Blade Runner: O que se esconde na fumaça

May 23, 2017 | Autor: Lucas Rafael | Categoria: Theater and film, Cinema, Blade Runner
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE AUDIOVISUAL E PUBLICIDADE
HISTÓRIA DO CINEMA

Professor: João Lanari Bo
Blade Runner: o que se esconde na fumaça
por Lucas Rafael Justino de Morais 160013160
Blade Runner é um clássico, considerado por muitos, tanto do público quanto da crítica, um dos melhores filmes de todos os tempos. A obra, dirigida por Ridley Scott e protagonizada por Harrison Ford, é um divisor de águas e representa uma evolução quase sem precedentes no cinema, tanto em estética, quanto em narrativa e profundidade.
Quando Ridley Scott decidiu, após filmar Alien, que ia adaptar o romance de Philip K. Dick, Andróides sonham com ovelhas elétricas? (1968), tomou a decisão de não fazer este um filme de ação e aventura como outros no cinema, mas de torná-lo um marco da análise cinematográfica do qual vários significados, interpretações e dilemas podem ser inferidos. Blade Runner é, como toda ficção científica de qualidade, um filme de camadas que retrata, de certa forma, o atual. Apesar de comum nos livros e filmes do século XX, a ficção científica se tornou um pano de fundo para que histórias com bastante ação sejam contadas e a crítica ao que é contemporâneo e real foi deixada de lado.
A produção do filme foi conturbada. Enquanto Scott precisava de liberdade artística, tempo e orçamento, os executivos dificultavam sua realização, chegando a incluir, no contrato com o diretor, que se passado certo tempo, Scott perderia controle sobre o filme e os executivos poderiam dar além de pitacos e influenciar no resultado da obra. Todo esse problema que os artistas tiveram com a produtora e distribuidora Warner Bros. acabou em uma bagunça e um filme que, além da versão que primeiramente foi exibida nos cinemas, possui 6 edições diferentes que, entre cenas adicionais e narrações previstas em contrato, alteram substancialmente o filme.
As sete versões de Blade Runner representam uma batalha que Ridley Scott lutou por anos. Em 1992, dez anos depois do lançamento oficial do filme, um corte do dretor foi lançado e, apesar de ostentar este nome, na verdade foi obra da Warner e Michael Arick, um restaurador de películas, que só acataram com algumas sugestões do diretor. Só em 2007, no aniversário de 25 anos do filme, foi que a versão definitiva foi lançada, em DVD na época. Nessa versão, denominada Blade Runner: The Final Cut, Ridley Scott teve total liberdade e pode, enfim, montar o filme como o idealizara. Isso significa que a versão definitiva de Blade Runner não tem as narrações que Harrison Ford foi obrigado pelos executivos a gravar como voice over de Deckard. Além disso, esta versão contém uma cena crucial para que uma das grandes perguntas do filme seja respondida e também não há corte das cenas consideradas violentas.
No aniversário de 25 anos foi quando pudemos ver Blade Runner em toda a sua glória e da forma como originalmente deveria ser. Um clássico que, antes mesmo de receber um ponto final nessa história, já era aclamado pela crítica e pelo público. Mas o que torna Blade Runner essa obra tão marcante e referenciada no cinema mundial?
Superpopulação e problemas estruturais em todos os lugares. Fumaça e chuvas torrenciais são uma constante. A poluição tomou conta de todos os lugares, assim como os chineses. Androides são uma realidade que a engenharia genética conseguiu alcançar e, embora sejam proibidos na terra, problemas acontecem. Replicantes, como são chamados, representam um perigo. A fim de resolver este problema, existem os blade runners, uma espécie de policial designado para caçar e, como é comum dizer ao invés de matar, aposentar os replicantes. Essa é a Los Angeles de 2019, onde mora Deckard, um blade runner aposentado que foi chamado de volta ao serviço por causa de um grande problema: 4 replicantes da categoria nexus 6, a mais perfeita engenharia genética já realizada, estão soltos na cidade.
O cenário em que é desenvolvido esse filme de investigação noir futurista é um dos ambientes que melhor uso fez e mais serviu à estética cyberpunk. Ao retratar uma Los Angeles suja, repleta de pessoas de diferentes nacionalidades, tomadas por asiáticos, onde a chuva nunca para e cair e as ruas estão cobertas de fumaça, o filme ditou a regra para a maioria das obras do gênero cyberpunk que foram, são e serão feitas a partir de Blade Runner.
A fumaça que toma Los Angeles em 2019 é um obstáculo, um obstáculo a uma vida humanamente confortável. As ruas sempre retratadas com uma lotação enorme de pessoas não contribuem em momento algum para demonstrar tranquilidade. A vida na Terra não é fácil. Mesmo com todo o avanço tecnológico, a qualidade de vida só piorou, uma característica clássica das obras cyberpunk. Então por que os replicantes viriam até nosso planeta, tendo em vista a proibição de sua estadia, se tudo o que podemos apresentar é uma vida desconfortável, suja e escondida em fumaça?
Todos nós nascemos no mesmo mundo e todos, se não quase, estamos tão perdidos sobre nossos objetivos na vida quanto qualquer outro. O que estamos fazendo aqui? Por que estamos aqui? O que é que devo fazer? Como é ser um humano? Esses questionamentos nos acompanham durante grande parte da vida e aí nós morremos. Sim, morremos. Não existe uma resposta universal satisfatória.
O que Blade Runner nos apresenta são seres criados com tecnologia humana para serem idênticos aos humanos, mas superiores fisicamente e, como é demonstrado, até intelectualmente. Seres de essência tal que foram designados a uma vida de escravidão sem nunca poder visitar o berço da humanidade. O filme é sobre origens. Os replicantes vão até a Terra, como foras-da-lei perseguidos a fim de encontrar, nas sua origens, uma resposta e uma solução ao seu problema de duração da vida útil de 4 anos.
Os questionamentos filosóficos são muitos e o filme não os aborda diretamente, sendo trabalho do espectador entender as nuanças de cada plano, cada música, magistralmente performada por Vangelis, e colocar o próprio cérebro para funcionar a fim de compreender toda a mensagem.
Replicantes não são robôs, seres feitos de metal e parafusos. São, na verdade, um fruto da engenharia genética, clones aprimorados com diversas capacidades sobre-humanas. Roy Batty, o replicante interpretado por Rutger Hauer, demonstra o filme todo ter consciência de seus atos e do seu lugar no mundo. Sua procura pelas origens e por mais tempo de vida, devido a limitação que Tyrell colocou em seus replicantes, de tempo de vida máximo de 4 anos, reflete a busca da humanidade por um Deus, uma figura responsável, tal qual uma mãe ou um pai que possa nos responder as perguntas e nos guiar pelo que devemos fazer. A metáfora é explícita, Scott não deixou que se escondesse e, da boca do próprio Roy Batty, ao encontrar Tyrell, seu criador, saem as palavras "não é fácil se encontrar com seu criador". Batty entende o dilema humano.
No início do filme, o texto nos avisa de que replicantes tem, pelo menos, a mesma inteligência que os cientistas que os criaram. Isso é demontrado durante o filme inteiro. Porém, falta algo nas atitudes dos replicantes. O modo como foram criados e o que foram feitos para realizar demonstra que, apesar de serem inteligentes, os seres não possuem a mesma capacidade de pensar que os humanos. A eles, falta inteligência emocional, algo que os cientistas os privaram de ter por conta do baixo tempo de vida.
A mente do replicante se reflete na metrópoles. Los Angeles 2019 é uma cidade de alta tecnologia, de prédios imensos, invenções absurdas. Porém, na superfície, é uma cidade que não soube lidar com o crescimento. Cuja essência se perdeu na globalização que o filme demonstra. A cidade já não é a mesma, nem pode ser vista como, a fumaça tomou as ruas, tudo que se vê é vapor e multidões que, no fim, podem estar tão perdidos quanto qualquer replicante do grupo de Roy.
O engenheiro que trabalha para Tyrell, J.F. Sebastian, é mais um dos pilares sobre o qual o filme sustenta sua tese. Sebastian sofre de uma condição, a síndrome de Matusalém, que faz com que o seu corpo, aos 25, pareça o corpo de alguém beirando os 50. Isso, inclusive, o impediu de sair da Terra e desbravar o espaço. Não é incrível? Os replicantes, cuja estadia na Terra é proibida, querem chegar aqui a fim de se encontrar com o criador, já Sebastian reconhece que, por conta das suas limitações, não poderá ser completo e obter novas experiências ao visitar as colônias "fora do mundo", como são chamadas, por ser humano demais. Um humano... defeituoso. Coisa que seus replicantes nunca foram.
J.F. Sebastian é pivô de uma das cenas mais interessantes do filme. Quando Pris, a replicante interpretada por Daryl Hannah, o encontra, em seu "hotel abandonado", ela tenta convencê-lo a aceita-la e ajudá-la. Porém, é nessa cena que fica óbvio o porquê dos replicantes terem o tempo de vida limitado. Pris é inteligente, mas o modo como tenta ludibriar J.F. é bobo, genérico e demonstra que aos replicantes falta saber como lidar com emoções, tanto suas quanto a de terceiros. Algo semelhante acontece quando Roy Batty consegue resolver um problema do xadrez que J.F. Sebastian não tinha conseguido solucionar. Não fosse o limite de vida de quatro anos, os replicantes poderiam sim se tornar seres tão capazes quanto qualquer humano a lidar com emoções. Aliás, não é como se fôssemos especialistas no assunto.
Uma das personagens mais intrigantes do filme é Rachael. Desde o início, sabe-se que ela é um replicante, mas isso não impede Deckard de, além de deixá-la viva e à solta na terra, se apaixonar por ela. Na vida real, Harrison Ford e Sean Young tiveram inúmeros desentendimentos ao decorrer da produção, desde uma cena em que Harrison Ford foi violento com ela de verdade até um episódio em que Sean Young e Harrison Ford não se falaram hora nenhuma, além de em cena.
Rachael é um experimento, de acordo com Tyrell. Ela não sabe que é uma replicante, tão pouco desconfiava disso. Suas memórias foram todas implantadas, Deckard sabe disso. Quando Rachael descobre, seu instinto não é questionar o criador, tal qual o de Roy Batty. O implante de memória faz com que seu modo de agir seja diferente. O que ela faz é fugir, fugir de seu criador, fugir da vida confortável que levara até então como humana. Rachael, ao contrário de Batty, não quer mais tempo de vida como replicante ou reconhece sua superioridade. Ela só deseja que não soubesse o que é. Quando humana, era plena. Na cena em que ela salva Deckard de morrer nas mãos de Leon, o replicante com super força do diálogo inicial do filme, isso se faz claro. Não é humana, tampouco um replicante. Ela odeia a própria espécie. Não por mal, mas porque a vida toda não se reconheceu como um.
Através de Rachael, chegamos ao personagem mais interessante do filme. O Blade Runner Rick Deckard. Deckard é apresentado como um Blade Runner tão bom que só ele poderia enfrentar os replicantes nexus 6 soltos na Terra. Isso nas palavras de seu chefe Bryant, que o convence a aceitar o trabalho dizendo "ou você é um policial ou é um dos zé-ninguém".
Deckard inicialmente não quer aceitar o emprego. Aparenta estar cansado. Mas Bryant o convence e Deckard sabe ser o único que pode encontrar todos os replicantes e "aposentá-los". A caçada de Deckard chega a momentos em que a maior questão do roteiro fica evidente. Seria Deckard um replicante? Deckard demonstra não só ter habilidades sobre humanas como sobreviver a lutas contra replicantes muito mais fortes que um humano comum, como também tem um apreço incomum por fotografias velhas. Isso sem contar a famosa cena do sonho, que chegou até a versão final do filme, demonstrando que Ridley Scott não deixou essa questão tão em aberto assim.
Acima de tudo, Blade Runner é um filme sobre origens e fins. Efemeridade, um conceito mais forte que qualquer ser humano ou replicante. Tudo se perdeu, perde e se perderá, como lágrimas na chuva.
Depois que Roy Batty reconhece o valor da vida, demonstrando, talvez, ser o mais humano dos personagens do filme, Deckard parece finalmente compreender a extensão dos seus atos. Os dilemas que se escondiam na néova de sua mente. Gaff, o outro Blade Runner que aparece durante o filme, fala para ele "Pena que ela não viverá muito. Mas quem vive mesmo?" sobre Rachael, um estalo ocorre em Deckard. O unicórnio prateado em origami que Gaff deixou no quarto de Rick Deckard só explicita e aprofunda o complexo paradoxo. Um caçador de replicantes que, na confusão da sociedade refletida em sua mente, não percebeu ele mesmo ser fruto da criação de outrem, tal qual as presas que caçava pela cidade enfumaçada.


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