BOLLYWOOD E A CELEBRAÇÃO SOCIAL (O PAPEL DAS SALAS DE CINEMA NA ÍNDIA

May 27, 2017 | Autor: Raquel Valadares | Categoria: Sociology of Arts, Bollywood (Anthropology), Etnography, Cinema Studies, Bollywood cinema
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Universidade Federal Fluminense Centro de Estudos Gerais Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS) Curso de Comunicação Social – Cinema

BOLLYWOOD E A CELEBRAÇÃO SOCIAL (O PAPEL DAS SALAS DE CINEMA NA ÍNDIA)

Projeto Experimental apresentado por Raquel Valadares de Campos matrícula

202.30.115-2

como

requisito obrigatório para obtenção do

título

de

Bacharel

em

Comunicação Social – habilitação cinema – sob a orientação da Profa. Lígia Dabul

IACS/UFF Niterói Julho/ 2008

RESUMO

A visitação e a importância atribuídas às salas de cinema pela população de Mumbai motivam “Bollywood e a Celebração Social (o papel das salas de cinema na Índia)”. A sociabilidade, derivada da observação direta do comportamento do público dentro das salas de cinema, delineia uma experiência artística singular que influencia a linguagem do cinema popular indiano. Este trabalho tem por objetivo transpor as barreiras analíticas do cinema – restritas à forma, ao conteúdo e à recepção psicanalítica do filme – pelo emprego das ferramentas da sociologia da arte, a fim de criar uma compreensão do orbe cinematográfico indiano que, no meu entendimento, explica o desenvolvimento da indústria do cinema no país.

PALAVRAS-CHAVE: Cinema indiano; Sociabilidade; Salas de Cinema;

2

“Bollywood is like a temple for me” Kunal Mishra, jornalista, em depoimento. Mumbai, Índia, 2006

3

Agradeço à minha mãe, Nanci Valadares, que tornou a Índia um destino possível. À minha orientadora, Lígia Dabul, pela intensidade e sabedoria ao desvelar o universo da antropologia. Ao meu marido, Alexandre Sivolella Barreiro, pelo interesse e amor.

4

CAPÍTULO I INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................6 CAPÍTULO II MODALIDADES DO ESPETÁCULO CINEMATOGRÁFICO ......................................................................20 2.1 O Cinematógrafo.............................................................................................................21 2.2

A Invenção do Cinema ..............................................................................................255

2.3

O Salão de Variedades e o Cinema de Atrações ......................................................27

2.4

As Salas de Cinema Per Se e o Cinema de Narrativa Integrada .............................31

2.5

Cinema no Ocidente, um Desfecho Possível ............................................................35 CAPÍTULO III

AS SALAS DE CINEMA NA ÍNDIA ....................................................................................................37 3.1

A Contextualização Histórica .....................................................................................38

3.2

Primórdios do Cinema – Os Salões de Variedades .................................................38

3.3

Primeiras Décadas do Século XX

- Os Anfiteatros Convertidos ou

Cinemas

Clássicos......................................................................................................................41 3.4

Década de 30 – Os Palácios de Cinema ..................................................................444

3.5

Segunda Metade do Século XX – O Cinema Moderno .............................................48

3.6

Início do Século XXI – O Multiplex e o Cinema Convertido em Multiplex..............55

3.7

Cinemas Híbridos ou Convertidos em Multiplex ......................................................61 CAPÍTULO IV

A SOCIABILIDADE E O CINEMA: PARTICULARIDADES INDIANAS........................................................64 CAPÍTULO V DESFECHO: A RELAÇÃO DAS SALAS DE CINEMA E A LINGUAGEM DE BOLLYWOOD .........................80

CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO Fazer cinema no Brasil é difícil. Instalamo-nos no estado de subdesenvolvimento do cinema, inexistente nos países desenvolvidos da América do Norte e da Europa (Gomes, 2001), e de onde não há saída evidente senão o recidivo jogo de tentativa e erro, pautado na mimetização da produção cinematográfica dos países desenvolvidos. Qual seria sua reação ao perceber que a maior produção de filmes e o maior número de ingressos de cinema vendidos vêm da subdesenvolvida Índia? A minha foi querer confirmar uma hipótese: "Para quê tanto filme? Para o júbilo de um público igualmente numeroso".

O desafio iniciou-se com a viagem aos Estados Unidos, onde, em um curso de história e linguagem do cinema indiano da University of Chicago, fui introduzida aos textos teóricos do cinema indiano, cujo foco era examinar sua “distinção”.

“Cinema popular é aquele visto e apreciado pela vasta maioria dos movie-goers indianos”, escreveram os estudiosos do cinema popular indiano, K. Moti Gokulsing e Wimal Dissanayake (1998). Nas palavras dos autores: “O cinema popular indiano é geralmente um musical melodramático que parece artificial aos ocidentais. A história não progride de modo linear, mas rodeia, por desvios e histórias dentro de histórias. Essa forma de narrativa circular é comumente encontrada na literatura clássica e folclórica indianas, onde, inclusive, canção, música e dança são significativas na comunicação dos sentidos da história e na geração de emoções. [...] É no cinema popular que se vê mais vividamente a “indianidade” do cinema indiano. Em termos de exploração da complexa e multifacetada experiência humana, da profundidade da motivação psicológica e da visão social, o cinema popular indiano deixa a desejar. Entretanto, em termos da resposta do público e de como a imaginação popular é moldada, esse cinema é extremamente significativo. Utiliza-se para tal de sua exclusiva

6

combinação

de

fantasia,

ação,

música,

dança

e

espetáculo”.

1

(Gokulsing, K. e Dissanayare, W., 1998, p. 23)

O estado de subdesenvolvimento, argumentado por Paulo Emílio Salles Gomes em Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento, não exclui o caso indiano. Segundo ele uma conjuntura particularmente favorável suscita uma expansão na fabricação de filmes, sem, contudo, render ao cinema “energias que lhe permitam escapar do subdesenvolvimento”. “As nações hindus possuem culturas próprias de tal maneira enraizadas que criam uma barreira aos produtos da indústria cultural do Ocidente, pelo menos como tais: os filmes americanos e europeus atraíam moderadamente o público potencial, revelando-se incapazes de construir por si um mercado. Abriu-se assim uma oportunidade para os ensaios de produção local que durante décadas não cessou de aumentar e em função da qual teceu-se a rede comercial de exibição. Teoricamente a situação era ideal: uma nação ou um grupo de nações com

cinema

próprio.

Tudo

isso

ocorria,

porém,

num

país

subdesenvolvido, colonizado, e essa atividade cultural aparentemente tão estimulante, na realidade refletia e aprofundava um estado cruel de subdesenvolvimento”2.

A sugestão contida na idéia de subdesenvolvimento na expressão cinematográfica relaciona-se

a

uma

certa

mimetização

dos

padrões

reinantes

nos

países

desenvolvidos – e no caso do cinema hindu, uma adoção acrítica das concepções estéticas britânicas. Em todo o caso, o cinema subdesenvolvido careceria de uma

1

Tradução minha do original em inglês GOKULSING, K. Moti e DISSANAYAKE, Wimal. The Distinctiveness of Indian Popular Cinema. Em: Indian Popular Cinema – a narrative of cultural change. Trentham Books, Staffordshire. 1998,pp. 23-29. 2 GOMES, Paulo Emílio Salles. Trajetória no Subdesenvolvimento. Paz e Terra, 2ª edição, São Paulo. 2001. pp.85-86.

7

identidade própria. Ao contrário, tanto a minha observação quanto às dos teóricos que se seguirão aqui indicam a presunção de uma identidade indiana no cinema popular de Bollywood, sediado em Mumbai.

Rosie Thomas (1995), em Melodrama and the Negotiation of Morality, discorda. Acredita que “o cinema na língua hindi é a arena central para a definição e celebração da identidade da Índia moderna, onde se negociam as noções de tradição e modernidade, operando tanto no campo da forma quanto no campo do conteúdo” (Thomas, 1998,p. 158)3. Inclusive, na descrição de Thomas, os cineastas de Bollywood ambicionam fazer filmes que se diferenciam em forma e conteúdo dos filmes ocidentais e afirmam ser preciso uma habilidade específica para agradar o público indiano, que tem necessidades e expectativas próprias, além de considerarem a comparação com o cinema ocidental e de arte irrelevante. “A ênfase do filme é em como as coisas acontecem e não em o que vem depois; o filme pauta-se em uma seqüência moral a ser (temporariamente) resolvida em detrimento da [ocidental] solução do enigma pelo desenrolar coerente da narrativa. [...] No campo do bem ou da moral, certos modos indianos ideais de relação social e de comportamento prevalecem. Principalmente o respeito pelos laços de honra e obrigações – por vezes referente a laços “emocionais” e “de sangue” – e o importante controle da sexualidade. [...] É mais provável que acusem o filme de `inverossímil` quando, por exemplo, os códigos de conduta imbuídos nos laços sociais são transgredidos (ex. filho mata a mãe), do que se o herói é o super-homem que com as próprias mãos acaba com uma dúzia de bandidos e encerra entoando uma

3

Tradução minha do original em inglês: THOMAS, Rosie. Melodrama and the Negotiation of Morality. Em Consuming Modernity: Public Culture in South Asian World. University of Minnesota Press. 1998. p.158.

8

canção” (Thomas, op.cit, p. 163-165)4.

Essa reserva cultural indiana legitima as distinções formais do seu cinema, que parece fazer sentido apenas para o espectador indiano. A circunscrição do gosto e das preferências do espectador de cinema indiano são também tema debatido por tantos outros estudiosos.

O teórico indiano Ravi Vasudevan escreveu um artigo sobre os espectadores do cinema indiano dos anos 50 na revista britânica Screen, no qual refere-se ao crítico de cinema da pioneira, erudita e politicamente engajada Calcutta Film Society5, Chidananda Das Gupta e o psicólogo social Ashish Nandy, para analisar o espectador do cinema popular indiano. Vasudevan (1995) aponta o espectador comum, ainda ligado às tradições indianas, como tendo uma relação tradicional ou pré-moderna com a imagem, sendo, portanto, incapaz de distinguir imagem cinematográfica de realidade. “Há nesse paradigma psicológico o componente de classe, em que os camponeses, o lúmpem e o proletariado são vistos como a principal platéia do cinema de Mumbai”, e continua: “Na visão de Das Gupta, falta o olhar racional necessário para o desenvolvimento de uma noção moderna de Estado, e o cinema popular provém um índice da destruição cognitiva da maior parte da população indiana” (Vasudevan,

4

Tradução minha do original em inglês. Logo após à independência da Índia, em 1947, um grupo de jovens intelectuais de Calcutá, capital da Índia durante a colonização britânica, inaugura um cineclube com a exibição do filme “O Encouraçado Potenkim”, de Sergei Eisenstein. O Cinema Paralelo indiano, alinhado ao Neo-Realismo Italiano e à Nouvelle Vague francesa, surgiu como negação ao cinema popular dominante. Satyajit Ray, Ritwik Gathak, Mrinal Sen são alguns dos diretores do período, todos eles membros do “Calcutta Film Society”. Chidananda Das Gupta, nesse contexto, foi um dos que teceu muitas criticas ao cinema popular em geral.

5

9

1995, p. 308) 6.

Segundo Vasudevan (1995), Ashish Nandy contra-argumenta valorizando o cinema indiano na medida em que, para essa mesma camada social, a vida urbana, as mudanças sociais e o pensamento e as práticas modernos são adaptações necessárias à sobrevivência no mundo atual. O filme indiano “ritualmente neutraliza” a transição para a modernidade sem, todavia, perder sua “indianidade”: “Nandy sugere que a cultura indiana foi definida por elementos andrógenos que proveram a mais fértil das formas de resistência ao colonialismo e, de modo mais amplo, à modernidade e aos paradigmas de progresso. Ele abraça os índices culturais de subjetividade que não são governados pela psicologia racionalista e pela orientação realista 7

desejadas pelo outro [Das Gupta]” (Vasudeva, op.cit. p. 309) .

Observei, porém, que a classe oriunda da camada popular não era a única freqüentadora dos cinemas e que os filmes circulavam entre as classes emergentes e abastadas com certa força. Basicamente o mesmo filme serve, por diferentes motivos, a pessoas distintas. Ravi Vasudevan, sobre as hipóteses levantadas pela indústria de cinema na avaliação da platéia, verifica que houve, desde o surgimento de um público de massa nos anos 60, uma conjugação dos gostos. Elementos mais apetecedores aos espectadores “plebeus”, como “os prazeres viscerais do espetáculo e os imperativos morais, foram, sendo somados ao elemento da crítica social, preferidos pela classe média” (Vasudevan, op. cit. p. 309)

6

Tradução minha do original em inglês: VASUDEVAN, Ravi. Adressing the spectator of a ‘third world’

10

De todo o modo, percebe-se, em uma sala de cinema indiana, uma relação familiar entre espectador e imagem, como se aquele conjunto pictórico da película cinematográfica fosse percebido em sua totalidade. Isso talvez se deva ao contexto da cultura local, da tradição indiana da representação/interpretação de imagens, que os filmes apresentam.

O modo icônico, definido dentro do contexto indiano por Vasudevan no mesmo artigo, teria um sentido diferente do semiótico, que se refere à identificação da relação de similitude. No caso indiano, o modo icônico serve para restringir uma dinâmica multifacetada em uma unidade imagética, em uma condensação significativa da imagem, e para situar a articulação do mítico com a pintura, o teatro e o cinema.

Não é à toa que nos filmes de Bollywood a composição do tableau, do quadro cinematográfico, de seus personagens e objetos na cena, pela referência ao índex de ícones indiano, é muito mais significativa para indianos. Para os ocidentais, que aos poucos se familiarizam com esse índex, o prazer de ver o filmes se supera.

“Segundo a formulação de Peter Brooks, o tableau no melodrama dá ao espectador ‘a oportunidade de ver sentidos representados, de ver nitidamente em signos as emoções e estatutos morais”. [...] “O código de continuidade narrativa [ocidental] enfatiza o movimento individual e à compreensão, e o tableau condensa o espaço e o código social. No lugar

de

evocar

temas

de

indivíduo/sociedade

e

de

modernidade/tradição, sugiro que tais combinações apresentam ao espectador, por quadros alternantes de conhecimento visual, diferentes

national cinema: the Bombay ‘social’ film of the 1940s and 1950s. Screen, Winter, 1995. p.308.

7

Tradução minha do original em inglês.

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percepções do assunto. De fato, ao invés de associar específicas formas de subjetividade aos específicos modos de representação de maneira esquemática, prefiro acreditar que sempre haverá instâncias em que relações social e ritualmente codificadas são transmitidas pelo que é, afinal, a mitificada individualização da continuidade narrativa. Central aqui é o discurso singular da imagem e do olhar nas 8

convenções indianizadas” (Vasudevan, op.cit. p. 312-314)

Central, para mim, é a experiência compartilhada na sala de cinema indiana entre todos aqueles que reagem aos vários elementos icônicos, significativos componentes do filme - a canção, a dança, o melodrama, os figurantes, as brigas, as seqüências de cabaré, o humor exagerado, dentre outros. A sociabilidade das salas indianas conectase à disposição do indiano em assistir ao filme “ativamente”9. Expressar-se dentro da sala de cinema, acompanhar diálogos e canções, comunicar-se com o vizinho de poltrona faz parte da apreciação cinematográfica na Índia. O que parece sinal de incivilidade na cultura de apreciação cinematográfica ocidental moderna é a norma neste oriente próximo e contemporâneo. A essa forma de apreciação cinematográfica associo o cinema de atrações, conceito desenvolvido por Tom Gunning.

Em sua pesquisa sobre o cinema dos primórdios, Gunning (1991) felizmente nos relembra de que o cinema americano foi cinema de atrações e que a forma hegemônica do cinema de narrativa integrada deu-se a partir de 1908. Esta forma está inter-relacionada às mudanças no modo de produção e no texto dos filmes e na sociedade que formava seus espectadores.

8

9

Tradução minha do original em inglês Ver mais adiante SRINIVAS, Lakshmi (1998).

12

A diferença entre um cinema e outro dá-se pelo enfoque do filme. No cinema de atrações o objetivo principal não era contar uma história logicamente encadeada, mas entreter com espetáculo, inclusive extra-filme, dentro de concepções de espaço, tempo e narrativa distintas. O maior interesse era o de oferecer ao espectador uma série de pontos-de-vistas, paisagens e sensações. Gunning (1991), em D. W. Griffith and the Origins of American Narrative Film10, alega que narrativa integrada, ao começar a concatenar ações pautadas em objetivo demarcado, reorientou o estilo do filme, inclusive do assistir ao filme.

A continuidade na montagem da narrativa integrada compeliu o espectador a imergir no espaço ficcional, no universo hermético da tela, resultando em uma forma de interlocução pautada na psicologia individual de cada espectador. A sala de cinema transformou-se em um espaço social de visionamento coletivo do filme, em que, segundo Gunning (1991), a burguesia americana era público alvo e majoritário.

A caracterização de personagens entrou em evidência. Até hoje, a psicologia, o contexto social e a circunscrição da ação das personagens justificam uma relação de causalidade na sucessão dos eventos e reforçam o que se fundou com a narrativa integrada, a hegemonia da verossimilhança. Esse é o cinema desenvolvido de Paulo Emílio Salles Gomes e o cinema capaz de trazer à luz a noção de Estado Moderno para Chidananda Das Gupta. O cinema indiano, aparentemente preso ao modo cinema de atrações é para os ocidentais um olhar no passado, na memória do

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GUNNIG, Tom. D. W. Griffith and the origins of American Narrative Film – The Early Years at Biograph. University of Illinois Press, Urbana & Chicago. 1991.

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subdesenvolvimento. No entanto, a posição de Gunning (1991), da qual compartilho: “o cinema de atrações não é um estágio elementar da evolução do cinema, não é a infância de uma forma artística, mas uma forma de experiência cinematográfica com noções de espaço, tempo e narrativa 11

específicas” (Gunning, op. cit.p.6) .

Foi em Mumbai, no caminho da realização do meu documentário, “Corpo de Bollywood, o povo quer cinema” - meu primeiro filme e projeto de conclusão de curso em cinema - que me deparei com a sensação do cinema extra-filme, ligada à presença do público nas salas de cinema e à conseqüente distribuição dessas salas pela cidade.

Além das inseguranças atribuídas ao fato de estar na distante Índia, trabalhando sobre a estrangeira temática do cinema indiano e sem a presença de uma equipe de filmagem que provesse apoio técnico e palpites criativos, tive de passar por inevitáveis e sofridas adaptações culturais. Mais importante que isso, tive de confrontar minhas suposições e o roteiro do documentário ao real, e contemporâneo, papel do cinema indiano no país. A capital financeira e da indústria do entretenimento da Índia, onde vivi 6 meses sozinha, aproximou-me das observações antropológicas e etnográficas mais do que das teorias de cinema supracitadas. Apesar de toda a pesquisa direcionada à narrativa e à forma dos filmes indianos e ao fenômeno mercadológico dessa indústria cinematográfica, situada em um país em desenvolvimento e com crescente projeção no mundo global, minha atenção voltou-se por completo para a

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Tradução minha do original em inglês

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inserção social que o cinema tem na Índia.

Os filmes não são apenas filmes. Criam frenesi, para mim inédito, junto a pessoas de gêneros, idades, classes, origens e castas distintos. Os filmes constituem complexos produtos para consumo em massa: geram sub-produtos dos mais variados e nos mais diversos meios. Os filmes significam canção, estrelas, marca, moda, estampa e badulaques. Passam na rádio, na televisão, na internet, no celular. Ilustram as capas de revistas, jornais e pôsteres. Compõem relevante parcela da poluição visual da abarrotada e caótica Mumbai. Fizeram-me sentir cercada, senão involuntariamente imersa, em uma cidade simbioticamente ligada ao cinema.

Mumbai é “Bollywood”, a “Hollywood” indiana. Lá estão os estúdios, os laboratórios, os artistas, os profissionais da indústria cinematográfica, a mídia e centenas de salas de cinema. Ainda que neste trabalho eu aponte para um comportamento indiano relativo ao fruir da experiência cinematográfica nas salas de cinema, meu enfoque é o indiano que vive em Mumbai. Devo, para isso, ressaltar que o indiano de Mumbai vem de toda a parte da Índia. Os originários da cidade são uma minoria indistinguível. O orgulho que paira na cidade é o de ser cosmopolita e aberta a todos. A construção dessa imagem, sempre em conflito e atualizações, não faz parte desta pesquisa. Deixo somente a impressão de que os filmes constituem grande soma desse projeto de unidade nacional.

O processo de situar-me na organização urbana de Mumbai conduziu-me a um mapeamento histórico-social das salas de cinema. Os shopping centers, situados nos bairros principalmente do subúrbio, são um fenômeno relativamente recente (início dos anos 2000) e trouxeram consigo as salas de cinema conhecidas por “Multiplex”, que fizeram a cabeça dos indianos de classe média e classe média alta. Segundo

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Balkrishna Shroff, distribuidor de cinema e diretor da empresa Shringar Films Limited Pvt, essa classe de maior poder aquisitivo voltou a freqüentar as salas de cinema, seduzidas por um padrão global e elevado de exibição de filmes, de comodidade e de serviços. Claro que os preços também se elevaram, delimitando o público freqüentador.

A antiga “cinelândia” de Mumbai concentra-se na região de Mumbai Central, nas ruas Lemington e Phalke Road. A região desvalorizou-se com o crescimento urbano e com o

conseguinte

deslocamento

dos

escritórios,

estabelecimentos

comerciais

e

residências nobres para o subúrbio. Hoje, nessas ruas, construções belíssimas dos tempos da colonização inglesa servem de prostíbulos. Os cinemas clássicos, porém, resistem ativos.

A tendência, para minha surpresa, é a modernização das salas clássicas. Poderiam fechar, “virar igreja”, como aconteceu com as 200 salas de cinema da Cinelândia carioca. Todavia, essas salas, em Mumbai Central, estão virando “Multiplex de rua”, todas com projeção digital e lançamento simultâneo dos filmes estreantes. O público do shopping center e o da rua são, todavia, distintos. Ainda que se aumente a qualidade de algumas salas de cinema de rua – e por em decorrência disso o preço do ingresso – os exibidores parecem estar cientes do público diversificado que atendem. O consumo de massa não poderá limitar-se a apenas uma classe consumidora.

Muitos dos cinemas clássicos sem modernização exibem filmes de “menor qualidade”, mais “vulgares”, que permitem ao homem comum indiano expressar seus impulsos eróticos tão represados na vida pública e social. Só não é aconselhável que mulheres estrangeiras entrem desacompanhadas nessas salas, pois elas veiculam a “acessibilidade” derivada da inerente “liberdade sexual” do ocidente. Depois de o

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próprio bilheteiro do Alfred Talkies recusar-se a vender o bilhete, resolvi precaver-me. Concentrei-me nas salas “oficiais”, dos filmes “classe A”.

Então percebi outros desses mesmos cinemas clássicos exibindo tais filmes, os mesmos que passam nos “Multiplex” dos shopping centers a 200, 400 rúpias12 o ingresso. Ali, contudo, o ingresso custava 25, 60 rúpias. O público pertencia visivelmente a uma outra classe social, mais baixa, e parecia ir ao cinema por outros motivos e circunstâncias. O cinema de rua fica no caminho de casa, do escritório. Serve de um passatempo das horas vagas, um descanso da correria do dia-a-dia. Pode ser visitado a qualquer instante, em despeito do horário de início ou fim da sessão. Tem gente que assiste ao filme várias vezes, a cada vez um trecho diferente. Conversei com pessoas que queriam dormir no ar condicionado e simplesmente consideravam a sala do cinema espaço adequado e, melhor, possível.

A duração média dos filmes indianos é de 3 horas, com um intervalo de 15 minutos – pausa para o lanche e a sociabilidade. Durante o filme temos tempo suficiente para uma excelente soneca. Mas os filmes trazem tantas canções e danças – previamente lançadas pela indústria fonográfica e televisiva – que muitos sabem a letra e esperam ávidos pelo refrão. Eu mesma assisti a um filme 3 vezes porque a canção não saia da minha cabeça. A sala de cinema, porém, se divide. Há aqueles que se levantam e saem para voltar depois de acabada a canção – são a minoria. A maior parte do público “dança na cadeira” e julga o quanto é boa a canção ou a interpretação (as

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Para dar uma idéia do valor da moeda indiana, 1 real equivale a 20 rúpias, o preço máximo de uma garrafa de água mineral

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canções dos filmes são performadas em playback pelo ator/atriz, ou seja, cantam sobre uma gravação).

Notei, com certa rapidez, que o inglês indiano sofreu alterações sintáticas pela influência do Hindi, língua dos filmes de Bollywood, derivada do sânscrito e projetada como língua nacional principal (mais do que o inglês). “This film only” não significa “somente este filme”, mas “esse mesmo filme”. Enfáticos anunciam “the story is different-different”, para ressaltar o ineditismo – raro – das tramas. Mas, para mim, a mais importante observação refere-se ao verbo “to picturize” que eles criaram especificamente para as cenas musicais. “I want to see how the song got picturized” era tão corrente quanto o convite de se tomar um chá. “Film song” é mais do que a canção do filme, é a canção filmada que todos querem ver, além de ouvir.

Ver e ouvir são verbos aplicados correntemente ao cinema. Não somente aos filmes e às canções, mas também aos astros e estrelas, às fofocas de backstage, ao figurino, cenários e acessórios. Não se consegue conversar por mais de 10 minutos sem se falar em cinema na Índia. O indiano quer viajar no mundo. O mundo se lhe apresenta nos filmes. Por 25 rúpias, quantas voltas ao mundo são possíveis? Muitas, pois o cineasta faz questão de filmar fora da Índia e salpicar paisagens desconectas nas canções – será o espaço do sonho fantástico?

O meu júbilo ao assistir aos filmes indianos não seria muito diferente daquele vivido na sala da Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro em 2005, em ocasião da mostra “Bollywood fica na Índia”, se não fosse um porém: a sala de cinema indiana proporcionou-me uma experiência sem precedentes, análoga às sessões alternativas do Cine Odeon como “Maratona Odeon” ou “Cine Cachaça”. Nela aflorava uma intensa participação do público e um ambiente social cultuado por todos os presentes.

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Os elementos cognitivos do filme misturavam-se aos do público de modo ativo e expresso.

A visitação e a importância atribuídas às salas de cinema em Mumbai compõem o mote do meu documentário e da minha pesquisa, expressa no corpo de “Bollywood e a Celebração Social (o papel das salas de cinema na Índia)”, título desta monografia. As relações sociais derivadas da observação das salas de cinema delineiam uma população, uma cultura. Este trabalho é de natureza descritiva e tem por objetivo transpor as barreiras analíticas do cinema – restritas à forma, ao conteúdo e à recepção psicanalítica do filme – pelo emprego das ferramentas observacionais da antropologia da arte que estuda o espaço da experiência artística e sua sociabilidade, a fim de criar uma compreensão do orbe cinematográfico indiano que, no meu entendimento, explica o desenvolvimento da indústria do cinema no país. Ou, ao menos, gostaria de situar o leitor, ávido para entender “Bollywood”, no contexto social, bastante particular, indiano.

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CAPÍTULO II – MODALIDADES DO ESPETÁCULO CINEMATOGRÁFICO “A primeira sessão de cinema nos moldes em que a conhecemos hoje, ou seja, numa sala pública de projeções, aconteceu há mais de dois mil anos, muito antes que Louis Lumière mostrasse as paisagens animadas de La Ciotat no Grand Café de Paris. Ela teve lugar na imaginação de Platão (que, por sua vez, a credita a Sócrates, num diálogo com o discípulo Glauco) e veio a ser conhecida posteriormente como a ‘alegoria da caverna’. Ela inaugura também, na história do pensamento ocidental, o horror à razão dos sentidos, o escárnio das funções do prazer, a repulsa a todas as construções gratuitas do imaginário, a negação, enfim, de tudo isso que, dois milênios depois, seria a substância de uma arte que, paradoxalmente, o próprio Platão inventava”. [...] “A caverna de Platão, basicamente uma sala de projeção, situa-se nesse lugar fronteiriço, nessa zona limítrofe que separa a aparência da essência, o sensível do inteligível, a imagem da Idéia, o simulacro do modelo. Ali é o lugar de um desabamento, o ‘mundo sensível’, para onde descemos, ou onde literalmente caímos, como animais dominados pelas pulsões”. (Machado, 2007, pp. 28-30)

A descoberta do cinema está ligada a um contexto de aspirações que precisa ser entendido, afinal o cinema existe muito antes de ser inventado. O reflexo cognitivo e sensível ao movimento incessante das coisas motivou o ser humano desde os seus primórdios a tentar fixá-lo por meios sensíveis, como o celulóide; a tentar imaginá-lo como possibilidade. Aí situa-se a invenção do cinema por Platão, descrita por Arlindo Machado no aditamento acima, extraído de sua obra intitulada “Pré-Cinemas e PósCinemas”13. Inclusive, no mesmo livro, Machado (2007) atribui às pinturas neolíticas em cavernas, o mesmo impulso de um cineasta. Para ele a distinção entre caverna e

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cinema, tal qual conhecemos hoje, reside na linguagem, na técnica e no ambiente. Mas ambos configuram espetáculo coletivo de imagens em movimento projetadas em sala escura.

A caverna, porém, está longe de nos proporcionar a mesma experiência “cinematográfica” de uma sala que disponha de assentos reclináveis, ar condicionado e combos de pipoca e refrigerante. Sugiro, portanto, refletir, neste capítulo, sobre a relação entre os espaços de projeção dessas imagens em movimento e as modalidades do espetáculo cinematográfico registradas pela história geral.

Interessa-me particularmente no espetáculo cinematográfico as relações de contato do filme com o público mediado pela sala de cinema. Os avanços técnicos e de linguagem que forjam a história do cinema parecem acompanhar e/ou engendrar as transformações das salas de projeção. Dentro delas é onde se concentra o público, onde ocorre o contato com a obra. Para mim, a configuração dessas salas influencia a sociabilidade e, conseqüentemente, a própria experiência cinematográfica.

2.1 O Cinematógrafo A primeira exibição de filmes ocorreu em 1893 nos Estados Unidos e envolvia aparatos individuais de visionamento14 de imagens em movimento inventados por

13

MACHADO, Arlindo. Pré-Cinemas e Pós-Cinemas. Campinas, Papirus. 2007. p. 28 Segundo o dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, o verbo “Visionar” significa: 1) entrever com dificuldade, pressentir, avaliar; 2) examinar (um filme, diapositivo etc.) num aparelho óptico; 3) apresentar projetando numa tela (uma imagem, um texto etc.); 4) ter visões; fantasiar. Portanto, o neologismo “visionamento” parece-me apropriado, uma vez que “assistir a um filme” deve ter a ação sintetizada num

14

21

Thomas A. Edson. Por se tratar de um espetáculo individual e não coletivo — ainda que possa imaginar as pessoas interagindo na fila desse aparato e assim criando o ambiente coletivo desse espetáculo — prefiro referir-me à invenção do cinema quando da primeira exibição de filmes pública e paga. Parece que em 1º de novembro de 1895, 58 dias antes do famoso espetáculo proporcionado pelos irmãos Auguste e Louis Lumière em Paris, os irmãos Max e Emil Skladanowsky fizeram uma exibição de 15 minutos do Bioscópio, seu sistema de projeção de filmes, num grande teatro de vaudevile em Berlim. Resta-nos, porém, a questão do porquê os irmãos franceses prevaleceram como marco fundador na maior parte dos livros de história do cinema.

O Cinematógrafo, aparato inventado pelos irmãos Lumière, já se tratava à época de um “3 em 1” extremamente funcional. Filmava-se, copiava-se e exibia-se com o mesmo aparelho, de design leve e portátil e ainda movido à energia mecânica (à manivela), não solicitando o uso de eletricidade. Além de todos os atrativos desse invento, os irmãos Lumière, negociantes experientes, pertenciam a uma família que já ocupava a posição de liderança na produção de placas fotográficas da Europa e, portanto, atuavam no “millieu” das pessoas interessadas em fazer imagens em “celulóide”15. Para esses negociantes, o Cinematógrafo tratou-se de uma expansão da empresa. O sucesso comercial desse aparato não foi restrito a Paris, nem à França, mas difundido em larga escala pelo mercado mundial de então. Após alguns meses da primeira exibição pública do Cinematógrafo, aos 28 dias de dezembro de 1895, os irmãos Lumière e seus representantes levaram o cinema para África, Ásia, Austrália,

único substantivo, gerando o efeito da palavra inglesa “viewing”. À época a película tinha por base o nitrato de prata e não o celulóide, mas o termo celulóide aqui se refere ao apelido, válido nos dias atuais, dado à película cinematográfica.

15

22

Europa e Américas do Norte e do Sul.

Marius Sestier, representante dos Lumière na Ásia, fez a primeira exibição cinematográfica indiana no Hotel Watson de Bombaim, aos 7 dias de julho de 1896, mesmo dia em que São Petersburgo igualmente recebia sua primeira amostragem. Apesar de anunciado no jornal “Times of India” como “The Marvel of the century; the wonder of the world; living photographic pictures in life-sized reproductions” (Vinnels e Skelly, 2002, p. 15)16, o espetáculo dirigiu-se apenas a europeus. Os indianos, então colonos e súditos da Inglaterra, foram barrados do evento.

Segundo Tejaswini Ganti, autor de “Bollywood: a Guidebook to Popular Hindi Cinema” (2004), somente no dia 14 seguinte, no teatro Novelty de Bombaim, uma sessão exclusiva para indianos foi aberta. “A invenção foi recebida com entusiasmo pelos fotógrafos indianos que compraram as tais câmeras e começaram a filmar curtasmetragens, que foram exibidos em tendas, praças e salões em Bombaim, Calcutá e Madras” (Ganti, op. cit. p. 7)17.

Ganti (2004) relata que, assim como os estúdios fotográficos espalharam-se às centenas pelo país depois de 30 anos da chegada da primeira câmera fotográfica em 1840, o cinema rapidamente difundiu-se, financiado pelo capital dos empresários persas de Bombaim, que permitiu, inclusive, o florescimento de uma indústria

16

VINNELS, David e SKELLY, Brent. Bollywood Showplaces/ Cinema Theatres in Índia. E & E Plumridge Ltd, London. 2002, p.15. 17 GANTI, Tejaswini. Bollywood a guidebook to popular Híndi Cinema. Routledge, New York. 2004 p.7.

23

cinematográfica:

“O capital persa financiou a indústria de cinema na Índia até 1930 e teve um papel importante na criação da infra-estrutura da rede inicial de distribuição e dos três principais estúdios de ambas as fases do cinema muda e sonora: Imperial Film, Minerva Movietone, and Wadia Movietone” (Ganti, op.cit.p.8)18.

E o ramo da exibição? Rastrear a história das salas de cinema na Índia e associá-la aos avanços da linguagem cinematográfica local para compreender o espetáculo cinematográfico indiano é tarefa complexa, que exige pesquisa de “cavação” nos registros impressos pouco comuns na cultura indiana. Para esta pesquisa, e mais propriamente para o capítulo III, conto, para além da minha observação in loco, com apenas um livro: “Bollywood Showplaces – Cinema Theatres in Índia” de David Vinnels e Brent Skelly, de publicação inglesa.

Neste capítulo II segue-se uma reflexão sobre as salas escuras de projeção de imagens em movimento e sua relação com o espetáculo e a linguagem cinematográficos. Para essa análise, certos marcos da história geral do cinema apreende os elementos necessários para, posteriormente, compreendermos a venue do cinema indiano.

18

Apenas uma curiosidade: os extintos estúdios Imperial e Minerva têm suas salas de exibição ainda hoje em atividade na cidade de Mumbai.

24

2.2

A Invenção do Cinema

O interesse científico pelo movimento – compreensível aos olhos – motivou homens da ciência, como Etienne-Jules Marey e Albert Londe, a inventar aparelhos que decompusessem o movimento numa série de fotografias estáticas, obtidas por disparos

automáticos

cinematográfico,

para

e

sucessivos.

Arlindo

Esse

Machado,

primeiro

constitui

estágio

do

processo

análise/decomposição

dos

movimentos. O autor caracteriza o estágio seguinte, de síntese/reconstituição dos movimentos, como a obtenção da “imagem em movimento” pela projeção em sala escura da película cinematográfica. As fotografias estáticas, componentes dos ‘quadros’, sucedem-se umas às outras quando projetadas em celulóide, suporte flexível da fotografia, elementar do cinema. Atraíram-se por esse estágio, curiosos, bricoleurs, ilusionistas profissionais e oportunistas em busca de um bom negócio:

“Ilusionistas como Reynaud e Meliès e industriais ansiosos por tirar proveito comercial da ‘fotografia animada’, como Edison e Lumière, estavam mais interessados no estágio da síntese efetuada pelo projetor, pois era somente aí que se podia criar uma nova modalidade de espetáculo, capaz de penetrar fundo na alma do espectador, mexer com os seus fantasmas e interpelá-lo como sujeito. Nem é preciso dizer que foi essa a posição que prevaleceu entre o público, esse público inicialmente maravilhado com a simples possibilidade de ‘duplicação’ do mundo visível pela máquina (o modelo de Lumière) e logo em seguida deslumbrado com o universo que se abria aos seus olhos em termos de evasão para o onírico e o desconhecido (o modelo de Méliès). Na verdade, esse era exatamente o cinema que estava no horizonte de mágicos, videntes, místicos e charlatães, que durante todo o século XIX fascinaram multidões em estranhas salas escuras

25

conhecidas por nomes exóticos como Phantasmagoria, Lampascope, Panorama, Physiorama,

Betamiorama, Typorama,

Neorama,

Eidophusikon,

Nausorama,

Uranorama,

Octorama,

Udorama,

Diaphanorama e a Diorama de Louis Lumière, nas quais se praticavam projeções de sombras chinesas, transparências e até mesmos 19

fotografias, fossem elas animadas ou não” (Ganti, op.cit.p.14) .

Tendo em vista a historicidade das imagens em movimento projetadas em sala escura, que remonta, pelo menos no Ocidente, a meados do século XVII com os espetáculos de lanterna mágica, Arlindo Machado apóia o historiador Charles Musser na defesa de que o cinema seria senão uma etapa dessa longa história. Mesmo porque não existe um acordo quanto ao nascimento do cinema, uma data que marcasse o início de uma história independente do cinema. O “cinematógrafo”, como era chamado o aparelho inventado em 1895 pelos irmãos Louis e Auguste Lumière, conjugava inventos anteriores diversos, como teatro de luz, projeção criptológica, lanterna mágica, fotografia e panorama. Acrescenta-se ainda que não foi o único da categoria. Praticamente ao mesmo tempo, bricoleurs como Thomas Edison, Max Skladanowsky, Robert W. Paul, Louis Augustin Le Prince e Jean Acme LeRoy desenvolveram maquinaria semelhante. Sinal de que “o desejo e a procura do cinema são tão velhos quanto a civilização de que somos filhos” (Ganti, op.cit. p.19) e que definitivamente não há nenhuma teoria adâmica para a descoberta do cinema.

Finalmente, o cinematógrafo foi um invento que se agregou às modalidades de espetáculo de imagens em movimento projetadas em sala escura do final de século

19

Tradução minha do original em inglês.

26

XIX, fazendo parte de demonstrações nos círculos de cientistas, nas palestras ilustradas, nas exposições universais, ou integrando um conjunto de diversões populares, tais como os circos, os parques de diversões, os gabinetes de curiosidades e espetáculos de variedades. O cinema da primeira década estava cercado por essa característica social da exibição, em que o filme era um elemento espetacular do grande espetáculo que era o próprio espaço que reunia as pessoas para, dispersamente, desfrutarem das “variedades”, dos inventos que divertiam.

2.3

O Salão de Variedades e o Cinema de Atrações

“Mais ou menos por esse ano (1896), atravessando a Rua de São Bento, no trecho que vai da Travessa do Comércio ao então Largo do Rosário, entramos ocasionalmente em uma casa de curiosidades, de campainha a tinir e cartazes berrantes a anunciar o novo prodígio do gênio inventivo do homem. Recordo-me como se fosse hoje: a sala, acanhadíssima e com poucas cadeiras, tinha à parede uma tela de um metro e pouco de altura; a entrada de dez tostões dava direito a quatro vistas móveis, rápidas na exibição de uns vinte ou trinta metros de celulóide, insuficientes para embasbacar. A primeira vista projetada pela lanterna mágica – para nós aquilo não passou de uma modalidade de lanterna mágica – foi a demolição de um muro: os operários de picareta em punho cavavam os alicerces, levantando uma enorme nuvem de pó; os homens juntavam a terra em carrinhos de mão e transportavam-na para longe. A segunda vista era a da passagem de um cavalheiro por um córrego; encantava a gente o movimento da água a espirrar por todos os lados”.20

O cinema nos primórdios desenvolveu uma linguagem semelhante - permitam-me a

20

Depoimentos de Antônio de Campos e Júlio Lorente ao jornal Diário de Noticias, em setembro de 1930. Documentação de Francisco de Campos, citado em GALVÃO, Maria Elizer. Crônica do Cinema

27

analogia - a dos programas de auditório que passam hoje na televisão, nos quais o apresentador é o showman que alinhava as vontades e expressões da platéia e, entre um “bloco de atrações” e outro, exibe “quadros”, produções audiovisuais que, analisadas em conjunto, não imprimem o menor sentido, mas que, separadas e exibidas dentro do contexto do programa, sustentam o entretenimento com muita propriedade.

As “fitas” serviam ao divertimento do público freqüentador dos “salões de variedades” e que, portanto, apreciavam numa mesma ocasião e ambiente mais de uma forma de entretenimento. O resultado foi, segundo Gunning (1991, p. 6), o desenvolvimento do cinema de atrações, linguagem cinematográfica que tinha por objetivo a demonstração de curiosidades.

As técnicas de manipulação da película interessava mais ao cinema dos primórdios do que a articulação entre diferentes planos (unidade marcada pela posição câmera), ou multiplicidade dos planos e a alternância de enquadramentos. A frontalidade, a posição fixa da câmera e a longa distância das personagens – características essas associadas ao teatro – permitiam uma visualização do conjunto da cena e, portanto, da movimentação dos atores.

Para o cinema de atrações, o contar histórias não é primordial, mas a própria habilidade de mostrar coisas em movimento, como o grupo de trabalhadores saindo da fábrica em La sortie dês usines Lumière (Louis Lumière, 1895). Além do movimento,

Paulistano. Ática, São Paulo. 1975. pp.19-20.

28

apresenta-se para o espectador uma variedade surpreendente de ‘vistas’.

Flávia Cesarino Costa nos seus estudos do primeiro cinema afirma a esse respeito que: “essas

‘vistas’

podiam

ser

atualidades

não-ficcionais

(que

documentavam terras distantes, fatos recentes ou da natureza) ou encenações de incidentes reais, como guerras e catástrofes naturais, as chamadas atualidades reconstituídas. Podiam ainda ser números de vaudeville (pequenas gags, acrobacias ou danças), filmes de truques (com transformações mágicas) e narrativas em fragmentos (com os principais momentos de peças famosas, poemas, contos de fadas, lutas de boxe ou os passos da paixão de Cristo). Muitos filmes incorporavam a organização em tableau típica da história ou pinturas conhecidas”. (Cesarino Costa, 2006, pp. 24-25)21

Dentre o fascínio da época por esse cinema, Machado (2007) destaca o mascaramento daquilo que não podia ser mostrado como similar à indisciplina do sonho. Com os novos recursos de manipulação da imagem em movimento, Méliès fazia desaparecer objetos pela simples sucessão de quadros de mesma composição, mas elaborados em situações temporariamente distintas. Esse tipo de trucagem, ou mise en scène magique, gerava enorme curiosidade e, como proferiu Machado sobre esse trabalho de mascaramento de desejos, “não estava ainda disciplinado pelo verniz civilizatório da narrativa calcada no modelo literário nem se inscrevia ainda nessa instituição das belas-artes que torna deglutíveis e toleráveis as manhas do

21

CESARINO COSTA, Flávia. Primeiro Cinema. Em MASCARELLO, Fernando (Org.) “História dodo Cinema Mundial”. Campinas, Papirus. 2006, pp. 24 – 25.

29

imaginário. Pelo contrário, como nos sonhos, como nas fantasias, ele se exibe abertamente como sintoma de alguma inquietação maior, mais perversa ou selvagem, que ameaça vir à tona com sua louca emergência” (Machado, 2007, p. 38-39).

A falta de certos elementos narrativos não era uma deficiência dos filmes, mas um indício de que a coerência das imagens era dada por elementos externos ao filme – seja o prévio conhecimento dos assuntos por parte dos espectadores, seja a participação, muito comum na época, de um conferencista ou locutor. Mais adiante, Machado (2007) destaca ainda: “[Charles] Musser apontou o papel decisivo dos exibidores nas apresentações dos filmes; como os antigos apresentadores de lanterna mágica, eles usavam recursos sonoros como música e ruídos. A maioria dos filmes da primeira década tinha apenas um plano e, quando havia vários planos, eles não eram filmados de forma a se articularem. Os planos eram vendidos separadamente como filmes individuais, em rolos diferentes. Era o exibidor quem controlava a exibição final, decidindo quais rolos e em que ordem seriam exibidos e até em que velocidade as cenas seriam mostradas. Musser mostrava assim que os primeiros filmes eram formas abertas de relato e que a coerência narrativa não era inerente aos filmes, mas estava no ato de apresentação e recepção” (Machado, op. cit. p. 25).

O espectador do cinema de atrações participava da sessão cinematográfica e assim, junto ao exibidor, contribuía para a significação do filme. Cada sessão, cada platéia, cada exibidor fazia de um mesmo rolo de imagens em movimento projetadas em sala escura um conjunto simbólico diferente. Imagino que entre platéia e showman devia haver uma comunicação verbal intensa, uma expressão e atualização de sentidos constante, mais uma vez, similar aos programas de auditório que passam hoje na televisão. Essa experiência coletiva, compartilhada entre platéia e apresentador, devia ser condição sine qua non para o divertimento, para o fruir do espetáculo cinematográfico. E os espaços de projeção desse cinema - os salões de múltiplos 30

inventos e espetáculos, os parques de diversão, circos, teatros e cafés - deviam contribuir para a criação desse ambiente participativo. “Nos seus primórdios, o cinema reunia, na sua base de celulóide, várias modalidades de espetáculos derivadas das formas populares de cultura, como o circo, o carnaval, a magia e a prestidigitação, a pantomima, a feira de atrações e aberrações etc. Como tudo o que pertence à cultura popular, ele formava cinismo, obscenidades, grossuras e ambigüidades, onde não cabia qualquer escrúpulo de elevação espiritualista abstrata. [...] A cultura oficial sempre associada aos interditos, às restrições e à violência sanadora, não podia ver qualquer progresso nessas caretas e macaquices que remetiam sempre ao motivo carnavalesco da máscara, nessas palhaçadas em geral obscenas com que se gozava a seriedade intimidatórias das instituições oficiais. Com o advento do capitalismo e das ideologias protestantes em que este se apoiava, ficava cada vez mais difícil para uma cultura ‘respeitável’ conviver com formas de espetáculos populares francamente ofensivas às suscetibilidades éticas e estéticas, já que a nova civilização dependia, entre outras coisas, do ascetismo, da crença numa sinistra Providência, do papel dirigente jogado por categorias como o pecado, o sofrimento e a redenção pelo trabalho [...] Essas formas de espetáculos ditas “baixas” ou “vulgares” situavam-se “nas periferias, próximos aos cordões industriais, onde a diversão suspeita misturava-se facilmente com a prostituição e a marginalidade. Foi aí, nesses lugares iníquos, que o cinematógrafo nasceu e tomou força durante seus 10 ou 20 primeiros anos” (Machado, op.cit. pp.7678).

2.4

As Salas de Cinema Per Se e o Cinema de Narrativa Integrada

Em um período posterior, transicional para o espaço de cinema tal qual o conhecemos hoje, os filmes, ainda nos moldes do cinema de atrações, passaram a ser exibidos como divertimento único em salas especificamente destinadas para o entretenimento cinematográfico. Foi o surgimento dos nickelodeons em 1905 nos Estados Unidos, ou os barracões, levados a cabo pela comunidade italiana em São Paulo, também na mesma época. 31

Os nickelodeons, refere-se Cesarino (2007), “ao contrário dos teatros, cafés ou dos próprios vaudevilles freqüentados por uma classe média de composição diversificada, esses novos ambientes eram, em geral, grandes depósitos ou armazéns adaptados para exibir filmes para o maior público possível de pessoas, em geral trabalhadores de poucos recursos. Eram locais rústicos, abafados e pouco confortáveis, onde muitas vezes os espectadores viam os filmes em pé se a lotação estivesse esgotada. Mas ali se oferecia a diversão mais barata do momento: o ingresso custava cinco centavos de dólar – ou um níquel, daí seu nome”22.

Esses lugares iníquos espalharam-se por todo Estados Unidos e, conseqüentemente, causaram uma maior demanda por filmes, principalmente ficcionais. Segundo Flávia Cesarino Costa, a atividade cinematográfica teve de se organizar de maneira mais produtiva, e, portanto, sedimentar-se sobre uma estrutura industrial setorizada, hierárquica e centralizada, que começava a retirar o valor do exibidor no espetáculo cinematográfico e a especializar a “direção” dos filmes.

A partir de 1907, relata Cesarino Costa (2006), começaram as tentativas formais, e organizadas da indústria, de construir enredos auto-explicativos e, conseqüentemente, atrair o público de classe média e conquistar mais respeitabilidade para o cinema.

Os filmes desse período representam a transição entre linguagens, entre o cinema de atrações e o cinema de narrativa integrada. Essa última constitui-se pela aproximação da câmera ao objeto; pela movimentação da câmera; pelas regras de eixo e

22

CESARINO COSTA, Flávia. Primeiro Cinema. Em: MASCARELLO, Fernando (Org.) “História do Cinema Mundial”. Campinas, Papirus. 2006, p. 27.

32

continuidade; pela decupagem complexa, constituída por planos abertos e fechados e contra-planos, e por elipses temporais e espaciais; pelo concatenamento lógico dos planos e das seqüências, segundo relação de causalidade; pela consolidação das montagens alternada e paralela; pelo raccord, entre outros. Enfim, como disse Gunning (1991), trata-se da origem do “American Narrative Film”, da narrativa fílmica americana, também conhecida por “Cinema Clássico-Narrativo”.

O efeito de filmes com essa linguagem de narrativa integrada conduz finalmente o espectador a assistir passivamente ao filme e a produzir significado “sozinho”, ou seja a contar com sua interpretação pessoal sobre os enredos auto-explicativos para tornar o filme inteligível.

Para Cesarino Costa (2006), a criação em 1909, nos EUA, da Motion Picture Patents Company (MPPC) — companhia que regulamentava a distribuição e a venda de filmes — impulsionou a expansão da atividade cinematográfica sobre sólidas bases econômicas que necessitariam a inclusão do público de classe média, de maior poder aquisitivo. Para cativá-los, porém, além dos filmes de narrativa integrada, de enredos auto-explicativos; de temática mais apropriada — “divertimentos morais, educativos e sãos”, como propagandeava a MPPC (Cesarino Costa, op.cit. p. 28); e de duração maior, de mais de um rolo fílmico, portanto de mais de 10 minutos; percebeu-se a necessidade de oferecimento de melhores salas de exibição, especificamente destinadas para o espetáculo cinematográfico de longas-metragens23.

23

O marco americano é o filme “Birth of a Nation” de D. W. Griffith, de 1914. (GUNNING, 1991 e CESARINO COSTA, 2006).

33

Moldadas no gosto da classe média, as primeiras salas de cinema per se vieram como enormes e luxuosos cinemas, com rigoroso padrão de segurança e higiene, e, claro, ingressos mais caros.

Parece-me importante, todavia, frisar que o surgimento dos cinemas per se e a consolidação da linguagem do cinema de narrativa integrada fundam as bases do entretenimento cinematográfico tal qual o conhecemos hoje no Brasil, Estados Unidos e Europa. Uma venue cada vez mais comprometida com a situação cinema, elaborada por Hugo Mauerhofer, em “Psychology of Film Experience (1983)”24. “Um dos principais aspectos desse ato corriqueiro, que chamamos de situação cinema, é o isolamento mais completo possível do mundo exterior e de suas fontes de perturbação visual e auditiva. O cinema ideal seria aquele onde não houvesse absolutamente nenhum ponto de luz (tais como letreiros luminosos de emergência e saída, etc.) fora a própria tela e, fora a trilha sonora do filme, não pudessem penetrar nem mesmo os mínimos ruídos” (Mauerhofer, 1983, p. 375. Tradução do inglês).

A situação cinema proporcionaria, segundo Mauerhofer (1983), a condição perfeita para a experiência cinematográfica e para os “melhores resultados na exibição do filme”. Tudo isso por uma série de elementos e “motivações subjetivas” que causariam, inclusive, mudança psicológica da consciência no espectador. Dentre esses elementos, “a imaginação mais alerta, a passividade voluntária e acrítica e o anonimato que conduz o espectador para dentro de sua esfera mais privada – são os

24

XAVIER, Ismail (Org.). A Experiência do Cinema: antologia. Edições Graal, Embrafilme, Rio de Janeiro, 1983.

34

alicerces da ‘psicologia da experiência cinematográfica’” (Mauerhofer, op. cit. 380).

Ocorre em decorrência desse novo processo de significação do filme, uma individuação e uma estratificação do espectador. Nasce, na sala de cinema per se dos Estados Unidos, e daqui também, o código comportamental que impõe o silêncio no cinema. O desfrutar do filme liga-se à noção de respeito à obra e ao autor, que não existia nos primórdios, nos tempos em que exibidor era showman e a platéia mesma elemento textual do filme.

O espectador, recebendo na situação cinema o enredo auto-narrado e sem precisar de nenhum componente externo ao filme para torná-lo coerente e inteligível, participa de uma venue de cinema completamente diferente daquela dos primórdios. O filme agora exige e a sala agora proporciona uma concentração apurada por parte do espectador. Um olho atento à tela, um raciocínio e sentidos guiados pelos estímulos visuais que surgem quadro a quadro, numa ordem definida, irrevogável e inalienável dada pela tal obra cinematográfica.

2.5

Cinema no Ocidente, um Desfecho Possível

Os filmes curtos que maravilhavam com vistas e gags deixaram de ser apropriados para o novo reduto do cinema de narrativa integrada. Como Machado (2007) mesmo disse, a alegoria da caverna de Platão inaugurou, na história do pensamento ocidental, o horror à razão dos sentidos, o escárnio das funções do prazer e a repulsa a todas as construções gratuitas do imaginário. O cinema que surge com as salas per se nega as características populares que lhe eram indissociáveis até então, pois incorpora um público “oficial”, advindo de uma “cultura respeitável” e exige projeção de filmes “apropriados”.

35

O autor associa ao cinema de atrações o mundo dos rituais, dos jogos e das festividades populares da Idade Média, descrito por Mikhail Bakhtin25. “Trata-se de um mundo absolutamente extra-oficial (ainda que legalizado), que se baseia no princípio do riso e do prazer corporal; é um mundo “invertido”, que possibilita permutações constantes entre o elevado e o baixo, o sagrado e o profano, o nobre e o plebeu, o masculino e o feminino. A essas formas de expressão típicas das camadas mais desfavorecidas da população, Bakhtin dá o nome de realismo grotesco: elas compreendem um sistema de imagens em que o princípio material e corporal (comer, beber, defecar, fornicar) comanda o espetáculo e em que abundam os gestos e as expressões grosseiras, as profanações, as heresias e as paródias” (Machado, 2007, p. 76).

As salas luxuosas inauguram a negação da risada, dos assovios, do falatório e dos hábitos mais “grosseiros” dentro do cinema, e fortalecem o sentido de “modernidade” que o cinema trouxe na sua invenção, consagrando-se como tal em jornais, revistas, criticas, senso comum e até mesmo no manifesto modernista brasileiro, publicado no primeiro número da revista Klaxon.

25

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: Contexto de François Rabelais. UNB, Brasília. 2008.

36

CAPÍTULO III – AS SALAS DE CINEMA NA ÍNDIA “O cinema de 1501 lugares aberto em 1972 substituiu um antigo Minerva, anfiteatro convertido para cinema em 1912 e construído no estilo clássico no mesmo sítio [...] Em 2000, a empresa Parik planeja sua conversão em multiplex” (Vinnels e Skelly, 2002, p. 113).

Eagle Films, proprietária do Minerva Movie-Hall até 2007, trata-se de uma empresa que controla produção, distribuição e exibição. As fotos abaixo, de fevereiro de 2008, já cumprem com as expectativas supracitadas de “renovação”.

Figura 1: Minerva Movie-Hall

37

3.1

A Contextualização Histórica

O francês Cinematógrafo, com sua praticidade e mobilidade, originou, como vimos anteriormente, homens do espetáculo, que correram o mundo registrando e exibindo “vistas” em salões de variedade ou anfiteatros adaptados. As salas estadunidenses per se criaram a situação cinema que consagrou o entretenimento e a linguagem cinematográficos que vinham mudando como um todo, encerrando a era primordial do cinema.

A Índia recebeu o Cinematógrafo nos moldes franceses de exibição e, com a chegada de arquitetos americanos, ergueu as tais salas per se, deixando-se influenciar pelo desejo de uma situação cinema. Com o passar das décadas, essas edificações sofreram importantes modernizações. Pode-se, inclusive, derivar uma periodização a partir do surgimento de certos tipos de salas de cinema. Tomo para tal, o ponto-devista arquitetônico dos autores David Vinnels e Brent Skelly, e chamo a atenção para o fato de que as salas de cinema na Índia desenvolveram-se pari passu às suas similares em muitos outros países.

A periodização, classificação e contextualização dos modos de exibição fílmica na Índia interessa-nos para, em seguida, percebermos a singularidade da venue, o evento “ir ao cinema”, para o indiano e, conseqüentemente, o vislumbre de uma compreensão da linguagem dos filmes indianos.

3.2

Primórdios do Cinema – Os Salões de Variedades

Os salões de variedades e cafés de Mumbai, Calcutá e Chennai incluíram de súbito o cinema no seu conjunto de atrações. Logo os lanternistas-mágicos, que operavam em tendas e nos “maidans” – os gramados nos centros das grandes cidades -

38

incorporaram o cinema nas suas apresentações. Também em seguida os animadores itinerantes, ilusionistas e titereiros adicionaram a nova ferramenta às suas performances. Vinnels e Skelly (2002) descreveram: “Armados com projetor, tela dobrável e algumas latas de filme, eles viajaram pelo país em charretes, e a cada parada montavam um cinema rudimentar numa tenda ou ao ar livre” (Vinnels e Skelly, op.cit. p. 18). E complementam: “Por volta de 1899 a palavra Bioscope cunhava tanto a venue quanto o próprio entretenimento e não demorou muito para os espertos empresários incluírem-na no nome de suas firmas. Os Ingleses, surpreendentemente, participaram pouco desse começo de produção e exibição cinematográfica na Índia, o que deixou o caminho livre para os ‘showmen’ e empresários indianos explorarem o potencial do novo 26

meio” (Vinnels e Skelly, op.cit. p. 18) .

Abdullay Esoofally, por exemplo, parece ter comandado uma tenda de cinema em Mumbai nos primórdios de 1900. A tenda, suportada por 4 pilares, media 450m2 e acolhia mais de mil espectadores, além de que 25 pessoas trabalhavam nela.

Nos dias de hoje, Bioscope não mais estampa a “venue”, nem o nome das firmas relacionadas ao cinema. Bem como as grandes tendas desde 1930 abandonaram as áreas urbanas.

Nas áreas rurais, porém, verifica-se sua permanência. No vilarejo rural de Nurapur, por exemplo, encontrei viva entre os moradores a expectativa da chegada do Touring

26

Tradução minha do original em inglês.

39

Cinema, do cinema ambulante. Expectativa cumprida quando da ocasião de um casamento no vilarejo vizinho. Há 25 quilômetros de distância de uma sala de cinema, quem não dependeria do cinema ambulante?

Outra saída para os moradores de Nurapur, o dvdwallah - o fornecedor de DVDs a 2 rúpias - mais próximo fica há apenas 1km. Assim, outro modo de se assistir a filmes no vilarejo é dispor de um DVD, um DVD player e uma televisão plugada em bateria de caminhão e armada fora da casa, para todos.

Curiosamente, entretanto, mesmo nos centros urbanos encontram-se sinais do cinematógrafo. Salim Baba, cinemawallah ou showman de Calcutá, retratado em documentário homônimo por Francisco Bello27, exibe, ainda hoje, trechos de filmes numa pequena tenda armada a céu aberto em frente ao Moonlight Cinema de Calcutá.

Salim herdou do pai a profissão de exibir filmes e o projetor à manivela com mais de 110 anos, ferramenta principal de seu trabalho. Aos domingos, dia do espetáculo de 2 e meia polegadas de imagem em movimento, o ingresso custa apenas uma rúpia.

Outra manifestação urbana contemporânea: os Vídeo Parlors. Cubículos informais de projeção clandestina de vídeo, em que o público, aglomerado e acocorado sobre o chão, assiste a filmes antigos pagando menos de 10 rúpias o ingresso.

Essas biroscas de cinema, se tivessem paralelo no Brasil, chamar-se-iam de (criação

27

Site: http://www.rv-films.com/projects/salim.html

40

minha) Botecocine. Bastante sujas e destinadas a um público de baixo poder aquisitivo, em sua maioria migrantes da Índia rural, essas salas emparelham-se lado a lado, e às dezenas, na crucial via S.V. Road, perto da favelizada Jogeshwari, bairro de Mumbai. Ao primeiro olhar, aparentam mais ser um posto de venda de tabaco e chai, o chá indiano altamente popular, do que um reduto do cinema.

Serão todos esses casos reminiscências do cinema dos primórdios, dos Nickelodeons e Bioscope Parlors destituído de salas de cinema per se?

3.3

Primeiras Décadas do Século XX - Os Anfiteatros Convertidos ou Cinemas Clássicos

Ao que relatam Vinnels e Skelly (2002), o desenvolvimento da produção cinematográfica indiana deu-se rapidamente, ao passo que a exibição cinematográfica só veio a se estabelecer quase no final da primeira década do século XX, com a conversão dos pré-existentes anfiteatros de peças e variedades européias em cinema. “A primeira conversão de anfiteatros em cinema foi levada a cabo pela empresa Eliphinstone Company de J. F. Madan em Calcutá, por volta de 1907 – com o Eliphinstone Picture Palace (hoje Chaplin) ou possivelmente com o Corinthian (demolido) – mas, aparentemente, não se sabe precisar data para abertura, nem qual surgiu primeiro” (Vinnels 28

e Skelly, op.cit. p.20) .

Esses anfiteatros europeus, de arquitetura clássica, surgiram no século XVIII sem causar grandes adesões até a segunda metade do século XIX, quando grupos

28

Tradução minha do original em inglês.

41

teatrais, especialmente de origem Farsi (ou Parsi, Persa), trouxeram o glamour, engenhosidade e efeitos tecnológicos ao espetáculo teatral. O que, para os indianos, habituados com a espetacular e folclórica dramatização de histórias mitológicas, representou, finalmente, um atrativo. “Os grupos de teatro Parsi proveram a plataforma inicial de performers e autores, já que praticamente todos migraram para o cinema. As diversas influências por eles assimiladas – Shakespeare, poesia lírica persa, folclore e tradições indianos e o teatro sânscrito; a estrutura operística integrando músicas na narrativa; a predominância dos gêneros histórico, mitológico e o romance melodramático; e o uso da língua Urdu – fizeram com que o teatro Parsi fosse o antecessor estético e cultural imediato do cinema popular indiano. [...] Aliás, o capital dos empresários Parsi financiou a indústria de cinema na Índia até 1930 e teve um papel significante na infra-estrutura de distribuição inicial e nos três maiores estúdios do cinema mudo e sonoro: Imperial Film, Minerva Movietone, and Wadia Movietone” (Ganti, 2004, p.8)29.

A sala de cinema per se surgiu por volta de 1914, com “Gaiety” em Chennai e em 1918, com o “Cinema Majestic” (hoje demolido) em Mumbai. Esses cinemas clássicos pouco ou nada diferem dos anfiteatros convertidos. Segundo Vinnels e Skelly (2002), até se duvida da participação de arquitetos na criação dessas primeiras edificações. “Provavelmente os artesãos e construtores locais imitaram o que haviam visto e possivelmente construído na adaptação dos anfiteatros” (Ganti, op.cit.p.25).

A adaptação consistia em substituir o auditório de três andares dos anfiteatros clássicos europeus, por uma configuração de piso único ou pelo arranjo, mais comum,

29

GANTI, Tejaswini. Bollywood – A Guidebook to Popular Hindi Cinema. Routledge Film Guidebooks, New York. 2004.p.8.

42

de platéia e balcão.

Em Mumbai, localizados especialmente próximos às estações ferroviárias de Mumbai Central e Grant Road, muitos desses anfiteatros convertidos em cinema, na primeira década do século XX, continuam na ativa. É o caso de Gulshan Talkies, chamado anteriormente de “The Grant Road Theatre”; de Alfred Talkies, antigo “Ripon”; e de Capitol, o clássico “Gaiety”.

A Phalkland Road — rua em homenagem ao pai do cinema indiano Dadasaheb Phalke30 — onde fica o Alfred Talkies, por exemplo, atualmente abriga muitos cortiços e bordéis. Resta a esses cinemas exibir filmes antigos para um público predominantemente masculino e jovem a um preço bastante acessível (15 rúpias), que participar do circuito exibidor tradicional. Não freqüentam esses cinemas as pessoas “decentes” – adjetivo comumente empregado por indianos, de todas as classes sociais, para designar uma qualidade de pessoa para além de tipificações de casta e classe, pautada no apreço da boa moral e dos bons costumes.

Assim como o bairro ficou “indecente”, esses cinemas, sem nenhuma manutenção, são antro de manifestações públicas do erotismo, da sexualidade e do prazer. Minha entrada no Alfred Talkies foi barrada pelo bilheteiro, não pude, portanto, observar a disposição dessas salas.

30

Em 1913 fez o primeiro longa-metragem “Rajaharish Chandra”.

43

3.4

Década de 30 – Os Palácios de Cinema

“Realmente, allí, naquelle grande bairro, fazia falta um grande cinema. Porque as cidades precisam de vida; e a vida... Ora! A vida está no cinema! (...)

Bondes

e

omnibus,

pesados

de

gente,

raspando

os

parallelepipedos brutos: e aquelle collar lustroso de automóveis – índice de grande vida – enrolado em torno de um edifício novo, todo esplendido de luzes e cartazes... O ‘Cine Santa Cecilia’... (...)E o ‘Cine Santa Cecilia’ modernisando bastante o velho, mas sempre, inebriante estilo, resolveu com intelligencia esse problema das adaptações. Modernisando? – Sim. Fazendo de concreto e ferro a estrutura rija; decorando com a simplicidade do cimento e dos ferros-batidos a fachada; hygienisando pela larga e profusa ventilação o ambiente; enfeitando de jogos imprevistos de luzes coloridas, mysteriosas, a vastidão da sala; dispondo com conforto, em platéa, camarotes e balcão mais de três mil poltronas... (...)31

Surgiram o cinema sonoro e o ar-condicionado. As salas de cinema per se tiveram que se “modernizar”. Eis que o padrão adotado foi o americano, amplamente denominado por Palácios do Cinema graças a sua imponência e luxo.

A venue virou assunto recorrente nas colunas sociais, a ponto das “reviews” de cinema se confundirem com crônicas da (alta) sociedade.

Assim se parece o conteúdo do aditamento acima, pertencente à primeira coluna de

31

Mantida a grafia original. ALMEIDA, Guilherme de. Cinematógrafos. O Estado de São Paulo, 9 de Março de 1927. Citado por TEIXEIRA, Erika Lopes. Cinematographos, coluna cinematográfica de G. Dissertação de Mestrado em História da Comunicação, Instituto de Estudos Jornalísticos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra. 2004.

44

cinema do jornal “O Estado de São Paulo”, chamada “Cinematographos”, lançada em 1926 e escrita pelo poeta modernista e de família tradicional paulistana Guilherme de Almeida. Também aqui os Palácios de Cinema fascinaram muita gente.

Na Índia, os Palácios surgem a partir da década de 30. Nessa época o cinema americano dominava até mesmo as telas indianas: “...comparado à elegância e à fantasia que esses filmes retratavam, até o melhor estabelecimento da cidade parecia desinteressante e fora de moda. Sem falar que a introdução do som no cinema requeria um auditório bem mais preparado. Os exibidores perceberam isso e, de modo a satisfazer as expectativas de seus espectadores, solicitaram a criação de um novo tipo de venue: sofisticada, luxuosa, confortável e equipada com tecnologia de ponta. Conseqüentemente, muitos estúdios de Hollywood comissionaram ou foram instrumentais no desenvolvimento do prestigiado novo estilo americano de super cinema, a se situar nas melhores localizações de Mumbai e Calcutá. Fortemente influenciado e muitas vezes desenhado por arquitetos americanos, esses cinemas trouxeram para a Índia um inédito e inimaginável luxo e chic, com o objetivo de replicar alguma coisa do espetáculo e glamour dos grandes palácios de cinema dos Estados 32

Unidos”. (Vinnels e Skelly, 2002, p. 26)

Em 1930, o primeiro dos Palácios, projetado pelo arquiteto David W. Ditchburn, foi o “Pathé” (demolido) em Mumbai. Pode-se ver, entretanto, esse luxo art-deco na sala “Metro” construída por Ditchburn e Thomas W. Lamb em 1938, na mesma cidade, hoje convertida em multiplex. Arquitetos indianos seguiram construindo cinemas nos moldes Art Deco, dentro do que Vinnels e Skelly (2002) chamam de arquitetura Indo-

45

Deco, até início da década de 60.

Segue interessante comentário do arquiteto americano Jon Alff sobre os cinemas Art Deco de Mumbai: “O cinema Art Deco situou as histórias dramáticas em isolados espaços de imaginação. Simples no exterior, como as cavernas de Ajanta e Ellora, os cinemas criaram uma experiência emocional complexa e de ricas camadas. Arrastando os espectadores para frios e escuros interiores, o Regal, Eros e Metro distanciaram as pessoas do mundo exterior e uniram-nas num outro estar. Enquanto os templos são espaços pequenos e privados, os cinemas são enormes e densamente povoados, ambos utilizaram-se de iluminação e espaços conscientemente pensados para proporcionar impressões individuais de mundos distantes. Cinema Art Deco encarna a elegância e o conforto modernos explicitados nos filmes, e que de outro modo não estariam ao alcance da maior parte da platéia indiana. Os espectadores de cinema experimentaram percepções únicas e Modernas ao serem introduzidos a vidas social e culturalmente afastadas das suas próprias. Regal, Eros e Metro e os filmes projetados nesses cinemas retratam uma sociedade com novos símbolos, já que idealizam a experiência Moderna” (Vinnels e Skelly, op. cit. p. 29).

A sensação que tive a partir do cinema Eros, o mais imponente dos Palácios do Cinema restantes em Mumbai, foi a de ver bem conservados os símbolos do luxo e da modernidade nas suas fachadas e interiores.

Outra coisa que me maravilhou foi a permanência do arranjo de platéia e balcão, herdados dos anfiteatros convertidos, e da capacidade de acolher milhares de

32

Tradução minha do original em inglês.

46

espectadores. Aliás, o fascínio pela imponência desses edifícios destinados única e exclusivamente ao cinema se exerce em geral: os indianos referem-se a esses cinemas como sólidos “landmarks”, pontos de referência na localização geográfica da cidade, uma vez que as ruas, na Índia, não costumam ter nomes.

As referências não são geográficas apenas. O Palácio do Cinema faz parte daquelas marcas indeléveis da cidade que habitam o hall das instituições culturais. Mesmo com o surgimento de edifícios modernos nas redondezas, passíveis de se tornarem “landmarks”, esses cinemas sustentam-se como principal referência. Nas minhas entrevistas identifiquei uma das possíveis explicações para esse fenômeno, os Palácios preenchem o imaginário do indiano de esplendor. O cinema Eros, em frente à estação de trem de Churchgate em Mumbai, por exemplo, estampa um dos cartões postais mais tradicionais da cidade.

A “venue” desses cinemas, hoje, não poderia ser interpretada distante desses elementos. Assistir a um filme no anacrônico e esplendoroso Eros resulta numa viagem no tempo que se agrega ao valor do entretenimento.

Acreditem, o indiano é consciente desse valor agregado. Ele emprega cotidianamente a expressão “Paisa Vasul” (valeu o investimento), para avaliar o entretenimento cinematográfico. Um filme, em estréia no Eros pode ser horrível, mas fez valer o ingresso o caráter turístico de ir àquele cinema.

Ainda hoje instalados em localizações prestigiadas, os Palácios remanescentes mantém-se inseridos no circuito exibidor tradicional, com lançamentos concorridos, filmes atuais e até mesmo blockbusters estrangeiros. O público freqüentador paga menos de 100 rúpias pela melhor entrada, além de aparentar pertencer a uma classe

47

trabalhadora com maior poder aquisitivo. Também começa-se a perceber a presença espontânea de mulheres e estudantes mais ocidentalmente caracterizados.

Há um outro fator que sublinha a importância social dessas salas. Consiste na iniciativa bastante difundida entre os investidores de se manter a fachada e se transformar o interior desses cinemas segundo o padrão atual (ironicamente também americano) das salas “multiplex”. A grande parte dos cinemas antigos de Mumbai, especialmente dessa época, já se tornaram multiplexes de rua, a exemplo de “Metro” e “Regal”. Revivendo o deleite do recontar a mesma história, característico das culturas de tradição e narrativas orais.

3.5

Segunda Metade do Século XX – O Cinema Moderno

“Em 1947, a Índia declarou sua independência depois de quase 200 anos de domínio inglês. Quando o novo governo tomou posse, uma de suas primeiras medidas foi instaurar o licence raj, uma política que fechou as portas do mercado indiano para o mundo. O objetivo do primeiro-ministro Jawaharlal Nehru era proteger as empresas locais da forte concorrência estrangeira”.33

Nehru, de família “ocidentalizada” e educado em Harrow, Cambridge, descreveu-se a si mesmo o “último inglês a comandar a Índia”. Líder libertário, após a independência assumiu o posto de primeiro-ministro nele permanecendo por 17 anos. Mesmo sendo um devoto nacionalista trabalhando para afastar a Índia do domínio britânico e da influência ocidental, Nehru não rejeitou as trocas culturais de todo. Incorporou muitos elementos estrangeiros ao projeto de modernização da Índia e incentivou a

33

Extraído de: http://epocanegocios.globo.com/Revista/Epocanegocios/0,,EDR81537-8374,00.html

48

apropriação desses elementos pelos indianos, num projeto de desenvolvimento econômico nacional.

A partir da década de 50, por exemplo, do ponto de vista arquitetônico e simbólico, o Modernismo foi incorporado ao projeto nacionalista da recém independente Índia. Chandigarh, a nova capital do estado de Punjab em substituição a Lahore (perdida para o Paquistão na Partição), foi projetada por ninguém menos que Le Corbusier a pedido do próprio Jawaharlal Nehru.

Nessa linha, a segunda metade do século XX viu-se erguerem salas de cinema modernistas, construídas principalmente por arquitetos indianos influenciados por Le Corbusier e até mesmo por Oscar Niemeyer – haja vista, respectivamente, os cinemas “Chanakya” em Nova Delhi e “Apsara”, hoje inteiramente reconstruído, em Mumbai.

49

Figura 3: O projeto de Apsara foi inspirado na Pampulha de Oscar Niemeyer.

Os anos 50 e 60 das salas de Cinema Moderno foram, para a produção cinematográfica indiana, os “anos dourados”. Tanto o cinema popular cresceu em número e em público, firmando-se como principal entretenimento e alavancando a indústria de cinema nacional para a atual posição de liderança, quanto o cinema de

50

arte, em prestígio.

O cinema tornou-se instrumento de propagação de uma identidade nacional e, conseqüentemente, o maior veículo de comunicação de massa até há pouco, com a liberalização tardia da televisão na Índia na década de 9034. A Índia pósindependência, porém, encontrava nas salas de cinema o centro do entretenimento, o espaço único de contato do público com o filme. Entretanto, conforme Tejaswini Ganti descreve: “O Entretenimento não era visto como uma necessidade num pais que à época da independência tinha 18 porcento de alfabetizados, apresentava uma expectativa de vida de 26 anos, sofria de uma crise alimentar e precisava realocar mais de um milhão de refugiados. Rápida industrialização, desenvolvimento de infra-estrutura e autosuficiência no setor de alimentos eram as prioridades da política econômica nacional. [...] Diferentemente do Governo dos Estados Unidos - que desde o início do século XX tratou o cinema como negócio e ajudou Hollywood a distribuir os filmes mundialmente -, o Estado indiano não concedeu ao cinema importância econômica. A despeito do fato de que após a independência, o cinema assumia a posição de segunda maior ‘indústria’ na Índia em termos do capital de investimento, de quinta quanto ao número de pessoas empregadas, alem de que ascendia à posição de segunda maior indústria de cinema no mundo. Ao invés do pensamento dominante considerar o cinema como uma força suplementar ao desenvolvimento econômico da Índia, as políticas estatais de taxação e licenciamento enquadraram-no no estatuto de vício. O nível dos impostos incidentes sobre o cinema eram equiparáveis

34

Na década de 80 havia apenas um canal estatal “Doordarshan”. Em 1991, o primeiro-ministro Narasimha Rao criou concessões para a abertura de canais privados. Hoje a televisão na Índia oferece mais de 100 canais.

51

àqueles sobre os vícios do jogo e da corrida de cavalos. Os governos estaduais levavam da receita advinda das bilheterias entre 20 e 75 porcento de imposto”. (Ganti, 2004, p.24-44. Tradução minha do original em inglês).

A não autorizada indústria aflorou informalmente. Uma obviedade, em decorrência das moratórias e taxações pesadas, a Índia, mesmo hoje, tem uma baixa relação de salas de cinemas e população. São ao todo 12.900 salas de cinema para um público anual de 5 bilhões de espectadores (cf. Ganti, 2004, p. 25). Mas grande parte dessas salas, desafiando toda a conjuntura existente à época, surgiu no período entre 1950 e 1975. Salas enormes, com capacidade para milhares de pessoas.

Em sintonia com essa grandeza, os filmes campeões no ranking de bilheteria35, por exemplo, pertencem todos a esse período em que o cinema concorria com o projeto nacional. Os clássicos que despontam no pódium, Sholay (1975), Mughal-E-Azam (1960) e Mother Índia (1957), arrecadaram, respectivamente e com correção inflacionária, U$ 32.741.335,96, U$ 26.657.960,78 e U$ 23.566.047,18, deixando para trás muitos “Super hits” atuais36.

Atrelados aos filmes clássicos, havia sempre um Cinema Moderno, referencial, que em sua maioria lançava esses “All Time Blockbusters”. Nasce um vínculo entre os filmes e as salas, permitindo uma interessante participação do público, apreciador do “vício”

35

Vide site: www.boxofficeindia.com O atual “Om Shanti Om” - “blockbuster” de 2007 chegou à soma de U$17.378.201,88 e aparece em nona posição.

36

52

cinema.

O filme “Mughal-e-Azam”, por exemplo, extendeu-se por três anos em cartaz no cinema Maratha Mandir, em Mumbai. O diretor, produtor e exibidor Umesh Mehra37, proprietário do Minerva Movie-Hall, apontou que filme “Mughal-e-Azam”, na ocasião do lançamento nos cinemas de sua versão colorida em 2004, obteve um sucesso de público no Maratha Mandir, cinema de seu lançamento, considerável. Sessões lotadas como num revival da primeira sessão em 1960 representa, para Umesh, um sinal de que a sala de cinema tem o seu lugar junto à memória dos habitantes da cidade, sendo de quando em quando reverenciada.

A própria experiência de Umesh em comandar o Minerva, cinema de lançamento de “Sholay” - filme que ficou o tempo recorde em cartaz (286 semanas!) -, infere uma certa nostalgia e um certo prestígio ao proprietário. Ele, inclusive, no momento da venda do “Minerva”, recebeu muitos depoimentos lamuriosos de espectadores e da imprensa.

Os Cinemas Modernos, construídos no contexto sócio-político e econômico explicitados, equilibravam-se entre orgulho e vergonha. Sem dúvida, hoje se reconhece sua importância para, inclusive, o desenvolvimento da nação indiana.

Meu descontentamento é relacionar os valores pós-independência - a negação da

37

Umesh Mehra foi entrevistado em 2006 para meu documentário “Corpo de Bollywood, o povo quer cinema” e registrado no referido filme. A entrevista completa consta nas transcrições do material bruto e

53

dominação britânica e o desejo de integrar à nação, a despeito das diferenças religiosas e das castas – a certos paradigmas que talvez não tenham sido quebrados e cujos resultados efetivos imprimiram-se na história do cinema indiano38.

O arranjo de platéia e balcão nos Cinemas Modernos manteve inclusive a designação inglesa “Dress-Circle” e “Balcony”. E os espectadores permaneceram segregados numa lógica de engajamento que só fará sentido no capítulo IV. O importante mesmo é pontuar o que restou desses Cinemas Modernos.

O Minerva, na foto no início desse capítulo, foi reinaugurado em 1972, em substituição ao Cinema Clássico per se de 1912. Preservadas as influências modernistas – haja vista a fachada, o estilo do foyer e a ausência do proscenium -, o cinema de 1501 lugares, sem nenhuma reforma desde 1972, já não gerava público. A decadência por que passaram os bairros centrais, não sustentava a exibição dos filmes atuais, do circuito tradicional, a ingressos mais caros. Para os Cinemas Modernos como o Minerva, os anos dourados do cinema e o frescor da modernidade das salas estimulavam uma grande soma de espectadores, de diferentes segmentos e classes da sociedade. Atualmente, passaram a acolher menos gente, segmentando o público, inclusive, por horário de sessão.

As pessoas que freqüentavam o Minerva raramente vinham de outro bairro, a não ser quando, trabalhando na redondeza, “matavam hora” no cinema para evitar o rush do

poderá ser acessada no site www.animalucis.com.br Tenho em mente a dissertação de mestrado de um colega indiano, Abir Bazzaz, sobre a representação

38

54

regresso à casa. O deslocamento no caso de Chandan em Juhu, um bairro nobre, já era mais provável. Mesmo assim a maior parte das pessoas vinha da localidade, e, portanto, oriunda de uma classe mais abastada.

O bairro Grant Central, onde se localiza o Minerva, sofreu depreciações e hoje recebe um grande público de passantes, oriundos de uma classe mais popular, principalmente em jornada de trabalho. Essas dinâmicas estão melhores desenvolvidas no próximo capítulo, mas vale observar a presença predominantemente masculina em qualquer dessas salas.

Vale observar, por fim, que os Cinemas Modernos incluem-se, tal como os Palácios do Cinema, no hall dos cinemas que vêm se transformando em Multiplex. O próprio Minerva e Apsara são prova disso. De alguma maneira, esses cinemas conservam seu prestígio por remeter ao esplendor e à nostalgia do auge da produção cinematográfica indiana, numa época que se fundou junto à sociedade um nacionalismo muito forte (para além de qualquer crítica). Como disse-me, orgulhoso, o entrevistado Akki: “My Minerva, your Minerva, our Minerva!”.

3.6

Início do Século XXI – O MULTIPLEX e o Cinema Convertido em MULTIPLEX

O License Raj de Nehru, de forte influência estatal e nacionalista, entrou em colapso nos anos 70 e o país enfrentou severas penas até 1991, quando o governo do então primeiro-ministro P. V. Narasimha Rao recebeu empréstimos do Fundo Monetário

do islamismo e dos muçulmanos na construção de Nação nos filmes de Bollywood.

55

Internacional e executou reformas estruturais na economia, trazendo uma abertura econômica e, com isso, uma nova onda que levaria a Índia à atual posição de potência econômica emergente ao lado da China e do Brasil.

A esse respeito, analisa Ganti (2004) “transformações radicais foram implementadas na economia: a desvalorização da moeda para tornar as exportações competitivas, o afrouxamento das restrições e deveres nas importações, reduzindo subsídios para alguns setores e indústrias, abolindo o sistema de licenciamento das indústrias, abrandando as regras de investimento estrangeiro, considerando colaborações tecnológicas como essenciais ao crescimento econômico, removendo restrições nas grandes empresas privadas, reduzindo a ênfase das estatais no planejamento econômico, e geralmente reduzindo as regulações concernentes às atividades econômicas para fomentar novas iniciativas”. (Ganti, op. cit, p.34. Tradução minha do original em inglês)

As metas giravam em torno da privatização das estatais, dos investimentos em infraestrutura e das importações. O crescimento e a liberalização da economia indiana não poderia deixar de contemplar o cinema.

“Em maio de 1998, o Governo da Índia finalmente concedeu ao cinema o estatuto de indústria, assim atendendo uma das mais freqüentes reclamações expressas pelos cineastas de Mumbai sobre a atitude do Estado em relação à sua atividade. Esse reconhecimento do Estado permitia uma variedade de benefícios simbólicos e concretos, desde os custos de eletricidade em faixa de preço menor, que beneficiaram os exibidores que vinham pagando alto em comparação a outras indústrias e comércios, até tornar elegíveis de financiamento bancário e institucional as empresas produtoras de cinema. Ao invés de percebê-la como vicio, o Estado indiano, a partir do final da década de 90, percebe o cinema comercial como viável, importante e legítima atividade econômica que precisa ser por ele cultivada e apoiada”. (ibid, p. 50)

56

Em 2001, o país assume o posto de maior produtor e consumidor de filmes no mundo (imagem abaixo):

Figura 2: Indice de produçao e venda de filmes na India. Fonte: site http://www.businessweek.com//magazine/content/02_48/art02_48/a48tab37.gif

Outro elemento importante foi a chegada, em 1992, da televisão por satélite, possibilitada pela Liberalização Econômica. A televisão que desde 1976 tinha apenas um canal, estatal, Doordarshan, passou a ter 10-50 canais dependendo do provedor a cabo. “Desde a entrada da televisão por satélite, os cineastas indianos passaram a operar num horizonte midiático bem diferente, onde uma série de opções, incluindo filmes, fica acessível aos telespectadores de casa. Apesar da indústria de cinema de Mumbai inicialmente perceber o novo canal como ameaça, a indústria estabeleceu uma relação simbiótica com a televisão por satélite. Os canais oferecem aos cineastas novos meios para publicizar, promover e vender seus filmes e serve como uma nova fonte de receita, já que estão dispostos a pagar grandes somas para o direito de exibição televisiva dos filmes populares. Muitos dos canais dependem enormemente dos filmes em Hindi, de suas canções, das notícias da indústria de cinema, das fofocas de celebridades, das premiação de cinema e dos programas de auditório com as estrelas de cinema. Mesmo a MTV, o símbolo da cultura jovem global, é pesadamente dependente das canções-filme e das estrelas do cinema Hindi para sua programação na Índia. Ao invés

57

de diminuir a presença dos filmes na cultura popular, a televisão por satélite reforçou a dominação do cinema em Hindi e suas estrelas no horizonte midiático indiano. [...] Produtores assumem que as pressões sobre a indústria de cinema são diferentes desde o advento da televisão por satélite, porque o público não pode ser tomado como garantido. Tem que se trabalhar duro para atrair público às salas de cinema, já que tantos fatores trabalham para mantê-lo em casa. Para uma família de poucos meios, assistir a um filme no cinema é menos viável que assisti-lo em casa no vídeo

ou

na

televisão.

E

mais,

os

produtores

culpam

os

congestionamentos nas cidades grandes e as más condições dos cinemas nas áreas menores como fatores que tornam a experiência de ir ao cinema mais num tormento que num prazer para o público. De modo a atrair o público para os cinemas, cineastas têm investido bastante dinheiro e esforço para criar uma experiência cinemática e um espetáculo indisponíveis na televisão”. (Ganti, 2004, p. 37)39

Os filmes passaram a exibir locações estrangeiras, muitos efeitos especiais e alta tecnologia para diferenciar os filmes dos demais produtos televisivos. Ou seja, estabelecem-se como filmes que demandam de tela grande.

Não é à toa que surge, nesse período, um investimento por parte dos exibidores em proporcionar uma venue mais atual e sintonizada nesse novo projeto de cinema levado a cabo pelos produtores. Um espaço de alta tecnologia que promove um conforto indisponível em casa.

Adequa-se a esse projeto, o modelo americano de salas Multiplex - o cinema de múltiplas salas – instalado em shopping centers, novidade na Índia. O primeiro, em

58

Mumbai, foi o Crossroads Center, construído em 199940.

“Para a massa afluente indiana, o chamado para os shopping centers comprova-se irresistível. Shoppings mais e mais marcam a paisagem urbana

indiana

e

seus

estacionamentos

abarrotados,

seus

movimentados restaurantes e praças de alimentação, suas povoadas lojas e seus barulhentos pontos de diversão e jogos testemunham o sucesso desse chamado. Alguns chamam a isso de consumismo em ação, nós o chamamos de celebração da massa abastada. O segredo do sucesso dos shopping centers reside no seu apelo de massa – têm algo a oferecer para cada membro da família. Há nos shoppings um amplo leque de experiências – barganhas e descontos ou grandes marcas para os casais, jogos e diversões para as crianças, uma oferta diversificada de cozinhas para as refeições da família, e, claro, os cinemas multiplex. De muitos modos, shoppings refletem o estado de nossa sociedade e atuam como agentes da mudança. O aumento da renda familiar e a vida mais agitada criam o espaço para os shoppings na vida da massa urbana abastada”41.

Em 2006, quando viajei para Mumbai na intenção de fazer um documentário sobre Bollywood, testemunhei a construção de alguns desses shopping

centers e,

conseqüentemente, desses cinemas na Índia. Principalmente, observei o frenesi dos espectadores que se sentem estimulados a experimentar os filmes por esse novo canal de sensações e percepções que é essa sala multi-interessante.

39

Tradução minha do original em inglês. Para consultar mais a respeito dos Multiplex na Índia, http://www.atimes.com/atimes/South_Asia/FG24Df01.html. Tradução minha do inglês. 41 http://www.rediff.com/money/2006/sep/05mall.htm . Tradução minha do inglês. 40

vide

Fonte:

59

O distribuidor de filmes Balkrishna Shroff, da empresa Shringar, em entrevista42, disse que essas salas resgataram o público abastado, constituinte da elite financeira indiana, que “se afastou do cinema porque as salas de tela única não conseguiram manter o padrão que esse público almejava”. Efetivamente tanto as salas remanescentes dos Anfiteatros Convertidos e os Palácios de Cinema Art Deco dos anos 30 quanto os Cinemas Modernos da pós-independência distinguem-se da venue do Multiplex.

Alguns dos meus entrevistados preferem as salas antigas, pelo tamanho de sua tela e auditório. Ou mesmo o valor histórico-cultural e afetivo agregado ao bilhete. Outros tantos incluem-se na massa abastada interessada pelo prazer do shopping Center. De um modo ou de outro, as modificações do espaço da sala de cinema foram radicais. A começar pelo fim do arranjo platéia e balcão e o surgimento de cadeiras segmentadas pelo grau de conforto.

Ademais, entra-se no cinema e escolhe-se o filme dentre variadas opções. Esse é o resultado marcante das salas múltiplas. Um conjunto de pessoas reúnem-se no saguão, mas separam-se optando por uma das várias sessões simultâneas que exibem diferentes filmes.

O próprio saguão cresce em postos de venda, oferecendo não uma lanchonete, mas

42

Em 2006, entrevistei-o para meu documentário “Corpo de Bollywood, o povo quer cinema”, onde ficam registradas algumas de suas pontuações. A entrevista completa poderá ser lida no site http://www.animalucis.com.br.

60

várias. Além de oferecer pontos de venda de DVDs, Jóias, bijuterias e outros produtos. Um hall de marcas, apelando para o consumo.

Acrescenta-se ainda que não existe a referência da sala Minerva, ou Apsara. Os multiplex criam identidade, e fidelização, a partir de sua rede de exibição. Uma marca que afina a fronteira entre exibição e distribuição. Por exemplo, tanto o cinema Maratha Mandir quanto o cinema do shopping center Inorbit, ambos em Mumbai, pertencem à rede de exibição Fame, braço da empresa de distribuição Shringar de Shroff.

Há quase uma inversão estratégica. Essas redes, que hoje se consolidam no mercado legitimado da indústria de cinema, agregam à sua marca de multiplex, múltiplas referências – a soma de todos os pontos de exibição. As conversões dos cinemas memoráveis em multiplex de rua, por exemplo, pincelam qualidade numa relação quantitativa que a rede estabelece com os espectadores.

3.7

Cinemas Híbridos ou Convertidos em Multiplex

O resultado é o ambíguo Cinema Híbrido ou Convertidos em Multiplex. Adaptação semelhante ocorreu àquela dos primórdios do século XX, em que os anfiteatros de sucesso europeus transformaram-se em cinemas, correspondendo às expectativas do público pela renovação da venue, pelo novo padrão de entretenimento. Os Palácios do Cinema e os Cinemas Modernos que se mantiveram bem localizados, tal como os

61

centrais Metro e Apsara, foram inteiramente modificados.

A roupagem antiga fica em geral limitada ao foyer, que dá acesso à rua. Mas o saguão e a bombonière do intervalo ganha o padrão do multiplex. Interessante é que nem sempre se consegue diminuir o espaço interno e aumentar o número de telas, como é o caso do Plaza em Delhi, que, apesar de ser um cinema convertido em multiplex, mantém-se um cinema de sala única! A tendência, porém, é otimizar o lucro do exibidor, que já não consegue lotar uma sala de 1501 lugares, como foi o caso de Umesh Mehra43, produtor, diretor e exibidor, proprietário que se desfez do Minerva.

A condição para que ocorra a conversão dos cinemas antigos em Multiplex: habitar a memória da cidade, promovendo a nostalgia e a viagem ao tempo do esplendor. Outro fator importante, que verifiquei nos discursos de pessoas oriundas de diversos segmentos da sociedade: o interesse por ver velhas histórias recontadas de modos diferentes.

Há uma atualização do interesse pela própria venue proporcionada pelo cinema antigo reformado. A pergunta “Como será que ficou?”, em relação ao cinema reinaugurado, é recorrente e resulta em muitas notas e artigos na imprensa.

O passado expira. As novas tendências são a garantia de um futuro de prestígio junto ao público que, acredito, se interessa pelas “atualizações”. Decidir pela não conversão

43

Umesh Mehra fora por mim entrevistado em 2006, participando do meu documantário “Corpo de Bollywood, o povo quer cinema” (2007).

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significa deixar de contemplar os anseios desse público curioso. Significa também, realocar-se junto ao público pretendido. Um cinema multiplex, seja ele em shopping, seja ele na rua, atrai jovens e famílias de classe mais abastada, com maior presença do público feminino desacompanhado. O cinema que não adere à onda dos Multiplexes, restringe seu público àquele oriundo das camadas populares de predominância masculina e jovem.

O próprio poder aquisitivo permite ao Multiplex cobrar entre 200 e 600 rúpias o ingresso, ao passo que as salas antigas permanecem cobrando entre 15 e 70 rúpias. O investimento transita por esse cálculo de custo-benefício. De um lado, a obra e o risco de se renovar um cinema antológico. De outro, a renovação do público, o aumento do valor dos ingressos e as múltiplas salas que permitem a exibição de mais de um filme numa mesma sessão. Se o resultado for um sucesso, como é o caso do cinema Metro em Mumbai, o espectador sente-se premiado, como se testemunhasse um fenômeno extraordinário da natureza.

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CAPÍTULO IV – A SOCIABILIDADE E O CINEMA: PARTICULARIDADES INDIANAS “A compreensão de um dialeto corporal comum é uma das razões de se chamar um conjunto de indivíduos uma sociedade”, Erving Goffman (1981, p. 269).

Sustento a promessa de, no desfecho deste trabalho, correlacionar as salas de cinema indianas e a linguagem do cinema popular de Bollywood. Após tantos elementos sobre o desenvolvimento do cinema e das salas de projeção cinematográficas, resta-me ainda o dever de aferir sobre a dinâmica de público das salas de cinema na Índia, pois ir ao cinema não é — mesmo no cinema de narrativa integrada — uma experiência individual de contato com o filme. E no caso indiano, vale ressaltar as diferenças culturais que moldam a situação cinema - conceito de Hugo Mauerhofer descrito no capítulo II -, de acordo com regras de comportamento e etiquetas particulares da ocasião social (cf. Goffman 1981), em questão.

Em “La Nouvelle Communication: Recherches Sur La Vie Publique”, Erving Goffman define ocasião social como sendo um encontro, um empreendimento ou um evento, de certa amplitude, limitado no tempo e no espaço. Uma recepção, uma jornada de trabalho no escritório, um piquenique ou uma noite de Ópera são alguns dos exemplos de ocasiões sociais de Goffman. Desde já, incluo à lista a venue de cinema.

Em toda ocasião social, quando os indivíduos se encontram na presença de outro indivíduo, inicia-se uma situação social, na qual o indivíduo se vê implicado nas regras

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e etiquetas próprias circunstância específica44.

“Estar implicado numa atividade de circunstância significa manter uma certa atenção intelectual e afetiva, uma certa mobilização de suas reservas psicológicas; numa só palavra, significa se engajar. [...] Para analisar as etiquetas próprias às situações sociais, será necessário se voltar à análise das regras sociais que determinam as concepções e repartições individuais do engajamento. [...] O engajamento que um indivíduo sustenta em meio a uma situação social dada é matéria de sentimento interior. A avaliação do engajamento repousa e deve repousar, em revanche, sobre uma forma de expressão exterior”. (Goffman, 1981, pp. 270-271)

45

As expressões exteriores de engajamento reúnem em si diversos fenômenos, tais como o vestuário, a postura, a expressão facial, a altura da voz etc. Goffman (1981) ressalta que um mesmo tipo de ocasião social pode, dependendo da cultura, exigir expressões de engajamento diferentes. O autor exemplifica: “numa produção teatral do Extremo-Oriente, é solicitado da parte do público atenção menos presa e menos tensa do que num teatro dos Estados Unidos”, e conclui:

“Quando se descobre uma diferença na conduta situacional entre duas culturas, ou entre duas épocas diferentes de uma mesma cultura, fica difícil determinar a parte dessa divergência que diz respeito à mudança no idioma das convenções que serve à expressão de um engajamento subjacente, e a parte que remonta à modificação do próprio engajamento.” (Goffman, 1981. p. 270)

44

Conceito Situation Properties está em GOFFMAN, Erving. Engagement em WINKIN, Yves (Ed.): La Nouvelle Communication: Recherches Sur La Vie Publique. Editions de Seils, France, 1981 p. 270. 45 Tradução minha do original em francês.

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Neste capítulo, tenho por intenção estudar as expressões de engajamento dos espectadores de cinema na Índia e, conseqüentemente, a situação social geral promovida pela ocasião social do cinema e estabelecida entre os indivíduos da sociedade em questão. Será que, para além da mudança do idioma das convenções, há alterações no engajamento do indiano ao ir ver um filme no cinema? Valho-me das minhas observações in loco e muito do texto “Active Viewing: An Etnography of the Indian Film Audience” de Lakshmi Srinivas (1998). Esse estudo pontua com exemplos brilhantes as avaliações sobre as situações sociais experimentadas entre os freqüentadores do cinema. “No cinema, espectadores [indianos] demonstram uma sociabilidade não vista entre espectadores de cinema Ocidental. Essa sociabilidade expressa-se no termo visionamento46 em “grupo” ou em “consórcio”47, onde membros da platéia percebem o filme por um filtro proveniente da interação com os outros. A troca de opiniões, a discussão sobre o filme e as estrelas, ou simplesmente as conversas sobre assuntos cotidianos no cinema compreendem o comportamento rotineiro de visionamento. Existe uma intensa noção de barulho e movimento, e um cochichar e murmurar contínuos. Um espectador que assistiu a filmes tanto na Índia, quanto nos Estados Unidos notou, ‘...com as platéias indianas você sente que pode falar mais, com as americanas é difícil falar, você sente que é rude’”. (Srinivas, 1998, p. 330)

48

Lígia Dabul em “Conversas em exposição: sentidos da arte no contato com ela”

46

Mais uma vez minha proposição de neologismo, que se justifica pela tentativa de tradução do substantivo inglês “viewing”. 47 Em inglês do original: “Clustered”. 48 Tradução minha do original em inglês: SRINIVAS, Lakshmi. Active Vieweing: An Etnhography of the Indian Film Audience. Em: Visual Anthropology, Volume 11. OPA (Overseas Publishers Association), Índia. 1998, p. 330.

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levanta a seguinte questão: “Talvez a conversa, como sociabilidade, forma de interação voltada para ela mesma, contribua para manter indefinido o sentido da arte e, assim, o ímpeto de os indivíduos se perguntarem a seu respeito”.49

Numa exposição de artes plásticas, assim como nas salas de cinema, a experiência artística em geral inclui muitas ações difundidas em outras ocasiões e momentos da vida social, tais como namorar, brincar e conversar. Dabul (2008) destaca as conversas como centrais para a construção de significados sobre as obras, definindo, na sua pesquisa, três tipos distintos de conversas: os “comentários”, sobre as obras e invariavelmente sobre a vida cotidiana, as “interpretações”, sobre as intenções do artista e a mensagem da obra, e as “avaliações”, positivas ou negativas, sobre as obras.

A situação social “cinema” geral, entre os vários espectadores de cinema, na Índia segue, como Goffma (1981) interpela, às regras sociais que determinam as obrigações de engajamento dos indivíduos. Comentar, interpretar e avaliar o filme e a própria venue estão entre elas. “Olha que lindas jóias usa a atriz”, ou “como o ator tem olhos expressivos”, ou ainda “Soube que Amitabh [Bachchan] inicialmente não aprovou o casamento dela [Ashwaria Ray] com o filho” foram comentários que testemunhei no cinema, principalmente no filme “Jodhaa Akbar” lançado em fevereiro de 2008.

O que pode e o que não pode ser dito certamente segue aos costumes indianos. Na

49

DABUL, Lígia. “Conversas em exposição: sentidos da arte no contato com ela” In “Artes e Horizontes” Revista de Pós Graduação em Artes Visuais EBA/UFRJ. Nº 16. Julho de 2008. p.63.

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Índia, onde as interações entre homem e mulher sofrem muitas limitações na esfera da vida social e pública, o cinema não testemunha beijos e carícias nem nos filmes, nem nas platéias. O que não significa que não se namore no cinema.

Principalmente nos centros urbanos, e, mais precisamente, nos cinemas Multiplex, entre a nova geração o namoro escondido ocorre. Vi muitos grupos de estudantes nos cinemas. Uma turma de meninas e meninos bastante entusiasmados que permitiam instantes de privacidade para o casal do grupo trocar, ao menos, olhares cúmplices e sorrisos. Sentar um ao lado do outro depende, todavia, da aprovação do grupo e do nível de desembaraço de todos os envolvidos. Isso serve de exemplo para compreender que muitas situações sociais contam, para sua definição, com as relações sociais previamente estabelecidas entre os membros do grupo. Entre esses jovens haverá, portanto, uma situação social específica que permite a aproximação em público de um casal, em despeito da situação social geral no cinema, de um modo geral, não aprovar esse tipo de enlace.

Nessa situação social geral, dificilmente vêem-se mulheres sentarem-se junto aos corredores. O trânsito nas salas de cinema é grande. A todo instante há alguém entrando ou saindo do cinema e seria um destempero deixar a mulher vulnerável a olhares e, por que não, a toques “acidentais” de passantes do gênero masculino.

As famílias extensivas costumam freqüentar o cinema bem mais do que casais. Aliás, dificilmente vêem-se casais desacompanhados de crianças, primos e cunhados. A dinâmica das famílias é bem interessante, porque os indianos costumam deixar soltas as crianças, que circulam com muita autonomia. Os pais, atentos, permitem aos filhos explorarem o espaço do cinema e se expressarem em todo o instante da sessão sem nenhum sinal de incômodo ou repreensão.

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Esses pais, quando acompanhados por parentes mais velhos, ficam aparentemente destituídos de vontades próprias. Cumprem com os desejos e as necessidades dos mais velhos sem titubear. A família agrupa homens de um lado e mulheres e crianças de outro. Na hora de sentar é comum ver o arranjo sogro, sogra, nora, crianças e marido, ou seja, homens na ponta e mulheres no meio. Sendo que muitas vezes marido e mulher não se sentam lado a lado.

As mulheres comumente dependem da companhia de suas famílias para irem ao cinema. Aliás, é muito comum os maridos levarem as esposas no início do casamento e aos poucos irem se acomodando a ponto de nunca mais as levarem. Tive alguns depoentes que disseram levar qualquer um ao cinema, menos a esposa. “Para quê? Para as pessoas ficarem olhando?”, disse-me um passante em Lucknow. De fato, o cinema traz exposição aos visitantes:

“Na Índia as salas de cinema tornaram-se importantes venues para o estabelecimento e criação da vida pública. O cinema é a arena onde uns e outros de diferentes caminhos na vida se encontram. Parte da experiência em se assistir ao filme é ver outras pessoas e ser visto. As salas de cinema refletem e reforçam a estratificação na sociedade mais ampla. [...] Ao escolher onde sentar, os espectadores simultaneamente localizam-se na sociedade. [...] O cinema segregado, ao mesmo tempo em que reforça certas divisões sociais, apresenta a oportunidade de ver outros diferentes de si” (Srinivas, 1998, pp. 330 e 334)50.

Nos cinemas de arranjo Platéia e Balcão, os preços variam segundo o piso. Platéia, no pavimento térreo, destina-se à “Gandhi Class”, à classe mais popular e, portanto,

50

Tradução minha do original em inglês.

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custa menos (normalmente 15 rúpias). Uma pequena fração do que se paga no Balcão, no pavimento superior, pelas classes médias (na faixa de 50 rúpias). Muito antes de entrar no cinema, ainda na fila do ingresso essa divisão de classes se estabelece: grande parte dos cinemas de arranjo Platéia e Balcão (anfiteatros convertidos, cinemas clássicos, palácios do cinema e cinemas modernos) oferecem guichês separados.

O próprio bilheteiro corrobora para que se mantenha a divisão entre o público pagante. Às vezes atribui, a partir de uma avaliação fisionômica, o assento ao espectador, corrigindo-o vez ou outra. Foi o caso quando insisti em comprar ingresso na Platéia, no Dress Circle do Minerva. Inconformado, o bilheteiro, que não falava inglês, chamou seu superior para ter certeza de que eu sabia o que estava fazendo. Para ele, uma moça, estrangeira e desacompanhada, não poderia sentar-se junto a um público notadamente de “poucos modos”, necessariamente mais popular e invariável e predominantemente masculino. Suponho que para ele eu estaria colocando em risco minha própria honra, já que a desonra ocorre desde um simples dirigir de palavras ou um assalto de olhares. De qualquer jeito, eu quebrei com a convenção pertinente à ocasião social em questão e sentei-me no pavimento térreo.

O sistema de castas na Índia forma a base da organização da sociedade. A divisão do trabalho, de um modo geral e elementar, defere uma casta. Assim como na Europa feudal o piloto alemão de Fórmula 1 Michael Schumacher seria um sapateiro, hoje, entre as pessoas da casta dos sacerdotes — expressa no sobrenome — encontramse aprendizes ao ofício do sacerdócio. Ao mesmo tempo em que esse traço — que nos remete ao feudalismo — ainda permanece válido no país, a Índia moderna, inserida no modelo governamental democrático e no capitalismo global, promove a ascensão de classe mesmo àqueles de castas mais baixas, dos ofícios “menos

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nobres”.

Os signos estampados no vestuário, na joalheria e nas marcas corporais, os códigos de conduta e o dialeto corporal próprio de cada casta se difundem num afluxo de culturas regionais que migram para os grandes centros urbanos e lá se homogeinizam. É bem possível que para um indiano seja tácito o reconhecimento dessas diferenças. Para mim, no entanto, essa importante variável não pôde ser computada nesta análise, devido provavelmente aos limites da minha observação direta, limites estes que são: insuficiente manejo das línguas locais, baixo controle dos códigos culturais e principalmente ao relativo curto espaço de tempo aplicado a este tema no trabalho de campo.

Os hábitos urbanos, como dito anteriormente, ofuscam as variações entre as castas, todavia reforçam as diferenças entre as classes. O cinema, importante ocasião social, exige do indivíduo um engajamento específico que contribui ainda mais para esse mascaramento. Todos vestem sua melhor roupa e dificilmente encontram-se homens vestidos com roupas tradicionais, valendo mais o signo do poder aquisitivo. Em Mumbai os homens, maioria em qualquer dos tipos de salas de cinema51, vestem calça e camisa social, conforme apreendido dos ingleses.

Em comparação com outras situações sociais indianas, tal como cortejos de

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Diria que, nos Multiplex, os homens ocupam entre 60% e 80% da sala. Já nos palácios de cinema e nos cinemas modernos, a presença dos homens é quase total! E olha que a distribuição da população por gênero, em 2001, era de 933 mulheres para cada mil homens!. Esses dados estão disponíveis no site www.infochageindia.org.

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casamento, ouso supor que há auto-exclusão por parte de muitos dos Shudras, casta mais baixa, e dos Dalits, os intocáveis. Como eles seguem no cortejo atrás dos demais integrantes de casta mais alta, imagino que no cinema eles acomodem-se distante das telas no pavimento térreo, atrás dos demais espectadores.

A escolha dos assentos na hora da compra do ingresso na bilheteria (isso ocorre em todas as modalidades de cinema per se), como visto há pouco, ajuda a localizar o indivíduo no espaço social. A diferenciação dos modos, da etiqueta e das expressões de engajamento de cada indivíduo, durante a venue, designa a situação social geral e compartilhada do cinema.

Lakshmi Srinivas aponta para o fato de que o espectador de classe média, que senta no Balcão, espera que aqueles sentados perto da tela, no Gandhi Class, sejam escandalosos e respondam abertamente ao filme com assovios, gritos e risadas. Já o freqüentador oriundo da classe média aponta “o melhor lugar da casa” como sendo as poltronas do fundo no Balcão, “para ninguém falar por detrás” (Srinivas, 1998, p. 234).

O Multiplex, ao contrário dos demais cinemas, oferece apenas um pavimento. Porém sua angulação permite haver uma distinção semelhante entre níveis superior e inferior. Os preços aqui também aumentam a cada degrau, podendo haver entre três e cinco tarifações distintas. Aqui os assentos mais próximos da tela são os mais baratos (em media 80 rúpias); as poltronas do meio ocupam uma faixa intermediária de preço (entre 100 e 300 rúpias); e os lugares mais caros situam-se ao fundo (entre 300 e 500

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rúpias), podendo ainda acomodar uma última fileira de poltronas distintas das demais (de couro e reclináveis, por exemplo) cobrando a maior, e mais concorrida, tarifa (acima de 500 rúpias).

Freqüentemente esse arranjo do Multiplex corresponde a nomenclaturas bastante sugestivas, tais como “Executive” e “Première” para as mais baratas; “Silver” e “Royal” para as intermediárias; e “Gold” para a mais cara52.

Os preços dos ingressos também variam em todos os tipos de salas: com a sessão, matinée é bem mais barata que soirée; com o filme, estréia ou lançamento custa mais caro; e com o dia da semana, sexta, sábado e domingo são mais visados e portanto, divertimento mais oneroso.

De um modo geral o comportamento nos Multiplex é mais próximo daquele que estamos acostumados, mais “respeitoso”. Por nele se concentrar mais um público abastado, que considera o espaço mais meritoso e próprio de “uma experiência nova e sem precedentes” (como muito difundido na mídia),

comparação com os demais

cinemas, ocorre muito menos interjeições. Ou as interjeições – ver o que Lígia Dabul tem a dizer sobre isso abaixo – são expressas mais “finamente”, num tom e num volume mais contidos, segundo uma etiqueta própria da classe abastada.

“Há uma disposição para [os visitantes] apresentarem sensações e pensamentos quando deparam com uma obra, que é potencializada

52

Conforme disposto no advance booking do sitio eletrônico da rede de multiplex “Fame Adlabs”

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quando estão acompanhados. Essa disposição pode ser concebida como do campo da interjeição, que L. Wittgenstein reconhece como próprio da arte. [...] Essas interjeições demonstram sentimentos ou sensações – tristeza, raiva, alegria, prazer, graça -,mas quase sempre, embutida também de uma avaliação da obra. Por meio delas, indivíduos comunicam extremos da apreciação – o entusiasmo e a aversão em relação à obra. Seria, portanto, modalidade de expressão de sentimentos que possui de forma concentrada avaliações positivas ou negativas dos objetos que observam” (Dabul, 2008, p. 60).

Todo espaço do cinema abriga um coletivo de espectadores anônimos. Conforme surgem as interjeições na sala escura, o espectador ora se vê alinhado, ora se vê desalinhado com o viés das interjeições manifestas. Muito regularmente, um susto solitário faz cair em risadas um grande número de espectadores. Como se o filme, ou cena, em questão pudesse ser reavaliado pelos espectadores a partir de uma interjeição individual.

Essa dinâmica aplicável em qualquer sessão de cinema, é mais latente, eu diria, na Índia. Percebo um engajamento singular do espectador indiano quando na situação social geral do cinema. Há, por exemplo, a expectativa entre o público de que interjeições e outros tipos de conversas sejam trocados durante a projeção do filme. Adaptando para o cinema o que Lígia Dabul aplica às situações sociais existentes nas exposições de artes plásticas, “os indivíduos interagem também por força da situação social que encontram e recriam ali, com outros [no caso espectadores], alguns desconhecidos, que compartilham aquela situação” (Dabul, op. cit. p. 56).

(www.famecinemas.com)

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O indiano é um freqüentador contumaz do cinema. Existe toda uma rede social que o pressiona para que veja tal filme no cinema. A cidade mesma é toda bombardeada de mensagens publicitárias e não há uma situação social da vida cotidiana que não mencione o cinema numa conversa. Ir ver o filme, porém, parece às vezes menos importante que ir vê-lo no cinema. Ir ao “first night, first show”, à sessão de estréia, significa adiantar-se, saber de primeira mão das informações que circularão no dia seguinte entre as pessoas com quem se mantém relações sociais, seja a família, os amigos, os vizinhos, os colegas de trabalho. O cinema passa a ser uma moeda simbólica, um bem imaterial, que confere prestígio e poder social.

Também é costumeira a pergunta “Onde você viu o filme?”. Medir o esforço pela jornada — o deslocamento para o cinema, o custo do ingresso e o prestígio da sala, elaborado no capítulo anterior— permite aos outros avaliarem o nível do investimento que um fez para se entreter e, conseqüentemente, mensurarem o grau da recompensa alcançada.

A situação social entre dois ou mais indivíduos que interagem para falar sobre o filme que acabou de ver cria uma expectativa específica e expressa durante as sessões. Em meio ao filme, o indivíduo, engajado, é capaz de soltar, depois de uma cena bacana ou uma canção bem traduzida para a tela, a avaliação positiva “Paisa Vassol” — que significa, aplicado ao cinema, “valeu o dinheiro do ingresso”. Esse é o código para os todos compreenderem o resultado prático do “valor” do entretenimento. E os grandes sucessos de bilheteria se dão muito pela mensagem “Paisa Vassol” correr o mundo no boca-a-boca. Os fracassos, como os filmes boicotados, talvez vejam a mensagem de aversão correr ainda mais rápido pela rede social.

Eu conheci e entrevistei todo o tipo de freqüentador. Nas matinées do Minerva, por

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exemplo, tinham jovem desempregado e senhores bêbados que entravam na sessão do meio-dia como quem entra num bar ou numa pensão. Dificilmente eles assistem ao filme inteiro. E essa foi a entrevista “fala povo” que mais rendeu respostas do tipo “vou ao cinema porque é silencioso e tem ar-condicionado” e “vou ao cinema para dormir”.

Mais tarde descobri que muitos dos prédios que viraram cortiços no centro de Mumbai abrigam num mesmo cômodo dezenas de pessoas, vindas de todo o canto do país em busca de melhor renda. O jeito de viver dessa gente nessas condições é executar um rodízio na habitação dos quartos. O cinema para quem precisa ficar fora de casa oferece uma situação social bastante diferente de quem escolhe ir ao cinema.

De um modo geral, indianos — homens — de todas as classes sociais manifestam um apreço por ficar fora de casa. Provavelmente longe das mulheres (mãe, tias, cunhadas e mulher) e das crianças, que, segundo minhas entrevistas, “fazem muito barulho”.

Barulho também faz em excesso à cidade. Buzinas, motores, burburinho e corvos entoam a sonoridade padrão de uma cidade grande na Índia. Soma-se a isso um calor de 40 graus e muita — muita — poeira para entender o apreço pelo ar-condicionado e pelo silêncio. Na Índia toda, 700 milhões de pessoas não têm acesso a latrinas, e Mumbai aparenta centralizar alguns desses milhões53. Nessas circunstâncias, ter acesso às salas de cinema por 15 rúpias é uma vantagem para quem não ganha o suficiente para subir na qualidade de vida, nas condições de habitação. Afinal os cinemas são espaçosos, têm poltronas confortáveis, lanchonetes e banheiros. Enfim,

53

The Times of Índia, 10 de Novembro de 2006.

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têm tudo que uma casa pobre não tem.

Para além da sala de cinema vale ressaltar que o foyeur desempenha uma função especial nos cinemas da Índia. Os filmes indianos têm 3 horas de duração, divididas ao meio por um intervalo de 15 minutos. Esse foyeur tanto na espera pelo início da sessão quanto nesse intervalo acomoda as pessoas em torno da lanchonete e da porta. Pude notar que as pessoas posicionam-se num grande semi-círculo, vendo-se umas as outras. Falar com desconhecidos, atividade praticada em sua maioria por homens, é muito comum no intervalo da sessão, como segue Srinivas (1998):

“A presença de um intervalo encoraja a sociabilidade entre os espectadores já que podem trocar opiniões sobre o filme enquanto tomam um café ou encontrar amigos no saguão do cinema. Para os imigrantes do norte da Índia na America do Norte assistir a um filme em Hindi significa encontrar algum amigo seja por coincidência ou por efeito de compromisso, e fazer novos amigos. Espectadores podem ser vistos trocando números de telefone e cartões de visita no cinema e arranjando futuros encontros em eventos próximos da comunidade, tal como as celebrações de Diwali ou do aniversário de Guru Nanak” (Srinivas, op. cit. p. 330. Tradução minha do inglês).

Seria preciso mais elementos para aferir por que os indivíduos da sociedade indiana comportam-se dessa maneira dentro das salas de cinemat. Nas festas populares, quase sempre de cunho religioso, e nas apresentações folclóricas, quase sempre mitológicas, as pessoas costumam ter o mesmo tipo de interação, de comportamento e de distribuição no espaço. Num espetáculo da Kala Goda Art Fair, em Mumbai, os artistas caracterizados como a deusa Radha e o deus Krishna posicionavam-se como nas pinturas clássicas, numa ilustração sintética de um tema, e as pessoas mais próximas ao palco gritavam “Jai! Jai!”, “Viva! Viva!” para os deuses ali representados — estariam eles no Dress Circle? Seriam eles da Gandhi Class?

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Enquanto isso — no Balcony? — outros, reunidos em grupos e posicionados mais ao fundo, comentavam sobre o espetáculo, o clima, as pessoas, a fome, os compromissos, as fofocas. Erving Goffman estava mesmo certo, no Extremo-Oriente ir ao teatro é diferente. Não é o que nos parece — falta de respeito à obra, ao “autor” ou ao “artista” — a falta de uma atenção concentrada ou de um silêncio contemplativo, muito pelo contrário. O engajamento de um espectador das artes em geral, na Índia, em contato com a obra, mostra apreço com esse tipo de descontração e interação, para nós bastante “barulhenta”. Concluo que as expressões de engajamento são mesmo outras, não somente o idioma convencional que serve à expressão de engajamento (Goffman, 1981, p. 272). E não tenho dúvida de que tenham relação com as regras sociais e da cultura específicas da Índia.

Lamento não saber a língua local para ouvir o que a grande maioria conversava. O inglês era costumeiro nos diálogos de uma ínfima parcela dos espectadores. Mesmo assim,

havia

certos

comentários

que

se

estabeleciam

na

língua

regional,

entrecortando a comunicação na língua inglesa. Minha saída era interpretar as interjeições e interações da platéia pelo que cada um empregava de gestual e de entonação. Aos poucos, com o passar dos meses, fui compreendendo o significado imbuído naquelas expressões de engajamento e tirando proveito da situação social cinema, correspondendo às expectativas de todos.

Tomei gosto por responder à tela e aos impulsos de interação com os amigos e desconhecidos que ali, na sala de cinema, compartilhavam comigo a mesma experiência, a mesma ocasião social, limitada no tempo e no espaço. Também ficava desejosa do intervalo, imaginando o que eu ia pedir para comer e a fila que eu ia encontrar na lanchonete. Ansiosa pelos comentários sobre o que havia visto e o que estaria por vir. Partilhava dos bocejos, risos e suspiros. Saí dalí mais feliz e satisfeita

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do que quando havia entrado. Olhava todas aquelas pessoas e elas todas me olhavam e se entreolhavam. Uma sensação de pertencimento a um corpo de espectadores “habitués”, como Srinivas (1998) descreve em seu texto. E ser um habitué de cinema na Índia é pertencer a uma enorme comunidade e poder explorar os desdobramentos daquela experiência noutras esferas da vida cotidiana. Sem o ingresso, seja ele de 15 ou de 500 rúpias, seria impossível viver essa inserção social. Por isso, para mim, uma estrangeira tentando mesclar-se ao povo local, todo filme nos cinemas na Índia garantiam-me meu “Paisa Vasool”. Permitiam-me compartilhar códigos próprios da cultura indiana, relativos às estrelas de cinema, aos novos filmes, aos “All Time Blockbusters” e — veja que interessante — à memória e ao imaginário indiano de esplendor das salas antigas.

O filme é motivo de celebração e o cinema, como tantos entrevistados afirmaram, essencial à vida cotidiana e às relações sociais. A semelhança entre o comportamento nos cinemas e nas festividades religiosas, bem como noutras ocasiões sociais da cultura indiana, sugerem-me um papel distinto das salas de cinema e um desenvolvimento e uso singulares da linguagem e do meio cinematográfico. Esse será, finalmente, o tema do próximo capítulo, conclusivo, desta dissertação.

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CAPÍTULO V – DESFECHO: A RELAÇÃO DAS SALAS DE CINEMA E A LINGUAGEM DE BOLLYWOOD

“Parte da bagagem intelectual com a qual um homem ordena sua experiência visual é variável, e grande parte desta bagagem variável é culturalmente relativa, no sentido de que é determinada pela sociedade que influenciou a experiência de vida deste homem”. (Michael Baxandal, apud Geertz, 1972, p.156)

Enquanto passávamos dos Nickelodeons aos cinemas per se, enterrando o cinema de atrações e o comportamento típico dessa ocasião social — muitas interjeições, conversas, risos e entra-e-sai nos salões, circos e cafés —, a Índia foi erguendo salas e mantendo uma forma de visionamento participativo e uma linguagem singular.

Poder-se-ia chamar o cinema popular indiano como cinema de atrações em razão dos efeitos provocados na platéia. Entretanto, nos cinemas per se indianos não há a figura do exibidor showman de outrora. Os filmes, ao contrário, como no cinema de narrativa integrada, contam, afinal, uma história. Já não trazem apenas curiosidades.

Ou seja, junto à adoção de muitos recursos de linguagem consolidados pelo cinema de narrativa integrada — a aproximação da câmera ao objeto; a movimentação da câmera; as regras de eixo e continuidade; a decupagem complexa, constituída por planos abertos e fechados e contra-planos, e por elipses temporais e espaciais; o concatenamento lógico dos planos e das seqüências, segundo relação de causalidade; a consolidação das montagens alternada e paralela; o raccord, entre outros — o cinema popular indiano preserva os efeitos e recursos de linguagem que atribuímos ao cinema de atrações.

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Portanto, as categorias com que trabalha Tom Gunning (1991) na classificação do cinema americano – cinema de atrações e cinema de narrativa integrada – parecem insuficientes para pensar o objeto desta dissertação. Em ambos os âmbitos da linguagem e da experiência artística, evidencia-se uma singularidade no cinema indiano que atribuo à sua qualidade “extra-filme” e que influencia tanto a narrativa, quanto o visionamento participativo do público.

A meu ver, “extra-filme“ é o índex cognitivo formado pelos elementos culturais existentes nas regras sociais, na moral, nos costumes, nas narrativas tradicionais e dispostos no tableau, idéia elaborada por Ravi Vasudevan e desenvolvida na introdução - que permite ao espectador acompanhar o filme sem surpresas e, portanto, interferir no processo de significação da narrativa munido de sua própria bagagem intelectual.

Para esse público, a experiência visual ordena-se, como nos filmes indianos, por um dilema moral centralizante. Segundo Rosie Thomas (1995), esse dilema protagoniza o interesse efetivo do espectador indiano, e se lhe apresenta repetidas vezes na história, de um modo bem claro e evidente. O como a trama — conhecida por todos — se desenvolve no tempo de um filme, traz o enigma que seduz o indiano e convida-o a manifestar durante as sessões, e para além delas, suas previsões, seus acertos e erros quanto aos acontecimentos narrados no filme.

Nesse sentido, os espectadores não se envolvem com o todo, com uma seqüência narrativa completa. Graças às práticas empregadas dentro do cinema, de adivinhação e reconstrução dos acontecimentos narrados, o público forja um todo composto por fragmentos fílmicos que mais o interessam. Ou seja, adequam o filme ao seu gosto. Isso torna-se possível pelo o que Srinivas (1998) chama de visionamento seletivo.

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“Os habitués praticam o que pode ser identificado como visionamento seletivo. Ao invés de assistirem ao filme inteiro, os espectadores selecionam as cenas que desejam ver. Como o público (de teatro) de Paris dos séculos XVI e XVII, que ‘ficava de pé e perambulava durante o espetáculo, do mesmo modo que fazia do lado de fora’, os espectadores entram e saem livremente dos cinemas durante o filme. Isso lhes possibilita evitar cenas que não lhes interessam, e embarcar no processo de selecionar fragmentos que, pouco a pouco, constrói um todo como numa colagem. [...] Habitués podem às vezes enxergar à frente [do cineasta] até um ponto em que se encontram fora do quadro cinematográfico.” (Srinivas, 1998, p. 329).

Srinivas (1998) examina a influência do visionamento seletivo sobre a linguagem do cinema popular indiano e discrimina “[Os filmes] Deixam-se levar pelo visionamento seletivo de tal maneira, que se constroem como um show de variedades ou Zarzuela” Os fragmentos, componentes desse show, estabelecem-se como característica principal desse cinema.

Cenas desconexas, saltos espaciais e temporais quebram com a continuidade narrativa sem, contudo, descaracterizar a trama, centralizada num único dilema moral. A linguagem do cinema popular indiano funda-se na colagem e, principalmente, na capacidade do indiano de relacionar os fragmentos, gerando significado.

O indiano, através da experiência total de vida, tem habilidades apropriadas (cf. Geertz, 1999, p 156). que lhe proporcionam a decodificação dos elementos pictóricos empregados nos filmes e nas artes em geral. Estes são os habitués de Srinivas (1998). Esta é a capacidade desprezada na análise do cinema indiano pela critica ocidentalizada.

As salas de projeção desses filmes, em correspondência, resultam num ambiente de sociabilidade participativa, de grande interação social. O engajamento do indivíduo na

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situação social geral de um cinema Zarzuela só pode seguir o comportamento discutido no capítulo IV, de uma grande celebração social. Como se fosse necessária a comunicação entre os espectadores para que se criasse um significado do filme, semelhante ao que ocorria nos primórdios, quando os rolos desconexos se exibiam nos circos, salões de variedades e cafés.

Os espectadores indianos entram nos cinemas dispostos a criar coletivamente significado para as imagens ali projetadas. Aliás, predispõem-se à ocasião social cientes do engajamento, participativo, que lhes será exigido. As interpretações, avaliações e comentários — tipos de conversa observados por Lígia Dabul (1998) nas exposições de artes plásticas — e as interjeições compõem o quadro da sociabilidade dessa venue.

Destacar os filmes indianos de seu local de produção e usufruto, e analisá-los segundo os padrões críticos que nos instrumentalizam, resulta na sua completa descaracterização. Qualquer discussão estética, formal e de significado desse cinema escapará ao rigor necessário ao seu verdadeiro entendimento.

Para Clifford Geertz, em “O Saber Local (1999)”, a discussão sobre arte deve ser levada à esfera da vida social e não das relações formais. “O que é mais interessante, porém, e, a meu ver, mais importante é que só no Ocidente e talvez só na Idade Moderna, surgiram pessoas (ainda uma minoria que, suspeitamos, está destinada a permanecer como minoria) capazes de chegar à conclusão de que falar sobre arte unicamente em termos técnicos, por mais elaborada que seja esta discussão, é o suficiente para entendê-la; e que o segredo total do poder estético localiza-se nas relações formais entre sons, imagens, volumes, temas ou gestos. Em qualquer parte do mundo, e mesmo, como mencionei anteriormente, para uma maioria entre nós, outros tipos de discurso cujos termos e conceitos derivam de interesses

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culturais que a arte pode servir, refletir, desafiar, ou descrever, mas não, por si só, criar, se congregam ao redor da arte para conectar suas energias específicas à dinâmica geral da experiência humana” (Geertz, op. cit. p.145).

Para além das discussões “intra-estéticas”, a arte deve ser incorporada na “textura de um padrão de vida específico”. Geertz (1999) considera essa incorporação — essa atribuição aos objetos de arte um significado cultural — um processo local do qual os participantes, os atores sociais envolvidos na produção e no usufruto da arte, não expressam interesse na questão “é arte, não é arte”.

Os indianos, por exemplo quando questionados por Srinivas (1998), relacionam o cinema a “mero entretenimento” ou a “passatempo”. Isso pode ser um modo de se distanciarem daquilo que é entendido por entretenimento de “baixa cultura” (cf. Srinivas, 1998, p. 328).

Entretanto, Ranjana, uma das minhas entrevistadas em Nurapur (um pequeno vilarejo rural distante 60 quilômetros de um cinema), faz a seguinte reflexão: “Às vezes, pensamos que o mundo do cinema se reflete no nosso mundo. Muita gente pensa isso, que o mundo espelha o cinema. Não. O que acontece aqui, nesse mundo, é o retratado no cinema. Por isso a gente entende”. Para Ranjana, como para a maioria dos indianos, o cinema é um sistema de comunicação que mobiliza os sentidos. Não lhe escapa, portanto, o conceito de arte à Geertz (1999). O cinema, bem como todas as formas pictóricas de expressão de sentimentos, tem a capacidade de fazer sentido, porque é, segundo Geertz (1999), um produto da experiência coletiva que vai bem mais além dessa própria experiência. A sensibilização do espectador se dá porque ele participa do sistema geral de formas simbólicas, que chamamos de cultura.

O fato de o cinema na Índia ser objeto de conversas e residir noutras esferas da vida 84

social, tal como a valorização do indivíduo que assistiu a um tal filme em determinado cinema antes de todos os outros membros de sua rede de relações sociais, explicita o grau em que essa arte fora incorporada à textura do padrão de vida do indiano.

Ainda para Geertz (1999), a arte se dá na interação, no contato da obra com o público. A experiência artística é, portanto, situacional e surge graças ao uso: “Se quisermos elaborar uma semiótica da arte [...] teremos que nos dedicar a uma espécie de história natural de indicadores e de símbolos, uma etnografia dos veículos que transmitem significado, desempenham um papel na vida de uma sociedade, ou em algum setor da sociedade, e é isso que lhes permite existir. Neste caso significado também é uso, ou, para ser mais preciso, surge graças ao uso”. (Geertz, op. cit. p. 179. Tradução minha do original em inglês)

A arena do uso dos filmes, do contato do espectador com a obra cinematográfica, representa-se na sala de cinema, em qualquer das suas modalidades, desde uma televisão armada no pátio para os membros de um vilarejo (caso de Nurapur), quanto em uma das salas Multiplex de um shopping center em Mumbai. Na Índia, como já foi dito, a sala do cinema proporciona uma experiência artística singular e coletiva determinante para a configuração da linguagem cinematográfica local.

Em todo o mundo, assim como na Índia, surge hoje a tendência de salas mais e mais luxuosas. Os Multiplexes, com seus ingressos cada vez mais caros, traz como resultado a segmentação do público. Resta-nos aguardar para ver as transformações do uso e da linguagem do cinema na Índia em decorrência dessas salas, que podem engendrar um outro tipo de visionamento. Ou ver, mais uma vez, a indianidade se apropriando de uma modalidade estrangeira de exibição dando continuidade à forma local de cinema.

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Citado

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CURRÍCULO

VALADARES, Raquel

Ingressou no curso de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense em 2002, na habilitação Jornalismo. Participou de um ano de intercâmbio do Rotary Club na Bélgica, regressando às aulas em 2003. Com apenas dois semestres solicitou alteração de habilitação para Cinema. Em 2005 foi monitora da disciplina ministrada pelo Pro. Roberto Moura, “História do Cinema Brasileiro” e realizou o curta-metragem “Praiano”. Em 2006, cursou “Hindi Film – Melodrama and Melancholy” na University of Chicago entre os meses de abril e junho, e seguiu para Mumbai, onde por seis meses registrou

as

imagens

e

prosseguiu

com

a

pesquisa

que

resultaram

em,

respectivamente, seu primeiro filme, o documentário “Corpo de Bollywood, o povo quer cinema” (Mini-DV, 28’, 2007) e esta dissertação de conclusão de curso. Em 2007, participou como continuísta dos curtas-metragens “A Trupe” (de Guilherme Pinheiro/ FAAP) e “Esconde-Esconde” (de Álvaro Furloni/ Segunda-Feira Filmes). Em maio de 2008 foi contratada como assistente de direção da novela “Caminho das Índias”, de Glória Perez, com estréia prevista para janeiro de 2009.

Entre outras atividades e estágios, destacam-se duas participações: •

“Sérgio Ricardo, de volta ao ponto de partida” em “Afaste este Cálice: encontro de memórias e histórias sobre o regime militar”. PROAC/ Universidade Federal Fluminense, 2006.



“João e a Bossa, primeiros estudos”. Publicação eletrônica, 2007. Site: http://arquivoculturamauff.blogspot.com

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ANOTAÇÕES LIVRES

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