Bocage, arte e vivência

June 19, 2017 | Autor: Emanuel Guerreiro | Categoria: Bocage, Romantismo, Romantismo Português, Poesia pré-romântica
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BOCAGE, ARTE E VIVÊNCIA1

Este estudo pretende ser uma primeira abordagem aos sonetos de Bocage, que constituem um documento da sua vida e tormentos da alma, como se de um diário íntimo se tratasse, destacando-se as suas características inovadoras que marcaram os alvores do movimento romântico na literatura portuguesa, assim como dar a conhecer o poeta, mais famoso pelo anedotário popular do que pelo valor da produção poética.

Alguém me saiba sentir, Mas ninguém me definir. Fernando Pessoa ([1987]:30)

1. No final do século XVIII, surgem, titubeantemente, as primeiras manifestações

românticas

na

literatura

portuguesa,

conhecendo-se

as

produções inglesa, alemã e, principalmente, francesa, a grande influência, pois será através deste filtro que chegarão a Portugal muitas traduções da nova forma de poetar. Oriundos das Arcádias, os poetas misturam a veia clássica com a recém-nascida inspiração, dando início a uma alteração do cânone literário numa lenta evolução entre as leis de composição, ambas abraçadas por alguns poetas que preparam o caminho para a mudança política ao aderirem às novas ideias da Revolução Francesa.2 Talvez o melhor exemplo desta confluência de ideias e de estilos, determinando o que seria o início do Romantismo português, seja Bocage (1765-1805), que tenta libertar-se das limitações neoclássicas e arcádicas exprimindo, nos sonetos, uma mentalidade romântica através de 1

Afirma Vitorino Nemésio (Bocage, 1961:27): «(…) a poesia é arte e vivência.». Esta mudança não é só artística e intelectual; ela marca, também, a alteração da estrutura sócio-cultural, dada a recepção das ideias políticas e sociais das Luzes e a difusão da lei universal da Razão, pelo que o Romantismo português está intimamente ligado à implantação do Liberalismo, coincidindo com a introdução das ideias liberais ligadas à Maçonaria e semeadas pela Revolução Francesa. 2

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temas como confessionalismo, revolta e independência pessoal, solidão, sofrimento, o belo horrível da natureza, a morte. Trata-se de uma tentativa de conciliar duas atitudes de produção lírica: por um lado, as raízes neoclássicas, reveladas no formalismo da imitação; por outro, uma nova sensibilidade que valoriza o sentimento e o indivíduo, no entanto, limitada pela fidelidade ao Arcadismo. Através de traduções de obras anglo-germânicas e francesas, descobre-se uma literatura nova que ultrapassa a temática dos árcades, preferindo os poetas buscar no seu mundo interior a fonte de inspiração, dando expressão à emoção que a disciplina neoclássica reprimia. Os poetas combinarão ingredientes neoclássicos e românticos, correspondendo à partilha de uma nova mundividência e de elementos estético-culturais, pelo que «(…) a sua característica principal é a de ser uma estética da transição.» (Machado, 1985:23).3 Seguindo um novo imaginário, estes poetas contemplarão temas e atitudes divergentes da contenção arcádica: culto do egocentrismo e da auto-análise, marcados por um destino infeliz e afirmando o seu individualismo sentimental; revelam melancolia e pessimismo, gosto pelo «locus horrendus» (o lugar de horror, soturno e nocturno, em que afloram a solidão e a morte) e pelo macabro, em progressiva substituição dos idílicos cenários clássicos («locus amoenus»); manifestam exaltação de sentimentos, principalmente do amor, mas já não abstraído e generalizado como nos clássicos, antes centrado no sujeito poético e associado à morte, por sua vez associada à noite, visão de uma

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Os poetas pré-românticos, como Filinto Elísio, José Anastácio da Cunha, Tomás António Gonzaga, a Marquesa de Alorna e Bocage, entre outros, não constituem um movimento literário organizado e sistematizado – afirma Jacinto do Prado Coelho (1989:866): «(...) rigorosamente, não há PréRomantismo, pois não se trata de um movimento uno e de directrizes conscientes, mas sim préromânticos, cada um com a sua feição individual e combinando de modo sui generis ingredientes neoclássicos e pré-românticos.». Estamos perante o desencontro entre a experiência humana e a procura da definição da sua expressão.

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nova natureza mórbida. O poeta cria uma paisagem identificada com os seus estados de alma, prolongamento físico do «eu», pretexto para a contemplação íntima: «(...) a poesia dá vazão ao tumulto interior, torna-se expansiva e confidencial, tende a confundir-se com a vida (...).» (Coelho, ib.). Contudo, ao nível estilístico, estes poetas ressentem-se da herança neoclássica, manifesta no léxico, na sintaxe e nas formas poéticas adoptadas (mitologia, alegoria, imitação de modelos greco-latinos, ideias e entidades personificadas) e em referências iluministas (deísmo, Razão, Liberdade). Releve-se, porém, a procura de uma linguagem nova, a busca de uma linguagem directa, com ritmo livre, para o quotidiano e o natural.

2. «Incapaz de assistir num só terreno» (Bocage, 1969a:3), assim define o próprio poeta o seu temperamento, caracterizado por uma instabilidade aventureira que o levaria até ao Brasil e ao Oriente. Regressado a Lisboa, em 1790, foi convidado a fazer parte da Academia das Belas-Artes (ou Nova Arcádia, que procurava reviver o espírito da Arcádia Lusitana) – é o Neoclassicismo a imperar: o Arcadismo propunha-se reformar a concepção de poesia em Portugal, quebrando, em nome da Razão, sob o lema «Inutilia truncat» (corta o inútil), com a tradição peninsular barroca, segundo a qual a poesia valia pelo puro engenho. Tendo adoptado o anagrama Elmano e o qualificativo Sadino (referência ao rio Sado, por ser originário de Setúbal), Bocage, perante a insinceridade dos mútuos hiperbólicos cumprimentos entre os árcades, abandona o monte Ménalo, designação dada pela Arcádia Lusitana ao lugar de encontro dos poetas, quase sempre no Convento das Necessidades dos Oratorianos. Avesso a rituais e a convenções, era a sátira a natural 3

expressão da sua têmpera de inadaptado, utilizando-a para hostilizar a «corja vil» (id.:102), como designou a Nova Arcádia. Boémio, frequentador de botequins, Bocage exaltava a Revolução Francesa e ansiava pela «Mãe do génio e prazer, ó Liberdade!» (id.:148), em oposição ao despotismo do poder absoluto. Em consequência da publicação do poema «Pavorosa Ilusão da Eternidade», o poeta é preso pela Inquisição, por irreverências antimonárquicas e anticatólicas, acabando no Limoeiro, como autor de «papéis ímpios, sediciosos e críticos». Foi condenado a ser doutrinado pelos Oratorianos e, liberto dois anos mais tarde, assiste-se a uma alteração no seu carácter, uma mudança na voz, um grito que se cala: há a crença em Deus, num encontro «post-mortem», e a Virgem Maria torna-se uma referência nos seus poemas. Usando um tom declamatório, de improvisação, com termos por vezes vulgares ou mesmo obscenos,4 mas, também, recorrendo a alusões mitológicas e à frase clássica, Bocage expressa o seu dramatismo interior e a veemência sentimental que tende a quebrar a crosta das formas neoclássicas, pela capacidade de criação de imagens não conseguidas anteriormente. Nos seus poemas, patenteia-se um drama, em tensão e agitado por forças contraditórias, na tentativa de libertação do arcadismo e da cultura retórica. Revela-se-nos um conflito pessoal, expresso num conflito estético, entre a rigidez do molde neoclássico e a busca de uma linguagem adequada à impulsividade afectiva. Segundo David Mourão-Ferreira, o drama de Bocage teria resultado da não conciliação do árcade e do pré-romântico, aquele na forma, este no sentido,

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Alexandre Herculano (1986:115) considerou que Bocage «(…) trouxe a poesia dos corrilhos e salões aristocráticos para a praça pública (…).».

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dado verter num esquema clássico uma expressão romântica.5 No classicismo arcádico, o soneto (forma predilecta no Renascimento, com Sá de Miranda, Ferreira e Camões) descera a segundo plano, mas será com ele que Bocage tenta a evasão da secura e rigidez da escola, alcançando a máxima fonte que era Camões, dissertando sobre paixões, muito sofrimento, desespero, ciúme, sondando o mistério da morte. Em auto-elogio à sua arte de versificação, o poeta escreveu: «É o autor do soneto: é o Bocage!» (1969a:4) Assim, encontramos,

nos

sonetos

bocagianos,

estilisticamente,

exclamações,

interrogações retóricas, suspensões, auto-apóstrofes, epítetos e um auto-retrato numa poesia passional onde o Ciúme é experienciado como inferno doentio de melancolia e pessimismo. O peso do Arcadismo está patente no pendor retórico das repetições, na personificação de ideias e no recurso a figuras mitológicas, teatralizando os sentimentos, assim como na adjectivação convencional e no artifício da linguagem. Impõe-se, agora, uma reflexão: os sentimentos e as paixões do sujeito poético bocagiano não eram novos, humanamente considerados; sempre houve naturezas semelhantes e dramas íntimos idênticos. A audaciosa novidade de Bocage foi cantá-los. A sua história é transposta para o território da ficção e, aí, dramatizada, sendo os seus poemas «[e]scritos pela mão do Fingimento» (ib.). Fingimento – curioso termo que norteou a produção literária do maior poeta do século XX português. Através deste recurso, Bocage questionava-se, afirmava a multiplicidade do sentir da sua personalidade, objectivava os seus sentimentos, numa intelectualização da desilusão e do desengano – através da Razão, o

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Álvaro Manuel Machado (1982:15) considera que «(...) o soneto é nele um compromisso por vezes penoso, compromisso entre esse passado de rigidez formal e o improviso de cariz romântico abertamente confessional.».

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sujeito do poema ficciona emoções, sendo o poema «uma sensação para os outros».6

3. Propomo-nos, agora, percorrer alguns poemas de Bocage e tentar uma leitura da sua poética através dos seguintes parâmetros: o egotismo; a confidência; o fatalismo; os prenúncios de gosto romântico.

Egotismo e Confidência

O que há de mais anunciador dos novos tempos, na sua obra, é a hipertrofia da personalidade – a biografia do poeta é poesia vivida: Bocage retrata-se,

autobiografa-se

em

verso,

apresenta-se

como

um

homem

providencialmente perseguido pela desgraça,7 como o seu modelo Camões, sendo, desde muito cedo, dominado pela ideia de uma missão de poeta e de uma predestinação sentimental e trágica, segundo o modelo camoniano. A poesia apresenta-se, pois, como base de definição de uma atitude de sofrimento, valendo como forma de confidência, desabafo de tormentos, expressão vibrante do tumulto interior, da emoção e frustração, numa autobiografia dramatizada, teatralizada.8 Bocage cantou o amor do corpo e alma, os êxtases sensuais, e refere a existência de seres especialmente destinados a servir o Amor – ele seria um. Considerava o amor como uma lei universal, um «fado» a que o homem não se 6

«A arte, na sua definição plena, é a expressão harmónica da nossa consciência das sensações, ou seja, as nossas sensações devem ser expressas de tal modo que criem um objecto que seja uma sensação para os outros.» (Pessoa, s.d.:138). 7 Cf. «Apenas vi do dia a luz brilhante» e «Do tempo sobre as asas volve o dia» (1969a:76 e 158). 8 «Para Bocage, a poesia foi desabafo, autoconsolação, libertação de angústias pelo ritmo da confidência (…).» (Coelho, 1996:45).

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pode esquivar; vê no amor o seu destino, superior a si mesmo e à sua vida: «Não é loucura o meu amor, é fado.» (1969b:106). Mas o Amor é, também, floresta de enganos, labirinto, abismo, tal como os maneiristas o consideravam, o engano por excelência e causador de um irremediável sofrimento, um sentimento labiríntico onde o homem se atormenta e dilacera, tendo como resultado o desencanto e a frustração. O amor gera conflitos e discórdias interiores, pois a sua própria essência reside na contradição: «Amar, e por Amor sofrer insultos,/Das almas grandes a nobreza é esta.» (1969a:71). Bocage vê o amor como tortura que se alimenta, revelando uma atitude masoquista no sofrimento. A angústia provocada pelo amor motivará um desejo de fuga, dada a não concretização do desejo, o que leva o poeta, mais uma vez, a considerar-se predestinado ao sofrimento e vítima de um destino irreversível. Buscando um absoluto inatingível, o amor salda-se em ilusão desfeita e renovado desespero. O choque, na alma do poeta, ocorre quando regressa do Oriente e encontra a noiva que deixara em Setúbal, Gertrudes Homem de Noronha (possivelmente, a Gertrúria, referência constante nos seus poemas) casada com o seu irmão. «Vim, só por me fazer de ti mais digno,/A climas do meu clima tão remotos» (1969b:121), constituíra o propósito de se dignificar perante a mulher amada. Vê-la nos braços de outro, obstáculo à realização do seu amor, acende um fogo no peito do poeta: o Ciúme, que nasce da frustração amorosa, da insatisfação de si mesmo, da ânsia de comunhão total no amor absoluto, da sede de alcançar o amor perfeito inatingível. O combate entre o Amor e a Razão9 é o fundo constitucional da sua alma, cheia de dúvidas e

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«Importuna Razão, não me persigas» (1969a:27) seria a consciencialização do seu drama, uma espécie de punição quer por amar, quer por não poder alcançar a sua concretização. O conflito Razão/sentimento, expressão do sujeito dividido entre duas estéticas, revela a insuficiência daquela contra o poder do Amor.

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incertezas, que origina o seu «inferno de amar», provocado por um amor traído. Daí, a exclamação: «Morte, morte de amor, melhor que a vida.» (1969a:70). A morte da mãe, quando o poeta tinha dez anos, significou a perda do carinho materno, uma primeira ausência, um roubo dos primeiros amores, não encontrado em múltiplas e sucessivas paixões, a acreditar nos nomes e anagramas femininos, que escondem mulheres reais, desejadas ou ilusões do poeta. A perda da mãe foi determinante para a formação psicológica do sujeito poético bocagiano; fundamental na sua imaginação, segundo João Mendes, é o complexo de Jonas, motivado por aquele acontecimento, criando a vertigem da queda, qual Faetonte, do abismo devorador e a aspiração do resgate luminoso, a saída para uma outra vida nova: «(…) a vertigem da sombra e do abismo, da morte e da sepultura, representa uma descida aos infernos que é o sono da amargurada vida consciente e sua dissolução inconsciente, um modo de regresso ao seio materno (…).» (Mendes, 1982:249). O complexo de Jonas associa-se ao tema do Ciúme, outro abismo, o labirinto dentro da própria alma. O poeta imagina a entrada no terror de um abismo e espera sair para a Luz, acabando por cair na infelicidade.

Fatalismo

O Destino, fatalismo dos românticos, levou Bocage para longe da Pátria, identificando-se com Camões. A sua desagradável estada no Oriente, assim como as infelicidades amorosas, levam-no a sentir-se um poeta predestinado e

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infeliz, vítima do Destino adverso, cujo modelo espiritual é Camões.10 A mundividência de Bocage é já romântica, crendo-se marcado pelo Destino para a desventura e para o culto da Poesia, «dom divino»,11 esperando um reconhecimento futuro: «Submisso à má ventura, ao fado adverso,/Ao menos por desgraças lamentáveis/Terei perpétua fama no Universo.» (1969a:166). Considera Álvaro Manuel Machado (1985:66): «A vida como a obra de Bocage dão-nos a impressão de se consumirem rapidamente em labaredas de autodestruição.». O poeta veicula a ideia de não poder fugir à obsessão da morte, tal como os maneiristas, de fugir à angústia da mudança: «Que a vida para os tristes é desgraça/A morte para os tristes é ventura.» (1969a:68). Na Antiguidade, a Morte era tida como uma divindade mitológica formada pelo sono e pela noite. A aproximação do sono com a morte deve-se à semelhança de ambos os estados, permitida no espaço nocturno, pelo que o poeta vê a noite como irmã da morte.12 A noite, romântica, convida ao devaneio, ao desabafo (nota petrarquista); confidente, é o momento oportuno para as queixas de amor e o poeta lamenta-se de que o amor lhe dá a morte (tópico medieval).13 Não como dimensão metafísica, mas como alusão alegórica, a noite, as trevas, o «locus horrendus», simbolizam a morte, a tristeza mortal, a solidão, pelo que o poeta desabafa, angustiado, acompanhado pelas sombras: «Só me cercam fantasmas da tristeza./Que silêncio! Que horror! Que escuridade!/Parece muda ou morta a Natureza.» (1969a:159). Antevendo o fim, o descanso, a paz, permitidos pela morte, o apelo da morte e do sepulcro, em Bocage quase um 10

Cf. «Camões, grande Camões, quão semelhante» (id.:85). «Sou vate, e, sobranceiro à Natureza,/Nos arcanos do Céu leio o que digo.» (id.:109). 12 Cf. «Ó retrato da Morte! Ó Noite amiga» (id.:23). 13 Cf. «Já sobre o coche de évano estrelado» (id.:7), soneto que apresenta uma paisagem silenciosa onde, num tom confessional, com um pensamento lúgubre, o sujeito transmite o desejo da morte, traduzido no corte do fio que o liga à vida, comprazendo-se com a dor. 11

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exorcismo, constitui a eufemização da vertigem e da queda, em demanda de um sono de absoluto esquecimento que permita a superação da luta interior e a evasão do sofrimento.14 Convicto de uma sobrevivência pessoal, a Morte não se apresenta ao poeta como ponto final da existência, não é a última viagem, mas uma viagem inicial que permite a ascensão e a libertação para um espaço etéreo, sonhado e ansiado há muito.15 Nos momentos de maior dor espiritual, a aspiração da morte assume o prolongamento e a sublimação da vida, que continua para além – é na morte que o amor viverá a sua última ambição de felicidade, realizando a comunhão absoluta e ganhando um sentido platónico.16 Considera Urbano Tavares Rodrigues (1989:672): «Egotista, persegue-o a ideia da morte, da sua morte. Ele é, antes de Antero, o nosso primeiro niilista, incrédulo abalado de pavores e de remorsos.». De facto, o molde, o esquema, a oratória, a frase, a Morte como tema central, passam de Bocage a Antero, como se lê nestes versos: «Só busco o teu encontro e o teu abraço,/Morte! irmã do Amor e da Verdade!» (Quental, 2002:142).17 Críticos, como Vitorino Nemésio e Álvaro Manuel Machado, vêem, entre Bocage e Antero, uma ligação temática e poética ao estabelecerem, entre a Noite e a Morte, uma correspondência e uma reciprocidade, manifestas na expressão da solidão existencial e do drama de viver. Ao permitir uma libertação, por um lado, e uma participação cósmica, por outro, esta leitura remete para uma experiência de natureza mística, para a ideia de uma noite divina e materna, para cujos braços acolhedores o sujeito apela 14

«Por isso, na paixão que me devora, /Invoco a muda paz da sepultura,/Da suspirada morte a feliz hora.» (1969b:122). 15 «Senhor, que estás no Céu, que vês na Terra/Meu frágil coração desfeito em pranto,/ Pelas ânsias mortais, o ardor, o encanto/Com que lhe move Amor terrível guerra;//Já que poder imenso em Ti se encerra,/Já que aos ingénuos ais atendes tanto,/Socorre-me, entre os santos Sacrossanto,/Criminosas paixões de mim desterra!» (1969a:145). 16 Cf. «Deixar, amado bem, teu rosto lindo» (1969a:74). 17 Vd., também, os seis sonetos sob o título «Elogio da Morte» (pp. 141-146) e as alegorias (em) «Mors – Amor» (p. 118).

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pela tranquilidade que ela transmite e a protecção que dá. Daí, se lê o desabafo: «Suspiro pela paz da sepultura.» (1969a:76).

Romântico

Depois de se ter iniciado no neoclassicismo, Bocage deu voz ao seu infortúnio progressivo numa forma poética que lhe permitiu a expressão de uma nova sensibilidade. O Pré-Romantismo português consistiu numa fuga aos preceitos estéticos do Arcadismo e na adopção de novos temas, como a valorização do sentimento como fonte de inspiração, o culto do «eu», a confissão de tumultos interiores, o Fado e a sua perseguição, gosto pela solidão, túmulos, morte, inter-acção entre o sujeito e a Natureza, temas que encontramos nos sonetos de Bocage. Esta nova visão da Natureza dista do natural típico dos neoclássicos: o poeta cria a paisagem que lhe serve, cenário que conota o estado psicológico do sujeito poético e revela o seu gosto fúnebre. Revela-se uma personalidade emotiva, perseguida pelo fogo do sentimento e comprazendo-se em cenários lúgubres onde se encontra o espectro da Morte, exprimindo uma convulsão de sentimentos acompanhada de melancolia, expressão de um sujeito votado à infelicidade e a um destino fatídico.18 Os últimos momentos do poeta são uma dolorosa despedida e um arrependido regresso a Deus, amargurado pelo desconcerto que foi a sua vida: «Meu ser evaporei na lida insana» e «Já Bocage não sou!...» (1969a:168 e 202) 18

Dirigindo-se a Deus, suplica: «Lava-me as nódoas do pecado imundo,/Que as almas cega, as almas contamina;/.../Estende o braço, a lágrimas propício,/Solta-me os ferros, em que choro e gemo,/Na extremidade já do precipício.//De mim próprio me livra, ó Deus supremo,/Porque o meu coração, propenso ao vício,/É, Senhor, o contrário que mais temo!» (1969a:143).

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constituem um duro exame de consciência e resgatam uma vida que decorreu num plano infinitamente inferior ao seu ideal. A inconstância e a desordem do seu espírito mostram a dolorosa luta pela evasão e superação do ambiente em que viveu, revelando uma «(…) singular, contraditória personalidade, em cuja obra e vida tanto se fez sentir a convulsão revolucionária do seu tempo, momento histórico-cultural da agonia do mundo clássico e primeiros estremecimentos vitais do mundo romântico.» (Cidade, 1986:9). É esta reflexão de um sujeito sofredor, confidência emocionada e fatalista do seu destino, numa espera angustiante pelo fim da vida e ansiando por uma elevação espiritual, que determina a expressão romântica da sua poesia. Romântico – na obra como na vida, na obra porque na vida, o poeta consumiu-se na busca incessante de uma felicidade impossível. Entre o excesso da paixão, o fervor emocional e a visão trágica do amor, Bocage encontrou, na expressão poética, uma forma de sublimar essa dor que sempre o atravessou, outorgando-lhe a serenidade e a paz procuradas: «Que importa que na térrea sepultura/Baqueie o corpo, a vítima do nada,/Se triunfa nos céus uma alma pura?» (Bocage, 1970:23).

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BIBLIOGRAFIA

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in Brotéria. Volume 176, Março 2013, pp. 271-280 14

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