Boca de Ouro e o Rio de Janeiro de Nelson Rodrigues

June 15, 2017 | Autor: Adriana Facina | Categoria: Nelson Rodrigues, Rio de Janeiro, Teatro Brasileiro
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Boca de Ouro e o Rio de Janeiro de Nelson Rodrigues Adriana Facina1 Nelson Rodrigues foi um dos grandes inventores do Rio de Janeiro. Afirmo isso porque vejo a literatura como parte da construção social da realidade. Ela consolida imaginários, cria personagens que se tornam parte de nossas vidas, orienta nossos olhares e percepções do mundo. Compreendê-la como reflexo da realidade é simplificar a complexidade de seu trabalho com a linguagem que inscreve a escrita em nossas mentes, nossos corpos e nossos cotidianos. A cidade que sentimos e vivemos não é apenas aquela das nossas percepções imediatas. É também o Rio de Janeiro que imaginamos, lemos, vemos na tela do cinema, ouvimos nas músicas que cantam a cidade. A obra de Nelson Rodrigues é fonte de duradouras e poderosas fabulações sobre o que é ser carioca. Suas histórias e personagens saem dos textos e chegam nas telas de cinema e televisão, conferindo ao autor uma imensa popularidade. Não é preciso ter lido Nelson para conhecer seu universo criativo, o que faz dele um dos escritores mais famosos do Brasil. Conhecido como grande frasista, algumas das mais memoráveis frases de Nelson Rodrigues se referem ao Rio de Janeiro e ao carioca. Eis algumas delas: “O carioca é um ser encantado. No Rio, dois sujeitos que nunca se viram tornam-se como que súbitos amigos de infância e caem nos braços um do outro, aos soluços. É a única cidade em que pode nascer, entre dois desconhecidos, uma amizade fulminante.” “O carioca é o único sujeito capaz de berrar confidências secretíssimas de uma calçada para outra calçada.” “O carioca é um extrovertido ululante.” (Rodrigues, 1997a) No conjunto da vasta obra de Nelson Rodrigues há pelo menos três representações diferentes da cidade do Rio de Janeiro. Uma delas se refere ao passado, ao período que vai da Belle Époque ao entreguerras e que se confunde parcialmente com a infância do autor na Aldeia Campista, Zona Norte do Rio de Janeiro. Essa representação da cidade como ela era remete, algumas vezes, às lembranças de sua infância e, outras, a um período histórico que Nelson só conheceu por meio dos livros e da pesquisa em periódicos. Nessa representação há, de modo geral, a nostalgia de um tempo em que as relações sociais eram ordenadas, as                                                                                                                 1  Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ.

hierarquias eram mais bem definidas, os moços respeitavam os mais velhos e as mulheres vestiam-se com mais roupas. Há ainda o diálogo com literatos de outras gerações, que fizeram da experiência urbana matéria de criação literária: o Rio de Machado de Assis, de Olavo Bilac, de Benjamin Costallat. Nelson escreve sobre a cidade na virada do século XIX para o século XX baseado na leitura desses autores. A representação da cidade como ela era contrasta com ao presente do autor de crônicas diárias das décadas de 1960 e 1970. Na segunda representação, o Rio de Janeiro de sua vida adulta guarda poucas semelhanças com o passado. Na visão de Nelson, a modernização devastou as relações sociais, os valores e a própria natureza da experiência urbana carioca. Essa devastação é observada no espaço público, nas histórias que acontecem nas ruas, no Maracanã, em bares e restaurantes, em festas, nas redações dos jornais. Ainda que não se iguale a São Paulo, cidade que o autor via como local de solidão e de ausência de sociabilidade, o Rio de Janeiro aparece em seus escritos como cenário do vício, da desintegração, do individualismo egoísta. Mas é também a cidade das conversas “jogadas fora”, das “ruas amorosas”. A terceira representação está presente em várias de suas peças teatrais. Em lugar da cidade atingida pela modernização nos seus espaços de sociabilidade, focaliza-se principalmente o mundo privado. Ali o impacto da modernização, com as mudanças de valores e costumes, degrada as relações pessoais e familiares, possibilitando a emergência de instintos violentos e incontroláveis. O trágico entra em cena e a tragédia se desenrola como consequência da frágil civilidade erigida sobre os impulsos modernizantes. Essas representações do Rio de Janeiro não são as únicas no universo rodrigueano e se apresentam de modo embaralhado e muitas vezes contraditório. A idealizada cidade do passado é também violenta. O presente degradado carrega poesia. O que nos interessa é que ele rompe com a ideia de uma modernização civilizatória que na história de cidade foi valorizada positivamente pelas forças da ordem contra a dinâmica das ruas, das regiões mais pobres e dos modos de sobrevivência inventados pelos moradores da cidade que viam sua existência na urbe ameaçada pelo progresso. Sidney Chaloub menciona um “projeto avassalador de mudança social” para fazer com que o país se inserisse na “civilização”, o que significava criminalizar e reprimir duramente negros e pobres na cidade no pósAbolição. (Chaloub, 2012: 253). Nicolau Sevcenko, analisando as reformas urbanas no Rio de Janeiro de início do século XX, afirma:

Assistia-se à transformação do espaço público, do modo de vida e da mentalidade carioca, segundo padrões totalmente originais; e não havia quem pudesse se opor a ela. Quatro princípios fundamentais regeram o transcurso dessa metamorfose, conforme veremos adiante: a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense. (Sevcenko, 2003: 43) A cidade literária ou dramatúrgica rodrigueana era a que contradizia esse processo. A cidade da recusa do cosmopolitismo e da ordem burguesa, que mantém em seu cotidiano os costumes ligados a interações sociais mais espontâneas, com misturas de classes sociais e conversas gritadas nas ruas. A transformação do pernambucano Nelson no “mais carioca dos autores” é indissociável da história de sua coluna diária intitulada A vida como ela é..., publicada no jornal Última Hora nos anos 1950. O jornal foi fundado em 1951 por Samuel Wainer para apoiar o governo de Getúlio Vargas, acossado por ataques de forças conservadoras. Ao dar voz a um governo, ainda que de modo contraditório, identificado com conquistas da classe trabalhadora, o jornal adquiriu um viéis popular e progressista. (Wainer, 1988) A coluna de Nelson Rodrigues tornou-se um grande sucesso de público, em parte porque as histórias traziam um ambientação carioca, com seus lugares, tipos urbanos, cenas, dando especial atenção para a descrição dos subúrbios. O subúrbio e a Zona Norte aparecem como palcos privilegiados para a encenação da miséria humana, considerada universal por nosso autor. As relações familiares e de vizinhança, valores e costumes antigos, mostram-se dilacerados em face do individualismo moderno. O universo suburbano está sempre relacionado a outras duas regiões da cidade: o Centro e a Zona Sul. As personagens circulam e a Zona Sul é a área do pecado, onde mulheres casadas vão encontrar-se com seus amantes em apartamentos arranjados. O Rio de Janeiro era o cenário em que se desenrolavam histórias de traição, incesto, morte, suicídios e perversões.

A vida como ela é... foi um grande laboratório para que Nelson Rodrigues escrevesse peças teatrais ambientadas no Rio de Janeiro. O conjunto de obras que Sábato Magaldi, crítico teatral e especialista no teatro rodrigueano, denominou tragédias cariocas possuem indicações precisas de localização espacial e configuram personagens que são tipos urbanos identificados ao Rio de Janeiro. Um desses tipos é o bicheiro Boca de Ouro, também conhecido como “Drácula de Madureira”. Escrita em 1959, Boca de Ouro foi recebida na época como obra com conteúdo de crítica social, ainda que seu autor o negasse. Os anos 1950 foram marcados por movimentos artísticos que objetivam unir inovações estéticas e conteúdo crítico, buscando transformar a realidade social. No teatro, autores como Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade, Ariano Suassuna produziam peças com esse enfoque. A experiência do Teatro de Arena de São Paulo também foi fundamental, a partir de 1958 voltada estética e politicamente para uma visão crítica da realidade nacional. (Facina, 2004: 216) Ao trazer o “bandido social”, nos termos de Eric J, Hobsbawm (2010), como personagem principal, a peça de Nelson Rodrigues se afina com esse contexto histórico. Boca de Ouro é uma das peças de Nelson em que as referências à cidade sejam mais abundantes e explícitas. Ela conta a história de um banqueiro de jogo do bicho de Madureira que arrancou todos os dentes, que eram perfeitos, e colocou uma dentadura de ouro. Depois de sua morte, sua ex-amante, dona Guigui, instigada por um repórter, narrará várias versões de uma mesma história apresentando visões discrepantes sobre a pessoa e a conduta de Boca de Ouro. Nelson constrói o personagem como parte de uma “mitologia suburbana” e diz, na rubrica inicial do texto teatral, que ele poderia ser interpretado por vários atores, “como se tivesse muitas caras e muitas almas” (Rodrigues, 1993c: 881). Quando a notícia da morte de Boca de Ouro chega à redação do jornal O Sol, que até a véspera do acontecido idolatrava o bicheiro, o repórter Caveirinha recebe instruções para “espinafrá-lo”. Para isso, ele é enviado para o bairro de Lins e Vasconcelos, na Zona Norte, para entrevistar Guigui antes que ela saiba do falecimento de Boca de Ouro, na esperança de que em seu ressentimento a mulher possa revelar crimes cometidos por seu amante. Dona Guigui é casada com Agenor, flamenguista e típico pobre-diabo rodrigueano, descrita nas rubricas da peça como suburbana. As expressões utilizadas por Nelson para descrevê-la são “seu riso áspero e suburbano”, “seu humor

suburbano”, entre outras. Quando a imprensa chega a sua casa para entrevistá-la sobre o bicheiro, ela resolve revelar a história de um de seus crimes, chamando o bicheiro de “cachorro” e “assassino”. Essa história gira em torno de um casal, Celeste e Leleco, ele desempregado e ela se dizendo uma fracassada – pois nascera para ter dinheiro – e preocupada com a mãe doente que, se morresse, não poderia ser enterrada por falta de dinheiro. Leleco vai procurar Boca de Ouro na esperança de arranjar algum dinheiro emprestado. Nessa primeira narrativa de Guigui, o bicheiro aparece como um monstro e dono do pedaço. É Boca quem diz: BOCA DE OURO – Aqui em Madureira não há quem eu não conheça! Conheço cada pedrinha da calçada. Qualquer garoto de camisinha de pagão, eu conheço (Rodrigues, 1993 c: 892) Boca de Ouro oferece cem mil cruzeiros para Leleco, mas com a condição de que Celeste vá buscar o dinheiro sozinha. Celeste resiste à investida de Boca, e Leleco, após afirmar que que o bicheiro havia nascido numa pia de gafieira, termina assassinado por ele. Boca de Ouro não admitia que falassem mal de sua mãe e o lembrassem de sua origem social. Depois dessas revelações para a imprensa, Agenor, marido de Guigui, fica com medo de uma vingança de Boca de Ouro. Nesse momento, Caveirinha dá a notícia de que o bicheiro morreu. Enquanto Agenor comemora a morte do rival, Guigui chora. Na rubrica de Nelson, ela tem “essa dor dos subúrbios – dor quase cômica pelo exagero”. A amante nega tudo que havia narrado ao repórter e conta uma nova versão da morte de Leleco, elaborando uma imagem de Boca como benfeitor. Nessa nova versão, Leleco descobre que Celeste tem um amante. Em Copacabana ele a vê dentro de um carro com outro homem. Leleco decide largar o emprego para viver do dinheiro do amante rico da mulher, mas Celeste avisa que eles romperam naquele mesmo dia. Então, o marido tem a ideia de fazer com que ela se torne amante de Boca, com o objetivo de tomar-lhe dinheiro. Boca de Ouro agora surge nas memórias de Guigui com “pinta de lorde”. Enquanto ele está recebendo Celeste em sua casa, chega para visitá-lo uma comissão de “grã-finas”. As grã-finas têm como pretexto uma campanha a favor de filhos de doentes de câncer, mas o que realmente as move é uma curiosidade sobre a figura do Boca de Ouro. A frivolidade das mulheres, que marcam sempre a sua superioridade

social em relação a ele, desperta no bicheiro o desejo de humilhá-las. Ele resolve fazer um concurso de seios, oferecendo um colar de pérolas para a vencedora. Como exemplo de um comportamento moderno, uma das mulheres justifica a exposição de seus seios para um homem que não é seu marido: PRIMEIRA GRÃ-FINA (virando-se para as outras e numa justificação) – Meu marido, depois que fez psicanálise, acha tudo natural! (Rodrigues, 1993c: 914) Todas as grã-finas mostram os seios para Boca de Ouro, mas ele escolhe Celeste, moça pobre do subúrbio, como a vencedora. Rebaixadas, as grã-finas são expulsas da casa do bicheiro. Leleco aparece para buscar a mulher, mas é rejeitado por ela, que quer ficar com Boca. Ele ameaça matar o bicheiro, mas Celeste crava o punhal em suas costas. Nessa segunda versão dos fatos, Guigui exime seu amado de qualquer culpa pelo assassinato de Leleco. No terceiro ato, surge uma terceira versão para os mesmos fatos. Segundo a rubrica de Nelson, a cada ato “se percebe que Boca de Ouro pertence muito mais a uma mitologia suburbana do que à realidade normal da Zona Norte”. O marido de dona Guigui havia ficado furioso com a sua louvação ao bicheiro e ameaça abandonála. Feitas as pazes, graças à mediação do repórter, Guigui constrói a imagem de um Boca de Ouro covarde e assassino de mulheres. Nessa última versão, Leleco também vê Celeste no carro com o amante, só que desta vez ele é o próprio Boca de Ouro. Sob ameaças de Leleco, o bicheiro mata o rapaz com a ajuda de Celeste.

Chega então uma grã-fina religiosa que tentava

converter Boca e que havia estudado com Celeste, pois esta fora bolsista no colégio interno mais grã-fino da cidade. Celeste, que tinha sido humilhada pela mulher na infância, desconfia que as intenções dela com boca não eram exatamente religiosas. A grã-fina diz acreditar que o bicheiro era um santo e que nunca havia matado ninguém, o que faz Celeste mostrar-lhe o cadáver de Leleco, que estava escondido atrás de um móvel. Boca de Ouro ameaça assassinar Maria Luísa, a grã-fina, mas acaba por matar Celeste. No final, sabe-se que o “Drácula de Madureira” fora assassinado com 29 punhaladas pela própria grã-fina que queria batizá-lo, deixando para trás um cadáver desdentado, com sua dentadura de ouro roubada.

Se em Madureira Boca de Ouro conhecia todo mundo e se gabava de ter o corpo fechado, seu poder sucumbiu diante da grã-fina que queria civilizá-lo. Seu sonho era ser enterrado num caixão de ouro, símbolo desse poder. Mas foi velado sem ter nem mesmo a dentadura que inspirara seu nome, tornando-se alvo da chacota popular, sendo chamado de “Boca de Ouro de araque”. É como se a morte pelas mãos da grã-fina o tivesse levado de volta à origem humilhante de quem nasceu numa pia de gafieira. É significativo ainda que Boca de Ouro, na hora de assassinar uma das mulheres, tenha escolhido Celeste, a moça pobre que queria enriquecer de qualquer maneira para poder viajar para a Europa e ver Grace Kelly. Perante a grã-fina, ele se fragilizava, porque se via numa condição social inferior. Boca de Ouro sintetiza vários aspectos da representação da vida urbana carioca presente nas peças teatrais de Nelson Rodrigues. Primeiro, o tema do trânsito entre mundos que produz tragédias: no caso de Boca, a sua perdição veio do contato com as grã-finas.2 Segundo, a questão do anonimato relativo e das possibilidades que ele cria para comportamentos femininos considerados desviantes 3 : vide Celeste circulando de carro em Copacabana com seu amante. Terceiro, a oposição entre o subúrbio, onde todos se conhecem e subsistem fragmentos de valores tradicionais, e a Zona Sul, na qual prevalecem comportamentos individualistas. Por último, o papel da imprensa na construção de mitologias urbanas e na manipulação da opinião pública.

                                                                                                                2  A ideia da cidade contemporânea como lugar de heterogeneidade, trânsito e mobilidade pode ser vista num texto clássico de Louis Wirth, integrante da Escola Sociológica de Chicago, pioneira dos estudos urbanos nas primeiras décadas do século XX. Wirth define o urbanismo como um modo de vida complexo: “A interação social entre uma tamanha variedade de tipos de personalidades num ambiente urbano tende a quebrar a rigidez das castas e a complicar a estrutura das classes e portanto induz a um arcabouço mais ramificado e diferenciado de estratificação social do que em sociedades mais integradas. A crescida mobilidade do indivíduo, que o coloca dentro do campo de estímulos recebidos de um grande número de indivíduos diferentes e o sujeita a um status flutuante no seio de grupos sociais diferenciados que compõem a estrutura social da cidade, tende para a aceitação da instabilidade e da insegurança no mundo como norma geral.” (Wirth, 1967: 104) 3  Esta reflexão é tributária da obra de Gilberto Velho, autor que destacou a diversidade de mundos e estilos de vida presente nas grandes cidades, apontando para o fato de que o indivíduo pode transitar por eles sem que isso necessariamente signifique um comportamento incoerente ou contraditório. Uma das consequencias dessa diversidade é que determinados comportamentos podem ser considerados desviantes em alguns ambientes ou grupos e em outros serem vistos como “normais”. (Velho, 1974 e 1995)

A cidade representada de tal maneira é contraditória à utopia dos reformadores urbanos do início do século XX que queriam civilizar o Rio. Embora hierarquizado, o espaço urbano não impediu o contato e o convívio, ao mesmo tempo estreito e conflituoso, entre classes sociais distintas. Na cidade de Nelson Rodrigues, se a civilização está associada à modernização, como esteve no tempo do prefeito Pereira Passos (1902-1906), trata-se então de um processo fracassado. Os personagens rodrigueanos ora estão à mercê de seus instintos, incapazes de autocontrole e, portanto, incivilizados, ora são vítimas dos próprios símbolos da civilização moderna: a imprensa, a opinião pública, o trânsito urbano em todos os sentidos (significativamente, são muitos os atropelados na obra de Nelson), a crença no individualismo etc. Portanto, longe de gerar felicidade, a modernização se traduz na dificuldade das relações entre indivíduos que se sentem solitários em meio à multidão de desconhecidos, sempre prontos a desvendar segredos e a revelar as suas faces hediondas, como gostava de dizer Nelson Rodrigues. A possibilidade de circulação entre mundos na cidade de Nelson Rodrigues gera tragédia. Uma imagem que ele elabora numa de suas crônicas é significativa: a do canalha como o carioca radical. Somente o canalha, na sua ausência de caráter, pode se moldar à cidade moderna e escapar ileso de um destino trágico. Numa obra repleta de atropelados, cabe ao canalha a habilidade em driblar o trânsito: Não me lembro de ter dito que o Palhares, o canalha, é o carioca radical. Sim, ninguém tão carioca. É uma espécie de irmão das coisas, das esquinas, das retretas, dos paralelepípedos da cidade. Olha o Pão de Açúcar como se fosse a primeira vez, sempre a primeira vez. E tem a sensação de que a luz acaba de inaugurar o Corcovado. Pois bem, E, ontem, eu estava na Cinelândia, olhando os pombos. Não sei que misterioso pudor me impede de lhes dar milho na mão. De repente, ouço o berro: - “Nelson! Nelson!”. Era o Palhares, “o que não respeita nem as cunhadas”. Na calçada da Biblioteca, ele, qual um extrovertido ululante, berrava o meu nome. E, depois, atravessou a Avenida. Os automóveis em disparada raspavam o magnífico pulha. Mas ele chegou do outro lado, sem um arranhão, sem uma fratura e sem uma trombada. (Rodrigues, 1995a: 187) Boca de Ouro não era o canalha, pois a este falta uma dimensão trágica típica do subúrbio, e acaba sucumbindo ao trânsito entre mundos. Se em Madureira ele era

poderoso e temido, aos olhos das grã-finas se torna um personagem de cinema nos moldes do neo-realismo italiano, um malfeitor estetizado e romântico ao gosto de uma certa elite intelectual que Nelson criticava duramente em seus escritos. Em uma crônica publicada em O Globo em 1970, fica evidenciada a distinção entre Zona Norte e Zona Sul no mapa simbólico do Rio de Janeiro traçado por nosso autor: Certo marido vai bater à porta do sogro. O velho era um “homem de bem”, e nós sabemos que o “homem de bem”, cada vez mais escasso, está em vias de extinção. Diz o genro: - “Seu fulano, venho aqui comunicar que a sua filha me trai”. Solene até nas pausas, o “homem de bem” deixa passar um momento. Pergunta: - “Você está dizendo que minha filha tem um amante?”. Já chorando, o outro pluraliza: - “Amantes! São vários!” – e repetia: - “Mais de um, entende?”. Em largas passadas, o velho anda de um lado para o outro. Estaca. Fez uma confissão que resumia toda uma vergonha familiar: - “Saiu à mãe”. O genro ouvira dizer que a falecida sogra era uma víbora e só agora sabia que prevaricava. Feliz de ter, no pai da mulher, um companheiro de humilhação, espera uma providência. E, então, rugindo, aquele pai apanha o revólver na gaveta. Verifica, no tambor, se as seis balas estavam lá. Estavam. Mas enquanto se armava, o “homem de bem” teve tempo de refletir; e conclui, para si mesmo: - “Dei um fora contando os podres da falecida”. Vira-se para o genro: - “Escuta aqui. Eu não disse que acredito na traição da minha filha. Vou lá. Se for verdade, mato a minha filha. Se for mentira, mato você”. Quando chegaram à casa da filha, vem saindo um sujeito. O genro cochicha: “É um dos caras”. Da porta, a filha atira um beijo para o fulano. A moça recebe o pai e o marido de mãos nas cadeiras. Podiam ter conversado, ali mesmo (e diante da evidência não precisavam nem conversar). Mas o pai achava que certas cenas familiares não devem ter espectadores. Diz para o genro: - “Espera aqui na esquina. Depois te chamo”. Encara a garota: - “Minha filha, é verdade que você tem amantes?”. Ela não tinha nada na boca e mascava um chiclete imaginário. Pergunta: - “E daí?”. O outro está quase chorando: - “Você acha bonito trair seu marido?”. Ouçam a filha: - “E você nunca traiu mamãe?”. O velho lembrou de que era o “homem de bem”. Explode: - “Nunca!”. Com um dedo, ela coça a cabeça: - “Se você não traía

mamãe, mamãe traía você!”. A princípio, ele não teve o que dizer. Mas logo achou uma saída: - “Não se fala assim de uma morta”. Muda de tom: - “Afinal de contas, não acredito que minha filha seja uma adúltera”. Achou graça: “Adúltera, adúltera. Quer saber de uma coisa, papai? Esse negócio de adúltera já era!”. O “homem de bem” quis fazer uma pose de honra. Mas a filha nem o deixou abrir a boca: - “Papai, o senhor já falou demais. Agora vai, que eu não quero engrossar com o senhor”. E assim se despediram. Lá fora o genro o esperava, ávido: - “E então?”. O velho disse: - “Vocês que são brancos, que se entendam. Não tenho nada com isso”. Contei este episódio à grã-fina das narinas de cadáver. No fim, sondei: - “Isso aconteceu onde?”. Riu no telefone: - “Ora, ora. Se fosse na Zona Sul, o marido nem reclamava. Se reclamou, foi na Zona Norte”. Assim disse a grã-fina das narinas de cadáver. O fato serve para mostrar que, em nossa época, há um cinismo difuso, volatizado, atmosférico. Um cinismo que o sujeito absorve na pura e simples respiração. (Rodrigues, 1995b: 236-7) Situar suas histórias na Zona Norte da cidade permitia a Nelson ser trágico nos marcos de uma estética realista. A antítese da tragédia é o cinismo, pois este relativiza todos os valores e costumes. Os subúrbios da cidade, atingidos de modo mais lento pela modernização, resguardariam relações sociais mais estáveis e englobantes, em permanente tensão com o estilo de vida moderno. Dessa tensão se desdobram os conflitos, a derrocada da família e do “homem de bem”, acossados pela liberação de seus próprios instintos. Outro aspecto importante dessa construção são as personagens de uma classe média baixa, sempre pressionadas pela falta de dinheiro e levadas a burlar regras e padrões sociais para garantir a sobrevivência. Nelson Rodrigues foi um dos poucos autores teatrais brasileiros a retratar esse universo social ambíguo, limiar entre o proletariado e a classe média mais estabelecida. A lógica da oposição Zona Norte versus Zona Sul se reproduz, em escala nacional, no contraste que Nelson Rodrigues produzia entre Rio de Janeiro e São Paulo. É conhecida a aversão a viagens que nosso autor exprimia em máximas como “a partir do Méier já sinto saudades do Brasil”. Por motivos profissionais, vez por outra ele tinha de ir a São Paulo e escreveu sobre isso em algumas de suas crônicas. Se “o carioca é um eterno feriado”, “a pior forma de solidão é a companhia de um paulista”. Centro do capitalismo brasileiro, a São Paulo de Nelson Rodrigues é a do

gosto pelo trabalho, do individualismo exacerbado, da aridez da paisagem, da escassa sociabilidade. Ele resume essa percepção num trecho de uma crônica publicada em 1970: Estou falando tudo isso porque passei, no princípio da semana, dois dias em São Paulo. Com duas horas, e não mais, percebi que há, realmente, um fatal abismo entre o carioca e o paulista. Foi no almoço que percebi toda a verdade. Imaginem que entrei no, talvez, melhor restaurante da cidade. Todas as mesas ocupadas, gente até no lustre. Comi o meu bom filé. Depois, escolhi a sobremesa: - melão. Enquanto o garçom ia e vinha, levantei-me e fui lá dentro. Quando volto, olho e não vejo ninguém, a não ser os garçons e as moscas vadias. Imaginei-me vítima de alucinação. Quando o garçom chegou com o melão, perguntei-lhe irritado: - “Cadê o pessoal que estava aqui? Isso não estava cheio?”. O garçom pôs o prato na mesa: - “Perfeitamente”. E eu: - “Não tem mais ninguém, por quê?”. Antes de responder, indagou: - “O senhor é do Rio?”. Era do Rio. Deu a explicação sucinta e lapidar: - “Aqui, trabalha-se”. O que, evidentemente, não se dá no Rio. No Rio, três amigos que se juntam num restaurante só saem quatro horas depois. No mínimo, no mínimo. Ah, os nossos papos não acabam nunca. Mentimos muito, porque não há longa conversa sem um belo repertório de mentiras. E porque trabalha, o paulista é triste, sim, é taciturno. (Rodrigues, 1995b: 137-8) Na visão de Nelson Rodrigues, o que faltava a São Paulo eram os espaços de sociabilidade, locais e momentos em que a principal atividade fosse a interação social por si mesma. O “jogar conversa fora”, típico dos encontros nas ruas e bares do Rio de Janeiro, é o contrário da solidão. E essa interação intensa, conflituosa, que coloca em contato indivíduos de classes sociais distintas, com diferenças de gênero, geracionais, raciais é a matéria principal da literatura rodrigueana. Seja em seu teatro, com as tragédias cariocas a trazerem ao palco a linguagem das ruas da cidade; seja nas crônicas diárias, nas quais os diálogos, mais dos que as descrições dos acontecimentos, dão vida a situações reconhecíveis por quem vive o cotidiano do Rio de Janeiro. Em suma, o que Nelson Rodrigues valoriza nessas representações da cidade do Rio de Janeiro elaboradas em suas crônicas é um estilo de vida urbano favorável à

sociabilidade, relacionado com a preservação de uma certa tradição resistente à modernização. O contraste com São Paulo reforça a ideia de nosso autor: na moderna e industrializada capital paulista, trabalha-se e há pouco tempo para as relações afetivas. Já no Rio, predomina uma outra maneira de lidar com o tempo e com as emoções. Não é somente a modernização que não se completa por aqui. Nosso processo civilizador também não conseguiu domar a espontaneidade das interações sociais travadas na cidade. É nas falhas da missão civilizadora que caracterizou a história do Rio de Janeiro desde a Primeira República que residem os aspectos mais significativos de nossa vida urbana. No entanto, em seu teatro o dilaceramento dos indivíduos em face da modernização brasileira aparece de modo mais duro e cruel. Na esfera do íntimo e do privado, a fragilidade dos laços tradicionais do mundo suburbano perante os valores e costumes mais modernos e individualizantes característicos da Zona Sul gera a tragédia rodrigueana. A morte do Boca de Ouro pode ser vista como alegoria desse processo. Sua existência neo-realista só é possível como ficção narrada passionalmente em jornal sensacionalista. Qual São Sebastião, padroeiro da cidade, o Drácula de Madureira morre com o corpo perfurado. O bicheiro é martirizado por aquilo que o encanta e termina sua trajetória despossuído do objeto que o nomeia: sua dentadura de ouro. A morte do Boca de Ouro é também a morte da cidade que tornou sua existência possível. Que outra imagem se adequaria tão bem ao agora benjaminiano da cidade do Rio de Janeiro, com suas múltiplas temporalidades suspensas e em permanente tensão? (Benjamin, 1993)

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