Bírico lirismo para um fim de mundo
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BÍRICO LIRISMO PARA UM FIM DE MUNDO por Waldísio Araújo Dia 27 de setembro fui ao Citear, na Gamboa: Reginaldo de Carvalho e um grupo de atores competentes e bem dirigidos eram motivo suficiente. E como se não bastasse, mais tarde haveria eclipse de lua vermelha, coisa um tanto rara, e alguns fanáticos de redes sociais até anunciavam (ou melhor, desejavam) o fim próximo do mundo. Portanto, era um dia mais que ideal para ir ao teatro, Imagem cedida por Glória da Paz essa eterna forma de reatualização da criação humana e recriação cósmica. Logo, nada mais restava que ir ver e viver Biro-lírico: pequeno delírio dramático para café-concerto O cenário é um café, um café-teatro, ou melhor, talvez, um teatro propriamente dito – sítio onde normalmente pessoas se acondicionam em poltronas rigidamente orientadas para um remoto tablado frontal em que outras pessoas representam ser o que não são para serem aplaudidas por aquelas que pagam para fingir que não são atores. Mas o que vi foi bem diferente e sumamente mais digno que isso – como não podia deixar de ser naquele domingo atípico em que o fim do mundo anunciado pelo eclipse nos garantia ao menos que o dia seguinte não seria segunda-feira e que poderíamos, portanto, descansar em paz. Um colar de belas melodias é recitado ao longo de toda a peça, quase como uma única canção que retornasse como absolutamente outra a cada repetição. A peça e seu lirismo se espalham como nuvem pelo ambiente, separando e definindo as massas informes de mesas, cadeiras e gente, desde o início, mesmo antes que um connaisseur (ou Demiurgo) explique em várias línguas o fino e frutado vinho do Porto. Uma voz límpida transita entre o camarim e o palco, sem que saibamos qual dos dois é representação, qual representado – mesmo que, como sabemos, no fundo sempre tenham sido e serão a mesma coisa. Movimentando-se por entre as mesas e o palco, os atores literalmente evoluem, passando a ser o que são apenas quando e enquanto falam (aliás, não seria isto a própria definição de "humano"?). Nada de transições abruptas, saltos, revoluções, e uma rampa separa aqui dois universos. Rampa: espécie de longa escadaria com infinitesimais e invisíveis degraus, que por serem literalmente graduais tornam suportável e até imperceptível o trânsito entre o real e a ficção. Dir-se-ia que uma indefinição em forma de esfera foi imobilizada por Reginaldo de Carvalho exatamente na metade da rampa para definir o próprio jogo teatral. Quando termina a peça e
começa a vida? Ou melhor, há mesmo diferença ou corte entre uma e outra? E que é a bilheteria senão um mero rito de passagem do mundo luminoso asfixiante de Platão para o rejuvenescedor reentrar na caverna? Pensei: se aquela atriz olhar para mim e sorrir, isso terá sido ensaiado? Sorriria e olharia para qualquer um que estivesse no meu lugar? Em suma: "eu" existo mais que mera função, lugar, para a peça que é a vida? E que aconteceria a mim se outra pessoa (que não meu amigo Zecrinha, escolhido aparentemente a dedo para a ocasião) tivesse sido conduzida ao palco com algemas, olhos vendados e chibatadas simbólicas? Será que meus amigos eram atores disfarçados? Mas que diabos vira um ator disfarçado ao subir ao palco? Vira gente comum, se torna "público"? Mas isso não acontece a todo momento, todos os dias? Afinal, se a peça é a vida, e vice-versa, todos nós já somos arrastados ao palco diariamente, mesmo dormindo, desde sempre. E nos disfarçamos de atores, se é que isso faz sentido. E com isso fazemos rir ou chorar, pois signos como as lágrimas são fluidos demais para significar uma coisa só. Foi assim que Hamlet fez representar para a rainha a representação do crime cometido por ela, tornando explícito para o público, sem que este o visse, o espetáculo do remorso: uma realidade nasce quando o público se torna ator. A morte também, ainda mais aqui neste espetáculo do fim de um mundo. Essas cartas e poemas e canções de pessoas falecidas a serem lidos, recitados e cantados pelos atores: será que a peça-vida se estende também ao além? Se do camarim-palco ecoa a voz do falecido Cartola ou do não menos morto Cazuza, não será que os atores insinuaram conduzir meu amigo Zecrinha (aliás, também compositor, mas vivo até então) aos palcos e aos braços da morte? Olhos vendados, flagelos, correntes, noite fazem parte do imaginário macabro do Juízo – final ou não – desde a Antiguidade. E se um pagante tiver esquecido o celular ligado e este tocar durante a peça? Será ainda parte desta? Será uma mensagem do além-túmulo, um aviso fatal, um prenúncio, um presságio? O susto pela erupção do abrupto não arriscaria quebrar a concentração, romper o encanto dos atores, que poderiam perder o momento exato (e único possível) de resgatar meu amigo Zecrinha de entre as trevas? E por que não conduziram ao reino da morte também a minha amiga Alexa, que estava ao nosso lado e que também desfruta e compartilha da eterna mortalidade do ser musical?
Imagem cedida por Glória da Paz.
Pelo palco, por entre as mesas e pelos campos da morte transita o espírito viajante de Álvaro "Biro" Perez. Faz parte, como sempre, do eterno fluxo da vida, e talvez por isso mesmo o inconsciente folclórico lhe tenha com justiça aplicado o sugestivo apelido de "Alvinho do Riacho".
Onipresente, perpassa por todos nós e nos percorre como um calafrio coletivo: não há nada de "espírita" na peça, ela é bem realista e só não é ateia porque ninguém nada perguntou sobre religião nem crenças. Nem sei bem por que estou falando essas coisas, e bem que me avisaram que o vinho do Porto é forte. Bem verdade, que poderiam ter servido mais um bocadinho, mas as explicações do connaisseur teriam de qualquer jeito retirado o que talvez Molière chamado virtus embriagativa. De todo modo, teatro já é embriaguez por definição – se é que é justo associar Dioniso a definições. A peça fala do que não pode ser calado: a inseparabilidade entre a razão e seu contrário, a luz e as trevas, a vida e a morte, o masculino e o feminino, a realidade e a ficção... Por isso, acho, a chamaram de "delírio dramático", e se este delírio é "pequeno" é porque também é comédia, participa do irrisório. E que pares de aparentes opostos não foram nela contemplados? Aqui, o excelente e sutil jogo de escuridão e luz não apenas circunda as pessoas e objetos que nela representam, mas, como num quadro de Reembrandt, os constitui como realidades, os cria e recria, assim como se criaram e recriaram nas costas dos atores várias cenas da vida de Biro do Riacho. Reginaldo Carvalho, atores, técnicos e público verteram um bocado de poesia por sobre a vida e a morte de Álvaro Perez, e este derramou-se sobre nós. Que se sirvam novamente as taças de vinho do Porto ao final (?) da peça. Um brinde aos artistas, em todas as línguas e cantos da Terra. por Waldísio Araújo ********** Dramaturgia e direção: Reginaldo Carvalho Atores: Caco Muricy, Cris Oliver, Fabiano Russo, Liana Perez, Lucas Xavier, Nando Lemos, Nauvinha Aguiar, Pedro Vazão, Roniere Oliveira, Yara Perez Direção musical: Ronald Vaz Supervisão de movimento: Katiane Lima Figurino: Lucimar Amaro Eletricidade: Chiquinho.
Por Waldísio Araújo www.waldisio.com
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