Blogs de Viagem: a criatividade como dispositivo biopolítico na promoção de um consumo alternativo.

July 25, 2017 | Autor: Adriana Lima | Categoria: Blogs, Criatividade, Biopolítica, Discurso, Comunicação E Consumo
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BLOGS DE VIAGEM: A criatividade como dispositivo biopolítico na promoção de um consumo alternativo TRAVEL BLOGS: Creativity as a biopolitic dispositive in the promotion of an alternative consumption Adriana Lima de Oliveira1 Daniel Afanador Jiménez2 Tânia Márcia Cezar Hoff3 Resumo: Este artigo apresenta o discurso da criatividade como dispositivo biopolítico em que são propostos novos modos de construção de identidade e, por conseguinte, de existir na sociedade de consumo. Para isso, abordamos a emergência dos blogs de viagem, os quais visibilizam convocações para um consumo alternativo. Os discursos dos blogs de viagem, em maior ou menor grau, enfatizam o “viver criativo”, pois, quando os recursos econômicos - meios de produção - não mais se encontram pautados pelo capital, pelos recursos naturais ou pela mão de obra, criam-se as condições para o surgimento do “sujeito criativo”, isto é, pessoas que, por meio da criatividade, forjam novos modos de trabalho, de viagem etc. Assim, consideramos que a criatividade ganha lugar preponderante nos discursos midiáticos contemporâneos e, ao analisarmos os blogs de viagem, observamos aquilo que denominamos “discurso da criatividade”, que promove convocações para a “invenção” de formas alternativas de viver e de consumir. Palavras-Chave: 1. Comunicação e consumo 2. Discurso 3. Criatividade 4. Biopolítica 5. Blogs de viagem Abstract: This paper presents the discourse of creativity as a biopolitical device that offers new identity construction ways and, therefore, existing ways in the consumer society. For this, we approach to the rising of travel blogs, which suggest an alternative consumption. Travel blog discourses, to a greater or lesser extent, emphasize a "creative living", since when economic resources - means of production - are not anymore guided by capital, natural resources or manpower, are created conditions for the emergence of the "creative individual", people

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Mestranda do PPGCOM – ESPM/SP em Comunicação e Práticas de Consumo. E-mail do autor: [email protected].

2

Mestrando do PPGCOM – ESPM/SP em Comunicação e Práticas de Consumo. Comunicador e jornalista na Universidad de La Sabana (Bogotá, Colômbia). Autor do blog www.mirincon.co. E-mail do autor: [email protected]

3

Pós doutoranda no Programa de Estudos Pós Graduados em Comunicação e Semiótica na PUC-SP; professora-pesquisadora do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, da ESPM/SP e coordenadora do Grupo de Pesquisa em ‘Comunicação e poéticas do consumo’, certificado pelo CNPq. Exerce função de coordenadora do PPGCOM-ESPM/SP. E-mail do autor: [email protected] .

who, through creativity, forge new ways of work, travel, etc. Thus, we consider that creativity gets a preponderant place in contemporary media discourse and, by analyzing the travel blogs, we see what we call "creativity discourse," which promotes calls for the "invention" of alternative ways of living and consuming. Keywords: 1. Communication and consumption 2. Discourse 3. Creativity 4. Biopolitics 5. Travel blogs.

INTRODUÇÃO É de conhecimento geral que o futuro do trabalho está nos setores que demandam conhecimento intensivo. Esta seria a principal consequência da passagem de uma economia industrial para uma economia de serviços movida por inovações trazidas pelo conhecimento, o que implica maior qualificação humana para o trabalho (FILHO & COELHO, 2011). Essa nova realidade estimula pensar sobre a importância do discurso da criatividade como receita modalizadora para as ações e projetos neoliberais de felicidade e sucesso. A flexibilização do contrato de trabalho, por exemplo, é um dos aspectos mais aparentes desse processo em que a valorização do ato produtivo se dissocia dos protocolos do trabalho material, borrando as distinções entre o ócio e o emprego, o trabalho e o lazer. Uma sociedade burocrática e excessivamente rígida dá lugar a um estilo de vida criativo e experiencial. Neste sentido, status e identidade estão menos relacionados a bens materiais e mais voltados às experiências vividas. O custo não é mais calculado em termos de dinheiro, mas em termos de tempo. Em um cenário onde os recursos econômicos – meios de produção – não estão mais pautados pelo capital, pelos recursos naturais ou pela “mão de obra”, vemos surgir um novo sujeito, que podemos denominar “sujeito criativo”: A propriedade intelectual suprema – aquela que realmente substitui a terra, a força de trabalho e o capital no que diz respeito à fonte econômica mais importante – é a capacidade criativa do ser humano. (FLORIDA, 2011, p. 37).

E por entendermos que o conceito de criatividade é extenso, propomos delimitá-lo às suas características de discurso e suas convocações biopolíticas, considerando que as lógicas de produção dessas narrativas em interação com as práticas mercadológicas e as novas tecnologias, fazem surgir o que definimos como “consumo alternativo”.

A hipótese norteadora deste trabalho é a de que as convocações de consumo alternativo presente nos blogs são o formato contemporâneo das convocações biopolíticas. A partir daí, o fenômeno dos blogs de viagem é tomado como objeto, mais especificamente, no que tange os discursos de consumo, construídos por meio de uma narrativa que associa trabalho e lazer, ócio e emprego, sustentados por um elogio à criatividade. Neste sentido, consideramos a criatividade uma espécie de dispositivo capaz de possibilitar a materialização desse discurso. Por que a criatividade? Um dos argumentos, dentre outros, diz

respeito

à

emergência

das

transformações

econômicas,

denominadas

na

contemporaneidade como “economia criativa”, cenário no qual podemos vislumbrar temas correlatos como inovação, empreendedorismo, liberdade financeira etc., tão caros aos jovens. Essas condições de produção de discurso [do âmbito da economia para o da existência] e de materialidade [visível no e através do mercado] são possibilitadas pelas novas linguagens, ambientes e redes digitais. Daí a importância de trazermos o estudo dos blogs – material visível exclusivamente através da internet – e especificamente os blogs de viagem, por ter no conceito de viagem uma interpretação comum de lazer e que, por essa nova configuração, transforma os saberes e experiências humanas cotidianas em força produtiva. A experiência da viagem, que até então era de domínio privado, passa a ser oferecida como um bem no espaço público. Essa conversão do saber/experiência em valor/mercado é possibilitada pela tecnologia que transforma os meios técnicos e organizacionais de produção na contemporaneidade.

A CRIATIVIDADE COMO DISPOSITIVO BIOPOLÍTICO Na tentativa de localizar o termo “dispositivo”, recorremos aos conceitos esboçados por Michel Foucault, em uma entrevista publicada em 1977: Aquilo que procuro individualizar com este nome é, antes de tudo, um conjunto absolutamente heterogêneo que implica discursos, instituições, estruturas arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas, em resumo: tanto o dito como o não dito, eis os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se estabelece entre estes elementos [...]. (Dits et écrits, v. III, p. 299-300 apud AGAMBEN, 2009, p. 28).

Assim, buscamos investigar os modos pelos quais os dispositivos atuam nas relações, nos mecanismos e nos jogos de poder. Para Foucault (2013), o poder está imbricado no saber e consiste, sobretudo, em identificar quais lutas reais e quais relações de dominação são mobilizadas para se chegar aos fins. E, considerando o saber como algo ligado aos desejos e interesses humanos, este se apresenta [materializado] na forma de um bem, disponível para consumo. Considerar a criatividade como dispositivo, implica conceber os processo de subjetivação, nos quais a realidade [econômica] é constituída pela naturalidade das relações de troca [mercado] entre os sujeitos que fazem valer livremente e reciprocamente seus interesses privados em uma lógica fundada no benefício mútuo. É justamente no sistema neoliberal que essas concepções se radicalizam (FOUCAULT, 2008). Neste sentido, o poder ‘biopolítico’ não intervém no nível das singularidades e sim no nível da multiplicidade, exercido mediante a manipulação do meio, neste caso o mercado. A forma inteligível desse mercado é a racionalidade econômica de tipo empresarial, calculadora da melhor aplicação de recursos escassos. Desse modo, podemos depreender que, de fato, todo dispositivo implica um processo de subjetivação, do contrário se reduziria a um mero exercício de violência (AGAMBEN, 2009). Como consequência, a subjetividade deixa de ter um valor em “si mesma” e torna-se uma demonstração de capacidades pessoais desejáveis de serem consumidas. Essa relação de força que condiciona certos tipos de saberes e por eles são condicionados, abre espaço aos conceitos de biopolítica, não mais pensando na governança do Estado sobre a população, mas na auto-organização da sociedade na perspectiva de mercado. Considerando que as relações de produção na contemporaneidade são de outro registro, moderado por especificidades de uma economia denominada criativa, podemos depreender que as características que compõem as trocas, e portanto, o consumo, também se alteram, o que denominamos aqui como “ consumo alternativo”, posto que não deixamos de consumir e que a “mudança” se dá na ordem da aparência, ou seja, as condições próprias de sua materialidade.

DISCURSO DA CRIATIVIDADE (ou o conhecimento como valor)

As condições de materialidade desse novo consumo, ou como sugerimos aqui de consumo alternativo, se dá na passagem de uma economia industrial – caracterizada pela produção em massa de bens padronizados – para uma economia de serviços movida por inovações trazidas pelo conhecimento (FILHO & COELHO, 2011), o que nos estimula pensar sobre a importância da criatividade como receita “modalizadora” face estas transformações. A ideia de “modelo”, conforme Aidar Prado (2013, p. 30), significa “motivar o destinatário da comunicação a ser alguém ou fazer algo a partir de um querer, fornecendo a ele um saber e indicando um dever fazer.” É claro que, para que a modalização se torne realidade, o destinatário tem de poder fazer aquilo. Nessa relação autor-produtor-destinatário está imbricado um conjunto heterogêneo de discurso, instituições e leis que interagem sobre o sujeito a partir de um contexto histórico potencializado pelas novas tecnologias. Essa nova mentalidade pressupõe o agir no mundo para transformá-lo a partir do saber que se tem dele. A tendência não é mais o “ativismo” político e sim aquele regido por um mercado que iguala todos ao status de consumidores. A tecnologia constitui a base do que hoje denominamos “sociedade do conhecimento”. Neste cenário, o conhecimento passa a ser valorizado como moeda disponível em um mercado no qual se estabelece a relação de troca. Para participar deste mercado é necessário preparar-se desde pequeno para o trabalho intelectual (PRADO, 2013). A criatividade como vetor econômico para a promoção do capital humano, elevada a condição de bem disponível para consumo, ajuda na construção de argumentos de igualdade e inclusão: todo mundo é criativo. Na sociedade do futuro o soft ganha cada vez mais espaço que o hardware: [...] o surgimento do trabalhador Just in time, que executa cada vez mais suas atividades fora do escritório, em qualquer hora e lugar, põe em risco o modelo de bem-estar social das economias avançadas. Para os governos, o maior desafio é enfrentar a desestruturação do emprego formal e consequente queda na arrecadação, colocando em xeque todo o sistema de seguridade social. [...] O saldo positivo, [...] é que o mundo nunca esteve tão aberto à economia criativa, cuja ideia se baseia em uma matriz econômica em que o homem e seu intrínseco potencial criativo são o cerne da geração de valor. Uma substituição dos pilares clássicos da teoria econômica: capital, meios de produção e trabalho [...] (HOWKINS, 2014, p. 35).

A imaginação aplicada é o centro dos textos sobre economia criativa.

Cultura e economia sempre andaram pari passu, já que a interpretação de ambos os conceitos refletem uma época e seus valores. Bens e serviços culturais e criativos estão enraizados em nossas vidas e são consumidos sem necessariamente ter a intermediação do mercado. A questão crucial é que a sustentabilidade da produção cultural depende da capacidade de talento (o que implica a possibilidade de o produtor cultural sobreviver de sua produção ou ter tempo ocioso para se dedicar a ela de maneira diletante); que essa produção ou tradição circule (garantindo assim a renovação da diversidade cultural); e que o acesso a essa produção seja garantido (em especial dos jovens), em um jogo de forças da cultura de massa acirrado pela globalização (FONSECA [org.], 2008, p. 15).

A lógica de produção desses discursos aparece como condutor dos novos regimes de visibilidade do contemporâneo modo de ser e conviver socialmente. Esse formato do saber construído, embalado e disponível é o que, por vezes, constitui a proliferação de artefatos tecnológicos que fornecem assistência total ao estilo de vida contemporâneo. Sucesso, na sociedade de controle, não é apenas aquisição de muito dinheiro, mas conquista de espaço simbólico, de visibilidade, de prestígio, para o que é necessário ter saberes (como chegar a esse lugar? Que treinamento fazer? Que cultivo do corpo e da mente?) e poderes (capacidades, competências adquiridas, em termos de trânsito nos espaços simbólicos) (PRADO, 2013, p. 31).

Neste sentido, a narrativa da criatividade [que tem na economia seu pressuposto] carregada de valores [como os de empreendedorismo, de inovação, de liberdade financeira, de mobilidade etc.] configura-se em uma cena [estilo de vida] e esta para um corpo convocado (Cf. PRADO). Tal premissa nos faz pensar sobre o sentido que tem sido dado à palavra “inclusão” como algo hegemônico, universal e não problemático. Como importante imperativo da sociedade contemporânea, o indivíduo, mesmo incluído socialmente, deve ser um empreendedor de seu próprio desenvolvimento, de sua própria educação. Em um campo onde vigora a economia criativa, cultura e mercado andam juntos e reforçam os argumentos de que a economia da escassez, determinada por uma experiência individual deu lugar a uma economia da abundância, onde a participação pressupõe a colaboração. Essa passagem da era industrial, baseada em recursos tangíveis e, portanto, finitos, para uma era da economia criativa, onde o valor está nos recursos intangíveis, logo, infinitos, seria o ponto de partida para uma mudança cultural – de mentalidade e hábitos.

ESCAPANDO DO CONSUMO Blogs de viagem e construção de identidade

O discurso da criatividade como dispositivo biopolítico em que se propõem novos modos de construção de identidade e de existir na sociedade de consumo pode se encontrar nos blogs de viagem, como veremos a seguir. No nosso caso, o objeto empírico de estudo é a comunidade do blog Vivir Al Máximo (VAM), cujo criador, Ángel Alegre Garcia, um engenheiro espanhol de 29 anos que, no período de 2008 a 2012, trabalhou no escritório principal da Microsoft em Seattle, nos Estados Unidos, antes de largar tudo e, segundo ele, cumprir o seu sonho de “conhecer o mundo e ser um homem livre”4. Consequentemente, nesse mesmo momento, em 2012, nasce o blog, e começa a viagem do autor que já o levou em 2013 a 10 países na Ásia, entre eles Macau, Camboja e Coréia do Sul, e à Argentina, ao Brasil e à Colômbia em 2014. Junto com o blog temos a criação de uma comunidade que, de acordo com o manifesto proposto por Garcia, afirma: O objetivo de VAM é te encorajar para que você possa desfrutar de todas as coisas maravilhosas que o mundo nos oferece, em vez de se conformar com uma vida confortável e “segura”. Acho que a vida é muito mais do que um emprego que você odeia, noites de TV e fins de semana de bebedeira. Nós não estamos aqui para consumir e representar o sistema, mas para criar, compartilhar e ser a melhor versão de nós mesmos56

A comunidade está presente em vários momentos. Inicialmente nos comentários de cada publicação no blog. Por exemplo, dos dez últimos posts, publicados entre os dias 26 de janeiro e 9 de março de 2015, todos continham entre 24 e 118 comentários, sem contar todas as vezes que os conteúdos foram compartilhados nas mídias sociais ou quando o autor foi contatado via e-mail pelos leitores. Temos também uma comunidade que existe em um grupo secreto no Facebook chamado “Círculo interno de VAM”. Quer dizer, segundo a mesma descrição do grupo, só podem participar algumas pessoas cuidadosamente selecionadas pelo autor que compartilhem a

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GARCIA, A. Acerca de Vivir Al Máximo, 2014. Disponível em: . Acesso em: 26 de maio, 2014.

5

GARCIA, A. Manifiesto, 2014. Disponível em: . Acesso em: 26 maio, 2014.

6

Todas as citações dos blogs mencionados neste artigo foram traduzidas do espanhol para o português pelo autor.

filosofia sobre a qual está construído o blog: leitores de todo o mundo que o autor conheça pessoalmente (ou tenha planejado conhecer no futuro) ou que frequentemente participem no blog. Até agora há 347 membros que fazem discussões sobre os seus próprios projetos, se ajudam mutuamente e compartilham informações úteis para os objetivos da cada integrante da comunidade. É importante mencionar duas regras para atuação neste círculo interno/grupo secreto: 1) nem todos os que fazem parte da comunidade têm um blog e, 2) tudo o que seja publicado ou discutido ali dentro é considerado confidencial. Neste ponto, acreditamos que a comunidade existe pela sua concepção coletiva de entender o consumo, não só no sentido de, como propõe o manifesto, escapar do ‘consumir’ e de ‘representar o sistema’, mas de propor um tipo de consumo que escape do consumo exagerado de bens, produtos e serviços do que fala Baudrillard (1998) quando refere-se à cultura do consumo. Daí surge um discurso no qual se propõe, entre outras coisas, viajar como “a melhor forma de fazer amigos, abrir a sua mente e viver experiências inesquecíveis”, bem como “no final, a vida não é aquilo que você tem, mas as experiências que você já viveu”. Deste modo, a base tanto do blog quanto da comunidade é o manifesto que vai contra a ideia do consumo material e propõe um consumo alternativo ou imaterial, no qual seja possível investir em viagens e experiências, o que encontramos presente na narrativa de VAM e dos blogs dos membros da comunidade. Lembrando a nossa hipótese do presente trabalho de que as convocações de “consumo alternativo” presentes nos blogs de viagem são o formato contemporâneo das convocações biopolíticas, o nosso ponto de partida, por conseguinte, é tomar alguns dos blogs de viagem da comunidade como objeto, mais especificamente, no que tange os discursos de consumo. Porém, antes de continuar com o nosso objeto, trazemos a definição de Puhringer e Taylor (2008) segundo a qual um blog de viagem é: Uma série de entradas individuais que contam acerca de viagens planejadas, atuais ou passadas. Os blogs de viagens são equivalentes aos diários pessoais, e são feitos de uma ou mais entradas individuais ligadas por um tema em comum (por exemplo, o itinerário de uma viagem ou a compra de uma passagem ao redor do mundo). Eles são normalmente escritos por turistas que reportam aos seus amigos e familiares sobre as suas atividades e experiências durante as suas viagens (2008, p.179)”.

Utilizaremos essa definição para tentar enquadrar o nosso objeto, pois tanto VAM, quanto os blogs da comunidade não são unicamente de viagens. Essa é só uma entre várias temáticas como empreendedorismo, educação financeira e desenvolvimento pessoal, entre as principais. Além disso, não estão dirigidos somente para amigos e familiares, mas também para uma comunidade de leitores ao redor do blog.

CONSUMO DE EXPERIÊNCIA VS. CONSUMO MATERIAL

Sob essa perspectiva, nos aproximamos das narrativas dos blogs escolhidos para esse trabalho, nas quais as experiências de viagens estão presentes nos blogs de Diana Garcés, Andrea Rojas e Elisa Domínguez, todas integrantes da comunidade secreta e de leitores de VAM. Neles, o discurso da criatividade como receita modalizadora para as ações e projetos neoliberais de felicidade e sucesso está presente no estilo de vida que cada uma diz levar, propondo assim novos modos de construção de identidade e de existir na sociedade do consumo. A nossa escolha está baseada em que, como já foi dito, nem todos os membros da comunidade de VAM têm um blog, e os que têm podem ou não ser de viagens. Entre outras temáticas, há blogs de desenvolvimento pessoal, marketing, livros e até investimento na bolsa. No entanto, os três blogs das autoras acima mencionadas foram escolhidos porque dialogam em algum momento com a ideia de mobilidade, que é definida por Kellerman (2006, p. 6-19) “como a habilidade de mover-se entre diferentes lugares de atividades”, o que permite que objetos, pessoas e ideias possam circular entre localizações. Também Santaella (2010, p. 103) destaca a mobilidade na contemporaneidade graças a uma “caracterização das mudanças que desde a segunda metade do século XX estão ocorrendo nas sociedades pós-industriais do capitalismo tardio”, e no qual posiciona-se a mobilidade como um dos aspectos mais remarcáveis tanto da modernidade, quanto da pósmodernidade. Chegamos, portanto, em três blogs cujas autoras dialogam com esse conceito, como podemos evidenciar na página de Acerca De ou Sobre mim de cada um:

! O blog de Diana Garcés (35 anos)7, formada em comunicação social e jornalismo, e de nacionalidade colombo-espanhola: “após 9 anos tendo o trabalho dos meus sonhos, decidi ir atrás de outro no qual eu sou dona do meu tempo, do que eu faço e do que vou obter no meu futuro [...]. Atualmente moro na Inglaterra, estou fazendo aquilo que eu gosto: ‘traviajar’, como eu o chamei, que é viajar e trabalhar ao mesmo tempo nos meus projetos pela Internet.”. ! O blog de Andrea Rojas8 (25 anos), empreendedora, ‘marketeira’, autora, palestrante e de nacionalidade mexicana: “iniciei o blog e o podcast Viajero Emprendedor (VE) e estava tendo um grande impacto na vida de muitas pessoas, mas durante o primeiro ano e meio me esqueci dos resultados financeiros. Aprendi uma lição valiosa: se você tem um produto que vai ajudar às pessoas, é a sua obrigação moral fazer o que esteja nas suas mãos para que ele seja comprado [...]. Perdi o medo às vendas [...], assim VE cresceu até me levar à Copa do Mundo no Brasil e a uma viagem pela América Latina”. ! Tu vida en dos maletas, o blog de Elisa Domínguez (31 anos): imigrante em Edimburgo, Escócia, e de nacionalidade espanhola. Tem dois blogs, num deles9, explica: “antes da minha emigração, morava na Valência e trabalhava numa companhia multinacional americana”. E continua10: “ano 2012, um ano cheio de notícias ruins, a minha situação bateu no fundo. Era o momento de transformar e assumir o controle da minha vida [...]. Era o momento de sair da minha zona de conforto e explorar o mundo. Era o momento de mudar e EMIGRAR”. Expressões como “estou fazendo aquilo que eu gosto”, fazer “uma viagem pela América Latina” e “sair da zona de conforto”, mencionadas todas enquanto se fala do trabalho de cada uma conseguem borrar as distinções entre o ócio e o emprego, o trabalho e o lazer. Isto é, um estilo de vida que se descreve já desde um primeiro momento no próprio título ou descrição dos blogs, tanto os de Andrea Rojas (Viajero Emprendedor) e Elisa

7

GARCÉS, D. Sobre mí. Disponível em: . Acesso em: 14 de dezembro, 2014.

8

ROJAS, A. Acerca. Disponível em: . Acesso em: 14 de dezembro,

2014. 9

DOMÍNGUEZ, E. Sobre mí. Disponível em: . Acesso em: 14 de dezembro, 2014.

10

DOMÍNGUEZ, E. Sobre mí. Disponível em: . Acesso em: 14 de dezembro, 2014.

Domínguez (Tu Vida en Dos Maletas), quanto o slogan utilizado por Diana Garcés (“La vida es demasiado corta para hacer algo que no nos gusta”). Daí a origem de uma proposta de novos modos de construção de identidade e de existir na sociedade do consumo, pois estes blogs propõem um consumo alternativo, um consumo que, acreditamos, dialoga com a ideia já mencionada de mobilidade e que vai contra o consumo material de mercadorias, pois as três referem-se àquilo que é material como algo de que é preciso desapegar-se. É o caso de três artigos escolhidos para a nossa análise, nos quais se fala de mercadorias materiais da vida diária (livros, carro e casa) como prejuízos para as pessoas ficarem num lugar só. Temos então, num primeiro momento, uma publicação de Diana Garcés do dia 11 de outubro de 2014, intitulada ‘Consumo colaborativo’11, na qual expõe uma situação cotidiana, onde tenta emprestar em Compostela, Espanha, vários livros para uma biblioteca que só aceita doações. Segundo ela, não queria doá-los porque eram livros importantes e provavelmente precisaria deles mais para a frente, mas os queria deixar porque alguém mais poderia precisar deles enquanto ela não estiver na cidade. No final, por questões culturais, decide ficar com os livros, e faz uma reflexão sobre a acumulação de objetos materiais: “Acumular coisas não é um negócio, pelo contrário, é uma carga que limita e tira de você: (1) Liberdade de mobilidade, de fazer e de decidir o lugar no qual você pode ficar e as atividades que você pode fazer e (2) Autonomia. Muitos tornam-se dependentes dos seus objetos materiais e com base neles decidem o que podem e não podem fazer. (3) Faz de você um egoísta. Porque você não quer compartilhar, nem sequer dá a possibilidade de pensar em emprestar o que você tem, porque mesmo que você não esteja utilizando-o, o fato de imaginar outra pessoa fazendoo, isso é totalmente inadequado e nem dá para considerá-lo. (4) Você se torna alguém consumista. Porque você sempre vai querer ter mais coisas. Mais pinturas em casa, mais elementos decorativos, mais filmes para a coleção, mais livros, mais roupas...com isso os únicos beneficiários são as lojas”.

Andrea Rojas tem uma posição similar, que mostra quando explica o que fez para viajar por um ano e meio na Malásia, na Tailândia, na Singapura, no Brasil, no Peru, na Bolívia e

11

GARCÉS, D. Consumo colaborativo. colaborativo/>. Acesso em: 14 de dezembro, 2014.

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