BOAL FILÓSOFO. PARA UMA CIVILIZAÇÃO TEATRAL SOLIDARIA. publicado in Augusto Boal. Arte, pedagogia e poliitica.1 ed.Rio de Janeiro : MAUAD X, 2013, v.1, p. 207222.

June 14, 2017 | Autor: Alessandra Vannucci | Categoria: Theatre Studies, Applied Theatre, Teatro do Oprimido
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BOAL FILÓSOFO. PARA UMA CIVILIZAÇÃO TEATRAL SOLIDARIA[1]

RESUMO
Em suas mais recentes reflexões sobre a Estética do Oprimido (2009),
Augusto Boal descreve nossa sociedade como um império do imaginário,
visando o monopólio dos desejos com estratégias de controle político e
estético. Uma "invasão de cérebros" que acaba provocando a "atrofia do
imaginário". Sintonizado com premissas filosóficas e sociológicas clássicas
e contemporâneas, Boal enfrenta do ponto de vista teórico o tema da função
da arte e analisa os dispositivos de atribuição de valor à obra de arte na
indústria cultural, teorizando não o fim da arte na pós-modernidade mas, ao
contrário, a necessidade de sua reivindicação como direito de cidadania.
Desmontando a validade das oligarquias artística instituídas pelo mercado,
a multidão de cidadãos, ao descobrir-se artistas, compartilham o teatro
como instrumento estético-político para a transformação do mundo e a
construção de uma civilização solidária. Um mundo melhor possível.

Quando jovem diretor do Teatro de Arena, no Brasil da década de 60,
Augusto Boal sublimava com tons heroicos sua militância a favor dos
oprimidos que entendia vitimas da miséria, da iníqua distribuição de
terras, da repressão, da discriminação etc. As peças terminavam incitando a
plateia a tomar partido. Um dia, durante uma excursão ao Nordeste, a jura
furiosa (Derramaremos nosso sangue para salvar a nossa terra!) gritada
pelos atores de fuzis em punho, sensibilizou visivelmente a muda plateia de
camponeses. Um deles, Virgilio, tomou a palavra e felicitou os jovens
intelectuais da cidade, como seus companheiros de luta; em seguida convidou-
os para pegar as seus fuzis e juntos, naquela tarde mesmo, ir resgatar uma
terra ocupada pelos jagunços do fazendeiro. "Missão cumprida", exultou
Boal, percebendo que a fúria encenada tinha despertado alguma reação; e se
esquivou do convite, explicando que as armas usadas em cena eram inócuas:
fuzis de papelão. "Os fuzis de vocês são de mentira, retrucou Virgilio, mas
nós temos muitas armas. Agora, a raiva de vocês é verdadeira, percebemos
isso na peça. Então, vamos". Boal estremeceu. Como justificar que, mesmo
que sincero em sua raiva, um ator não estaria disposto a entrar na luta
real? Que, ao jurar querer "derramar sangue" na causa dos oprimidos, não
estaria arriscando seu próprio sangue? (BOAL, 2002, p. 17). Virgilio – guia
involuntário – apontava-lhe o paradoxo da arte do ator, revelando-lhe a sua
essencial, talvez congênita, ineficácia no mundo real. Por mais
"verdadeira", a insuficiência da raiva dos artistas consistia no fato deles
não serem verdadeiros camponeses e, sim, artistas fingindo ser camponeses;
por mais "real", sua ação ficaria sem consequências na realidade. Por outro
lado, a impotência coincidia com o poder persuasivo da arte, capaz de criar
uma ilusão da verdade tão completa, que os espectadores camponeses tinham
acreditado assistir à própria ação.
Um mecanismo paradoxal, diríamos com o filósofo Denis Diderot, permite
aos comediantes interpretar qualquer caráter sem ter nenhum; simular
qualquer emoção (a fúria do camponês bem como a fúria dos capangas) para
além dos limites da degradação moral e do despotismo, sem risco de sofrer
consequências. Não por acaso, os conselhos de Diderot para os comediantes
valem também para os tiranos; o filósofo escreve o Paradoxo do comediante
na Rússia, visitando a czarina Catarina II, em 1771, após o fechamento do
parlamento de Paris por Luis XV. "Penetração e nenhuma sensibilidade" são
recursos do comediante "perspicaz" que, contrafazendo sentimentos, consegue
emocionar com discernimento, de modo que, mesmo na paixão mais desenfreada,
ele mantém o juízo, enquanto o espectador o perde. Desta forma, o poder de
persuasão se traduz em domínio. O ator simula a verdade com uma "imitação
tão exata da ação que o espectador, enganado sem interrupção, imagina estar
assistindo à própria ação" (2000, p. 32-35). Enquanto o espectador é
iludido e vem reagindo em obediência aos efeitos planejados, o comediante
deve, segundo Diderot, assumir convenientemente o lugar "frio e tranquilo"
do espectador, para se ver de fora e modificar o seu próprio desempenho,
conforme as finalidades e as circunstâncias. Para ressaltar o caráter de
simulacro da arte do comediante, Diderot afirma que sua função corresponde
socialmente à de um "pregador laico" (ibidem, p. 56), do que se deduz em
primeiro lugar que o comediante não se imiscui em matéria sacra, em segundo
lugar, que sua profissão implica em uma dimensão pública e até mesmo
política. Entretanto, embora pregue bons costumes e bons sentimentos,
inspirando nos demais a imitação de uma conduta ideal, a serviço ou não dos
interesses de um mecenas, não significa que os pratique na vida real, pois,
nesta, ele partilha a moral corrupta e os piores sentimentos dos demais,
pois também se encontra sob o jugo do despotismo. Incapaz de seguir seus
próprios conselhos, o comediante em nada pode modificar, com sua arte, a
realidade.
Boal voltou a São Paulo. Nunca esqueceu Virgílio. Nunca mais fez
teatro igual àquele que fazia quando jovem; por outro lado, não parou mais
de buscar caminhos para viabilizar politicamente – no sentido de dar
consequências reais – a "sincera raiva simulada" daquele dia. Em sua longa
existência de exilado, após abandonar o Brasil sob a ditadura militar, em
1971, tendo sido preso e torturado, Boal procurou com afinco seu lugar e
sua linguagem (para além da pátria e da língua maternal) no teatro. Com
empirismo incansável, quase que de cientista e de inventor, fez experiência
de inúmeros procedimentos cênicos, alternativos seja ao "teatro burguês"
que faz da ilusão um instrumento de persuasão a serviço dos mecenas ou do
despotismo das classes dominantes, seja ao "teatro político" que reduz a
militância a exortação para que outros oprimidos lutem. O corpus de ideias,
jogos e exercícios conhecido como Teatro do Oprimido veio se estruturando
em evolução permanente, adaptando-se aos lugares e linguagens
sucessivamente habitadas pelo autor (Argentina, Peru, Equador, Portugal,
França e voltando em 1986 ao Brasil, depois da abertura, donde viajou
constantemente para diversos países da Europa, da Ásia e das Américas). O
empirismo de Boal consiste na busca de soluções cênicas para problemas
reais que lhe suscitam, também, perguntas teóricas às quais tenta responder
com reflexão, conversas, leituras, páginas escritas e novas propostas
cênicas, em um espaço filosófico marcado por uma dialética honesta e
despretensiosa. A disponibilidade lúdica deste corpus que se propõe como
ferramenta divertida e de fácil aplicação para atores e não atores, o
mantém vivo, interativo e acessível: um arsenal que hoje mobiliza milhões
de pessoas em todas as classes e graus de alfabetização, sendo fundamento e
tendo por consequência as ações reais mais diversas, em inúmeras
comunidades militantes, nos cinco continentes. Mesmo que estudado nas
universidades, seja por suas prerrogativas pedagógicas e sociológicas e
seja por seu diferencial estético, recusa-se a se firmar em sistema. Sua
dimensão peculiar documenta a busca incessante do autor por um método, um
caminho de saber em devir no mundo e visando o futuro que, mesmo
enriquecido com os temperos filosóficos e atualizado aos ambientes
culturais que Boal frequentou ao longo de sua existência, retorna
incessantemente a uma compreensão antiga e íntima, uma escolha de campo que
parece se definir como resposta à provocação do inesquecível Virgilio.
Naquela situação, a falha não residia no teatro em si, mas em quem o usaria
e para que finalidade. Se não quisesse abandonar o teatro, como algo
ineficaz para a transformação do mundo real, seguindo para a luta armada, o
jovem militante deveria agenciar o teatro como ferramenta de luta,
entregando-o então aos camponeses, naquela situação oprimidos, para que
pudessem com ele – no lugar das armas – enfrentar aquela opressão e
transformar a sua realidade. Como poder-se-ia arrancar o teatro de seu
estado de impotência enganosa e serviçal, para fazer dele uma arma de
liberdade?


Teatro como instrumento de liberdade
No começo, argumenta Boal, o teatro era canto ditirâmbico, dança
dionisíaca, festa. Certa hora, alguém resolveu separar a assembleia em dois
espaços separados e opostos: de um lado ficariam os atores atuando,
cantando, "vivendo" segundo um desígnio pré-configurado; do outro ficariam
os espectadores, olhando, escutando e "padecendo" os efeitos predispostos
pela encenação. Tempos depois, na Atenas do VI século antes de Cristo, um
ator conhecido como Thespis resolveu se destacar e lutar por seu desejo,
enfrentando os inimigos e o consenso do coro, capturando a atenção do
publico para a sua ação (drama). Acabou a festa, começou o teatro
dramático.
É sabido que o batismo do teatro na civilização ocidental coincide com
a fundação da polis, um tipo de cidade-estado grega de organização política
bem peculiar e provavelmente nunca dantes vista no mundo arcaico. Segundo
Detienne (1988), à estrutura teocrática (em volta da figura sagrada do rei)
das aglomerações urbanas nas sociedades agropastoris da Mesopotâmia, opõe-
se a estrutura laica e isonômica que caracteriza a polis, assentada na
tradição igualitária das assembleias guerreiras do período anterior, quando
a palavra se torna um bem comum apropriado por qualquer membro, com a
anuência de todos, em condição de igualdade e reciprocidade. Como observa
Vernant, a palavra na polis "não é mais o termo ritual, a fórmula justa;
mas o debate, a discussão, a argumentação, o diálogo" (2002, p. 54); seu
uso pelo cidadão (polites) na praça publica (agorà), como ferramenta para o
discurso, a discussão, a persuasão, configura a dimensão própria do
coletivo, isto é, a dimensão política da polis.[2] Neste compromisso de
paridade diante da lei e de consciência de seus direitos, o direito à
expressão individual em primeiro lugar, surge o teatro. È esta ideia
originária de assembleia democrática (a polis governada pelos cidadãos
livres e iguais, reunidos em assembleia laica, sem heróis e sem delegados)
que Boal busca incessantemente resgatar como dimensão de sua ação/reflexão
estética-política; dimensão não já utópica, mas possível, por constituir a
raiz de nossa civilização, seja urbana como teatral.
O debate inaugurado por Platão, em A República (X,1) acerca das
funções da arte na construção da cidade ideal – de onde o filosofo a
expulsa, por "estragar a mente" dos cidadãos ingênuos, que não tenham
"antídoto"– provoca o esforço do Boal filósofo, em busca do antídoto.
Platão condena a imitação, porque contrafazendo a realidade em mera
aparência, simula o conhecimento, sem compreensão verdadeira; de modo que,
ao ver um ator que imita um herói que sofre sem medida e lamenta
publicamente a sua dor, o cidadão sente prazer e admira a que lhe parece
ser "verdade" naquela emoção; mas se ele sentisse realmente aquela dor, se
envergonharia de exibi-la. A arte então, como imitação do mundo sensível
que, por sua vez, è somente uma sombra ilusória do mundo das ideias, é tão
distante da verdade e incapaz de conhece-la, que nenhum valor pode ter na
construção da cidade ideal, ao contrário sendo elemento de corrupção à
serviço das formas degeneradas de governo, como a tirania. Boal tenta
resgatar o valor originário do espaço estético, nele articulando o encontro
entre mundo real e mundo das ideias. Pressupondo que a capacidade de se
observar em ação é propriamente humana, ausente em outras espécies, o
filósofo induz que ela possa constituir uma consciência de si capaz de dar
conta da identificação de si, do outro e da transformação: vejo o que sou,
o que não sou, o que posso vir a ser; e vejo que vejo. Entre as outras
artes imitativas, a representação – imitação da realidade através do
próprio corpo e voz – é a única que independe de pré-requisitos técnicos, o
que faz com que Boal a entenda como uma linguagem natural do ser humano,
acessível a qualquer individuo, por mais analfabeto e desprovido de
qualquer noção. Originariamente, ela se oferece na arena teatral da polis,
como ferramenta para expressão da diversidade e do dissenso entre cidadãos
livres, com interesses contrários e direitos iguais, conforme o compromisso
democrático da assembleia grega ao ar livre. Na cena do drama, os
personagens são identificados com os desejos pelos quais lutam e pelos
comportamentos em que inscrevem códigos de conduta socialmente
reconhecíveis. Personagens são ideologias em carne e osso. A arte de
representar, então, aponta Boal, constitui uma poderosa escrita do mundo,
além de ser uma linguagem natural e universalmente acessível. Seguindo o
raciocínio de Goffmann (1975), a presença de uma essencial teatralidade em
todos os níveis de organização da civilização humana é evidenciada pelo
caráter "representado" da história, assim como dos demais sistemas
ideológicos que regram e sustentam as relações do poder e os comportamentos
cotidianos.
Hora, isto não para desmontar o argumento platônico. Pois, admite
Boal, justamente por ser uma poderosa escrita do mundo, o uso do teatro por
uma ou outra classe produz hegemonia, isto é, privilegia a identificação de
alguns desejos, interesses, intenções, pontos de vista ao passo que
condena, censura ou exclui outros. O palco vira espelho de um lado social
só, dado à sua diversão exclusiva e autocelebração; vira palanque da classe
dominante para impor, fortalecer e construir o consenso em volta da sua
visão do mundo, como visão dominante; vira tribunal, onde se exerce o
controle sobre a restante sociedade. De linguagem universal e naturalmente
democrática, torna-se uma ferramenta de exclusão e domínio. A alternativa
do Boal è, então, agenciar o teatro em sua vocação mais autentica e entrega-
lo – não no sentido de conceder, mas, sim, de devolver – à multidão como
direito de expressão e conhecimento. Neste sentido, sua experiência como
diretor teatral, mais do que produzir arte (acrescendo o seu catálogo de
peças, o valor de sua marca individual e, eventualmente, o seu favor junto
aos mecenas), parece frequentemente voltada a multiplicar e democratizar os
meios de produção da arte. O objetivo comporta, em primeiro lugar, a
desapropriação da ferramenta, dos conteúdos e dos espaços da expressão
teatral. Um passo para trás da separação entre funções ativa e passiva
(ator/espectador) na civilização teatral ocidental que aponta para, de um
lado, a abolição da obrigatória ingenuidade do espectador, do outro, a
renuncia ao pretenso saber de atores, dramaturgos e diretores. Ao artista
profissional caberia, segundo Boal, outra tarefa: a emancipação dos
espectadores enquanto artistas, isto é, cidadãos conscientes de não só ser
consumidores como também potenciais produtores de arte, naturalmente
capacitados a utiliza-la como ferramenta para sua ação de liberdade. O
antídoto contra a depravação da "ilusão de verdade" residiria no próprio
instrumento teatral. Por este caminho, Boal entende resgatar a dignidade da
arte na construção da cidadania, como espaço pedagógico o cidadão se
conhece, identifica as relações de poder, toma consciência de sua
capacidade de transformá-las e "escreve" sua cidade real, visando à cidade
ideal.
Devotado a esta vocação pedagógica surge, no Teatro do Oprimido, uma
figura de filósofo ativo que Boal denomina de Curinga. Adaptando a função
curinga que, nas produções do Teatro de Arena, visava interromper o efeito
de ilusão e multiplicar os pontos de vista sobre a realidade apresentada,
distribuindo o mesmo personagem em rodízio a diversos interpretes, o
Curinga no Teatro do Oprimido entra em cena como operador maiêutico de
públicos sentidos, ao qual cabe interromper o jogo dramático e levantar
perguntas, "despertando" os espectadores para que reconheçam as
contradições da realidade e abrindo espaço para que cada um assuma seu
direito a expressão. Entretanto, exige-se do Curinga que jamais caia na
tentação de tomar partido, depositar significados e tirar conclusões.
Missão do Curinga, no Teatro do Oprimido é reconquistar ao teatro a sua
originária dimensão política, isto é, voltada para a construção do coletivo
na polis, através do exercício de um diálogo transitivo e participativo,
onde a palavra – e os outros recursos cênicos como imagem, som, movimento –
é ferramenta a disposição do conhecimento. Com a constatação de que todos
os serem humanos são atores, até mesmo os atores e pode se fazer teatro em
qualquer lugar, até mesmo nos teatros, Boal desloca toda a sua ação do
âmbito tradicionalmente entendido como artístico para o âmbito pedagógico e
político. Não fará mais teatro, nem mesmo teatro político ou engajado, mas,
sim, teatro enquanto ação política, visando à emancipação das classes
oprimidas através da analise das condições de sua opressão. Por isso,
declara não ser o Teatro do Oprimido "um teatro de classe".
Não é, por exemplo, um teatro proletário [porque] no interior da
classe proletária podem existir (e evidentemente existem) opressões
[...] de homem contra mulher, de adulto contra jovens, etc. O Teatro
do Oprimido será o teatro também destes oprimidos em particular, e não
apenas dos proletários em geral. Será o teatro das classes oprimidas e
de todos os oprimidos, mesmo no interior dessas classes. (BOAL: 1980,
p. 25)


Na elaboração do papel do Curinga tem grande influencia a noção de
reciprocidade entre educador e educado na pedagogia do Paulo Freire. Na
Pedagogia dos oprimidos (1971), Freire anula a validade de uma educação
depositária que não leve em conta as condições sociais em que é aplicada e
não indague as razoes que fazem, de cada individuo, um ser em devir no
mundo. Ineficiente, mesmo quando em boa fé, a pedagogia tradicional chega,
segundo Freire, a ser prejudicial, pois simulando em abstrato o
aprendizado, inibe a criatividade do discente e o proíbe de pensar na
prática, educando-o a se adaptar à realidade como ela é. A desumanização
que resulta de um sistema educativo visando à manutenção da ordem è uma
distorção constante, mas não inevitável da vocação educativa. Ao contrário,
alerta o pedagogo, sendo a humanização sua vocação autentica, a educação
deve visar à liberdade: no processo pedagógico, a sociedade educa-se para
estimular a reflexão critica sobre a realidade, capacitando-se para
transformá-la. Ninguém educa ninguém. Ninguém emancipa ninguém, pois a
emancipação é uma conquista.
Assim como mestre e discípulo, por serem seus papeis recíprocos na
construção do conhecimento, ator e espectador terão funções não distintas
e, sim, complementares e comparticipes.


O papel do espect-ator
Já participaram – provoca Boal – do show de seu cantor preferido? De
um jogo de seu time do coração? Conseguiram ficar passivos, mudos e imóveis
na cadeira? Não? Entretanto, é isso que acontece ao espectador de teatro,
diante do qual está sendo representado um drama, e mesmo o drama de um
personagem com quem profundamente se identifica. Eis o que este espectador
conformado pensaria, como o descreve Bertolt Brecht: "O sofrimento deste
homem comove-me, pois é irreparável. É uma coisa natural. Será sempre
assim. Nada pode ser mudado. Sim, eu também já senti isso. Eu também sou
assim. Eis o que é arte! Choro com os que choram e rio com os que riem"
(BRECHT: 1975, p.75). Ao padecer pelo destino inevitável, mesmo que
injusto, do personagem com cujo desejo se identifica, e mesmo sabendo que
aquela "verdade" não passa de uma ilusão, o espectador é afetado pelo
castigo do herói e inteiramente purgado do desejo que o originou. A
catarse, descrita por Aristóteles como uma "purificação" de desejos
indesejáveis e inconvenientes, é efeito de um remédio homeopático de enorme
eficácia, embasado na premissa da passividade do espectador que a ele é
submetido, como "paciente" de uma terapia de controle social aplicada,
segundo Brecht, pela tradição cênica ocidental que ele define
"aristotélica". Tal remédio é a identificação emotiva, resultado do
procedimento de "perfeita simulação da verdade" que Diderot aconselhava a
atores e déspotas e que Platão condena como enganação e desvio no caminho
do conhecimento. Na direção oposta, então, para evitar que o espectador se
identifique no personagem, empregando recursos cênicos capazes de romper-
lhe a ilusão, Brecht imagina poder despertar o espectador de seu estado de
encantamento e fazer com que se emancipe. O espectador entraria em estado
"dialético", isto é, se tornaria capaz de enxergar as contradições do real.
Diante da encenação do mesmo destino, justamente porque o percebe injusto e
porque se identifica com o drama do herói, mas percebe que, por ser
ficcional, não é um fim irremediável, o mesmo espectador pularia então da
cadeira, exclamando: "O sofrimento deste homem comove-me porque seria
remediável. Não! Eu nunca passaria por isso na realidade; isso tem que
acabar. Eis é que é arte! Rio de quem chora e choro com os que riem"
(ibidem).
O mesmo drama representado pode ter, assim, um efeito repressor
(purgar o desejo ilegítimo do espectador-paciente) ou transformador (fazer
com que o espectador-dialético se descubra capaz de realizá-lo no mundo
real). À transformação do espectador de politicamente passivo para
politicamente emancipado, corresponde uma radical mudança de tarefas para o
ator. Depende do ator, segundo Brecht, impedir que o teatro seja usado como
aparelho disciplinador, a serviço da ideologia dominante, responsabilizando-
se (enquanto cidadão) para que o teatro funcione como dispositivo
revolucionário, mostrando as contradições da realidade e os diversos pontos
de vista em conflito na luta de classe. Já em Brecht há, portanto, uma
reflexão sobre a necessária desistência da autoria ideológica da cena, em
vista de sua disponibilização para o jogo dialético; "o ator – argumenta
Brecht – trata de mostrar como são verdadeiramente as coisas e não pretende
revelar as coisas verdadeiras". Por ser alguém que "queira dizer
eficazmente a verdade sobre o mal estar das coisas, é preciso que o diga de
maneira que permita reconhecer as suas causas evitáveis, pois, uma vez
reconhecidas as causas evitáveis, o mau estado de coisas pode ser
combatido".[3]
Boal radicaliza o pensamento brechtiano. Tentando verter o paradoxo da
"verdade simulada" em método, propõe a ativação do espectador como
participante no jogo de transformação que a ficção teatral implica. Por ser
imitação da realidade, o teatro funciona como uma dimensão paralela – um
espelho – em que o espectador, após identificar o "mal-estar das coisas" e
reconhecer as causas evitáveis daquela determinada situação com a qual se
identifica, "ensaia" a sua possível transformação. A dicotomia perceptiva
(entre ser e se ver ser) que è prerrogativa da psique humana, constituindo
as bases das faculdades de imaginação e, portanto, também da arte paradoxal
do ator (que é, ao mesmo tempo, sujeito criativo e objeto de sua criação;
ao mesmo tempo vive na dimensão real e ficcional; é e não é a personagem,
etc.) encontra no espaço estético do espetáculo (algo que é visto) uma
extensão concreta. Na comunidade especialmente visual (antes do que
perceptiva) formada por atores e espectadores, onde todos são
potencialmente observados e observadores, inclusive de si mesmos, a
separação arbitrária entre palco e plateia mostra sua permanente e inteira
reversibilidade. Deixa de ser algo insuperável, anuncia Boal suplantando de
uma vez as fragilidades dos mestres fundadores do teatro moderno, como
Antoine, Copeau e mesmo Artaud, ao sonhar um teatro "sem espectadores" na
estrutura representativa tradicional do palco à italiana, voltada a
garantir e potenciar a ilusão cênica. No dispositivo conhecido como teatro-
forum, uma simples licença no jogo transforma o espectador em espect-ator,
participante do jogo da "simulação real" hora na função de observador, hora
de agente transformador. Funciona assim. Um grupo de cidadãos em função de
ator apresenta o drama de alguém que tenta mudar a sua realidade opressiva,
em vão, pois as causas daquela realidade, mesmo que evitáveis, derrotam os
recursos de luta por ele empregados. Outro grupo de cidadãos, em função de
espectador, assiste ao drama apresentado e observa a ação do personagem com
espírito dialético, isto é, reconhecendo as múltiplas razões da opressão e
compreendendo que aquela realidade é como é, mas poderia vir a ser
diferente. Como jogadores no banco, elaboram táticas alternativas para a
vitória. Certa hora, o Curinga dá licença a quem quiser – seja espectadores
e seja atores em outros papéis – de sair de seu lugar passivo, entrar em
cena no papel do personagem oprimido e agir a sua solução: fazer
experiência de sua ideia, mesmo que utópica, juntar teoria e prática, mente
e corpo, forma e força. Entrando no jogo da "simulação da verdade", o
espect-ator transforma a realidade que oprime (ver BEZERRA: 1999). Não há
intervenção mágica – o Curinga poderá interrompe-la – mas tentativas
concretas de mudar as condições reais da opressão, para que o desejo
julgado inconveniente ou ilegítimo passe a ser realizável. A categoria da
transformação, visando recriar a realidade ao invés que repetir a ficção,
desmonta e aposenta a estrutura clássica da representação resgatando a
potência do encontro colaborativo, performático e imprevisível entre
cidadãos. Esta, finalmente, é a mais autêntica vocação do teatro segundo
Boal. A transformação é o antídoto. Por este caminho, a arte resgata sua
função virtuosa – não corrupta ou enganosa – na construção da cidade.
Não por acaso, para confrontar Aristóteles, Boal sente a necessidade
de convocar a sugestão platônica que alude à transformação (metaxis) como à
dimensão propriamente humana. Sendo o homem um ser intermédio, nem besta
nem deus, capaz de virtude, mas inclinado ao vício, segundo Platão[4] ele
participa com sua existência (irredutível a simples fenômeno) do ciclo de
transformação entre mortalidade e imortalidade, repetição do erro e
conquista da excelência, mundo real e mundo das ideias. Por saber que a
realidade não é somente o que é, mas também o que pode ser, o ser humano
busca permanentemente a transformação; nesta sua ânsia de perfeição, mesmo
em condições de imperfeição, reside a sua especial imortalidade, que faz
com que participe em todas as categorias, inclusive a ética, ao mesmo tempo
da dimensão temporal e imanente, como da dimensão utópica e transcendente.
Mesmo que, na Republica, Platão evite definir o conceito de Bem, como se
este não fosse concedido à comunidade humana sujeita às aparências da
realidade como "sombra" da verdade, no capítulo VII (514-21), após
apresentar o Mito da Caverna, ele aponta para a "visão do bem" que aparece
"aos extremos limites do mundo conhecível, apenas reconhecível, mas, para
quem a veja, fica logo evidente que ela é a causa universal de tudo". A
alegoria do conhecimento como viagem metafísica rumo ao mundo das ideias,
por um lado aludindo à transmigração das almas nas doutrinas da
metempsicose, por outro lado aponta para uma "esperança" do filósofo, de
que o homem iluminado pela visão do bem possa cumprir em vida um percurso
de progressivas transformações do mundo real. É esta metaxis que Boal tenta
substitui à catarse, como efeito ético e político da ação teatral.

Teatro como escrita do mundo
Dissolvendo uma das mais dramáticas aporias do teatro moderno – a
incongruência entre a vocação espiritual do teatro e sua natureza de
mercadoria no império do entretenimento – Boal propõe um novo conceito de
autoria e não hesita em destituir o ator de seu monopólio autoral, enquanto
profissional da arte, para reconquistar o teatro como espaço de
transformação comunitária e de escrita coletiva do mundo. O publico que se
espelha no drama e entra em cena para mudá-lo, exerce um poder analítico,
dialético e transformador, pois a força probatória das soluções propostas
no jogo da representação teatral pode ser transferida à realidade. De
consumidor, ele se torna autor da obra e responsável por ela. Por mais que
já as vanguardas tenham afirmado a participação ativa do espectador na
construção simbólica e, em alguns casos, sensível da obra de arte (como na
instalação e na performance, nas artes plásticas), esta participação só
raramente implicou uma experiência empírica que o tornasse responsável pela
obra a ponto de partilhar a autoria. Muito menos no teatro. O resgate do
fenômeno ritual no teatro sonhado por Artaud inspirou inúmeras pesquisas
cênicas (como a do Teatro Laboratório de Grotowski, o Living Theatre e, no
Brasil, o Teatro Oficina) gerando comunidades de artistas em que arte e
vida se enleassem, absorvendo a função "espectador" e, em alguns casos,
anulando a validade de uma "apresentação" em espetáculo. Em todo caso,
mesmo rejeitando a categoria de "produto" em favor do "processo", no
sentido do encontro performativo e presencial possibilitado pelo
espetáculo, é mantida a autoria individual ou coletiva da obra.
Diversamente Boal, desde as ações de Teatro Invisível, nos anos 70, até as
mais recentes práticas de Estética do Oprimido, na década de 90 e atual,
rompe com a ideia de que alguém possa estar "fora" da experiência estética.
Não se limita, como já o fez Brecht, a refuncionalizar o papel do
espectador: elimina a ideia de espectador em si. Reivindica para a
comunidade de espect-atores a autoria da obra, entendendo-a como prática de
escrita interativa e performativa que altera o conceito de obra em si.
Aposenta a compreensão da arte como "obra feita" por um artista, tendo em
vista a sua inserção no mercado; afirma ao contrário, a arte como
experiência utópica coletiva, que instaura formas de convívio artístico
alternativas às canônicas e libera os modos da criatividade e da autoria
das restrições impostas pela comunicação de massa. Nem fala mais de
"obras", mas, sim, de "modelos" interfaciais, cuja forma será definida, a
cada vez, pela intervenção autoral dos espect-atores. Ao entrar no "modelo"
para transforma-lo, qualquer indivíduo se torna autor de sua escrita do
mundo, tendo por objetivo não a exibição de qualidades ou a exortação à
ação alheia, mas, sim, a construção do futuro. Nesta interface entre mundo
real e mundo representado, o jogo da transformação que se realiza no
encontro teatral não é mais, somente, uma "esperança" do filósofo, mas um
formidável método empírico, democrático e não violento para ensaiar a
possibilidade de um mundo melhor, aqui e agora, através de uma sequência de
transformações que Boal denomina de "ações reais continuadas". Ao dar vazão
à vocação que, segundo Platão, é própria do homem, "animal político" cuja
condição ideal seria a democracia (em que o cidadão é ao centro, seu bem-
estar atendido, seu consenso voluntário) o teatro do Boal configura-se como
uma tentativa de instauração do sublime sistema democrático, que prevê que
toda a cidadania seja ao mesmo tempo governada e governe. O jogo da
transformação que o teatro possibilita vale, para Boal, por aquele que
Hegel designa como o "terceiro lugar" de autonomia do ator social, onde
cumpre-se a etapa fundamental de construção da civilização do espírito.


Teatro contra o império
Do ponto de vista teórico, cristalizado pela consagração na militância
internacional da década de 70, o pensamento político-estético do Boal
articula-se de modo inovador no contexto da reflexão estética
contemporânea, marcada pelo ressurgimento do pensamento utópico como
princípio de inconformismo militante e desejo de romper com a ordem
vigente. Na Estética do Oprimido (2009), sua última obra e legado para
militantes do método no mundo todo, Boal lança nova campanha de cidadania,
convocando todo o arsenal das artes como armas para reverter o processo a
que chama de "invasão dos cérebros". Denuncia a instalação de um novo
império, o "fascismo da imagem", buscando o controle não mais de
territórios nem só de capitais financeiros, mas do nosso imaginário. Com
táticas retóricas e gregárias, nota Boal, a mídia invade nossos aparelhos
perceptivos e coloniza nossas ferramentas de expressão e linguagem, visando
monopolizar os nossos desejos, gostos, opiniões a favor dos interesses da
indústria cultural. Assim, renovando o papel prejudicial da educação
depositária, ao invés de informar, a cultura midiática inibe a natural
criatividade do ser humano, causando sua atrofia (como produtor e receptor
de arte) e degradação estética (a mero consumidor). Neste panorama, Boal
enfrenta o tema da função da arte na indústria cultural e teoriza, não o
fim da arte, mas, ao contrário, a necessidade de reivindicá-la como direito
de cidadania e como dispositivo gerador de comunidade. Sua interação com o
conceito de aura e de experiência por Walter Benjamin é provocadora.
Visando esclarecer o que lhe parece ambíguo no pensamento benjaminiano,
Boal aponta para o poder de complemento ideológico da aura: segundo ele,
substancia extrínseca à obra, "uma projeção, uma escrita que o observador
faz sobre o objeto-obra" (2009, p. 41) que faz dela uma arma à disposição
de quem possui ou produz arte. Longe de ser sabotada pela reprodução
técnica, como Benjamin preconizava na década de 30, a aura é hoje
apropriada – aponta Boal – pela indústria cultural. Auras são "construídas"
e multiplicada pela mídia "como forma de acrescentar valor a obras que nem
sempre o têm" (idem, p. 45). Em seguida, Boal aprofunda o pensamento de
Theodor W. Adorno quanto ao abuso da arte pela indústria cultural, visando
alienar a multidão dos trabalhadores em uma massa de consumidores
acríticos, colonizando seu tempo livre com uma busca ilusória de
felicidade. O deleite da assistência hipnótica à qual a indústria cultural
acostuma o espectador, quanto mais este se identifica com a luta do seu
herói e torna-se dependente do sucesso daquele, coincide com sua própria
servidão, porque a felicidade sonhada permanece inalcançável no mundo real
(ADORNO: 2002). Partindo das mesmas premissas sobre a degeneração do
conceito de tempo livre em "entretenimento", Boal assume uma postura
afirmativa oposta à negatividade adorniana.[5] Enquanto no mundo
totalitário descrito por Adorno, o artista que tentasse acordar a massa do
encantamento ditado pela hegemonia, o faria em vão, assim como o homem
platônico que viu o Bem tentaria em vão tirar os seus companheiros da
caverna, para Boal este esforço não será em vão. Movido por uma visão
dialética do mundo em movimento constante, onde há lugar para o homem comum
fazer a sua história, Boal ataca o totalitarismo da indústria cultural pelo
resgate da subjetividade criativa. Conclama artistas e espect-atores a
deslegitimar qualquer categoria de exceção. A arte, multiplicada pela
multidão de indivíduos oprimidos, é o próprio antídoto ao dispositivo
totalitário, é a arma para subverter seu estado de submissão e combater o
"fascismo da imagem". Mesmo sem citar diretamente os autores, dialoga com a
filosofia militante que descreve as novas formas de ativismo como produção
de estratégias anticorporativas de resistência contra a ordem mundial
(HARDT&NEGRI: 2005). Sob este ponto de vista, as práticas propostas na
Estética do Oprimido sintonizam com experiências de ativismo artístico (ou
artivismo) que, a partir da década de 90, repercutem a tensão
revolucionária das vanguardas históricas, com formas mais concretas de
ação. Trata-se de projetos de intervenção mista em espaços públicos (como
igrejas, museus, galerias e praças) envolvendo táticas de instalação,
manifestação, guerrilha etc., os quais, priorizando, ao produto artístico,
os processos de interação perceptiva e cognitiva entre criadores e
transeuntes, se identificam mais com a relação gerada do que com o projeto
artístico que a origina (BOURRIAUD: 2009). É evidente, entretanto, que por
militar contra alvos desproporcionais como o poder da mídia, dos regimes
totalitários e das corporações multinacionais, tais experiências aparentam
ser pouco dotadas de uma real eficácia. Ao contrário, apresentam-se como
investidas idealistas, envolvendo táticas audaciosas e valores heroicos,
como desobediência, risco e sacrifício. Seu objetivo parece ser "uma
revolução da subjetividade, que não afeta o movimento macro, mas pela lenta
e progressiva contaminação se infiltra no micro, moldando as subjetividades
de maneira criativa".[6] A intervenção insubmissa e surpreendente suspende
a ordem do cotidiano e propicia segundo Hakim Bey (2001), a formação de
"zonas autônomas temporárias" em que a comunidade formada pelo processo
relacional da obra produz, através da criação, sua própria reflexão sobre
as condutas em vigor, a disciplina do espaço urbano, os dispositivos de
controle. Nesta relação, segundo Mota & Felix, "acentua-se a diferença
entre o estado existencial promovido pela arte e o estado presente nas
relações vividas cotidianamente no interior de um contexto social pré-
condicionado, de forma que se constrói, através da obra, uma crítica aos
condicionamentos comportamentais" (idem). A obra assim realizada agiria
como provocação do consenso, virtualmente estimulando novas formas de
percepção e novas sociabilidades, potencialmente gerando formas
alternativas de ação/reação.
Boal, já em etapas clássicas do método como o Teatro Invisível ou o
Teatro Forum, e particularmente nos procedimentos sugeridos na Estética do
Oprimido, incentiva a experiência artivista, atribuindo, entretanto, à arte
um poder de não só profético ou potencial, mas de fato revolucionário.
Diferente das obras analisadas por Bourriaud, por exemplo, condicionadas ao
regime autoral e ainda visando o sistema canônico de exibição em museus e
galerias, as experiências coletivas dos laboratórios teatrais de cidadania
estimulados pelo método Boal parecem ter um poder de emancipação por si só.
Sem donos, sem delegados, a comunidade de cidadãos que se reconhecem
artistas no ato de criar, independente dos conteúdos e da assinatura, forma
uma "zona temporária" autônoma de qualquer pressão e alienação, já que o
fim da obra é a experiência em si. A experiência da criação artística,
apropriada pela assembleia dos comuns, significa por si só uma
possibilidade de libertação das formas de controle impostas pela educação,
pela mídia, pela indústria do entretenimento e por outros dispositivos
sociais. Suspenso o significado habitual do espaço urbano, a comunidade
criativa projeta temporariamente seu próprio espaço, marcado por
características ideais de convivência tais como isonomia, acessibilidade e
livre expressão de desejos. Inventa e explora concretamente um outro mundo,
isto é, uma utopia localizável no futuro – a que Foucault denomina de
heterotopia.[7] Neste lugar intermediário entre a realidade como ela se dá
e como ela poderia se dar, entre o visível e a visão do Bem, entre mundo
real e mundo das ideias, o cidadão percorre o caminho da transformação,
como o filosofo platônico que entra e sai da Caverna. Nesta condição futura
e presente, por mais temporária que seja, a partir do rompimento com o
estado opressivo das coisas, os laços sociais são renovados e a felicidade
se faz possível.
BIBLIOGRAFIA
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Paulo, 2002
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São Paulo, 1985
BEY, Hakim. Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Editora Conrad, 2001
BEZERRA, Antonia Pereira. "O Teatro do Oprimido e a Noção de Espectador –
Ator: Pessoa e Personagem". In: Anais do I Congresso Brasileiro de Pesquisa
e Pós-Graduação em Artes Cênicas. ABRACE, 1999, pp. 499 – 509
BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Editora Garamond: Rio de Janeiro,
2009
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Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2005 (1ª ed.1970)
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DETIENNE, Marcel. Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro:
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DIDEROT, Denis. "Paradoxo sobre o comediante", in Obras II, org. e notas de
J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2000
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Janeiro: Multifoco, 2012
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro:
Difel, 2002
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[1] Profa. Dra. Alessandra Vannucci (Universidade Federal de Ouro Preto).
Diretora teatral e militante de Teatro do Oprimido desde 1993. Participou
do Mandato Politico-Teatral de Boal na Camara Municipal do Rio de Janeiro.
Com o projeto Madalena - Teatro das Oprimidas, desenvolvido em parceria com
o CTO-Rio, ganhou o Premio Interações Estéticas em 2009 e 2010.
[2] Ver DIAS, Luciana. "O teatro e a cidade. Notas sobre uma origem comum",
in ArteFilosofia, revista do Instituto de Filosofia e Artes Cênicas da
UFOP, v. 12, p. 48-61, 2012.
[3] BRECHT, B. "Cinco dificuldades para quem escreve a verdade", in _____.
1973, p.118 [tradução minha]
[4] O conceito de "metaxis" aparece no Simposio (202ª) e no Filebo (16d-e).
[5] Ver também SANCTUM, 2012, pp. 97-101 e BOAL J., 2010.
[6] MOTA, Gilson e FELIX, Tania Alice. Artivismo e utopia no mundo insano,
in ArteFilosofia, cit., p. 32-47.
[7] Segundo Michel Foucault, a utopia indicaria um "posicionamentos sem
lugar real" (2009, p. 414-415). Já a heterotopia seria um "lugar que está
fora de todos os lugares, embora seja efetivamente localizável" (ibidem).
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