(BIO)POLÍTICA, DIFERENÇA E A DANÇA NA EDUCAÇÃO

May 30, 2017 | Autor: Lúcia Matos | Categoria: Dance Education, Dance
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SIDD 2011 Descobrir a Dança / Descobrindo através da Dança Discovering Dance / Discovering through Dance Descubrir la Danza / Descubriendo a través de la Danza

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Portugal Seminário Internacional International Seminar Seminario Internacional

10-13 NOV

Universidade Técnica de Lisboa Faculdade de Motricidade Humana

TÍTULO Livro de Atas do SIDD2011 Seminário Internacional Descobrir a Dança / Descobrindo através da Dança 10-13 Novembro 2011 FMH EDITORES Elisabete Monteiro Maria João Alves EDIÇÃO Faculdade de Motricidade Humana Serviço de Edições 1495-002 Cruz Quebrada, Portugal EXECUÇÃO GRÁFICA Staff for You TIRAGEM 300 exemplares DATA Fevereiro de 2012 ISBN 978-972-735-181-7 Depósito Legal nº …………………

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Índice PREFÁCIO ...................................................................................................v AGRADECIMENTOS................................................................................... vi NOTA dos EDITORES............................................................................... viii Índice ........................................................................................................... 1 Keynote Speakers ..................................................................................... 7 CHILDREN’S RIGHT TO DANCE ............................................................... 8 Eeva Anttila ................................................................................................ 8 (BIO)POLÍTICA, DIFERENÇA E A DANÇA NA EDUCAÇÃO.................... 26 Lúcia Matos .............................................................................................. 26 Preletores ................................................................................................. 43 A CRIAÇÃO COREOGRÁFICA NO ENSINO VOCACIONAL: ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS Patrícia Cayatte & Ana Silva Marques ................................................... 44 A CRIATIVIDADE NO PROCESSO DE COMPOSIÇÃO COREOGRÁFICA Catarina Lopes Ribeiro & Ana Silva Marques ....................................... 55 A DANÇA EM CONTEXTO ESCOLAR: ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA MOTRICIDADE HUMANA PARA A EFECTIVAÇÃO DE UMA PRÁXIS TRANSFORMADORA Aline Fernandes Alvarenga, Ana Maria Pereira & Katia Simone Martins Mortari ...................................................................................................... 76 A DANÇA NA PERCEÇÃO DOS PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA Luisa Alegre ............................................................................................. 88 A DANÇA NA PROMOÇÃO DA INTERDISCIPLINARIDADE Ana Silva Marques ................................................................................... 99 A DANÇA NO CONTEXTO DA MOTRICIDADE HUMANA: PRESENÇA, PROJECTO E PROCESSO Katia S.M. Mortari & Ana Maria Pereira................................................ 113

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Keynote Speakers

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(BIO)POLÍTICA, DIFERENÇA E A DANÇA NA EDUCAÇÃO Lúcia Matos PPGDança - Escola de Dança – UFBA, Brasil

Resumo: Esta conferência aborda as transformações conceituais do termo biopolítica (Foucault, 2008; Deleuze e Guatarri, 1995) e suas

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implicações para as relações de corpo, diferença e poder nos processos artístico-educativos em dança. Propõe-se como foco de análise a estruturação de planos de composição (Lepecki, 2010) que possibilitem estabelecer alguns trânsitos entre questões presentes na performance My own private bio-politics, do performer sérvio Saša Asentić, e aspectos relacionados à Dança na Educação. Aponta-se a necessidade de (re)composições (bio)políticas e validação da diferença do/no corpo que dança para que o processo de ensino-aprendizagem seja potencializado como espaço de transgressão e de agenciamentos coletivos. 26

Palavras-chave: corpo; biopolítica; planos de composição; planos de fuga; dança; educação.

Primeiramente, gostaria de agradecer a Elisabete Monteiro e aos membros da Comissão organizadora pelo convite para compartilhar minhas ideias com os participantes deste Simpósio. Espero que a minha fala, de certo modo, consiga, nesse ambiente de encontro, gerar reverberações. Apresentarei algumas questões do campo da Dança na Educação que têm me afetado e com as quais busco afetar aqueles que estão ao meu redor. Uso aqui a acepção de afeto de Deleuze, como aquilo que afeta e cria devires, e essa ação tem me propiciado experimentar zonas de incertezas e me levado a constantes indagações. Assim, proponho estabelecer alguns trânsitos entre questões presentes na performance My private bio-politics, do performer sérvio Saša Asentić, e aspectos relacionados à Dança na Educação, visando esboçar planos de composição, os quais se constituirão como elementos indagadores para devires compositivos. Como explana Lepecki (2010), um plano de composição “é uma zona de distribuição de elementos diferenciais heterogêneos intensos e ativos, ressoando em consistência singular, mas sem se reduzir a uma unidade’” (p. 13).

artístico-educativos implica, também, em percebermos os agenciamentos e os planos que a compõem. Assim, proponho pensar em linhas de fuga, com a própria dança, o que não impede, pelo contrário, potencializa,

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Pensar a dança em seus sistemas, nos seus processos e configurações

tangências e relações com outras áreas de conhecimento. Assim, escolhi estruturar aqui dois planos de composição, os quais são codependentes e se configuram muito mais como pontos de devires do que certezas: contexto e micro (bio)políticas; corpo, diferença e repetição. A apreciação da performance My private bio-politics não foi estabelecida de forma direta, com a obra “ao vivo”, mas por meio de outras duas vias de acesso à obra: o registro da performance existente na Internet, no canal

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dance-tech1, e pela escrita performativa da própria obra, feita por Saša Asentić com contribuição de Ana Vujanović. Assim, todas as relações que aqui estabeleço foram realizadas a partir das percepções e contaminações que se efetivaram no fluxo de trocas que estabeleci com esses ambientes, e aqui não tenho a pretensão de desenvolver nenhuma análise extensiva sobre a obra, mas tomar algumas de suas questões como pontos de fuga. Essa performance foi concebida como um ensaio aberto e construído como

um

processo

colaborativo,

com

artistas,

dramaturgos

e

pesquisadores, por meio de um projeto denominado Índigo Dance, o qual foi coproduzido pelo Centre National de La Danse de Paris, por meio de uma residência artística. Nessa performance, Asentić, partindo sempre de suas experiências como artista/autor, aborda dispositivos relacionados ao processo de produzir dança na Sérvia, os problemas encontrados nos sistemas de financiamento da produção artística e as dificuldades presentes na inserção/circulação da dança contemporânea no seu país e nos festivais ocidentais. Critica o monopólio da dança contemporânea ocidental ao SIDD 2011

mesmo tempo em que indaga os motivos pelos quais os festivais do Oeste Europeu o convidam para apresentar essa performance. No paper performativo o autor declara que após um ano de apresentação dessa performance na Sérvia, como work-in-progress, ele resolve fazer uma mudança significativa: começa a realizar um work-inregress. Nessa perspectiva, o artista assume um processo de regressão da obra e, dessa forma, vai, aos poucos, suprimindo partes da mesma, deixando rastros da primeira versão apresentadas por meio de trechos do 28 1

Tive acesso a essa obra através do instigante projeto Dance-Tech - explorações interdisciplinares sobre a performance do movimento, coordenado por Marlon Barrios Solano, um venezuelano radicado em Nova York (www.dance-tech.net).

registro da obra em vídeo. Para realizar a regressão da obra Asentić inclui narrativas sobre esse processo e demanda a um membro da plateia a responsabilidade de registrar, por meio de uma câmera, a performance daquele dia como uma forma de assegurar a permanência de rastros entre o processo e a digressão. Essa digressão promove espaços de transgressão e deslocamentos sobre a própria obra. Ao se colocar no cerne da questão enquanto artista e indagar a produção e o mercado da dança contemporânea, Asentić potencializa as relações entre o artístico/social/político, realiza agenciamentos em torno das micro e macropolíticas, e propõe, por meio de suas enunciações, a sua própria biopolítica. As teses apresentadas por esse artista, muitas delas sem possuir uma resposta conclusiva, passam a ser os elementos centrais da própria performance. Assim, algumas das considerações presentes nessa obra serão aqui utilizadas como pontos de reflexão para pensarmos a Dança na Educação.

Questão presente na performance: Existe alguma outra possibilidade de produzir dança contemporânea na Sérvia, além da cópia de técnicas e conceitos que são populares, quase modas e que são usual ou somente originários do Ocidente? (Asentić, 2008).

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Plano do contexto e ações (micro) (bio)políticas

Essa é uma das questões levantadas por Asentić em sua plataforma discursiva2 para colocar em cena questionamentos sobre o momento de 29

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Termo utilizado pelo autor para denominar a sua performance.

reconfigurações políticas e culturais entre Leste e Oeste Europeu, e visões estereotipadas, colonialistas e hierárquicas que permanecem nesse processo. Como sabemos, a produção de dança contemporânea do Leste Europeu ainda é pouco difundida (assim como a produção de muitos países sul-americanos) na Europa. A Sérvia é um país que se encontra em um momento de transição pós-socialista, (des)locado da União Europeia, e, muitas vezes, o senso comum cria uma expectativa de que a produção em dança nesse país se restringe às tradicionais danças folclóricas bálcãs. Como declara o próprio Asentić, durante a performance, parece que dentro do senso comum da dança só resta à dança bálcã o direito de ser exótica, amadora e antiquada. A partir desses questionamentos, de sua trajetória pessoal no campo da dança e de reflexões dialógicas com outros artistas e pesquisadores, esse artista cria espaços de enunciação e agenciamentos para sua biopolítica. Mas a que biopolítica ele se refere? O conceito de biopolítica foi primeiramente apresentado por Foucault no SIDD 2011

artigo sobre “O nascimento da medicina social”, texto integrante do livro Microfísica do Poder (2008). Ao afirmar que o controle da sociedade não se opera apenas pela consciência ou ideologia, mas sim pelo biológico, pelo somático, Foucault ressalta que o corpo é uma realidade e estratégia biopolítica, evidenciando a politização da vida. Se, inicialmente, Foucault nos apresentou o termo corpos dóceis para mostrar o corpo disciplinado, ordenado e apto ao sistema de produção – conceito este que foi muito utilizado para abordar o disciplinamento do corpo na dança – o termo biopolítico, na perspectiva foulcautiana, aponta para uma mudança do 30

poder sobre corpos individualizados para a ação (política) do Estado no controle da vida e do corpo da população.

Avançando nessa discussão sobre biopolítica, Deleuze (1992) aborda a substituição do modelo disciplinar de sociedade para o que denominou sociedade de controle, em que o poder está dissolvido nas modulações dos fluxos sociais, os quais estão em constante transformação, o que implica, também, em subjetividades flexíveis. Essa nova forma de poder, na mirada desses autores, não apaga os antigos dispositivos de confinamento, mas os modifica. As instituições disciplinares e de confinamento, como escola, família, fábrica, prisão etc., permanecem nessa sociedade como mecanismos de controle. Entretanto, por estarem em crise, muitos desses espaços ainda apresentam respostas baseadas nos pressupostos do pensamento moderno para problemas contemporâneos, o que desvela a sua fragilidade. Como coloca Boaventura de Souza Santos (2008, p. 13), “tempos de transição são, por definição, tempos de perguntas fortes e respostas fracas”. Pensando

a

sociedade

de

controle

nesse

horizonte,

na

contemporaneidade, podemos indicar vários exemplos. Hoje, não se enfatiza a necessidade da escola como Instituição, mas da formação busca por um conhecimento aparentemente inalcançável; as redes sociais na Internet possibilitam ao cidadão exercer o seu papel de fiscalizador do Estado, agindo simultaneamente como controle e mobilização social; o

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continuada que se dissipa em diferentes ofertas do mercado, em uma

confinamento da prisão pode ser substituído pela prisão domiciliar, monitorado por coleiras eletrônicas; o corpo não é mais disciplinado por algo externo a ele – cada um de nós busca o controle, seja sobre sua saúde, a ampliação de sua expectativa de vida, a seleção de uma atividade física, o cosmético ideal para seu padrão de beleza – todos esses aspectos aliados a mercado, padrões e consumo. Essas questões afetam a todos nós – neste momento, de diversas maneiras, permito e acato, de certa forma, esse controle social: em meu celular, com Tecnologia Android, há

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um dispositivo, alardeado como um item de segurança, que permite a algumas pessoas rastrear a minha localização via GPS (se eu errar na configuração dessa tecnologia posso me expor e permitir que todos os meus contatos do Facebook saibam onde estou). Por outra via, esse controle também pode ser feito por meio de processos de normalização, como, por exemplo, a necessária apresentação de atestados de vacinação na entrada de vários países na Europa, pois todo brasileiro passa a ser generalizado como potencial transmissor de doenças tropicais, mesmo que não more no Brasil em área suscetível a essas doenças. Na sociedade de controle somos dados estatísticos, identificados por senhas e pelo perfil de consumo, atrelados às cifras que giram em torno da lógica flutuante neoliberal, “um capitalismo de sobre-produção”, como afirma Deleuze (1992, p. 223). Hoje, o controle é contínuo e instantâneo, em todas as esferas da vida, ocorrendo interpenetração dos espaços, e o poder se dissolve nas redes. Ao defenderem outra compreensão de biopolítica, Deleuze e Guatarri (1995) afirmam que a visão por eles apresentada se distingue da SIDD 2011

perspectiva de Foucault, pois, enquanto, para este, a biopolítica da população é uma máquina abstrata, para Deleuze e Guatarri os agenciamentos não se centram no poder, mas nos desejos. Em suas palavras, “os agenciamentos não nos parecem, antes de tudo, de poder, mas de desejo, sendo o desejo sempre agenciado, e o poder, uma dimensão estratificada do agenciamento” (1995, p. 84). Se, para Foucault, a biopolítica mostra de forma depreciativa que a vida é subordinada às lógicas de controle social, para Deleuze e Guatarri, nessa sociedade de controle o homem funciona em fluxos ondulatórios e o 32

biopolítico pode significar microespaços de resistência.

Como forma de transgressão às modulações da sociedade de controle Deleuze ressalta que a biopolítica pode ser uma potência positiva, uma força criadora que articula simultaneamente a singularidade e pluralidade, abarca as dissonâncias e possibilita linhas de fuga ou desterritorialização. Como Deleuze explana em uma das entrevistas cedidas à Claire Parnet, “não há território sem um vetor de saída do território e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte”3. A linha de fuga não é um plano de abandono, pois, como ressalta Zourabichvili, é uma potência, já que “uma linha sobre um plano fornece um outro ponto de vista sobre o conjunto de uma situação, um critério imanente que permite analisar os agenciamentos” (2004, p. 30). A linha de fuga permite pensar em outros estados de linhas, em outros tipos de linhas, em outros estados de corpos, e em outras conexões que possibilitam mapas mutantes. Nesse sentido, é interessante identificar algumas correlações com a performance já citada. Para poder se inserir no sistema da dança europeia envio de propostas às convocações de festivais, mas aponta que, para os festivais, encontrou uma forma alternativa, mais eficaz, para ter acesso a esses circuitos: a recomendação, que acaba funcionando como um

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Asentić aponta o caminho de participação em residências artísticas e de

carimbo de pertencimento. Ao se ver nesse circuito, cuja performance inicial critica o próprio sistema de circulação da dança e os modelos educacionais da dança europeia, Asentić começa a indagar por que passou a ser convidado para participar de tantos festivais. A partir de seus

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In: Abecedário de Gilles Deleuze. Série de entrevistas disponíveis na TV Escola – Ministério da Educação.

diálogos com a pesquisadora Ana Vujanović, ele apresenta uma hipótese: como sua crítica vem de fora do sistema instaurado (festivais/contexto europeu ocidental) sua inserção nesse circuito acaba demonstrando a frágil potência crítica desses sistemas e, ao mesmo tempo, desvela o sintoma do monopólio ocidental no cenário da dança contemporânea. Ao perceber esse dispositivo do próprio sistema, esse performer inicia a terceira fase do seu projeto, na qual proclama a autoabolição da obra de arte e começa a pensá-la como um meio artístico que propicia uma reflexão sobre o contexto e público. Nesse sentido, ele avalia que, a partir do momento em que se insere nesse circuito, passa a fazer parte dele, e isso leva a um enfraquecimento da própria crítica presente em sua performance. E ainda desvela: essa é a forma como opera o sistema da arte, da dança. Assim, propõe a digressão da obra para que a mesma passe a ser um meio. É interessante notarmos que nesse processo ocorrem as duas formas de biopolíticas: o controle social, através dos sistemas dos festivais, e um ponto de fuga criado por Asentić, na digressão de sua obra, criando, aí, um

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microespaço de resistência. Se pensarmos essas questões no campo da Dança na Educação, e aqui me refiro ao Brasil (mas muitos desses aspectos também ressoam em outros contextos), considero que poucas linhas de fuga têm sido criadas nos sistemas nos quais estamos inseridos. De uma forma ampla, quando se trata de processos artístico-educativos em dança, percebo que ainda há uma grande distância entre a flexibilidade e reinvenção presentes em processos e configurações artísticas da dança, principalmente em algumas propostas da(s) dança(s) contemporânea(s), e a conformação e linearidade 34

de muitos processos educativos que ainda se fundamentam em práticas tradicionais de dança, em perspectivas hierárquicas e duais de corpo.

Ainda prevalece nos sistemas educacionais da dança um controle social e

uma

epistemologia

disciplinarização

dos

excludente corpos

e

e

hegemônica

hierarquização



dos

baseados saberes

na com

predominância de culturas de raiz eurocêntrica. Nesses sistemas ainda se perpetuam configurações lineares e hierárquicas de currículo que mantêm o conhecimento compartimentalizado e cristalizam os conceitos de dança e de corpo. Seus métodos empregam mecanismos de controle e adestramento do corpo que dança, e, desse modo, imprimem na paisagem educativa o que Najmanovich (s.d.) chama de escola da modernidade, com seu cenário mecânico-disciplinador. Permanecem ainda sistemas educacionais da dança que pouco dialogam com os desejos e contextos dos alunos, cujos docentes separam sua prática da teoria e da ação política e pouco se lançam nas incertezas do conhecimento e na construção coletiva. Essas ausências enfraquecem a emergência dos diálogos interculturais, a emersão de epistemologias contra-hegemônicas, que desvelam o caráter múltiplo do mundo e outras ecologias dos saberes (Santos, 2005). Ao mesmo tempo, essas estabelecido e as incertezas, sendo as incertezas que nos movem para estados transitórios e possibilitam processos de (des)territorialização. Todos esses aspectos relacionados à biopolítica me fazem lançar

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manutenções também não favorecem agenciamentos entre o que é

perguntas para devires compositivos: Como podemos potencializar novos planos de composições nos processos de ensino-aprendizagem para que estes se tornem espaços de indagação, de reforma de pensamento, de encontro com a diferença, de ação compartilhada, de agenciamento de desejos e visem à instauração de microespaços de resistência? Como estamos articulando as macropolíticas e as micropolíticas da Dança na Educação?

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Plano do corpo, diferença e repetição Questões presentes na performance: [o performer ao vestir roupas esportivas, de segunda mão, afirma:] Agora sou reconhecido, sem dúvidas, como um dançarino contemporâneo e estou totalmente nas novas tendências da dança! Como perceber a influência de coreógrafos ao invés de copiá-los ou imitá-los? A tradução é uma alternativa à cópia? (Asentić, 2008).

Se reconhecemos a potência positiva da biopolítica, que é a própria potência da vida, devemos lembrar que ela ocorre no corpo, que não é apenas biológico, mas cultural, político, histórico e social. O corpo não é fragmentado em objetivo/subjetivo, natural/cultural, e, como explanam Katz e Greiner (2005), ele está em constante processo de contaminação com o ambiente, de forma codependente. O corpo é mídia de si mesmo, é corpomídia4, pois, como assevera Katz (2006, p. 1), ”um corpo sempre SIDD 2011

mostra a si mesmo, o que equivale dizer que ele sempre se apresenta com a coleção de informações que o constituem naquele exato momento”. Assim, suas transformações se dão nos agenciamentos que são coletivos e singulares, no e com o corpo na sua relação com o ambiente. A subjetividade é aí constituída da mesma forma que corpo é pensamento. Chego, assim, a um segundo ponto essencial para o desenvolvimento de minha proposta. O corpo visto como a mídia de si mesmo, no caso da

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Termo cunhado por Greiner e Katz (2001). Que nega o corpo como instrumento de alguma coisa e define-o como mídia de si mesmo, cujas informações e cruzamentos culturais estão contidos no próprio corpo em suas negociações com o ambiente.

dança, se apresenta como pensamento, que pode propor linhas de fuga e desterritorializações. Para tanto, compreendo a dança como ação política, pensamento transitivo do corpo que, em sua (re)com.posição, apresenta as informações da diferença contida na singularidade e nos agenciamentos coletivos, já que o ser é uno em sua multiplicidade e se diz na diferença. Vale ressaltar que, para Deleuze, a univocidade não significa a existência de um único e mesmo ser; para esse pensador, os seres são múltiplos e diferentes, sempre produzidos por uma síntese disjuntiva, eles próprios disjuntos e divergentes. Dessa maneira, adoto aqui o conceito de diferença5 proposto por Deleuze: o “Ser se diz num único sentido de tudo aquilo que ele se diz, mas aquilo de que ele se difere: ele se diz da própria diferença” (1988, p. 76) e a faz diferindo. A diferença se instaura na relação, nos agenciamentos e, nesse sentido, a filosofia da diferença recusa a diferença delimitada como negação ou como negativo de limitação ou de oposição. Assim, a diferença não está circunscrita na exterioridade do sujeito, nem em seus adjetivos e nos estigmas.

nos quatro pilares da representação (identidade, analogia, oposição e semelhança). Mostra-se a diferença diferindo, e ela só pode ser pensada em si mesma quando se desprende das amarras da representação. Para

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Deleuze propõe que a diferença não pode ser compreendida baseada

esse autor, no mundo dos simulacros o jogo é o da diferença e da

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Utilizei esses conceitos em minha tese de doutoramento para analisar a produção de grupos de dança contemporânea que possuem dançarinos com e sem deficiência. Assim, mesmo que neste texto não apareça de forma direta a produção de dança contemporânea com artistas com deficiência, sempre que me refiro a corpo e diferença vislumbro, também, a inclusão de corpos não idealizados pela dança, cuja diferença se torna elemento essencial do processos de criação e sustenta perspectivas de aproximação com padrões de normalidade.

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repetição e, nessa relação, a divergência e o descentramento estão sempre associados à diferença, e o deslocamento e o disfarce, à repetição. Apesar de a repetição ser comumente vista como generalidade, como elementos iguais que possuem o mesmo conceito, na perspectiva deleuziana ela precisa ser compreendida em seu caráter transgressor e como singularidade, pois é necessário localizar o “se” da repetição, a singularidade naquilo que se repete. Para o autor, distinguem-se duas formas de repetição: a primeira mecânica, repetição nua, repetição do mesmo e negativa por deficiência do conceito; a outra, e a que me interessa, a repetição travestida, aquela que apresenta a singularidade naquilo que se repete, que é afirmativa pelo excesso de Ideia, e que “compreende a diferença e compreende a si mesma na alteridade, na heterogeneidade de uma ‘apresentação’”(Deleuze, 1988, pp. 55-56). A abordagem da singularidade de cada repetição é um aspecto muito importante para a compreensão de uma parcela da produção da dança contemporânea, pois em algumas obras coreográficas a repetição é um elemento de pesquisa, gerador de uma singularidade. Considero que a SIDD 2011

repetição em algumas obras da dança contemporânea, ao explorar a complexidade do movimento/ação, o transmutar do que se repete no corpo em

seus

diferentes

estados,

provoca

deslocamentos,

retroações,

simulacros, traduções, pelos quais a diferença transita na organização que ocorre em cada repetição, transbordando séries heterogêneas de movimento/ação que possuem metáforas próprias, fazendo com que a repetição seja a diferença em si mesma. Na performance My Private bio-politics, Asentić potencializa a repetição como diferença por meio de diferentes dispositivos: ao trazer para a cena

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movimentos apreendidos nas salas de aula de dança; ao citar referências de coreógrafos contemporâneos que impactaram no seu trabalho; ao incluir aspectos autobiográficos sobre seu desejo de infância de se tornar

artista; e ao apresentar a coleção de objetos/informações que fizeram parte de seu processo de criação. Por meio desses dispositivos Asentić desloca essas referências e as apresenta de uma forma travestida, como atos de transgressão que interferem diretamente na plateia e no próprio sistema da dança. Seu ato de transgressão se intensifica com o proposital apagamento da própria performance, que apenas permanecerá como rastros, muito similar às nossas memórias. No final da performance, após destruir todas as “provas” dos registros documentais de sua obra, ele declara estar “livre do contexto”. Em seguida, realiza uma sequência que replica movimentos codificados e altamente reconhecidos pela plateia, que nada mais é do que a repetição do mesmo. Isso pode gerar um estado de conforto na plateia, pela falsa ideia da negação da diferença e pela permanência de linguagens de dança que todos esperam ver. Essa negação das diferenças também é facilmente percebida em muitos sistemas educacionais da dança. Muitos corpos se tornam invisíveis para garantir a visibilidade de determinados padrões corporais. Práticas corporais usualmente presentes nas salas de dança ainda se encontram essa norma (como o obeso ou o corpo da pessoa com deficiência) são considerados como corpos não desejados pela dança, e estes devem se beneficiar da própria dança apenas como terapia e não como arte.

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arraigadas a um corpo idealizado, cujos corpos que não se adequam a

Muitos sistemas da dança compreendem os processos educacionais como individuais e há pouco espaço para ações colaborativas. Os treinamentos corporais, métodos e os processos criativos são abordados, em muitos desses sistemas, por meio de perspectivas instrumentais e duais de corpo. A repetição do movimento é utilizada como uma simples re-apresentação mecânica de uma célula de movimento, como uma repetição nua. Ainda se percebe a permanência da visão do corpo como linguagem não-verbal, como expressão ou como linguagem do indizível,

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conceitos esses que muitas vezes implicam numa compreensão da dança como o grau zero da comunicação, descolada de suas informações bioculturais. Imagina-se que o contexto – social, econômico, cultural, político e histórico – e todas as suas implicações ficam do lado de fora das salas de dança. Essas perspectivas apontam algumas indagações para outros devires compositivos: Como podemos potencializar planos compositivos que levem em consideração a emergência de diferentes ecologias dos saberes? De que forma propiciamos agenciamentos entre o instaurado e as incertezas nos processos de ensino-aprendizagem na dança? Abordamos a diferença e a repetição como divergência e deslocamentos? Potencializamos ou minimizamos nossa capacidade de afetar e ser afetados? Ao optar por apresentar possíveis planos de fuga espero que estes possam se tornar elementos para múltiplos devires compositivos, os quais, em seu processo de desterritorialização, potencializem os agenciamentos com/na diferença, desvelem ecologias dos saberes, configurem-se como espaços de compartilhamento, de incertezas e deslocamentos, e que a SIDD 2011

repetição se apresente de forma travestida e a dança seja, também, percebida como ação política. E aqui chego à última questão, mas a não menos importante: Como você agencia a sua micro (bio)política?

Referências

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Lúcia Matos

[email protected] /[email protected] Professora Adjunta da Escola de Dança da UFBA, atuando na graduação e na pósgraduação. Doutora em Artes Cênicas (PPGAC-UFBA), mestre em Educação (PPGE – UFBA) e licenciada em Dança. É co-líder e pesquisadora do PROCEDA - Processos Corporeográficos e Educacionais em Dança, onde desenvolve a pesquisa “Mapeamento dos campos artístico e formação em dança em dois municípios da Região Metropolitana de Salvador. Coordenadora do Projeto Redanças: redes colaborativas em Dança como ação política. É representante da Bahia no Colegiado Setorial de Dança da FUNARTE/ MINC (2004-2009/ 2010-2011) É membro do Grupo Gestor da Red Sudamericana de Danza (2010 - ). Distinguida com o Prêmio Nacional de Dança do Ministério da Cultura da Colômbia (2010). Apresentou trabalhos relacionados à metodologia do ensino da dança, corpo e diferença, e políticas culturais de dança em congressos nacionais e internacionais. Em 2009 foi palestrante-convidada do World Alliance for Arts Education Summit 2009 (Newcastle, Inglaterra), Nos anos de 2007-2008 exerceu o cargo de Diretora de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia – SECULT. Possui capítulos de livros publicados, e artigos em revistas nacionais e internacionais.: In http://lattes.cnpq.br/8146090051443533

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