.0050 - Maio/2015 - Grifos nossos).

246

Incorpora-se ao direito penal um critério de julgamento que não se refere ao delito, mas à personalidade do criminoso; o julgamento do juiz se refere a um tipo de anormalidade reconhecida no delinquente, a “periculosidade”. RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 72. 247 FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 29. 248 De fato, certas manifestações “têm, em si, efeitos de poder, valores demonstrativos, uns maiores que os outros, independentemente de sua estrutura racional própria”. O que importa é o sujeito que as profere. FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 11. 249 RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 101.

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Nesta segunda decisão, o caráter maléfico da reincidência é claramente explorado, independente de sua concretude real. Como se visualiza do trecho trazido, a despeito de não ser reincidente, a ordem pública ainda se encontra ameaçada com a soltura do investigado Y. O que se demonstra, destarte, é que a periculosidade não advém de qualquer diagnóstico minimamente “sério”, mas recobre todo e qualquer perigoso, desde que o juiz o avalie como virtual reincidente250. O arbítrio do juiz se escancara na definição da personalidade perigosa como aquela em que há uma tendência delituosa, tendência essa avaliada pelo próprio juiz, neste momento desprovido até mesmo de “peritos”. Um discurso nitidamente desqualificado continua trazendo consigo seu caráter estatutário, produzindo poder por um especialista (o juiz) que supostamente sabe. Manifesta-se, aqui, a inevitabilidade do poder, que pode precisamente funcionar com todo o vigor, mesmo quando a “técnica” está nas mãos de alguém efetivamente desqualificado251. Ademais, destaca-se a referência ao pânico da população, encarcerada em casa, com bandidos a solta pelas ruas. Mesmo que se desconsidere toda a dose de melodrama (quem, de fato, está encarcerado?), o que se verifica, neste ponto, é a construção do “inimigo da vez” com um bom reforço de preconceito, fundado na alucinação de uma guerra - recurso apto a legitimar o poder punitivo ilimitado em qualquer circunstância minimamente emergencial252.

A despeito de os averiguados B e R não serem reincidentes, o crime de trafico tem pena máxima de quinze anos, superior, portanto, a quatro anos, e a ordem pública está ameaçada com a sua soltura, pois o crime de tráfico de drogas traz consequentes nefastas para a sociedade, minando o seu cerne, que é a família, e gerando um numero sem fim de crimes graves, tais quais, o tráfico de armas e de pessoas, roubos, etc. (Proc. 0004651-03.2015.8.26.0050 - Janeiro/2015 - Grifos nossos). Horror. O tráfico ataca toda a sociedade e a mina em seu cerne: a família; instância primeira de controle da moralidade, de poder imediato e sem intermediários sobre o corpo do indivíduos, engrenagem que mantém o contato com as estruturas de poder externas, princípio de determinação, discriminação e correção dos anormais que 250

RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 69. FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 13. 252 ZACCONE, Orlando. Indignos... Cit., p. 109. 251

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encontra em seu seio253. O menor crime, ainda que sem vítimas, é entendido como afronta direta ao corpo social, que coloca o castigo penal função generalizada, coextensiva a ele e a cada um de seus elementos. O que se traz, aqui, é a desordem como prejuízo de um crime específico, responsável, presume-se, pela geração de um número sem fim de crimes graves. Do tráfico de drogas ao tráfico de armas; um pulo, e tem-se o tráfico de pessoas, o roubo, e etc., etc., etc.. A vigilância sobre o preso é castigo pelo escândalo a que submete a família tradicional, à generalização possível de sua conduta, à instigação que exerce sobre os outros elementos da sociedade - o objetivo é conter, em larga escala, toda a série de desordens que um crime é capaz de abrir254. Quanto às medidas cautelares diversas da prisão, observo que se mostram, ao menos por ora, insuficientes, dada a gravidade do crime objeto desta ação, e que, a princípio, denota periculosidade incompatível com a confiança no acusado, necessária à efetividade daquelas medidas (...). Sua narrativa [a do acusado] está isolada e, no momento, a sociedade deve ser protegida e demais pormenores deverão ser levados ao juízo natural da causa que deverá enfrentar o mérito da causa. Não se pode perder de vista já ter o indiciado respondido no ano de 2012 a um tráfico de drogas, de modo que, por ora, deve ser mantido no cárcere. Garantia da ordem pública, porque se imputa ao acusado a prática de crime extremamente grave. (Proc. 0047444-54.2015.8.26.0050 - Junho/2015 - Grifos nossos).

O acusado é traficante, delinquente, o que não o coloca como mero infrator de uma regra. O traficante é inassimilável, irredutível: nele a sociedade não pode confiar. Sua narrativa está isolada, o que indica nada menos que a desqualificação do seu discurso tão logo há incongruência com o relatado nos autos. “Consta que...”. Consta que o acusado é perverso e é perigoso, e cabe ao juiz detectar o perigo que nele se encerra, e opor-se a ele. Discurso, ao mesmo tempo, de medo e de moralização255.

O crime de roubo é de extrema gravidade e violência e tem causado repúdio e enorme insegurança à comunidade laboriosa e ordeira do país, motivo pela qual a manutenção de sua custódia cautelar é de rigor, para a garantia da ordem pública e para que a sociedade não venha se sentir privada de garantias para sua 253

FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 221. ZACCONE, Orlando. Indignos... Cit., p. 119. 255 RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., pp. 30-31. 254

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tranquilidade. Além disso, a imediata soltura dos indiciados levaria ao descrédito da Justiça, fazendo a vítima sentir-se desamparada, gerando sensação de impunidade. Assim, a prisão provisória é de rigor, pois há sérios indícios do envolvimento do averiguado em crime grave que coloca em constante desassossego a sociedade, contribuindo para desestabilizar as relações de convivência social. A gravidade do crime e as circunstancias em que foi cometido evidenciam, em principio, a periculosidade dos indiciados, sendo suficientes para embasar a custodia cautelar, no resguardo da ordem pública e também por conveniência da instrução criminal, vez que, soltos, poderão se evadir e se furtar a comparecer em audiência em juízo, a fim de evitar o ato de reconhecimento pessoal a ser realizado pela vítima. (Proc. 0041078-96.2015.8.26.0050 - Maio/2015 - Grifos nossos).

Não importa a gravidade do roubo em questão. O que se julga, de fato, é o repúdio causado à comunidade laboriosa e ordeira do país, da qual o acusado desordeiro obviamente não faz parte. Mesmo que declare ocupação, de nada adianta se não for comprovada. Mesmo que comprove a ocupação, o delinquente continua inaproveitável à lucrativa equação do mercado de trabalho256. A todo o momento, o criminoso imprestável, ainda não julgado, porém perigoso, pode ser privado de sua liberdade, como garantia de a sociedade, em seu turno, não vir a ser privada de sua tranquilidade. Ora, o que interessa é conter a sensação de impunidade que toma as ruas, o que interessa é desacreditar o investigado para que o Judiciário não seja desacreditado. Talvez a guerra não seja alucinação: a cada degenerado encarcerado, vigiado, morto, no limite, mais pura a raça que preza pela ordem, pelo progresso, pelo labor. .

O flagrante deve ser relaxado. Com efeito, não havia situação a justificar a prisão dos indiciados a tal título, eis que o roubo ocorreu na noite de 02 de junho e, segundo a vítima, somente na noite do dia 03 para 04 de junho é que se soube da prisão dos acusados. Veja-se que o fato teria se dado no dia 02 de junho às 21h45 horas, com comunicação apenas em 03 de junho, 15h19 horas. Há, apenas, vagas noticias de que a policia militar teria empreendido buscas, eis que as vítimas seriam parentes de integrante da corporação sem, contudo, caracterizar o flagrante, ainda que ficto.

256

GENELHÚ, Ricardo. O médico... Cit., p. 107.

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Portanto, relaxo o flagrante. Decreto, contudo, a prisão preventiva dos indiciados, para garantia da instrução processual e da paz social. (Proc. 0048077-65.2015.8.26.0050 - Junho/2015 - Grifos nossos).

Relaxo o flagrante, converto a prisão preventiva. A instituição judiciária não é uma entidade abstrata acima daqueles que a constituem, mas reproduz-se cotidianamente nas diferentes tarefas que a constituem257. O direito penal não importa às decisões, pois os juízes não precisam dele em sua tarefa de contenção dos perigosos, de garantia da paz social. Mesmo que se denuncie a imensa fraqueza teórica das decisões, o que interessa, ao final, é o seu grau de utilidade. Aqui, o sistema repressivo-produtivo nem se traveste da roupagem cientifica. Não há ciência, há o exercer de uma função técnica em toda a sua atecnicidade. O discurso dos burocratas do Estado os coloca como reguladores apolíticos e autônomos da ordem social, descompromissados com qualquer outro interesse que não a aplicação das leis; daquelas leis necessárias, determinadas pela vida coletiva, para que a sociedade se defenda se seus detratores258. Os juízes são os legítimos representantes da sociedade contra o (anor)mal, e a sua proteção é seu objetivo único, em meio ao clamor contra o aumento da criminalidade e a imprescindibilidade de uma reação contra esse fenômeno259. Descaracteriza-se o “combate ao crime”, assim, em seu evidente compromisso com a manutenção das formas de dominação, com o controle sobre a vida e sobre a morte, especialmente, daqueles que se quer eliminar. Tarefa cumprida.

257

RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 98. RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 30. 259 RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 69. 258

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5 FAMÍLIA, ESCOLA, UNIVERSIDADE, MERCADO: O VALORVIDA E SUA CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA 5.1 Valor-vida e valor-trabalho Partindo da construção anterior acerca da guerra interna que se constrói, gradualmente, “em defesa da sociedade”, e da complexa noção do cárcere enquanto dispositivo de deixar e de fazer morrer, há que se passar, neste quinto e último capítulo, ao estudo das tantas outras estratégias de controle às quais se abre espaço nas sociedades modernas, partindo, inicialmente, de seu parâmetro de seleção. É saber, quem deve ser feito viver e quem deve, por outro lado, ser deixado morrer? Pretendemos, assim, analisar a construção do valor-vida com maior profundidade, visto que é este, na nossa visão, o ponto central à nossa crítica. Afinal, quem vale a pena viver? Aqui, tomamos por ponto de partida a já introduzida análise de Rusche e Kirschheimer que, em toda a sua atualidade, explica com precisão a inter-relação dinâmica existente entre o sistema de controle e o sistema econômico, pautado no princípio da menor elegibilidade (less egibility). Segundo os autores, o que se verificou constante ao longo dos anos de isomorfismo reformista do cárcere é que, independentemente de o contexto ser mais ou menos favorável, as péssimas condições carcerárias se mantiveram como produto conscientemente almejado260. Ora, para que a prisão propagasse efeitos dissuasivos, a situação dos encarcerados deveria ser mais desprezível que a situação de um trabalhador livre e independente das classes subalternas, de modo a impedir que um interno considerasse, por acaso, que o conforto da vida na prisão valeria a perda da liberdade261. Nesse sentido, o valor da força de trabalho humana é visto sob uma ótica de absorção máxima desta força262; do que se depreende que vale a vida do indivíduo que pode trabalhar. Num contexto, portanto, de intensa produção industrial - própria do século XVIII - e de demanda crescente por trabalho, a vida e a liberdade seriam o bem mais valioso que um homem poderia guardar. De fato, não poderia haver ninguém tão pobre, tão miserável, que não tivesse medo e vergonha capaz de, em última instância, força-lo a fazer o possível e o impossível para ficar fora dos muros da prisão263. 260

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição... Cit., p. 226. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição... Cit., p. 150. 262 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição... Cit., p. 194. 263 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição... Cit., p. 160. 261

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Assim, sendo o nível de vida do cárcere necessariamente menor que o nível mínimo de vida conferido às classes mais baixas do estrato social, não se torna difícil compreender que a grande virtude produzida por esse tão propalado sistema é o conformismo. Melhor deixar-se morrer lentamente, melhor enquadrar cada um de seus desejos no limite das condições das classes subalternas264, melhor aceitar voluntariamente o triste destino de um “pobre diabo” que ser efetivamente preso. O castigo é penoso de tal forma que qualquer condição de trabalho, na exata maneira em que se impõe, é preferível quando se compara às condições conferidas ao criminoso265. Dito isso, a próxima vinculação lógica caminha no sentido de Giorgi: o endurecimento das funções de controle segue paralelo à verificação de excedente de força de trabalho, com base em que se reduz o valor da vida humana266. Quanto maior o excedente, naturalmente, piores as condições de vida dos trabalhadores e, para manter-se abaixo deste nível, o aparelho punitivo endurece. O valor-vida se relaciona, por conseguinte, ao quantum de força trabalhadora que é possível extrair. A partir daí, seguimos à nossa análise. Para nós, não se trata exatamente de excedente, com o que coaduna Bauman267; a relação presente entre valor-vida e valortrabalho se dá, na verdade, no quantum de riqueza que o trabalho pode veicular. Quanto se paga, qual o status de quem o exerce perante o corpo social, quantas riquezas se movimentam com a sua realização. É isso que define, hoje, em nossa visão, que vida vale ser vivida. As vidas matáveis, por outro lado, são as supérfluas, não aquelas temporariamente excluídas e ainda não reintegradas, mas as vidas incapacitadas para essa reintegração268; inassimiláveis, na medida em que não sabem se tornar úteis economicamente, na medida em que não produzem, não consomem, não movimentam qualquer tipo de riqueza. A exclusão da vida pelo trabalho, dessa forma, dá-se na recusa, na inutilidade, na inabilidade; na condição de permanecer economicamente inativo. Ser excluído do trabalho é, ser descarte do progresso e, por isso, eliminável - se já não eliminado o sujeito definitivamente269.

264

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição... Cit., p. 151. GIORGI, ALESSANDRO de. Tolerancia cero... Cit., p. 132. 266 GIORGI, ALESSANDRO de. Tolerancia cero... Cit., p. 140. 267 BAUMAN, Zygmunt. Confiança... Cit., p. 22. 268 Idem. 269 BAUMAN, Zygmunt. Confiança... Cit., p. 23. 265

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A intransigência do biopoder separa com uma linha sutil aqueles desempregados “crônicos” do precipício das vidas deixadas à morte, que se consolidam na subclasse. A esta, correspondem ninguéns que não se somam a qualquer categoria social legítima, indivíduos esquadrinhados para fora das classes, que não desempenham funções reconhecidas, aprovadas, úteis, em geral realizadas por membros normais da sociedade. De fato, a sociedade abriria mão deles de bom grado e teria tudo a ganhar se o fizesse270. Não menos sutil, ainda, é a linha que separa a subclasse dos criminosos - há separação? São duas categorias de elementos anormais, antissociais, que talvez sejam divergentes apenas em sua classificação oficial. Assim como ocorre com as vidas desvaloradas pelo trabalho, os criminosos tampouco são vistos como provisoriamente excluídos da normalidade. Não são pessoas reeducadas, reabilitadas, restituídas; são indivíduos definitivamente afastados para as margens, inaptas à reciclagem; indivíduos que, para que não criem problemas, devem ser mantidos à distância da comunidade laboriosa, ordeira, respeitosa das leis271. Confunde-se a subclasse com a sub-raça, propriamente: é estar fora da ordem, não servir para nada, manter uma única função positiva a ser desempenhada: induzir as pessoas decentes, normais, comuns, a se agarrarem ao tipo de vida que vivem 272. A subraça é contaminação, é vida inútil a ser explorada de maneira profícua. É gente sem perspectivas, que nenhum esforço imaginativo poderia introduzir numa sociedade organizada. Para as “pessoas de bem”, seria melhor que essas outras pessoas desaparecessem de vez273. No jogo da vida e do trabalho, a modernidade produziu e produz gente supérflua; a construção de uma ordem, em seu turno, sempre leva à liquidação dos supérfluos. Se o desejo é que as coisas estejam na ordem, se o que se quer é substituir o que se tem pelo novo, pelo melhor, pelo mais puro, pelo mais racional, o que se descobrirá - e acreditamos já estar descoberto - é que certas pessoas não podem fazer parte dela274. Por isso, excluí-las; cortá-las fora; matá-las.

270

BAUMAN, Zygmunt. Confiança... Cit., p. 24. BAUMAN, Zygmunt. Confiança... Cit., pp. 24-25. 272 BAUMAN, Zygmunt. Confiança... Cit., p. 83. 273 BAUMAN, Zygmunt. Confiança... Cit., p. 80. 274 Idem. 271

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5.2 Substrato técnico, representação esquemática e filosofia de gestão dos instrumentos de poder na sociedade moderna Partindo de uma premissa anti-essencialista, como se sustenta deste o primeiro capítulo deste trabalho, não basta apontar que por trás do aparelho de Estado existe uma classe dominante; torna-se preciso revelar o local da ação, o onde e o como do poder, os espaços e as formas em que a dominação se exerce275. Buscamos, assim, a investigação do substrato técnico por meio do qual se veiculam os discursos dominantes, de toda a complementaridade exercida por uma série de instituições em sua tarefa de classificação e separação do joio do trigo, de segregação e eliminação das vidas supérfluas em prol das úteis. Como representação esquemática, escolhemos quatro instrumentos de poder específicos da máquina biopolítica: família, escola, universidade e mercado. Certamente há outras; o cárcere, é claro, os hospitais psiquiátricos, as clínicas de assistência social, a fábrica... Todas são instituições historicamente determinadas e adequadas ao controle das subjetividades, todas são lugares de exercício do controle social, todas são igualmente repressoras de inadequação e produtoras de normalidade. Entretanto, relativamente esgotada a via do cárcere, entendemos as quatro instituições escolhidas como as melhores representações, para esta análise, do local de ação do controle social da vida e da morte, exercido por elites do poder como forma de preservação da ordem social, a partir de uma específica “geografia” dos recursos, das possibilidades, das aspirações276. Como estratégias de controle, aparentes em maior ou menor escala, a disciplina, enquanto garantia da conformidade do atuar segundo alguns códigos de comportamento; e a soberania, como peça cada vez mais essencial ao sistema disciplinar, em toda a sua “nervura de prescrições” 277. Peça primeira, aqui, a família. A família vem colocada por Foucault, em sua microfísica, mais próxima ao nível da soberania; não como vestígio anacrônico do sistema de soberania propriamente dito, mas como uma instância de coerção - centrada na figura patriarcal, a princípio - apta a injetar e fixar permanentemente os indivíduos aos aparelhos disciplinares278. A família é a articulação, é o ponto de engate necessário ao 275

FOUCAULT, Michel. In CHOMSKY, Noam; FOUCAULT, Michel. Natureza humana... Cit., pp. 5152. 276 GIORGI, ALESSANDRO de. Tolerancia cero... Cit., p. 37. 277 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 04. 278 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 100.

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bom funcionamento da tática disciplinar, é onde se encerra a nascente distribuição de singularidades. Isso significa dizer que, mesmo em uma sociedade em que a microfísica do poder é de tipo majoritariamente disciplinar, a família não se dissolve na disciplina. Pelo contrário, ela se concentra e se intensifica, passando a portar um duplo papel, a saber, a vinculação dos indivíduos aos sistemas disciplinares, e a promoção da sua circulação de um sistema disciplinar a outro279. A família de fato se disciplinariza, enquanto instância primordial de anomalização dos indivíduos280. Os sistemas disciplinares se enxertam cada vez mais no interior da família, que se coloca como uma “microcasa de saúde” responsável pelo controle da anormalidade, pela distinção da anomalia do corpo e da alma. “Vocês têm que nos arranjar loucos, débeis mentais, malcomportados, depravados, e têm de 86ncontra-los por conta própria, pelo exercício de controles de tipo disciplinar no interior da soberania familiar (...). Nós os faremos passar, dizem as disciplinas, pelo filtro dos dispositivos normalizadores, e os devolveremos a vocês, para o maior beneficio funcional” O aparecimento da anomalia no interior da família é o próprio marco da disciplina: o benefício econômico da irregularidade se demonstra logo que se passa a pagar para que se tomem os filhos, para que se internem os filhos, para que sejam eles devolvidos à imagem da família, ou à imagem do que ela deve ser. O lucro da anomalia é a recondução do sistema de poder interno da família: “vamos devolver alguém efetivamente conforme, adaptado, ajustado ao sistema de poder que é o seu” 281. Não se esgotam, entretanto, os aspectos de soberania. Desde cedo a criança é ensinada a vencer suas vontades, suas inclinações, por meio de ordens - centradas na figura dos pais -, que lhe ensinam um estado de obediência. Não uma obediência passageira, mas sim, um estado de que se utiliza permanentemente a direção. E, veja-se, pode-se tratar das ordens mais detestáveis; o simples fato de que se obedeça valerá um mérito para quem obedece. A obediência produz obediência282; é, ao mesmo tempo, a condição para que a direção funcione e o objetivo da direção. 279

FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., pp. 102-103. FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 143. 281 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 141. 282 “Você obedece para poder ser obediente, para produzir um estado de obediência, tão permanente e definitivo que subsiste mesmo quando não há ninguém precisamente a quem obedecer e mesmo antes que alguém tenha formulado uma ordem. Devemos estar em estado de obediência. Quer dizer que a obediência 280

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Ser bom filho, bom marido, boa esposa, obedecer, obedecer, obedecer... é o que propõem todos esses estabelecimentos disciplinares que são as escolas, os hospitais, etc. Organiza-se uma verdadeira engrenagem médico-familiar, sob a qual as condutas são alvo constante de fiscalização, de julgamento e de intervenção sobre o desobediente. A família, finalmente, é princípio de normalização283. É essa família, detentora do poder imediato e sem intermediários que atua sobre a criança, que determina o surgimento do anormal; a família é o princípio da vigilância e da correção. “Nós necessitamos de seus filhos”, dizem. “Confiem-nos a nós. E necessitamos, como vocês também necessitam, aliás, que esses filhos sejam normalmente formados. Logo, confiem-nos a nós para que os formemos de acordo com certa normalidade” 284. Para a formação de filhos normais e conformes que a família os mantém sadios, dóceis, aptos; para que passem, com o passar do tempo, para uma máquina que a instância disciplinar já não controla, que é o sistema de educação, de instrução, de formação do Estado. Passemos à escola. Na técnica de disciplina escolar, o ponto de demarcação inicial, para o indivíduo, é a realidade de suas aptidões: o que ele possui, de um lado, e o que ele precisa adquirir, de outro. É nesse contexto que se elabora o conceito de normal, termo que desde o século XIX serviu a designar, ao mesmo tempo, o protótipo escolar e o estado de saúde orgânica285. Junto a isso, toma corpo uma noção binária de desenvolvimento: ou se tem ou não se tem; quem não se desenvolve carece, portanto, ou de inteligência ou de vontade286. Registro, codificação, seleção. Na escola se adestra o corpo e a habilidade, investem-se os discursos de normalidade, aperfeiçoa-se a disciplina por meio de exercício gradual e progressivo. Todos os alunos se dividem por faixa etária, e a cada uma se impõe um tipo específico de trabalho, a ser realizado na presença dos mestres. Vigiam-se o comportamento, a assiduidade e o zelo durante os trabalhos. Conclui-se, com base na qualidade do enquadramento, a aptidão ou a inaptidão do estudante. Aparece, no limite, o débil287.

não é uma maneira de reagir a uma ordem, não é uma resposta ao outro. É e deve ser uma maneira de ser”. FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., pp. 243-245. 283 FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 221. 284 FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 223. 285 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 256. 286 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., pp. 260-261. 287 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 62

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Esboçados, neste ponto, os grandes esquemas da pedagogia, baseados na ideia de que só é possível aprender em se passando por etapas obrigatórias e necessárias, que se seguem cronologicamente no tempo e demarcam tantos progressos quanto as próprias etapas288. Triângulo tempo-progresso-disciplina. O poder disciplinar olha para o futuro, prevendo uma virtualidade da vigilância, o momento em que a mecânica disciplinar funcionará sozinha, em que a disciplina será um hábito. A disciplina preparatória para o futuro se dá no locus da universidade. Mas o salto não se dá de forma tão instantânea - todo poder disciplinar terá as suas margens. A margem da passagem à universidade é, justamente, o ponto em que se separam os que têm e os que não têm acesso a ela. Na passagem para a vida adulta está, no Brasil, o grande corte da pedagogia da seleção: o vestibular. É no vestibular que são selecionados, no mais das vezes, os alunos conformes e adaptados, pelos quais pagaram os pais. Não é atoa que o grande número de aprovados nas mais tradicionais universidades do país é proveniente de escolas caras e de cursos prévestibulares igualmente dispendiosos, totalmente inacessíveis a parte considerável da população. E justo na universidade, em que a educação confere um mínimo de espontaneidade ao indivíduo; na universidade, em que é composto todo o conceito de qualificação; na universidade, em que se adquire ou não o status de sujeito que fala; na universidade, justamente, é onde se faz o corte. A universidade tem, sobretudo, uma função de seleção, de pessoas e de saberes. No fim, trata-se de um grande aparelho uniforme dos saberes, no exercer de seu monopólio de fato e de direito sobre a veiculação de saber. Ora, um saber não cientifico, que não se formou neste campo institucional, que não é proveniente de organismos oficiais de pesquisa; este saber, se não excluído logo de saída, é ao menos desclassificado a priori289. É no interior da universidade que o sujeito é qualificado para falar, na medida em que o seu enunciado, dentro do conjunto em que se coloca, faz-se conforme às tipologias do saber-poder. Fala por quem é, pela sua normalidade, pelo seu estatuto, e não pela verdade do que fala. E quanto mais se aperfeiçoa o jogo de qualificações que é a universidade, tanto mais raros os que podem ter acesso a ela. E tão somente os que passam pelo corte escola-universidade podem, efetivamente, efetuar com status de quem fala a passagem seguinte: da universidade ao mercado. 288 289

FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 84. FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 219.

88

O mercado é a consolidação dos espaços de exclusão, o ápice de segregação entre os participantes dos processos de produção dos discursos de conhecimento, e dos meros expectadores. O sucesso na carreira profissional apaga os muitos e sucessivos filtros de seleção pelos quais passaram os indivíduos conformes, normais, ordeiros; apoiase, por outro lado, no ideal meritocrático veiculado desde a infância: seja obediente, e você ganhará; treine bastante, e você aprenderá; tente até o fim, e você terá sucesso. Só não o tem quem não se esforçou o bastante. Dessa forma, é no mercado de trabalho, enquanto instância política e econômica ao mesmo tempo, sobre o qual influi todo um sistema de status, que se dá o corte da utilidade. E no corte taxonômico da utilidade, está o indivíduo supérfluo, privado não só da participação no processo produtivo mas da pretensão de possuir um discurso que sabe, que fala, que participa. Aqui se separam alguéns e ninguéns. O mercado maximiza a utilização possível dos indivíduos; torna todos utilizáveis, de certa forma, para não ter de utilizar todos eles290. A utilidade de alguns está na sua inutilidade. Filtro após filtro, disciplina após disciplina, os outsiders são os resíduos dos resíduos, inassimiláveis a todas elas, que rompem a ordem e precisam ser punidos... por serem tóxicos, desprezíveis, perigosos. Nesse sentido, o controle social vai se exercendo sobre os perigosos já não tanto como o controle de indivíduos concretos desviantes, mas impõe-se, por outro lado, sobre sujeitos sociais coletivos institucionalmente tratados como grupos produtores de risco291. É a lógica atuarial de Giorgi, em que um modelo disciplinar centrado no desordeiro se vê progressivamente substituir por uma modalidade de controle que versa sobre grupos sociais inteiros, considerando o nível de risco do grupo em que se insere. No entanto, nossa discordância do autor está na ideia de inteira substituição de um modelo disciplinar por um novo modelo atuarial. Afinal, a transformação aqui demarcada é uma verdadeira expansão do modelo disciplinário e, mesmo que se revise o objeto de controle - a partir de uma nova filosofia de gestão de massas categoricamente delimitadas -, há um continuum de controle individual paralelo, como forma de permanência normalizadora dos alguéns, o que possibilita a manutenção de alguns parâmetros, a interiorização dos valores e modelos que permitem que se diga: “a minha verdade é verdadeira; e por isso o ninguém é quem eu digo que seja”.

290 291

FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 89. GIORGI, ALESSANDRO de. Tolerancia cero... Cit., p. 39.

89

Ademais, a produção de conformidade é ainda mais importante, na medida em que é ela que “legitima”, no subjetivo de cada um dos componentes dos estratos mais baixos da população, as condições de vida que vivem e que não devem ser vividas, exatamente da forma em que se impõem. É o imaginário socialmente compartido do medo, de um lado, e a ótica da conformidade, do outro, que legitimam o controle progressivo dos perigosos. E nesse caminhar, a existência de setores sociais cada vez mais marginais e distanciados se considera, propriamente, um fenômeno normal, característico de uma sociedade meritocrática, que encontrou sua razão de ser no mercado e na competitividade292. Disciplina-te, ou devoro-te!

5.2.1

Enunciado da verdade e normalização É preciso sacudir a quietude com a qual se aceitam os discursos, mostrar que eles não se justificam por si mesmos, que são sempre o efeito de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas; definir em que condições e em vista de que análises algumas são legítimas; indicar as que, de qualquer forma, não podem mais ser admitidas293.

A discordância acerca da existência de uma passagem completa do sistema dito disciplinar àquele atuarial se centra, principalmente, na problemática da subjetividade e da verdade. Ora, o caminhar pela noção de como se produzem os enunciados de verdade, cujos efeitos são tidos por verdadeiros mesmo que não o sejam, nos parece essencial à compreensão dos mecanismos de controle social atuais, que se delimitam, em muito, no suporte de quem tem o discurso que fala. E quem fala é um estrato social altamente normalizado. O que se pretende tratar, é claro que um tanto quanto superficialmente, é a construção social do discurso - e do discurso com valor de verdadeiro -, indissociável daqueles estratos sociais que operam o sistema, a partir de uma gama de instituições imbuídas do controle. Como se formam e se internalizam, destarte, os discursos hegemônicos294, cuja capacidade de penetração na subjetividade das pessoas permite a constituição de universos de identificação de si e do outro295. 292

GIORGI, ALESSANDRO de. Tolerancia cero... Cit., pp. 39-40. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. 8. Ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p. 31. 294 Hegemonia, em Foucault, como “o fato de se encontrar à frente dos outros, de conduzi-los e de conduzir de certo modo a conduta”. E não há hegemonia, para o mesmo autor, sem aleturgia, que se coloca como “o 293

90

Nesse sentido, a problemática “subjetividade e verdade” consiste em questionar-se como e em quais condições se conhece o verdadeiro; ou ainda, como se dá a formação da verdade que se veicula como verdadeira, na medida em que, é sabido, há um certo número de discursos que se institucionalizam, e se reconhecem verdadeiros a partir do sujeito296. O que se sustenta é que a subjetividade se constitui e se transforma no interior de sua relação com a verdade. O sujeito não é independente à verdade, portanto. Não existe uma verdade que, apenas por seu conteúdo, considera-se universalmente válida. Não fosse isso, os sujeitos são se submeteriam, não aceitariam um apanhado de coisas que se passam efetivamente por verdades verdadeiras, apesar de não o serem. A verdade não se forma numa estrutura formal de conhecimento; a verdade se constrói como obrigação, e como obrigação política297. Por isso, anticiência; não nos parece possível falar em ciência, em geral, sem associá-la a uma questão histórica que lhe faz sombra, sem associá-la a uma moral historicamente formulada298. Trata-se de saber que a experiência de si consigo formula discursos de verdade que serão aceitos e produzidos como verdadeiros; e que não serão tão somente aprendidos, mas sim, introduzidos na subjetividade. Os discursos de verdade são práticas, e só se empregam quando munidos de um conjunto de relações determinadas entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamentos, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação, modos de caracterização299, que dirigem os homens a partir de uma série de operações na ordem do verdadeiro. São essas relações que nos indicam quem fala, qual o status dos indivíduos que têm - e apenas eles - o direito regulamentar ou tradicional, juridicamente definido ou espontaneamente aceito, de produzir os discursos dominantes. Dessa forma, o valor e a

conjunto dos procedimentos possíveis, verbais ou não, pelos quais se revela o que é dado como verdadeiro em oposição ao falso, ao oculto, ao indizível, ao imprevisível, ao esquecimento”. FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 08. 295 GIORGI, ALESSANDRO de. Tolerancia cero... Cit., p. 142. 296 FOUCAULT, Michel. Subjectivité... Cit., pp. 12-13. 297 FOUCAULT, Michel. Subjectivité... Cit., p. 15. 298 “É preciso por em questão essas sínteses acabadas, esses agrupamentos que, na maioria das vezes, são aceitos antes de qualquer exame, esses laços cuja validade é reconhecida desde o início”. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia... Cit., p. 26. 299 FOUCAULT, Michel. A Arqueologia... Cit., pp. 53-60.

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eficácia da fala, a sua existência enquanto fala, não são dissociáveis de quem fala, do seu status, do papel que nele se reconhece, do seu direito de articulação300 É aqui que se posiciona o saber-poder que constitui a norma, enquanto exame perpétuo de um campo de regularidade definido por sujeitos estritos, que avaliam sem cessar o campo de conformidade de cada indivíduo à regra posta. Aqui se coloca o governo dos homens, como técnica geral de organização disciplinar finalizada pela normalização301. Apenas quem pode falar é considerado referência no processo de normalização social, e seus discursos dominantes manifestam efeitos nos domínios da educação, da medicina, da produção industrial, das instâncias de controle em geral. Quem fala, controla. Assim, a norma não deve se definir em absoluto como lei natural, mas como um elemento a partir do qual certo exercício de poder se acha fundado e legitimado, trazendo consigo, simultaneamente, um princípio de qualificação e um de correção 302. A norma não rejeita, mas transforma, intervém positivamente no indivíduo; e é essa intervenção que permite a sua transposição, enquanto alguém, a uma manada de ninguéns destituídos e excluídos. Numa sociedade como a nossa, destarte, modelos de conduta são a todo o momento formados, propostos, impostos e absorvidos. Existe uma “arte da conduta” (l’art de conduire) investida nas práticas, especialmente nas pedagógicas; existem os que podemos chamar de “estereótipos sociais”, que em seus conselhos de existência, constituem o que se toma por verdadeiros modelos de bom comportamento303. Gente do bem. Formula-se, por conseguinte, uma série de coisas que devemos fazer e de gestos que devemos apreender, para que nos transformemos em um sujeito que sabe, que fala, que é. A arte de viver (arts de vivre) se centra, desse modo, não na questão de como fazer, mas de como ser; permite a aquisição de aptidões que conferem uma qualidade de existência ao indivíduo, conferindo a ele o seu acesso ao estatuto ontológico de sujeito304. São processos ativos e permanentes de valorização e de desvalorização, que servem à organização do permitido e do proibido. As grandes formas de interdição, em

300

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia... Cit., pp. 61-62. FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 42. 302 FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 43. 303 FOUCAULT, Michel. Subjectivité... Cit., p. 28. 304 FOUCAULT, Michel. Subjectivité... Cit., p. 97. 301

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seu turno, são apenas os casos limites305, os pontos extremos de um amplo princípio de organização das percepções que, desde muito antes, separa quem está dentro de quem está fora. E só está dentro, só adquire o status de ser alguém na vida, o ser normalizado.

5.2.2

Políticas de reconhecimento e precarização da vida: o marco do “quem é você”

“Quem é você” ou “quanto vale a sua vida”? Tanto vale mais a vida quanto mais normalizado o sujeito; e quantificar a vida na ordem da norma nos fornece três possibilidades: ou o indivíduo é normal, concentrando toda a oposição ao patológico, ao desobediente, ao desorganizado, ao disfuncional306; ou o indivíduo, apesar de involuído, ainda pode comprar a sua correção, pagar pelo seu aperfeiçoamento; ou, na pior das três hipóteses, o indivíduo é incapaz, é supérfluo, e deve cair para fora do campo da atividade307. Ora, a atividade taxonômica de simples classificação não pode se sustentar per se. De fato, a produção do anormal, a distribuição dos homens por quesitos de aptidões e de decência, é a chave de um marco muito maior: a criação de necessidades. O que se descobriu é que, quanto mais estrito o sistema disciplinar, mais numerosas as anomalias; e quanto mais anomalias existentes, maiores as chances de se fazer da economia das irregularidades uma fonte de lucro, de um lado, e um incremento do poder, de outro308. Assim, a manobra de que se trata é a do arranjo das necessidades pela disciplina, que cria, mantém, reconduz essas necessidades309. Trata-se, pois sim, da instituição de um estado de carência crescente, cuidadosamente gerido, estado esse que não pode e não deve ser suprido por todos. Consumidor: este seria um dos principais estatutos ontológicos do sujeito na modernidade. “Eu preciso ser alguém”; pois que se compre o status de alguém. Aos nãoconsumidores, àqueles fora do circuito, não resta nada que não aceitar a precarização da sua vida e, se não bastasse, fazer o mea culpa da própria precariedade. Não espanta que uma das grandes perversões da ordem seja, justamente, internalizar individualmente o

305

FOUCAULT, Michel. Subjectivité... Cit., p. 101. FOUCAULT, Michel. Os anormais... Cit., p. 139. 307 BATISTA, Vera Malaguti. O medo... Cit., p. 155. 308 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., p. 138. 309 FOUCAULT, Michel. O poder... Cit., pp. 190-191. 306

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fracasso da pobreza como responsabilidade pessoal310, como dependência patológica, como não adequação a uma sociedade esquematicamente organizada. A população pobre é, enfim, população-problema. Aqui, é onde são delimitados os espaços de vida dos sujeitos. A gestão da vida e da morte preza por estados globais de equilíbrio, e faz incidir sobre a multidão trabalhando a sua espacialidade. Afinal, os alguéns reconhecem na população-problema a raiz de toda contaminação da pureza, e a distância deve ser por isso intransponível. Criam-se, a partir daí, um vasto conjunto de barreiras materiais e simbólicas, que mantém separadas as classes311, as raças: os perigosos de um lado; do lado oposto, os que consomem perigo. O remanejamento das necessidades nos vende portões mais resistentes, fechaduras suplementares, condomínios ultra vigiados, carros blindados, cercas elétricas, segurança privada. Junto a isso, desenvolve-se uma política de não reconhecimento no outro que expulsa o perigo, cada vez mais, para espaços marginais, off-limits, nos quais o lixo urbano não se faz viver nem ver312. Nestes espaços marginalizados, não chegam as prescrições civilizadas, os costumes adiantados, os hábitos saudáveis. Suas populações são moralmente descontroladas, indolentes para o trabalho, desrespeitosas perante a autoridade, dispostas ao crime. A construção etiológica do criminoso, há décadas formalmente abandonada, vige. Dá-se ao desemprego uma conotação anormal, e ao trabalho decente uma propriedade quase curativa; associa-se a pobreza à preguiça, à ociosidade. São todas essas estratégias que permitem estender a ação disciplinar do Estado sobre os setores miseráveis da população313. Na disposição dos lugares sociais, o essencial é destacar quem coloca em perigo a ordem da sociedade, quem não está como devia no tecido social, quem configura, destarte, uma fonte potencial e permanente de perturbação. Trata-se de construir o inimigo identificando-o como a causa do perigo, e nunca como alguém exposto a ele314. Trata-se, finalmente, de encontrar a anomalia e a tendência criminosa em tudo o que se constitui a população pobre, e em todos os estereótipos que sobre ela recaem. 310

WACQUANT, Loïc. Punir os pobres... Cit., p. 09. GIORGI, ALESSANDRO de. Tolerancia cero... Cit., p. 72. 312 BAUMAN, Zygmunt. Confiança... Cit., p. 26. 313 RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 65. 314 ZACCONE, Orlando. Indignos... Cit., p. 260. 311

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Em paralelo, ao lado dos amontoados humanos315, ao lado dos viveiros de monstros316, convivem regiões esquadrinhadas de grupos normalizados onde a tecnologia disciplinar de fato se efetivou. Nestas regiões, espaços fechados filtram os aspirantes a usuário: a seleção é o passe de acesso. Os discursos do medo têm consequências estéticas317. Nunca

foi

tão

verdadeira

a

análise

foucaultiana

do

biopoder,

instrumentalizado em um racismo interno, que busca no seio da própria sociedade o germe de sua destruição. Não há inimigo externo à cidade: o que existe é uma sub-raça segregada, a quem se atribui o estatuto de inimiga e à qual muitos espaços são intangíveis; o que existe é uma pobreza desordeira, cuja não-vida é terreno natural do crime, devendo ser erradicada em sua periculosidade. As interações humanas, nas palavras de Bauman, reduzem-se “a um conflito entre automóveis e pedestres, possuidores e despossuídos”

318

. E coligando os espaços

privados e públicos aparecem as ornadas vitrines das lojas, em toda a sua tecnologia de vedação de acesso daqueles que não consomem nem a própria sobrevivência. A pobreza é violência latente, e o que importa é que “fiquem ali”. Ultrapassados os limites, acionam-se as cruzadas morais319, alastra-se o medo da transgressão e clama-se por uma intervenção institucional verdadeiramente punitiva - ah, o país da impunidade! - que, por meio de todo o seu aparato de sujeição, venha fabricar desordeiros obedientes. Que obedeçam, que vejam a morte chegar unicamente como espectadores impotentes. Que sejam punidos por sua raça e por sua classe, e não em função de seu “crime”. Afinal, quem é o criminoso? Alguém pobre, negro, favelado, analfabeto, rude e não tanto alguém que matou ou furtou, simplesmente320. “E a máquina de moer gente continua a operar a pleno vapor”321.

315

RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., p. 74. ZACCONE, Orlando. Indignos... Cit., p. 139. 317 BATISTA, Vera Malaguti. O medo... Cit., p. 203. 318 BAUMAN, Zygmunt. Confiança... Cit., p. 72. 319 GIORGI, ALESSANDRO de. Tolerancia cero... Cit., p. 131. 320 RAUTER, Cristina. Criminologia... Cit., pp. 97-98. 321 ZACCONE, Orlando. Indignos... Cit., p. 258. 316

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CONCLUSÕES “Senhor, o crime não dorme; e este he de tal natureza que cumpre mais que nunca que o governo o esmague, e não se deixe prender por acanhadas considerações de despreza, ou de politica. O Brazil ameaçado reclama justiça e energia”322.

“O crime não dorme”. Um discurso extremamente atual, não fosse datar do ano de 1835323. São várias e velhas ideias-força que ainda se fazem presentes em nossos caminhos de medo, e que atuam por etapas. Primeiro, põe-se uma certa ordem que passa por classificações e hierarquizações, que divide em raças e em cores, que exige ritmos e rituais; depois, investem-se alguns de boas qualidades, enquanto se bestializam outros; e por fim, cria-se uma polícia que inspira confiança em uns, ao mesmo tempo em que infunda terror a outros324. A construção histórica do inimigo negará a alguns a sua condição de pessoa; e estes alguéns, agora ninguéns, serão eternos suspeitos deixados à morte. A gestão da vida e da morte é discriminatória, neutralizante, eliminatória, mas também produz: produz vivos medrosos e mortos resignados, produz uma sociedade em que a polícia é sempre pouca e o humanismo é elegância retórica325, produz barreiras físicas e simbólicas, produz vidas sem valor de vida, produz discursos que matam. Os discursos-arma são um emaranhado. São muitas as instituições por onde circulam, instituições essas que, aparentemente, nada têm em comum com a biopolítica, como se dela fossem independentes - verdade não verdadeira. Isso é sabido no que diz respeito à família, à escola, à universidade e, de maneira geral, a todos os sistemas de difusão de conhecimento. Não há difusão neutra de saber; o saber é poder, e poder engajado. Sempre existirão, entretanto, aqueles indivíduos que se apresentam como especialistas da verdade, como se esta se impusesse à política, fosse externa a ela, fosse intocável. Ora, por certo eles têm algo a esconder: por trás de todo o governo existe uma ordem manifesta do mundo, cuja função é justamente fazer do governo a manifestação da verdade da ordem do mundo326. As verdades mentem.

322

Aurora Fluminense, nº 1032. Rio de Janeiro, 27 de março de 1835, pp. 3824-25. In BATISTA, Vera Malaguti. O medo... Cit., p. 191. 323 “Tropeça-se a todo tempo na cômoda herança dos tempos coloniais”. GENELHÚ, Ricardo. O médico... Cit., p. 86. 324 BATISTA, Vera Malaguti. O medo... Cit., p. 194. 325 BATISTA, Vera Malaguti. O medo... Cit., p. 181. 326 FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 06.

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De fato, se toda a verdade fosse conhecida, se as pessoas soubessem efetivamente e com profundidade o que acontece na realidade - e que a aparente competência dos outros se destina a esconder -, se todos soubessem tudo sobre a sociedade em que vivem, o governo simplesmente não poderia mais governar. A verdadeira tarefa política, assim, é a crítica do funcionamento das instituições, que se impõem como neutras e independentes; criticá-las e atacá-las de tal maneira, que a violência política obscura seja desmascarada e combatida327. “Façamos as máscaras caírem, descubramos as coisas como elas acontecem, tomemos cada um de nós consciência do que são a sociedade em que vivemos, os processos econômicos de que somos inconscientemente agentes e vítimas, tomemos consciência dos mecanismos de exploração e da dominação, e com isso o governo cai”328. Alteremos o rumo do governo. Que se revoltem os saberes sujeitados, que se encontrem brechas no domínio dos discursos, que se colonizem as instituições com aqueles que não são tão iguais quanto os outros. Ora, todas as instâncias da vida já estão invadidas, e o que nos resta é o desadestramento, é o desobedecer dos papeis para os quais fomos treinados, é a indisciplina. A ocupação dos espaços, assim, é a forma primeira da desordem; e apenas uma sociedade desordenada e não inofensiva poderá de fato resolver seus problemas sociais. É preciso pensar na sociedade em que vivemos, nas relações econômicas no interior das quais ela funciona e no sistema de poder que define as proibições e as permissões regulares de nossas condutas. E é preciso fazê-lo a partir de uma ótica de justiça que é luta social. A verdade se desenrola em muitos procedimentos de dizer-a-verdade329, e o biopoder tem raízes mais profundas do que se pode imaginar; existem núcleos e pontos de apoio invisíveis a priori, cuja resistência e solidez talvez se localizem onde jamais se poderá encontrar. É preciso revelar o local da ação, os espaços e as formas pelas quais se exerce a dominação330. Compreender exaustivamente: crítica e luta. É disso que precisamos.

327

FOUCAULT, Michel. In CHOMSKY, Noam; FOUCAULT, Michel. Natureza humana... Cit., pp. 5152. 328 FOUCAULT, Michel. Do governo... Cit., p. 15. 329 FOUCAULT, Michel. Le gouvernement... Cit., p. 81 330 FOUCAULT, Michel. In CHOMSKY, Noam; FOUCAULT, Michel. Natureza humana... Cit., p. 52.

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