Boécio, da cultura à sabedoria

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A Consolação da Filosofia de Boécio, da cultura à sabedoria
Luís M.G. Cerqueira
CEC-Lisboa

1. Sabedoria, cultura e religião
"Levanto os meus olhos para os montes, de onde me virá a salvação?"
A resposta predominante nestes dois dias foi certamente a que a Biblia
nos dá. A salvação vem do divino, e da transcendência, ou pelo menos de um
espaço misterioso que não queremos ou podemos devassar, os tais arcanos da
sabedoria, que podemos apenas entrever.
Não haverá outra resposta possível à pergunta do salmo?A questão que
aqui se coloca é saber se a cultura, forma cristalizada da memória, aquilo
que de melhor produziram a experiência e a reflexão dessa maior parte da
humanidade, os que já morreram, pode salvar-nos. Isto é, se pode ensinar-
nos a maneira de sermos verdadeiramente felizes, de vivermos a vida da
melhor maneira, em harmonia com os outros e com o mundo. Ou seja, se nos
franqueia o acesso à sabedoria, que definimos como a capacidade de agir da
melhor maneira possível no plano do indivíduo, da sociedade e de um tempo
longo.
A sabedoria não existe, existem apenas circunstâncias que podem fazer
com com que ela aconteça. O sábio só o é em acto. Embora determinados
indivíduos tenham estatisticamente mais probabilidades de optarem
sabiamente nas encruzilhadas da vida, em função das suas capacidades e da
sua evolução como pessoas resultantes das orientações fornecidas pela
memória colectiva, nem sempre esses indivíduos actuarão sabiamente.
Lembremo-nos de Salomão, sábio arquetípico do judaísmo, tão pouco sábio no
final da sua vida. Rejeitamos, pois, não só uma sabedoria de origem divina,
que nem todos podemos admitir, mas também uma sabedoria com estatuto
ontológico, que se expresse depois concretamente em vários níveis e
modalidades. Afastamo-nos pois, do discurso religioso.
É óbvio que a cultura não nos salva, ou não nos salva necessariamente.

Bastará perceber que o letreiro que encimava o sinistro portão de
Auschwitz, arbeit macht frei, é uma citação de um pensador e assume a
autoridade mística de uma sentença sapiencial[1]. Na majestade eufónica
da sua formulação e no seu sentido é assustadoramente semelhante ao ora et
labora beneditino, o que demonstra que literatura sapiencial pode não ter
nada a ver com a sabedoria. O responsável do campo de extemínio que o
mandou colocar tinha lido o suficiente para fazer a citação, o que nos
provoca um calafrio.Os oficiais nazis eram, aliás, dos homens mais cultos
da Europa, formados nas melhores universidades à época, as universidades
alemãs. George Steiner acentuou repetidamente a cumplicidade assustadora da
cultura e da bárbarie no séc. XX, com toda a frontalidade. A cultura não
nos salva.
Desculpareis este estalar do verniz académico, mas temos de nos
colocar num patamar de franqueza e de pessoalidade, quando falamos de
salvação, coisas de que a cultura académica se arreda instintivamente. Como
académicos, ao olhar em volta a academia, é inevitável verificar esta
falência da cultura como acesso à sabedoria: carreirismo, subserviência,
arbitrariedades, agressividade estéril e depropositada. Somos cultos, mas
não somos sábios.
Por outro lado, a religião, voz isolada que na Europa dos nossos dias
ousa propor às sociedades pilares de sabedoria, também nos não salva
necessariamente. O Cristianismo teve as suas épocas de insensatez; o Islão
promete virgens aos bombistas suicidas e devotos que estão a preparar as
detonações de amanhã. Talvez nada nos salve automaticamente.
Ao invés da cultura moderna, a cultura antiga assumia uma assertiva
dimensão ética, quer no caso da filosofia quer no caso da literatura, que
proporcionavam normas de conduta e instigavam atitutes e comportamentos.
As grandes correntes filosóficas antigas tinham uma teoria física e
uma lógica, mas preconizavam também uma ética, que tinha implicação nas
opções de vida do homem antigo. Sócrates, figura paradigmática da filosofia
antiga, andava pelas ruas de Atenas a incomodar os seus concidadãos,
perguntando-lhes o que era a felicidade ou a virtude.
No caso da literatura latina, que conheço mais aprofundadamente, a
épica, a oratória, a lírica, a historiografia e o teatro têm uma relação
próxima com a filosofia e inscrevem-se numa dimensão marcadamente
vivencial, propondo perspectivas morais e em alguns casos moralistas, sendo
mais intervenientes do ponto de vista de uma funcionalidade do saber do que
a própria religião romana, com seu carácter formalista.
Mas na actualidade a filosofia e a literatura não assumem de modo
geral a responsabilidade de propor às pessoas uma ética. O Existencialismo
descreve a angústia da escolha, e toma consciência de que todo o agir tem
consequências, mais do que proporcionar uma orientação para a escolha. A
cultura contemporânea, em particular aquilo a que se chama alta cultura, é
um limbo de erudição, uma vida em circuito fechado, sem implicação
vivencial.
Claro que encontramos excepções: Simone Weil revolta-se contra um
pensamento filosófico que seja apenas uma elaboração de sinais sem relacão
com o mundo real, e vai trabalhar para uma fábrica, pega numa espingarda e
vai lutar na guerra civil espanhola, procurando uma coerência de pensamento
que implica um sair para fora deste limbo do próprio pensamento em que a
cultura literária e filosófica se constituiram na contemporaneidade.
Até aos princípios do séc. XX a literatura valia sobretudo pelas suas
ideias, e sobretudo pelas ideias éticas, quer do ponto de vista da produção
quer do ponto de vista da crítica, mas o pejo de admitir que a literatura
possa ser uma forma de conhecimento objectivo levou a um abandono da noção
de valor na literatura.
A literatura e a crítica literária centraram-se assim nas modalidades
estéticas e em processos descritivos, não assumindo opções de carácter
ético, num relativismo axiomático absoluto. Há uma literatura do mal, que
vai da curiosidade naturalista do séc. XIX à indiferença moral do séc. XX.
Não se pode certamente exigir aos escritores que sejam professores de
moral, mas é exigível que manifestem, como característica humana
fundamental, uma distinção do certo e do errado, e que ao descrever o mal,
parte inegável da realidade, o façam de forma a que seja sentido como mal.
Esta exigência é paradigmaticamente formulada por Simone Weil, que insiste
na pésanteur com que o mal deve ser retratado( Weil 2008).
As grandes correntes da crítica literária do séc. XX analisaram, por
seu turno, as categorias formais e os processos intra-textuais.
No Formalismo russo, a forma era o conteúdo, com Jakobson e Sholovsky;
o New criticism professado nas Universidades americanas na década de 1930-
40 procurava objectividade e rigor intelectual na análise do texto e seus
mecanismos, embora mantendo o milenar anseio de que os seus leitores
sofressem uma influência humanizadora, que se opusesse às tendências
alienantes da vida moderna e industrial. O Estruturalismo e o Pós-
Estruturalismo continuam a priviligear o texto em si, desconectado da
realidade. O New historicism aceita a necessidade de formular juízos de
valor, mas num contexto historicista, encarando o texto como produtor de
ideologia, numa lógica de poder e subversão. Os gender studies incidem o
foco dos seus juízos numa área muito restrita da problemática social.
Isto embora latente e difusa esteja sempre a noção de que a
literatura veicula uma experiência humana e de que os juízos de valor fazem
parte desta experiência.
A crítica literária com perspectiva moral, o ethical criticism, no
entanto, nos círculos mais avançados foi veementemente rejeitada,
nomeadamente na década de 1970-80.
É fénomeno significativo, pois, que esta perpectiva da leitura ética
esteja agora a regressar, sobretudo pela mão de filósofos que se dedicam à
crítica literária (Adamson et al. 1998) (Nussbaum 1990).
Porém o caso mais na ordem do dia e com maior visibilidade será
certamente o de Harold Bloom, crítico literário em demanda da sabedoria,
que afirma claramente procurar a verdade através da Literatura (Bloom
2004).
O que revela a necessidade contemporânea de salvação, de normas
sapienciais que orientem as nossas vidas. "Levanto os meus olhos para os
montes..."
Na modernidade foi contudo a religião que arcou quase em exclusivo
com o ónus da formulação sapiencial.
Uma sabedoria "meramente" humana, resultante do contrato social, que
nos permita viver harmoniosamente uns com os outros, não tem sido objecto
de verbalização, de formulação sapiencial, formulação cujo espaço só pode
ser a cultura e a escola.
Para um classicista falar do "meramente humano" soa ofensivo, porque
as litterae humaniores, a que nos dedicamos, são precisamente o espaço de
uma realização mais completa da nossa humanidade, e são do domínio do
humano as grandes formulações éticas da Antiguidade[2]. E, diga-se em abono
da verdade, muitas das regras da moral religiosa resultam de facto de
necessidades de convivência social, v.g., a maioria dos Dez Mandamentos.
Porque talvez a cultura, espaço de partilha da nossa humanidade, possa
salvar, embora também não o faça automaticamente. Trago-vos um estudo de
caso, em que a cultura assume uma funcionalidade existencial e condiciona
uma atitude de serenidade perante a morte e o desconcerto do mundo que
podemos identificar como um acto de sabedoria.


2.1. Boécio, o homem na História
O senador Boécio, um homem que foi rico e poderoso, que é extremamente
culto, escreve o texto da Consolação no despojamento de um cárcere sombrio
e com a perspectiva provável da sua execução, pois tem perfeita consciência
de que a acusação de traição que sobre ele impende lhe pode acarretar a
morte. Corre o ano de 524 d. C. O facto de estas serem as palavras de um
homem que está no "corredor da morte", sem esperança de reabilitação e de
regresso ao seu anterior estatuto de poder, glória e riqueza, dá-lhes um
peso especial, pois pode falar-nos com a liberdade e franqueza derradeiras
que só os condenados podem ter.
Anício Torquato Severino Boécio (480-524 d. C.) é uma das figuras mais
fascinantes da história da cultura ocidental. Pertence à mais alta
aristocracia, nascido que foi na família dos Anícios, cristãos desde o
século IV. Esta família deu a Roma dois papas e um cônsul, o pai de Boécio,
após a morte do qual o jovem foi adoptado pelo nobre Símaco, com cuja
filha, Rusticiana, acabou por casar.
Boécio recebeu a melhor educação possível no seu tempo, dedicando-se
ao saber numa primeira fase da sua vida, que depois procurou pôr ao serviço
do bem comum, seguindo os preceitos de Platão, dedicando-se à política, em
que teve uma ascensão fulminante: cônsul em 510 d. C., com cerca de trinta
anos, alcançou o cargo de magister officiorum, lugar de topo na corte do
rei Teodorico.
Vítima de intrigas palacianas, Boécio, é acusado de traição e cai em
desgraça em 523, entrado na casa dos quarenta anos, precisamente quando
estava no auge da sua riqueza e poder.
Encarcerado em Pavia, inicialmente dominado pelo desespero e pela
prostração, procurando em vão consolo na poesia, aparece-lhe a Filosofia,
que representa o melhor da sabedoria antiga, se não é, como diz Abelardo,
um alter ego do próprio Boécio, que vai conversando com ele, procedendo a
uma indagação racional das questões fundamentais e perenes da condição
humana, na sua busca de felicidade e de compreensão do mundo. Este diálogo
consola-o e condu-lo do seu profundo desespero até "à alegria de quem
alcançou a verdadeira felicidade".
Foi executado de forma brutal nos últimos meses de 524: depois de
torturado com uma corda apertada em volta das têmporas e dos olhos, foi
morto a golpes de maça, tipo de morte extremamente cruel, que não se
aplicaria normalmente a pessoas da sua condição social.
Viveu nos anos crepusculares do império romano, que termina
oficialmente em 476, com a deposição de Rómulo Augústulo pelas legiões da
Gália, mas que se prolonga nas instituições e nas formas de vida das
pessoas, para além das circunstâncias políticas. Depois dos catorze anos de
reinado do bárbaro Odoacro e do seu assassinato, o rei ostrogodo Teodorico
invadiu a Itália em 489 e tornou-se imperador em 493, teoricamente sujeito
ao imperador do Oriente. Teodorico é um bárbaro, que nunca aprenderá a
escrever, mas é também um governante astuto: manteve o Senado e o sistema
consular, as escolas abertas, costumes e instituições, exercendo contudo um
efectivo poder régio. Cristão ariano, e portanto um herege aos olhos dos
seus súbditos de credo niceno, mostra-se tolerante do ponto de vista
religioso.
Mas os Ostrogodos são um povo ocupante, o que leva a abusos
inevitáveis e a uma natural desconfiança e animosidade em relação às forças
mais tradicionais da aristocracia itálica. Estas circunstâncias político-
religiosas ajudam a compreender a queda em desgraça de Boécio, cuja morte
dificilmente pode ser entendida como um martírio motivado por razões
exclusivamente religiosas.
Símaco, sogro de Boécio, será também ele executado poucos meses
depois, e o Papa João I, amigo íntimo do nosso autor, é "convidado" a ir a
Constantinopla pedir ao imperador que pare com as perseguições contra os
arianos: o seu insucesso nesta missão dá a Teodorico a prova da sua
deslealdade e o pretexto que procurava: o papa não tarda a morrer na
prisão.
Hesitamos em dar crédito aos remorsos que, segundo um cronista, teriam
atormentado os últimos dias de Teodorico. Mais plausível é a informação
acerca do seu esforço de fazer desaparecer os corpos de Boécio e de Símaco,
referida por fonte coeva. As implicações políticas e religiosas destas
mortes eram enormes e Teodorico tinha razões muito práticas para se
arrepender. De facto, na sequência destes acontecimentos o reinado de
Teodorico entrará num período de impopularidade e de suspeição. O próprio
Teodorico morre, aliás, pouco depois.

2.2. Boécio, o douto
Este nosso prisioneiro é um homem de extraordinária cultura, o último
verdadeiro douto do Ocidente antes do séc. XII. Profundo conhecedor das
obras filosóficas de Aristóteles em grego, dá também mostras de conhecer
profundamente as teorias filosóficas estóicas e platónicas. Tinha
projectado traduzir para latim Platão e Aristóteles, com a intenção de
demonstrar a sua concordância fundamental, mas apenas concluiu a tradução
das obras lógicas de Aristóteles e alguns comentários sobre elas. Mas o
pouco que conseguiu fazer tornou-o um autor da maior importância para o
conhecimento nos mil anos seguintes. Para providenciar uma introdução à
Lógica, traduziu e comentou a Introdução às Categorias de Aristóteles de
Porfírio, e o seu comentário forneceu o ponto de partida para a
controvérsia entre realistas e nominalistas sobre a existência dos
universais, tão importante na filosofia da Baixa Idade Média. Traduziu as
quatro obras lógicas que constituem o Organon aristotélico e escreveu
comentários sobre duas delas, escreveu um comentário sobre os Topica de
Cícero e cinco ensaios sobre Lógica de sua autoria, influenciando o estudo
da Lógica medieval e os seus processos e formas de expressão, criando
vocabulário, formulações e direccionamentos.
Ao ligar a importância destes trabalhos com o impacto da Consolação
no estudo da Filosofia Moral na Idade Média, começamos a compreender a
extraordinária estatura deste vulto, da sua fama e autoridade. Para
aprofundar esta percepção temos actualmente obras que se constituem como
referências ( Gibson 1981) (Chadwick 1981).
Faz ainda faz ecoar toda a literatura latina clássica nos poemas da
Consolação: por vezes num só poema ouvimos a contemplação filosófica da
natureza dos coros da tragédia de Séneca, a lírica sábia de Horácio, a
doçura de Vergílio. Uma literatura conhecida de cor, com o coração, pois na
cadeia Boécio não tinha a sua biblioteca.
Teve ainda um papel importante nomeadamente no que diz respeito ao saber
científico, que em Roma só teve raros cultores, em pequenos núcleos. O
legado cultural romano é sobretudo literário, e a aritmética, geometria,
astronomia e música (esta última uma ciência matemática, na tradição
pitagórica) não interessavam aos Romanos na dimensão aprofundada e
especulativa a que os gregos se abalançaram e que Boécio tentou transmitir
ao mundo de língua latina. O seu De Musica, em particular, ergue-se com a
dimensão de uma bíblia da teoria musical europeia (Cerqueira 1991).
Estes conhecimentos científicos de origem grega que Boécio se propôs
passar para a língua latina constituem aquilo que a universidade medieval
conhecerá como Quadriuium, os quatro caminhos para a sabedoria, designação
criada por Boécio no prólogo da sua Aritmética, e a que, por analogia, se
acrescentará o Trívio (Gramática, Retórica e Dialéctica) .
É, pois, o último representante do saber antigo na sua maior
profundidade. Daí que lhe tenham chamado "o último Romano".
Está no fim de um mundo e na origem de outro: último representante do
saber aprofundado desenvolvido pela Antiguidade, apresenta-se como o último
Romano, mas é também simultaneamente o primeiro escolástico, no seu esforço
de compreender a fé através da razão.
O carácter filosófico e racional predominante nas suas obras e alguns
aspectos menos ortodoxos da Consolação levaram a que fosse posta em causa a
sua autoria relativamente às obras teológicas, pequenos tratados que hoje
sabemos serem de facto seus, através de um texto de Cassiodoro entretanto
descoberto. Mas a verdade é que é a Filosofia, e uma Filosofia basicamente
pagã que vem consolá-lo no seu cárcere, e não a Teologia[3].
O seu posicionamento ideológico é o de um cristão que argumenta com
base na razão e na ordem do mundo, de forma que por vezes se cruzam o
Cristianismo e Filosofia pagã, e surgem ideias e formulações que chocam com
a ortodoxia católica. Se o carácter existencial e literário da Consolação
foi admirado sem reservas, os seus leitores confrontaram-se por vezes com
problemas de doutrina, como a distinção entre Fado e Providência no livro
IV. Claro que para Gregório Magno, fautor de uma ruptura decidida com a
cultura pagã, esta distinção de Boécio é inaceitável, o Fado não existe,
mas para a sociedade em que Boécio foi criado é uma categoria importante
que ainda é necessário integrar.
Mas o problema do seu Cristianismo foi resolvido pela Igreja, ao
canonizá-lo: é S. Severino, cultuado em Pavia, cidade do seu martírio,
tendo-se providenciado uma data para a sua morte, vinte e três de Outubro,
ainda que sem fundamento histórico.
A sua morte tem sem dúvida implicações políticas. Diz-nos Boécio que
apenas procurou proteger o Senado das intrigas dos cortesãos de Teodorico e
do poder discricionário, mas ao fazê-lo estava também a colocar-se ao lado
da ortodoxia católica, associada a Constantinopla, e a opor-se a um rei
cristão ariano. Isto embora o arianismo de Teodorico fosse tolerante e ele
pretendesse agradar à maioria nicena dos seus súbditos, e a morte de Boécio
se explique mais pela paranóia de um rei desconfiado que se deixa convencer
da traição do seu mais alto servidor, dando ouvidos a intrigas palacianas,
do que por questões exclusivamente religiosas.


2.3. Boécio, o sábio
Mas não é o político, cuja vida teria apenas um interesse histórico,
não é o homem cultíssimo, com o seu acervo de conhecimentos, é o homem
Boécio, o sábio Boécio, que nos interpela da sua prisão em Pavia, mantendo
a racionalidade e a capacidade de tentar compreender e explicar, numa
situação limite. A sua vasta cultura, única coisa que ninguém lhe pôde
tirar, transforma-se agora, graças à derrocada de todas as perspectivas
humanas, num conhecimento que lhe permite enfrentar as suas tribulações, e
já não é apenas cultura, mas passa ao patamar da sabedoria.
Esta sabedoria é sobretudo distanciamento e uma compreensão racional
das suas circunstâncias, numa formulação que ultrapassa largamente a sua
situação pessoal e tocará as almas de muitos homens muito depois de sua
morte. O seu espírito eleva-se, como ele próprio nos diz, e contempla lá do
alto a mesquinhez das ambições e angústias da vida humana.

Tenho, com efeito, penas aladas,
para subir às alturas do céu:
quando o ágil espírito as veste,
olha lá do alto as terras com desdém,
ultrapassa o globo do imenso éter,
deixando as nuvens atrás de si,
para além do vértice de fogo
causado pelo subtil movimento do éter,
até se elevar às moradas estreladas,
e se unir a Febo no seu trajecto,
até acompanhar no seu trajecto o frio ancião,
e correr ao longo do círculo estrelado,
onde a noite cintilante se ilumina[4].


A clareza do seu raciocínio e o seu percurso interior conduzem-no a
uma serenidade que certamente lhe terá sido útil no dia em que foi
executado. E olhar a morte nos olhos com serenidade é certamente uma forma
de sabedoria.
Na sua reflexão, Boécio eleva-se do seu caso individual e particular à
formulação e discussão dos problemas fundamentais e intemporais que ainda
hoje nos atormentam. E é esta dimensão simultaneamente existencial e
intemporal que confere a este texto o seu carácter extraordinário.
Como explicar o desconcerto do mundo, sobretudo se nele está inscrita
uma ordem que resulta da existência de Deus? Como é possível que um homem
de consciência limpa possa ser sujeito a tais sofrimentos? Porque têm os
maus sucesso e os bons são castigados, qual o sentido, se há algum, de tudo
isto? A sua resposta, que ultrapassa as paredes do seu cárcere, é a da
afirmação serena da ordem universal, apesar das aparências e das
circunstâncias. O seu saber revela-se sólido e eficaz no embate com as
vicissitudes da vida e perante a perspectiva da morte.
No início do livro III, a Filosofia anuncia a Boécio que o vai
conduzir à verdadeira felicidade:


Com que entusiasmo te inflamarias se soubesses para onde pretendemos
conduzir-te!
5 Para onde? disse eu.
Para a verdadeira felicidade, – disse ela – aquela que também o teu
espírito deseja, mas que, por teres a tua visão limitada às aparências, és
incapaz de descortinar. [5]


E parte para a análise das várias formas com que a opinião comum
identifica a felicidade: riquezas, honrarias, poder, glória e prazeres;
evidenciando o carácter parcial e sobretudo imperfeito de cada uma delas.
Ao prometer a verdadeira felicidade, a Filosofia assume-se como via
de sabedoria.
A felicidade só pode ser uma totalidade, e essa totalidade é o sumo
bem, que se identifica com a divindade. O homem verdadeiramente feliz é, de
certo modo, deus, e o caminho que conduz a este estádio é a análise
racional e liberta das contingências particulares, é a contemplação da
basilar ordem do mundo.
Poderemos questionar-nos sobre se a firmeza desta crença não será
apenas um construto religioso-filosófico, e se Teodorico, ao mandar matar o
nosso autor não estará a impor ao filósofo o princípio da realidade. Mas é
este afastamento da realidade da natureza através das estruturações da
cultura que faz a nossa humanidade e tem garantido a nossa evolução
específica enquanto espécie superior às outras.
É esse o fascínio da obra, o reconhecimento nela da essência da nossa
humanidade, preservada numa situação limite de tribulação, que no longo
prazo acaba por ser o triunfo do encarcerado, e o reconhecimento da
validade do seu pensamento.
O seu carácter de consolação advém deste sentimento de que afinal há
uma ordem universal que permanece e se manifesta no devir do tempo, que
reconfortou muitas almas pelos séculos fora e fortaleceu muitos ânimos na
nobreza das suas convicções[6].


3.Os mecanismos da sabedoria
Observemos agora os mecanismos deste processo da passagem da cultura à
sabedoria. São perceptíveis três fases:
A.
1. Recepção aprofundada da cultura, cristalização do melhor da
memória da experiência vivencial e intelectual do colectivo da tradição
antiga.
2. assimilação reflectida, pessoal, racional e consequente (a entrada
na carreira política como imposição filosófica)


B. Situação de crise, que proporciona uma libertação das
circunstâncias e propicia uma sinceridade radical, com o despojamento das
excrescências da erudição. É despoletada uma exigência de fundamentação e
de fundamentalidade, que induz o questionamento da racionalidade .


C. Superação da crise pela passagem à formulação de uma sabedoria, que
a ordália propicia, mas a que também confere autoridade e legitimação,
assegurando a funcionalidade do conhecimento.


A sabedoria de Boécio é transmitida ao colectivo de leitores futuros,
elevando-se da experiência pessoal à formulação prescritiva para um
colectivo. Devolução da memória sapiencial, acrescentada, regresso do
individual ao colectivo.
Não se trata do pathos/mathos da tragédia clássica, de um conhecimento
através do sofrimento, mas da elaboração e formulação de uma sabedoria
existencial que parte de um conhecimento intelectual, propiciada,
legitimada e avalizada pela provação, que se constitui em prescrição ética
pela elevação a um enquadramento supra-subjectivo, formulando uma sapiência
para o colectivo dos seus leitores contemporâneos e futuros. E foram
muitos.
A conclusão da Consolatio é, assim, parenética:


47 Afastai, por conseguinte, os vícios, cultivai as virtudes, erguei o
vosso espírito para as esperanças rectas, levantai humildes preces às
alturas. 48 A única grande necessidade que realmente vos é imposta é a de
uma vida recta, isto se não quiserdes fazer de conta de que não estais
cientes da realidade, pois as vossas acções estão diante do olhar de um
juiz que tudo vê[7].



4. Conclusões:
A cultura pode conduzir à sabedoria, em circunstâncias determinadas,
em particular se a cultura não abdicar de uma dimensão ética e vivencial,
como acontecia com a cultura antiga.
A sabedoria é uma experiência pessoal, transmissível como discurso,
mas só o "descer ao fundo da alma" de que nos falava José Matoso e o
instante do confronto com uma opção existencial permite a sua actualização.
A sabedoria só existe em acto.
A sabedoria não é necessariamente transcendente (pode resultar da
razão e da compreensão aprofundada do mundo e sobretudo de si próprio.)
Será uma sabedoria com minúscula, alheada da tradições sapienciais
teologicamente baseadas que nem todos podemos aceitar. É a Filosofia que
salva Boécio, e não a Fé.
Haverá sabedorias, mais do que uma sabedoria com muitas faces, como
realidade ontológica com manifestações particulares.
E a sabedoria, ainda que formulada como tábua de salvação atirada
benevolamente aos que depois de nós vierem, como norma de vida , será
sempre chamada à existência na dimensão individual do homem confrontado com
a sua perspectivação pessoal da realidade e a sua opção no instante crítico
em que tem de decidir o seu caminho. É uma tábua que podemos ou não
agarrar. A tradição sapiencial, cultural ou religiosa, não se transforma,
pois, automaticamente em sabedoria. Mas pode dar-se o caso.


Luís M.G. Cerqueira


Bibliografia

Adamson, Jane., Richard Freedman. and David Parker. ed. 1998. Renegotiating
ethics in Literature, Philosophy and Theory. Cambridge: Canbridge
University Press
Harold Bloom, Harold. 2004. Where shall wisdom be found?. New York:
Riverhead Books (trad. port. Onde está a Sabedoria?. 2009. Lisboa: Relógio
de Água)
Chadwick, Henry. 1981. Boethius: The Consolations of Music, Logic, Theology
and Philosophy. Oxford: Clarendon Press
Cerqueira, L. 1991. Boécio, De Musica. Introdução, tradução e notas. Tese
de Mestrado Universidade de Lisboa
Courcelle, Pierre. 1967. La Consolation de Philosophie dans la tradition
littéraire: Antécedents et posterité de Boèce, Paris: Études Augustiniennes

Gibson, Margaret. ed. 1981. Boethius: His Life, Thought and Influence.
Oxford: Blackwell
Hoenen, Maarten. and Lodi Naut. ed.. 1997. Boethius in the Middle Ages.
Latin and vernacular traditions of the Consolatio Philisophiae, Leiden-New
York- Köln: Brill
Kaylor, Noel. 1992.The Medieval Consolation of Philosophy, New York:
Routledge Moreschini, Carlo. ed. 2005. Boethii De Consolatione
Philosophiae. München-Leipzig: Teubner Verlag
Nussbaum, Martha. 1990. Love's Knowledge: Essais on Philosophy and
Literature, New York-Oxford: Oxford University Press
Weil , Simone. 2008. "Morale et Littérature" in Oeuvres Complètes. (Écrits
de Marseille,1940-1942). 2008IV 1, Paris: Gallimard, p. 90-95.

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[1] Arbeit macht frei é o título de um romance de Lorenz Diefenbach, de
1873, de carácter filosófico e moralizante, em que vigaristas e jogadores
encontram o caminho da virtude através do trabalho. Adoptado como divisa
pelo governo de Weimar, tornar-se-á um lema do Nacional Socialismo.
[2] Aristóteles na Ethica Nicomachea, passim, insiste no acto ético como
realização do humano, e é humana a ÆÁyialismo.
[3] Aristóteles na Ethica Nicomachea, passim, insiste no acto ético como
realização do humano, e é humana a φρόνησις, a sabedoria que aponta como
ideal de excelência, com clara repercussão na Consolatio Philosophiae de
Boécio.
[4] Compreende-se que este facto tenha suscitado uma obra como a Consolatio
Theologiae de Johannes de Tambaco, (1288-1372), de que existe edição de
Georg Mittelhaus, 1493, na BNL.
[5] Consolatio Philosophiae, IV, Metro 1. A tradução é nossa e encontra-se
em fase de publicação.
1 Sunt etenim pennae uolucres mihi/ 2 quae celsa conscendant poli;
3 quas sibi cum uelox mens induit/ 4 terras perosa despicit ,
5 aeris immensi superat globum/ 6 nubesque postergum uidet
7 quique agili motu calet aetheris/8 transcendit ignis uerticem,
9 donec in astriferas surgat domos / 10 Phoeboque coniungat uias
11 aut comitetur iter gelidi senis/ 12 miles corusci sideris/
13 uel quocumque micans nox pingitur/14 recurrat astri circulum.

[6] Consolatio Philosophiae, III, P 1: 4 — Sed quod tu te audiendi cupidum
dicis, quanto ardore flagrares si quonam te ducere aggrediamus agnosceres!
5— Quonam? inquam. — Ad ueram, inquit, felicitatem, quam tuus quoque
somniat animus, sed occupato ad imagines uisu ipsam illam non potest
intueri.

[7] Em Portugal temos dois manuscritos do séc. XIV parcialmente
conservados, originários de Santa Cruz de Coimbra, , hoje na BPMP, Santa
Cruz 64( nº geral 78), com abundantes marcas de leitura reflectida, glosas
e anotações. Boécio foi também uma das fontes da filosofia moral do rei
Eloquente, D. Duarte, que cita o livro primeiro da Consolatio no Leal
Conselheiro, ed. crítica, introdução e notas de Maria Helena Lopes de
Castro, INCM, 1998, cap.51. p. 207. Abundam as edições do séc. XV, e há em
particular uma edição notável feita em Lisboa que recolhe poemas da
Consolatio para uso escolar, manifestando o apreço pela parte poética da
obra: Seuerini Boetij ordinarij patricij consularis viri De Cõsolatione
philosophica carmina ad usum scholarum excerpta. Olyssipone: apud Antonium
Aluarez, 1592, de que há exemplar na BNL.



[8] Consolatio Philosophiae, V, P 6: 47 Auersamini igitur uitia, colite
uirtutes, ad rectas spes animum subleuate, humiles preces in excelsa
porrigite. 48 Magna uobis est, si dissimulare non uultis, necessitas
indicta probitatis, cum ante oculos agitis iudicis cuncta cernentis.
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