BORDA, PENETRANTES E NEGRO ESCURO

May 30, 2017 | Autor: Luana Aguiar | Categoria: Erotismo, Artes visuales
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS ESCOLA DE BELAS ARTES

LUANA DE OLIVEIRA AGUIAR

BORDA, PENETRANTES E NEGRO ESCURO

RIO DE JANEIRO 2015

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LUANA DE OLIVEIRA AGUIAR

BORDA, PENETRANTES E NEGRO ESCURO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito à obtenção do título de Mestre em Artes Visuais.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Felipe Scovino

RIO DE JANEIRO 2015

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LUANA DE OLIVEIRA AGUIAR

BORDA, PENETRANTES E NEGRO ESCURO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito à obtenção do título de Mestre em Artes Visuais.

Aprovada em: 27 de maio de 2015

Felipe Scovino Gomes Lima Doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.

Cezar Tadeu Bartholomeu Doutor em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.

Viviane Furtado Matesco Doutora em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.

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A Marluce Rojas

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AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, a toda atenção e paciência do meu orientador Felipe Scovino. Agradeço aos demais docentes do PPGAV, com os quais tive a oportunidade de amadurecer intelectualmente nesse percurso. Sou grata também ao apoio dos técnicos administrativos do Programa, cujo trabalho é tão fundamental para o bom andamento da vida acadêmica. Agradeço à minha mãe por todo o esforço de me trazer ao mundo e de me apoiar ao longo da vida. Agradeço à tia Gorett pela paciência num momento tão crucial. Agradeço à vó Rosária pelos abraços apertados e à tia Maria pela passagem na Terra. Agradeço, enfim, a todos os meus familiares – os de perto, os de longe e os de muito longe – por serem exatamente quem são. Agradeço a Marluce Rojas, a quem dedico esta dissertação, porque acreditou em mim até mesmo quando eu não acreditava. Agradeço a Felipe Feldman por me ajudar a cuidar da mente e a Liliam Sá pelo acompanhamento tão próximo. Agradeço a Monica, linda representante de todos os meus Novos Amigos, uma lista tão grande que não caberia aqui e sem os quais esse trabalho não seria possível porque talvez a vida não o fosse. Agradeço especialmente a Rodolfo, Mauro, Renata, Alexsander, José Augusto, Angelo, Lucia, Moises, Marco, Henrique e Zeca. E aos velhos e grandes amigos, porque mesmo de longe são tão fundamentais: Adriano Facuri, Alessandro Costa, Beatriz Fontes, Carol Tinoco, Elissa Fonseca, Fabiano Araruna, Fran Junqueira, Janaína Santos, Luana Focetola, Raoni Moreno, Tamara Lombardi e Valquíria Cordeiro, também lhes sou muitíssimo grata. Por fim, agradeço à energia que me move, mais conhecida como Deus, em todas as suas versões.

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RESUMO

Borda, Penetrantes e Negro escuro, são os vetores escolhidos para revelar, nesta pesquisa, a presença dos furos do corpo nas artes visuais hoje. Esta pesquisa mostra que, pelos furos do corpo, é possível estabelecer conexões com outros seres entendidas, aqui, como tentativas de continuidade, de modo que o erotismo, à luz de Georges Bataille, bem como a psicanálise são as bases teóricas deste texto. A partir de Marcel Duchamp, algumas obras realizadas com o próprio corpo do artista foram escolhidas para integrar esta investigação acerca da presença do furo na arte. A palavra furo foi selecionada tendo como base a prática artística da própria autora desta Dissertação. Palavras-chave: Furo. Corpo. Erotismo.

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ABSTRACT

Borda, Penetrantes and Negro escuro (Border, Penetrating and Pitch black) are the vectors chosen to reveal, in this research, the presence of the body holes in today’s visual arts. The research shows that through the body’s holes it’s possible to establish connections with other creatures, understood in here as continuing attempts, so the Georges Bataille’s erotism together with psychoanalysis are the theoretical basis of this text. From Marcel Duchamp’s art work, some pieces made with the artist’s own body were chosen to integrate this research about the presence of holes in art. The author of this text selected the word hole based on her own artistic practice. Keywords: Hole. Body. Eroticism.

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LISTA DE FIGURAS

Fig. 1 – Marcel Duchamp – Étant donnés: 1. La chute d'eau, 2. Le gaz d'éclairage (Sendo dados: 1. A cascata; 2. O gás de iluminação.), 1946-1966 Fig. 2 – Marcel Duchamp – Nu descendo a escada, 1912 Fig. 3 – Marcel Duchamp – L.H.O.O.Q., 1919 Fig. 4 – Marcel Duchamp – Rrose Sélavy, 1921. Fotografia de Man Ray Fig. 5 – Marcel Duchamp – A noiva despida pelos seus celibatários, mesmo (Grande Vidro), 1915-1923 Fig. 6 – Gustave Courbet – A Origem do Mundo, 1866 Fig. 7 – Gustave Courbet – Mulher com papagaio, 1866 Fig. 8 – Bruce Nauman – Self-Portrait as a Fountain, 1966 Fig. 9 – Márcia X – Ação de Graças, 2001 Fig. 10 – Márcia X – Ação de Graças, 2001 Fig. 11 – Márcia X – Ação de Graças, 2001 Fig. 12 – Márcia X – Desenhando com terços, 2000-2003 Fig. 13 – Ação de Pedro Costa no 13o. Salão de Artes Visuais da cidade de Natal, 2010 Fig. 14 – Robert Mapplethorpe – Autorretrato, 1978 Fig. 15 – Márcia X – Pancake, 2001 Fig. 16 – Luana Aguiar – O gozo silencioso, 2010 – Rio de Janeiro Fig. 17 – Luana Aguiar – O gozo silencioso, 2010 – Belo Horizonte Fig. 18 – Luana Aguiar – Homenagem ao olho, 2010

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Fig. 19 – Luana Aguiar – Bem me quer, mal me quer, 2010 Fig. 20 – Anna Maria Maiolino – Entrevidas da série Fotopoemação, 1981 Fig. 21 – Anna Maria Maiolino – X, II da série Fotopoemação, 1974 Fig. 22 – Cena de O cão andaluz, 1929 de Luis Buñuel Fig. 23 – Cena de Anticristo, 2010 de Lars Von Trier Fig. 24 – Cena de Anticristo, 2010 de Lars Von Trier Fig. 25 – Cena de Anticristo, 2010 de Lars Von Trier Fig. 26 – Luana Aguiar – Bailarina, 2014 Fig. 27 – Luana Aguiar – Bailarina, 2014 Fig. 28 – Luana Aguiar – Bailarina, 2014 – olhares do público Fig. 29 – Luana Aguiar – Bailarina, 2014 – olhares do público Fig. 30 – Luana Aguiar – Bailarina, 2014 – olhares do público Fig. 31 – Luana Aguiar – Bailarina, 2014 – olhares do público Fig. 32 – Luana Aguiar – Bailarina, 2014 – olhares do público

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 11 2. BORDA.................................................................................................................. 17 2.1 A NOIVA VIRGEM E NUA. ................................................................................. 28 3. PENETRANTES. ................................................................................................... 42 4. NEGRO ESCURO. ................................................................................................ 67 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS. ................................................................................. 91 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 96 ANEXO I - FIGURAS ................................................................................................. 99

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1.

INTRODUÇÃO

Furo: palavra chave que permeia este texto, escolhida a partir de minha produção artística na qual o corpo é o protagonista. Palavra que concentra um interesse muito particular pelas zonas erógenas e orificiais desse corpo e pela energia desejosa que, segundo a psicanálise, perpassa essas zonas. Foi em pintura o início da minha trajetória. Percebi, porém, que a ação de pintar, a tensão que tomava meu corpo durante o ato pictórico era de uma força muito mais misteriosa e inexplicável que a própria imagem produzida na tela. Meu interesse voltou-se então para esta tensão e, portanto, para meu próprio corpo vivo. Recordo do meu primeiro trabalho no que poderíamos chamar de performance: foi durante a aula da disciplina Pintura e Intermeios com o professor João Magalhães na Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ. Apresentei um trabalho chamado Hiperventilação. Sentada de frente para uma mesa, basicamente eu assoprava um monte de tinta branca sobre um suporte de compensado pintado de branco e produzia uma pintura assim, com meu próprio ar e toda branca. Deste modo, eu me hiperventilava, gerava uma situação em meu próprio corpo apenas com a respiração, uma “onda”, sensação estranha de relaxamento que quase me levava ao desmaio, ou a uma quase morte. A ação foi registrada em vídeo. Assim dei início às ações ao vivo (em espaços públicos ou privados), com o intuito de provocar o outro, ao gerar desconforto em mim mesma: retirar toda a sobrancelha direita com uma pinça diante do público em uma galeria de arte (Bem me quer, Mal me quer, 2010); dançar na chuva no Largo do Machado, RJ de olhos vendados e guiada pelo som de um mp3 player em alto volume conectado a fones de ouvido (Buraco Negro, 2010); provocar o público com uma placa dizendo “se me atirares um ovo, gozarei em silêncio” e levar cerca de dezenove dúzias de “ovadas” em quatro horas de trabalho na Praça Tiradentes, RJ (O gozo silencioso, 2010) são exemplos de ações realizadas onde coloco o corpo à prova, como se perguntasse a mim mesma: estou viva?

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E é o olhar do outro que me responde. Por isso em tais trabalhos trago à tona a ideia de limites: entre meu corpo e o corpo do outro, entre minha mente e a mente do outro. “Enquanto é animal erótico, o homem é para si um problema. O erotismo é em nós a parte problemática. Entre todos os problemas, o erotismo é o mais misterioso, o mais geral, o mais a distância",1 Bataille comenta. Muito caro a esta pesquisa, Bataille trata o erotismo como uma tentativa de superar o abismo existente entre os seres e formata a ideia de que “somos seres descontínuos, indivíduos que isoladamente morrem numa aventura ininteligível, mas que têm a nostalgia da continuidade perdida”.2 Sendo difícil suportar nossa própria individualidade, essa nostalgia da qual fala Bataille é o que determina o erotismo no homem: uma busca por sentir-se parte de algo a fim de equilibrar o peso de sermos seres individuais, descontínuos. Por mais que tais limites entre-corpos sejam visivelmente demarcados pela pele, ainda que um abismo separe os seres humanos entre si, existe um tipo de energia que o trabalho de arte feito com o corpo do próprio artista emana. Tal energia vai dele ao espectador, mas também do espectador até ele. Não se trata de uma energia física, explicável pela ciência, mas de algo que autores como Freud e Bataille relatam em seus textos. O objeto de estudo desta Dissertação, portanto, são as bases físicas, estimuladas em arte, por onde perpassa essa energia: os furos do corpo. Dessa forma, o erotismo à luz de Bataille é o primeiro fio condutor deste texto, sobretudo a ideia de tentativa de continuidade, ou seja, a tentativa de superação do abismo em que nos encontramos em relação a outro ser humano. Este trabalho mostra que tentativas de continuidade também se manifestam na arte, sobretudo naquela que traz um corpo oferecido ao olhar e que tais tentativas envolvem os furos do corpo: a boca, o ouvido, as zonas erógenas, além da própria órbita ocular.

1

BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. de António Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 252 2

Ibid, p.14

13

O presente estudo se configura, assim, como um recorte de trabalhos de artistas que, assim como eu, usam seu próprio corpo, enquanto ação ou enquanto imagem, para fins eróticos, em arte. Ou seja, obras que tratam de um corpo vivo e reprodutor, da violação deste corpo, de religiosidade e de nossa ancestralidade animal, enfim, de erotismo enquanto “aprovação da vida até na própria morte”, 3 nas palavras de Bataille. Um outro fio condutor deste texto é a teoria psicanalítica. Sabe-se que Freud, em seus escritos, utilizou-se da criação literária como modelo da atividade psíquica. Ele investigou o funcionamento da mente a partir do ato criador. Tania Rivera mostra, assim, que, para a psicanálise, muito mais importa a noção de interpenetração do que de interpretação de obras artísticas. Psicanálise e arte podem se interpenetrar quando ambas tratam, apesar da inegável presença do discurso, da prática: seja a atividade clínica para o analista, seja a relação com o público para o artista. É sempre uma prática que envolve troca e não hierarquia entre um e outro (não hierarquia que em arte também é uma lição duchampiana). Freud e Lacan mostram que a prática artística, o ato criador, pode elucidar a teoria psicanalítica da mesma forma que esta pode elucidar o ato criador. A investigação psicanalítica sobre a sexualidade também me parece propícia para lançar luz aos furos que proponho investigar. Nasio, em Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan, discorre sobre uma certa representação psíquica que a mente humana possui sobre o furo, ou seja, uma representação inscrita em nosso inconsciente. Segundo ele, as imagens de uma saliência, como, por exemplo, do seio, do clitóris ou do pênis se formam com mais nitidez na superfície da consciência humana do que a imagem da abertura vaginal, o que seria, para ele, o paradigma do furo.4 E assim, Nasio coloca:

3

4

BATAILLE, 1987. p.10

NASIO, Juan-David. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p. 97

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Nunca sabemos muito bem o que é um furo, enquanto somos imediatamente sensíveis à percepção de um apêndice. Que propriedade tem o furo, portanto, para provocar o recalcamento dessa maneira, e que propriedade tem uma saliência para atrair assim o investimento? Certamente não tenho uma resposta a essa pergunta. Contudo, ela é importante, porque levantar o problema da natureza intrínseca do furo significa levantar o problema da natureza intrínseca 5 dos orifícios do corpo, ou seja, das aberturas erógenas do corpo.

Em contrapartida ao furo, Nasio explica que na psicanálise lacaniana, a palavra falo não designa o órgão genital masculino, “tem por função significar tudo o que depende, de perto ou de longe, da dimensão sexual”. 6 Esta referência ao sexo masculino se dá por conta da “primazia que a psicanálise confere à experiência da castração no desenvolvimento da sexualidade humana, da qual o falo é pivô”.7 A experiência da castração que, como recompensa, torna possível o acesso à ordem simbólica. Para falar dos furos do corpo em arte como sendo as bases por onde trocas energéticas são realizadas, esta Dissertação está dividida em três capítulos: Borda, Penetrantes e Negro escuro. Borda é o que dá limite a um furo e, portanto, aquilo que o materializa, que o apresenta. No capítulo Borda pretendo trazer os conceitos mais básicos a serem abordados nesta pesquisa: o sentimento religioso segundo Freud em relação à ideia de continuidade em Bataille bem como o sujeito do inconsciente para a psicanálise, seu descentramento e a repercussão dessas ideias nas vanguardas modernas. A Noiva, virgem e nua é subseção de Borda, onde vou tratar especificamente de Marcel Duchamp. Ao investigar a origem do desejo que se manifesta em mim, pelo meu corpo, como artista, cheguei até ele. Não posso falar de erotismo em arte sem falar do projeto artístico duchampiano, que construiu, inclusive, um grande furo: Étand donnés. Apesar de não ser um trabalho com seu próprio corpo, Étand donnés é de grande importância nesta pesquisa porque são vários os furos que apresenta. Duchamp mostra nesta 5

NASIO, 1993. p. 98

6

Ibid. p. 31

7

Idem.

15

sua última obra que estava atento a tal energia que perpassa nossos furos. Não se pode apresentar esta energia, mas se podem apresentar os furos do corpo que lhe servem de base. É o que faz Duchamp em Étand donnés e é esta a minha Borda. Penetrantes trata do estímulo aos furos, às vezes de forma violenta, deflagradora. A herança anti-artística de Duchamp, bem como o artista que trabalha com seu próprio corpo se fazem presentes nas obras abordadas neste capítulo que é inaugurado por uma das experiências musicais de John Cage: Waterwalk e os sons que estimulam os furos do ouvido. Mas o estímulo aos furos pode também não ser direto, ou literal, como veremos em Ação de graças e Desenhando com terços de Márcia X. A associação entre ouro e excremento e um breve comparativo entre as religiões orientais e o protestantismo, segundo Octavio Paz, além do sacrifício em Bataille contribuem para a leitura crítica do trabalho dessa artista brasileira cuja obra é tão erótica quanto é escassa a bibliografia sobre ela. As ideias batailleanas de interdito e transgressão enquanto cernes do erotismo e a herança cristã na cultura também se enquadram perfeitamente em Penetrantes. Já em Negro escuro, apresento o mistério do furo, lá onde as palavras calam, lugar do gozo mudo e dominador e a angústia da morte. As palavras ovo, gozo e olho perpassam este capítulo e por isso nele descrevo em maiores detalhes O gozo silencioso, ação realizada por mim em 2010, além de duas obras de outra artista brasileira bastante cara a esta pesquisa: Anna Maria Maiolino. A teoria dos instintos e o sentimento de culpa em Freud, História do Olho de Bataille e o conceito de gozo desenvolvido pela teoria lacaniana são relacionados neste capítulo. Entrevidas e X, II da série Fotopoemação de Maiolino são as obras discutidas em Negro escuro juntamente com o filme Anticristo de Lars Von Trier, obras que exploram as forças opostas de vida e de morte, que tratam da aproximação entre morte e sexualidade, do erotismo que nos traz à lembrança nossa mortalidade. Tal como coloca Bataille, o que está sempre em questão no erotismo “é a substituição do isolamento do ser (...) por

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um sentimento de continuidade profunda”.8 Anticristo, em relação a Bataille, neste capítulo, rememora o possível culto às divindades da noite reprimidos pela Inquisição e as relações entre o sagrado e o pecado estabelecidas pelo cristianismo. Nas considerações finais, descrevo como foi o processo de Bailarina, ação apresentada por mim em janeiro de 2014 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro. Uma vez que busco a interpenetração entre prática e teoria na presente pesquisa, Bailarina foi uma obra motor e, ao mesmo tempo, resultado da pesquisa teórica dentro deste curso de Mestrado. Em suma, foi por meio de minha prática em arte, de meu corpo exposto em ação, que fui capaz de eleger o presente objeto de estudo: os furos do corpo apresentados em obras visuais específicas. Esta pesquisa mostra que algumas obras de arte eróticas estimulam nossos furos corporais e que, assim, eles se tornam os receptores de uma energia invisível. Tal energia, até então indecifrável, permite, ainda, por um breve instante e por meio da linguagem, superar o sentimento de angústia, natural ao homem que sabe que vai morrer.

8

BATAILLE, 1987, p.14

17

2.

BORDA

Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos?

9

(Eduardo Galeano)

Em seu clássico O Mal-Estar na Civilização Freud vai tratar de um certo sentimento de religiosidade, um tal sentimento a que ele chama de “oceânico”, um tipo de unidade com o mundo, algo que ele mesmo não sente mas que não duvida que possa existir em outras pessoas. “Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos”, ele afirma.10 Freud, neste texto, vai interpretar este sentimento a partir do questionamento se é necessária a religião para experimentá-lo. Bataille, em O erotismo, também vai tratar de sentimento, a que ele dá o nome, no entanto, de “experiência interior”, 11 uma experiência que trata da vida religiosa do homem sem considerar, contudo, qualquer religião específica. Ele aborda a “experiência interior” como um problema que toda religião colocou e sem o qual não existiria erotismo. Ao comunicar a experiência interior, Bataille afirma que não é um homem de ciência, mas utiliza os aspectos objetivos desta com rigor quando necessário. Isto porque, segundo ele, não é possível separar a visualização dos dados objetivos da ciência e aspectos históricos da experiência pessoal, ou seja, para falar de erotismo e religiosidade, é necessária a própria experiência de vida. Bataille resgata o comportamento das sociedades arcaicas para mostrar que o homem deixou de ser animal quando passa a se comportar de três formas fundamentais: trabalhando, tendo a consciência da própria morte e

9

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. 3a edição, L&PM, Porto Alegre, 1991. p. 64

10

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997. p. 41

11

BATAILLE, 1987. p.23

18

passando da sexualidade livre à sexualidade contida, de onde se origina o erotismo. Para ele, o erotismo no homem difere da mera atividade sexual animal, porque considera uma experiência interior. Lacan em O Seminário. Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, entende que a psicanálise pode nos esclarecer sobre o que é entendido por ciência e por religião. (E quando ele se refere à religião, entendo que seja no mesmo sentido em que Bataille emprega este termo: não como uma doutrina específica, mas como um problema que o homem de todos os tempos colocou.) O que funda a psicanálise como práxis? Práxis no sentido de ação humana que põe o homem “em condição de tratar o real pelo simbólico.”12 É possível falar, em psicanálise, sobre o que há de mais obscuro e misterioso que é o real? Trata-se aqui do real lacaniano: o real inatingível. “Eu não procuro, acho”.13 Lacan cita tais palavras de Picasso para mostrar sua desconfiança do termo pesquisa e introduzir a ideia de que a psicanálise, enquanto ciência, é problemática. Sua práxis é problemática porque é preciso levar

em

conta,

segundo

Lacan,

o

desejo

do

analista,

ou,

mais

especificamente, o desejo de Freud, que conferiu ao inconsciente a origem da experiência analítica. Lacan propõe, no Livro 11, a retomada desta origem – o desejo do analista. Como artista, posso dizer que a práxis em arte é tão problemática quanto descreve Lacan sobre a práxis psicanalítica, embora sejam problemas distintos. É por esta razão que a psicanálise, em relação à arte, muito me interessa. De modo análogo ao método lacaniano, o que proponho neste capítulo Borda, para falar do mistério dos furos do corpo tratados em arte, é a retomada de uma origem. Para entender o que eu faço em arte é preciso levar em conta o meu desejo enquanto artista juntamente com o que aprendi por meio dos que me antecederam. Na busca por uma origem – tal como designa Lacan – de meu desejo em arte, cheguei a um ponto determinante: o erótico

12

LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. p.14 13

PICASSO apud LACAN, 1988. p. 14

19

em Marcel Duchamp. É esta a minha Borda – o erotismo duchampiano – de modo que eu também não poderia delineá-la sem conceber a base teórica que me conduz. Lacan aproxima Descartes de Freud, ou melhor, identifica o cartesianismo freudiano por meio da presença da dúvida em seu estudo sobre os sonhos. Freud assinala a dúvida acerca de seus sonhos, a mesma que é presente no cogito cartesiano: Descartes nos diz – Estou seguro, porque duvido, de que penso, e – diria eu, para me manter numa fórmula não mais prudente que a sua, mas que nos evita debater o eu penso – Por pensar, eu sou. Notem, de passagem, que eludindo o eu penso, eludo a discussão que resulta do fato de que esse eu penso, para nós, não pode certamente ser destacado do fato de que ele só pode formulá-lo dizendo-o para 14 nós, implicitamente – o de que ele se esquece.

De acordo com Lacan, o pai da psicanálise primeiro duvida de seus sonhos ou do que pensa sobre seus sonhos, mas um pensamento existe, ainda que se revele duvidoso. Quando se reporta aos outros, Freud está seguro de que o mesmo acontece, de que o pensamento no outro se revele duvidoso, ausente, mas se revele. “É a este lugar que ele chama, uma vez que lida com outros, o eu penso pelo qual vai revelar-se o sujeito”.15 Quando Descartes nos diz “estou seguro, porque duvido, de que penso”, introduz no mundo o mito do sujeito da certeza. Freud, por sua vez, mostra que o sujeito do inconsciente pensa antes de entrar na certeza. É disso que se trata a discussão sobre o descentramento do sujeito, porque, a partir de Freud este sujeito é do inconsciente e não mais da certeza, cartesiano. Lacan acredita que a teoria freudiana não seria possível sem Descartes, sem o sujeito cartesiano. O que faz Freud é chamar este sujeito de volta para casa – o inconsciente – e isso também não seria possível, para Lacan, se Freud não tivesse considerado seu próprio desejo, se não nos tivesse guiado, em seus textos, por uma auto-análise.

14

LACAN, 1988. p.39

15

Idem.

20

No entanto, ainda que tenhamos plena certeza do sentimento do nosso eu – do nosso ego – como algo autônomo e que busca satisfação, este sentimento está sujeito a distúrbios em relação ao mundo exterior. Depois da descoberta do inconsciente, as fronteiras entre nossa vida mental e o exterior não são mais permanentes. O primitivo ego do recém-nascido, por exemplo, não distingue o que é dele próprio e do mundo exterior, essa é sua condição narcísica inicial. Somente aos poucos, e por meio da atividade sensorial, ele percebe que a satisfação vem de objetos externos, como, por exemplo, o seio da mãe. É assim que o princípio de realidade começa a ser introduzido na vida humana, enquanto o princípio do prazer, ligado à satisfação de nossos instintos, faz parte de nossa vida mental desde o início, segundo Freud. E na vida mental, nada do que uma vez existiu desaparece, de modo que esquecimento não significa aniquilação. Freud associa aquele sentimento “oceânico” ao sentimento primitivo do ego descrito acima, unidade entre o eu e o mundo, e conclui assim que tal sentimento pode de fato ser revivido. Muito da atitude religiosa na vida do homem, para Freud, é um mistério, mas o que ele supõe é que a intensa necessidade da proteção de um pai na vida infantil pode repercutir mais tarde no homem na necessidade de religião, de modo a protegê-lo do poder do destino. O medo do destino, das frustrações, do sofrimento, em suma, do desprazer é o que fez e faz o homem buscar o sentimento “oceânico”. Este sentimento “oceânico” colocado por Freud e o sentimento de continuidade descrito por Bataille, o qual se configura como uma tentativa de superar o abismo existente entre os seres, guardam íntima relação, visto que o pensamento batailleano foi bastante influenciado pelo pai da psicanálise. Seria, assim, a arte de raízes eróticas capaz de gerar no homem este sentimento? Quando se fala em erotismo, as palavras interdito e transgressão são importantes na obra batailleana. O autor examina a cumplicidade que existe entre ambas, a cumplicidade entre a lei e a violação. O interdito rejeita a violência enquanto a transgressão a libera, porém de modo organizado. A coletividade humana transformou-se no mundo do trabalho por meio dos interditos, ou permaneceríamos animais sem razão. Neste mundo racional do

21

trabalho subsiste, porém, um movimento de excesso, de violência – seja no homem ou na natureza – que só pode ser tratado pela razão parcialmente,16 mas o homem pode abrir mão desta violência enquanto trabalha. Quando o interdito elimina o movimento humano da violência e limita, por exemplo, o impulso sexual, permite o surgimento da razão, da consciência sobre a qual funda-se a ciência. O mundo do trabalho exclui a violência através dos interditos e os mais fundamentais, segundo Bataille, são os interditos da morte e da reprodução sexual. Freud enumera várias formas por onde é possível evitar o desprazer, afastar o sofrimento e tornar a vida suportável. Uma delas é a sublimação dos instintos através do trabalho psíquico e intelectual ou artístico. Embora este método não ofereça uma proteção completa contra o desprazer e as armadilhas do destino, o conceito de sublimação é um ponto importante nesta pesquisa, sobretudo quando trata da criação ou contemplação artística. Nele a distinção do vínculo com a realidade vai mais longe; a satisfação é obtida através de ilusões, reconhecidas como tais sem que se verifique permissão para que a discrepância entre elas e a realidade interfira na sua fruição. A região onde essas ilusões se originam é a vida da imaginação; na época em que o desenvolvimento do senso de realidade se efetuou, essa região foi expressamente isentada das exigências do teste de realidade e posta 17 de lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados a termo.

Em relação à sublimação, é aqui que entra a importância da fantasia para a vida psíquica. Através da arte, por meio da fantasia, tanto artista quanto espectador podem se afastar temporariamente da aflição da vida real. O que eu pretendo mostrar nesta pesquisa é que a arte faz isso hoje, no homem, por meio dos furos do corpo. Seja a arte visual, sonora ou sensorial, os furos do corpo estão sempre envolvidos. Tania Rivera mostra que o estudo de Freud sobre a reprodução mnêmica, sobre os sonhos e a fantasia, lança luz ao problema da representação tal como o surgimento da fotografia passa a colocar em cheque a realidade. A arte e a 16

BATAILLE, 1987. p.27

17

FREUD, 1997. p. 51-52

22

psicanálise são dois campos, assim, que se intercambiam pois tratam da natureza da imagem. Além disso, o fato de a psicanálise surgir juntamente com a arte moderna é detalhe importante para o entendimento da ideia de descentramento do sujeito. Se “o eu não é mais senhor em sua própria casa”,18 como dizia Freud, a arte moderna retira este mesmo eu do centro organizador da representação e abre caminho para novas relações entre obra e espectador, entre o eu e o outro, de modo a fazer aparecer o sujeito. Se o espaço pictórico na arte moderna se desestabiliza porque deixa de ser constituído por um olho ordenador baseado nas leis da perspectiva, para Tania Rivera, através da descoberta freudiana de inconsciente, “é o sujeito representado por este olho que perde sua estabilidade, sua posição central”.19 Em relação ao inconsciente, Lacan entende que Freud introduz uma outra coisa, distinta da subjetividade romântica ou das “divindades da noite”.20 Sabese que o que se passa no inconsciente Freud vai encontrar, a princípio, nos tropeços pelos quais se constituem os fenômenos do sonho, do ato falho ou do chiste. Para Lacan, no entanto, isso que se passa não é apenas uma descoberta, um achado, mas um “reachado” porque prestes a escapar de novo. É por onde entra o conceito de falta dentro da estrutura inconsciente. Se, para Bataille, em O erotismo, a ideia de continuidade rememoraria a unidade original em relação à qual o ser descontínuo possui nostalgia e deseja retornar, para Lacan, ao reler Freud, a experiência do inconsciente é aquela da fenda, da ruptura. O inconsciente teria então a estrutura de uma hiância, um furo. Este furo mostrar-se-ia para Freud por meio dos sonhos, pelo que ele chama de “umbigo dos sonhos”,21 “o centro icógnito – que não é mesmo outra coisa,” diz Lacan “como o próprio umbigo anatômico que o representa, senão essa hiância

18

FREUD apud RIVERA, Tania. O Avesso do Imaginário. Arte Contemporânea e Psicanálise. Cosac Naify: São Paulo, 2013. p.23 19

RIVERA, Tania. Arte e Psicanálise. 2ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 7

20

LACAN, 1988. p.29

21

Ibid. p.28

23

de que falamos.”22 Fenda, hiância, buraco, furo: dimensão esquecida, sem fundo e que faz surgir a ausência. Deste modo, se Freud associou o umbigo do corpo – cicatriz do corte do canal que nos conectava às nossas mães – ao mistério da psiqué, por aqui associo os furos exteriores do corpo, conexão entre o corpo e o mundo, ao mistério da arte, ou melhor, ao sentimento que a arte manifesta no homem, algo “oceânico” aos moldes do que foi descrito também por Freud e que opera no campo da ilusão. Estabeleci até agora, a base teórica pela qual vou discorrer acerca dos furos do corpo em arte a partir de Marcel Duchamp. Antes de falar sobre o mestre da arte contemporânea, no entanto, é preciso falar brevemente sobre como os movimentos de vanguarda, artísticos e literários, a partir da Primeira Guerra Mundial, farão referência às ideias de Freud. Tais movimentos, como mostra Rivera, ao buscar novos parâmetros formais, passam a valorizar o que há de irracional no homem e as expressões artísticas mais livres e espontâneas. O que as vanguardas dadaísta e surrealista, por exemplo, pretendiam era se oporem à velha atribuição de identidades às coisas como forma de ordená-las, ou seja pretendiam atacar a maneira racional, ou cartesiana, de enxergar o mundo sob modelos universais. André Breton tratava a poesia surrealista enquanto uma utopia redentora capaz de transformar a realidade, aproximando-se assim das ideias freudianas em relação à arte. Apesar deste intercâmbio entre arte e o campo da psicanálise – desde os primórdios desta – é importante salientar o conservadorismo de Freud em relação às artes visuais, de modo que ele se manteve distante das vanguardas do seu tempo. Rivera coloca, no entanto, que a psicanálise no movimento surrealista sofreu uma espécie de torção, criou-se na ocasião, para esta autora, uma “espécie de ficção da psicanálise.”23 Sobre o conceito de sublimação, inclusive, a autora esclarece:

22

LACAN, 1988. p.28

23

RIVERA, 2005. p. 22

24

Ainda que Freud utilize eventualmente o termo ‘sublimação’ referindose à atividade artística, essa noção não designa em absoluto um processo próprio a esse tipo de atividade. A sublimação é um destino específico da pulsão que consiste em uma substituição de seu objeto 24 sexual por outro, eventualmente mais valorizado socialmente.

Ainda segundo Tania Rivera, é a partir do ensino de Jacques Lacan, o maior teórico do descentramento do sujeito, que o intercâmbio entre a psicanálise e a arte moderna e contemporânea se torna mais sensível. 25 Antes de falar sobre o erotismo em Duchamp, é preciso ainda fazer um breve histórico, sobre como se constituiu o pensamento sobre o corpo na cultura clássica e no advento do cristianismo. A concepção de corpo na cultura do Ocidente remonta à Grécia Antiga e está intimamente ligada à questão da imagem e da representação em arte, hoje. Segundo Viviane Matesco, a partir do nascimento da filosofia no mundo grego, a representação do corpo sai da natureza para a pólis, como uma conquista da civilização. “Foi a partir do corpo como imagem que a noção de integridade pode ser pensada”.26 Matesco fala especificamente sobre a escultura grega e sobre o nu, até então representado a partir do princípio de proporcionalidade e de equilíbrio, porque atendia a um ideal, à metafísica: “a representação clássica implica a capacidade de se fazer a correspondência com o objeto de uma mediação: o pensamento.”27 A autora citada apoia-se em Jean-Marie Schaeffer para explicar que tal concepção de corpo influenciou toda a arte europeia e assim, durante muito tempo, o corpo foi representado de acordo com cânones, foi idealizado. Através do cristianismo, o dualismo ontológico (corpo mortal e alma imortal), a crença num Deus único criador e a ideia de encarnação foram elementos que contribuíram para a forma como o corpo fora representado. O 24

RIVERA, 2005. p. 16

25

Ibid. p. 23

26

MATESCO, Viviane. O corpo como questão na arte contemporânea. 15 f. Tese. (Doutorado em Linguagens Visuais) Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 27

Ibid. p. 17

25

cristianismo é, de fato, um ponto crucial nesta pesquisa, pois, conforme mostrarei ao longo deste texto, não é possível tratar de erotismo no homem e na arte hoje (no sentido de experiência interior, tal como Bataille descreve) sem considerar a vitória cristã sobre as religiões pagãs e sua influência na cultura do Ocidente. Acerca da doutrina cristã no pensamento sobre o corpo, Matesco explica ainda que se o Antigo Testamento diz que Deus criou homem à sua imagem e semelhança, o homem é apenas uma imagem decaída de Deus, pois seu corpo é mortal. Para os cristãos, o maior exemplo de como o homem deve viver é Cristo, o próprio Deus encarnado e é Cristo a quem os fieis devem se remeter e imitar para chegar a Deus. Assim, o corpo é pensado sempre em relação a um modelo: Jesus Cristo. Conforme bem resume Matesco, segundo Jean-Marie Schaeffer: Na Europa, o corpo é uma substância individual que se relaciona ao modelo não corporal do de que é a imagem (...) isso confirma a existência na Europa de laço essencial entre o pensamento do corpo e o culto da imagem. Por isso, conclui Schaeffer, nosso pensamento do corpo é um pensamento de imagem, e nosso pensamento de 28 imagem é um pensamento de corpo.

Esta afirmação é importante, pois esclarece a íntima relação, dentro da cultura do Ocidente, entre imagem e corpo ou entre um corpo vivo e sua representação. Faço, em seguida, um recorte sobre a consciência do corpo na arte moderna a partir do pensamento de Bataille enquanto filósofo do surrealismo. As

revistas

Documents

e

Minotaure

(cujos

responsáveis

eram

respectivamente André Breton e Georges Bataille) divulgam a partir da década de 30 imagens monstruosas referentes a sacrifícios, torturas, assassinatos, etc, que representariam, além da reação à arte da época – que exaltava, sem muito sentido, os padrões clássicos – uma tentativa de refletir sobre tudo que suscita o mal no homem. Os diversos artistas envolvidos com a Documents e a Minotaure, segundo Eliane Robert de Moraes, tinham como afinidade maior a consciência radical do corpo, de forma a afirmar a vida humana sem confiná-la 28

MATESCO, 2008. p. 19

26

a uma forma fixa, tal como a representação clássica, e sem destruí-la por completo. Trata-se de um estado paradoxal do imaginário moderno em relação ao corpo: desumanizar mas manter os traços da figura humana, alterá-la até torná-la irreconhecível, mas não aniquilá-la.29 A noção de informe30 descrita por Bataille, em seu dicionário crítico publicado na revista Documents na década de 30, é pertinente aqui. Nietzsche sabiamente colocou que “todo conceito nasce por igualação do não-igual. Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais (...)”.31 É nesta oposição ao mundo dos conceitos que reside a condição do informe descrita por Bataille em seu dicionário. O informe é aquilo que busca desestabilizar o princípio organizador da forma. Entende-se por forma, neste caso, tudo o que se relaciona à ordem e que se opõe ao caos presente na natureza. Enquanto um verbete, a palavra informe buscaria dar sentido a algo, ou seja, estaria ligada a um princípio organizador, conceitualizador. Mas esse algo a que o verbete dá sentido vai de encontro ao mundo dos conceitos, por isso informe é entendido como um anti-conceito. Segundo Eliane Robert Moraes, existia, no entanto, uma diferença fundamental entre o pensamento de Breton e Bataille. O primeiro idealizava a figura da mulher, defendia passionalmente o amor e visões sublimadas da realidade e buscava ultrapassar os horrores da guerra com uma utopia redentora, enquanto Bataille, através da bestialidade, faz deslocar a atenção do sujeito de um mundo ideal para o mundo cruel de vivências reais que se apresenta à sua volta. Ambos, Bataille e Breton, ultrapassavam os limites impostos pela razão, mas o primeiro via em Breton um surrealismo disfarçadamente idealista.32 29

MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002. p. 155

30

BATAILLE, Georges. La felicidad, el erotismo y la literatura. Trad. Silvio Mattoni. Ensayos 1844-1961. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2008. p. 55 31

NIETZSCHE, F. Sobre a Verdade e a Mentira no sentido Extra-Moral. São Paulo: Nova. Cultural, 1987. p.48 32

MORAES, 2002. p. 156

27

Para Aristóteles, a mão é o membro responsável pela supremacia do homem em relação aos outros seres vivos, pois sua anatomia se mantém à disposição do trabalho e da inteligência humana. Os evolucionistas como Lamarck, Darwin e Haeckel atribuíam à mão a primeira forma humana originária da conquista da postura ereta. Já Bataille confere mais importância ao pé, pois é ele que guarda a marca da perda das capacidades do homem (aquelas que possuem os macacos antropoides: a mobilidade dos dedos) decorrente do processo civilizatório. Bataille concede, inclusive, particular atenção ao dedo do pé, pois este para ele é a “parte mais humana do corpo humano,”33 cuja função primordial seria conferir uma base firme à sua postura ereta. A repulsa humana ao pé, no entanto, estaria associada, para Bataille, à busca pela verticalidade, à elevação do homem aos céus e ao privilégio da cabeça, neste sentido, em relação aos membros inferiores que estariam em contato com a lama terrestre. No texto “A linguagem das flores,” 34 Bataille comenta sobre a postura ereta dos vegetais, fazendo uma analogia ao próprio corpo humano. A flor e as raízes corresponderiam, respectivamente, à cabeça e aos pés. Segundo Eliane Robert Moraes, “esboça-se aí uma visão negativa do homem, que vem denunciar o vão orgulho de sua elevação, seja no topo da escala orgânica suposta pela genealogia evolucionista, seja na ontológica estatura que os filósofos antigos lhe atribuíram.” 35 Moraes

assinala,

assim,

como

ponto

essencial

do

pensamento

materialista radical de Bataille, o “fluxo constante entre os dois pólos” 36, o bem e o mal, o ideal e o abjeto. E aí se encaixa o informe batailleano, conceito que é anti-conceito, no qual o universo com nada se parece, que nos diz que os contrários não se fundem, não se fixam em uma única imagem ou forma. No

33

BATAILLE, 2008. p. 44. Tradução minha.

34

BATAILLE, Georges. La conjuración sagrada. Trad. Silvio Mattoni. Ensayos 1929-1939. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2003. p. 21. Tradução minha. 35

MORAES, 2002. p. 195

36

Ibid. p. 197

28

cerne da contradição entre ideal e abjeto, Bataille diz que a “sede de luz” e a “avidez da morte” não podem se separar. O pé na lama seria responsável pela inevitável aproximação da cabeça à ideia de decomposição, portanto, à morte. Mas sobre a morte falarei um pouco mais adiante, no capítulo Negro escuro. A seguir, finalmente entraremos no projeto erótico de Duchamp.

2.1

A NOIVA, VIRGEM E NUA

Aguardava ansiosa minha vez de olhar pelo atraente buraco na porta. Vi, enfim, pelo tal furo uma cena tão viva que, ao me afastar, tive imediata vontade de olhar novamente, como se não acreditasse no que tinha visto: parte do corpo de uma mulher nua, deitada de pernas abertas sobre uma relva. Sua vulva era esquisita, não havia pelos pubianos. O corpo estava deitado de tal forma que era possível ver pelo buraco apenas seu tronco com a vulva exposta, parte das pernas e o braço esquerdo que, suspenso, segurava uma lamparina acesa em plena luz do dia. O corpo parecia morto, um morto que parecia vivo. Lembro-me da paisagem luminosa ao fundo: um lago, uma cascata e céu azul. A legenda não facilitou. Dizia: Étant donnés: 1. La chute d’eau; 2. Le gaz d’eclairage. (Sendo dados: 1. A cascata; 2. O gás de iluminação.) Ao eleger o furo como condutor da presente pesquisa, recordei imediatamente desta minha experiência com a réplica de Étant donnés (fig. 1) – última obra de Duchamp, realizada entre 1946 e 1966 – exposta no MAM de São Paulo em 2008 na exposição Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra de arte. Tudo que vi, naquele momento, era um enigma, mas que hoje com a própria prática da pesquisa, aos poucos, bem aos poucos, se esclarece. Étant donnés foi, conforme a vontade do artista, tornada pública apenas depois de sua morte em 1968. Duchamp trabalhou na obra durante vinte anos, na clandestinidade. Apenas sua esposa Teeny tinha conhecimento do trabalho.

29

Mas a magia deste trompe’oeil não pode ser acessada sem que se tenha um olhar apurado pelo conjunto (ou parte considerável) de sua obra. Marcel Duchamp é fruto das vanguardas modernas, assim como Bataille e Breton. Quando perguntado por Pierre Cabanne sobre o papel do erotismo em seu trabalho, o artista afirma: “Enorme. Visível e vidente, ou, em todo caso, subjacente”.37 Appolinaire afirmou que Duchamp era o único pintor da escola moderna a se preocupar com o nu.38 Este nu, porém, não era o nu tradicional, sagrado, divino, durante tantos séculos retratado pela pintura ocidental. Uma breve atenção aos títulos das obras escolhidos pelo artista já abre o horizonte do erótico em seu trabalho. Enumero aqui apenas alguns: O Rei e a Rainha atravessados pelos Nus em velocidade (1912), O Rei e a Rainha rodeados de Nus velozes (1912), A passagem da Virgem à Noiva (1912), Nu descendo a escada (1912), Nove moldes machos (1914-1915), A Noiva desnudada pelos celibatários, mesmo (ou o Grande Vidro, 1915-1923), L.H.O.O.Q. (1919, título cuja pronúncia das letras em francês seria: Elle a chaud au cul; o que em português significa: Ela tem fogo no cu), Cunha da castidade (1954). Os títulos apontam logo de início o interesse de Duchamp pelas palavras, ou melhor, pelo jogo de palavras. E dentro deste jogo a ironia e o humor, tendo como pano de fundo o erotismo; a ironia e o humor que tornam palatável o erotismo. Acredito muito no erotismo porque é uma coisa realmente generalizada no mundo inteiro, uma coisa que as pessoas compreendem. Isto substitui, se você quiser, o que as outras escolas de literatura chamam de simbolismo, romantismo. Isto poderia ser, por assim dizer, um outro ‘ismo’. Você me dirá que se pode achar o erotismo dentro do romantismo também. Mas, se o erotismo é usado como base principal, então, toma a forma de ‘ismo’, no sentido de 39 escola.

A partir de Nu descendo a escada (fig.2), Octavio Paz observa em Duchamp o desaparecimento da figura humana e diz que “seu lugar não é 37

DUCHAMP apud CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. Trad. Paulo José Amaral. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 50 38

APPOLINAIRE apud CABANNE, 1987, p. 61

39

DUCHAMP apud CABANNE, 1987, p. 150

30

ocupado por formas abstratas, mas por transmutação do ser humano em mecanismos delirantes”.40 O Nu é exemplo do que as vanguardas modernas já vinham fazendo com a figura humana tal como colocou Eliane Robert Moraes. O próprio título da obra, um nu que desce uma escada, é ação deveras banal para um nu, aquele tradicional, da pintura ocidental. Segundo Octavio Paz, tudo que foi feito por Duchamp a partir de 1913 é “parte da tentativa de substituir a ‘pintura-pintura’ pela ‘pintura-ideia’”41 e aí, segundo este autor, residiria o início da sua verdadeira obra e por que não, eu diria, de uma nova etapa da arte. Se durante tanto tempo a arte foi uma forma de mistificação42, ou de sublimação, como diria Freud, a ‘pintura-ideia’, de Duchamp encarna a própria crise de desmistificação da arte. De acordo com Susan Sontag: (...) em uma ânsia da névoa do desconhecimento, além do conhecimento, e do silêncio além do discurso, a arte deve tender à antiarte, à eliminação do ‘tema’ (do ‘objeto’, da imagem), à substituição da intenção pelo acaso e à busca do silêncio.(...) A atitude verdadeiramente séria é a que encara a arte como um ‘meio’ para alguma coisa que talvez só possa ser atingida pelo 43 abandono da arte.

Em 1913, Nu descendo a escada integra o Armory Show, primeira exposição de arte moderna em Nova Iorque, e obtém forte repercussão. Depois de ter provado a si mesmo que dominava o ofício de pintar, curiosamente, neste mesmo ano, Duchamp, ainda na França, abandona a pintura e decide trabalhar como bibliotecário notadamente para se dedicar com mais liberdade às investigações sobre o que vai dar origem ao Grande Vidro. Seu primeiro ready-made – gesto que marca a crítica à arte retiniana e à servidão manual do artista, – Roda de bicicleta, data deste período.

40

PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. São Paulo: Perspectiva, 1977. p.14 41

Ibid, p. 8

42

SONTAG, Susan. A vontade Radical. Trad. de João Roberto Martins Filho. São. Paulo: Companhia das Letras, 1987. p.11 43

Ibid. p.12-13

31

Animado pelo sucesso do Nu, em 1915 Duchamp foge da França na Primeira Guerra e parte para Nova Iorque. Dois importantes ready-mades realizados por Duchamp, depois de sua partida para a América, são aqui dignos de nota: a Fonte (1917) e L.H.O.O.Q. (1919) (fig.3). A rejeição da Fonte, o famoso urinol invertido com assinatura de “R.Mutt” (nome da fábrica que o produziu), pelo comitê de seleção do Salão dos Independentes de Nova Iorque tornou este o mais popular ready-made do artista. Apesar de discordar de Jean Clair, para quem a obra de Duchamp dera início à nova etapa – repulsiva – da arte, Arthur Danto acredita que: (...) é bem possível que uma das funções de usar um urinol, é sua associação com o excitamento infantil vinculado com o ato de expelir. O propósito não é trazer o repulsivo ao lugar da arte, mas deslocar o gosto como critério da arte e usar a associação com necessidades 44 corporais como um meio.

Para Danto, é por conta desta associação com o ato de expelir, além da ideia de gêneros que o urinol, ou a Fonte, pode ser considerado um readymade especial, uma “piada ardilosa” de Duchamp num esforço de revincular arte e vida ainda naquele tempo. Após Duchamp foi possível fazer arte com qualquer material, inclusive com palavras ou com o próprio corpo. Danto, porém, classifica a obra de Duchamp como “amplamente cerebral”. Eu diria que ela é tão cerebral quanto corporal (o que é diferente de ser repulsiva) e que aí reside a sua força. L.H.O.O.Q. é outro popular ready-made a suscitar, claramente, conteúdo erótico. Em uma reprodução da Monalisa de Da Vinci, Duchamp desenha um elegante bigode, um fino cavanhaque e escreve as iniciais L.H.O.O.Q. ou “ela tem fogo no cu”. Duchamp deu um cu a “ela”, à Monalisa. Constitui uma crítica ao culto das grandes obras do passado, à tradição pictórica ocidental. Mas quando por meio do jogo de palavras, texto e imagem juntos, confundem as noções de gênero, Duchamp fala também, de alguma forma, do seu presente para além da pintura: a vida do seu próprio tempo. “O curioso nesse bigode e nesse cavanhaque é que, quando se olha para a Monalisa, ela se transforma 44

DANTO, Arthur C. Marcel Duchamp e o Fim Do Gosto - Uma Defesa Da Arte Contemporânea. ARS (São Paulo) 2008, Vol.6, n.12, Pp. 15-28. p. 23

32

realmente num homem” disse Duchamp. “Não é uma mulher disfarçada de homem; é um homem de fato e essa foi minha descoberta, sem que na época eu me desse conta”,45 complementa. O que Duchamp faz, ironicamente, é emoldurar um dos furos da face humana, mas não foi da face de qualquer um, foi de uma face símbolo da tradição cultural do Ocidente. Duchamp dá em palavras um cu sacana a essa face, dá um cu – o furo do corpo que está mais longe da vista. E o que é o fogo senão a energia desejosa que perpassa por esse furo? Este gesto não foi à toa. Duchamp compreendia o papel do erotismo na psiqué e na história social do homem. E quando jogava, assim, com a ideia de representação – o retiniano – presente na tradição da pintura, tinha o erotismo como seu tabuleiro, sua escola particular. “Era uma espécie de clima erótico. Tudo está baseado em um clima erótico sem que se precise forçar muito” disse ele a Pierre Cabanne.46 Ele não precisava forçar porque falava de sua própria vida em sua obra, sua própria vida enquanto ser humano. Talvez seja isto o que Susan Sontag queira dizer com o “abandono da arte”. Duchamp, antes de ser artista, era um ser humano como outro qualquer. Neste clima surgiu Rrose Sélavy: pseudônimo do alter ego feminino de Duchamp, fruto do mesmo jogo de confusão de gêneros expresso em L.H.O.O.Q. Fotografada por Man Ray em 1921, Rrose Sélavy (fig.4) assinou as mais variadas produções duchampianas, verbais ou visuais, até 1941. A intenção de Duchamp não era trocar de identidade, mas ter duas identidades. “Muito melhor do que trocar de religião é trocar de sexo. Na França Rose era o nome mais banal de menina na ocasião. E Sélavy não passa de um trocadilho parar c’est l avi [que em português significa esta é a vida]”,47 disse ele em

45

DUCHAMP apud TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia / Calvin Tomkins. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 246 46

DUCHAMP apud CABANNE, 1987, p. 150

47

DUCHAMP apud TOMKINS, 2004, p.256

33

irônico comentário, pois, com se sabe, Rose é anagrama de Eros, logo, Rrose Sélavy48 também pode significar Eros é a vida. Eros e Ananke – Amor e Necessidade – seriam, para Freud, os pais da civilização, desde que o homem descobriu que, por meio do trabalho, poderia sobreviver no planeta, mas que sozinho não conseguiria. Os membros da família primeva poderiam trabalhar em conjunto, motivo pelo qual o macho mais forte conservaria seu objeto sexual – a fêmea – junto de si e esta, por sua vez,

manteria

seus

filhos

junto

de

si

e

do

macho

mais

forte.

Subsequentemente, Freud mostra que os filhos agrupados descobrem ser mais fortes que o pai, cuja vontade prevalecia, e assim surge o princípio de comunidade, um dos fundamentos da civilização.49 Sendo assim, Eros, o Amor, foi de grande importância para o desenvolvimento da civilização, uma vez que o amor genital formava novas famílias e o amor “inibido em sua finalidade”, ou seja, as amizades, uniam membros exteriores à família, de modo libidinal. Freud nos mostra, assim, que a energia empregada no processo civilizatório é retirada da sexualidade e que o desenvolvimento da civilização seria comparável ao desenvolvimento libidinal de um indivíduo. Ele descreve, por exemplo, que o erotismo anal nas crianças, ou seja, “o interesse original pela função excretória” se transforma no indivíduo de alguma forma, em traços de caráter que podemos associar à civilização: em economia, em ordem, em limpeza.50 Além disso, para seus próprios fins, a civilização utiliza das medidas de precaução mais poderosas dado o temor pela revolta daquilo que foi reprimido na sexualidade. Para Bataille, o erotismo só existe por conta do

48

“Rrose Sélavy apareceu pela primeira vez nos anais da arte em 1920 como Rose Sélavy, que soa como: “Rose, c'est la vie". Em 1921, ela adquiriu o "r" extra quando acrescentou a sua assinatura para L'Oeil cacodilato, uma pintura de Francis Picabia.” In: JONES, Jonathan. Rrose Sélavy, Man Ray (1921). Culture. Portrait of the week. Disponível em: http://www.theguardian.com/culture/2001/oct/27/art.surrealismatthevanda. Acesso em Janeiro de 2016. Tradução minha. 49

FREUD, 1997. p. 65

50

Ibid. p. 62-63

34

interdito sexual e é este interdito o que comanda todos os nossos comportamentos, ou permaneceríamos animais.51 O mesmo homem que inventou o ready-made, que se travestiu de mulher e que desenhou um bigode na Monalisa trabalhava, desde 1915, em La Mariée mise à nu par ses célibataires, même (A noiva despida pelos seus solteiros, mesmo) ou o Grande Vidro (fig.5), pintura a óleo sobre um vidro de aproximadamente 2,72 m de altura por 1,75 m de largura que ilustra / representa uma estranha máquina erótica desenvolvida pelo próprio artista. Sim, um curioso e contraditório retorno à pintura. Duchamp era consciente disso e coloca que existe uma diferença entre uma pintura puramente retiniana e aquela que usa o retiniano para ir mais além, tal como faziam os pintores renascentistas ao representar imagens de cunho religioso, imagens que traziam a ideia de divindade, sendo o tubo de cores apenas um meio para alcançar esse fim. Duchamp diz que teve a mesma concepção, mas com outros fins. “A pintura pura não me interessa em si nem como finalidade. Para mim a finalidade é outra, é uma combinação, ou ao menos, uma expressão que só a matéria gris pode produzir”,52 disse ele. Obra enigmática, escritura a ser decifrada segundo Octavio Paz, o Grande Vidro necessita da Caixa Verde (1934), para ser compreendido. A Caixa Verde é, por sua vez, um catálogo formado por noventa e três documentos que, supostamente, explicam cada detalhe da obra, espécie de manual de instruções do funcionamento da máquina que concentra diversos elementos (figuras) criados anteriormente por Duchamp. O artista explica que o Grande Vidro não é para ser contemplado, olhado com os olhos estéticos, e sim “acompanhado como um texto literário tão amorfo quanto possível, que jamais tomou forma”.53 Ele não queria que as notas da Caixa Verde se tornassem um texto literário e tampouco que a pintura no vidro ganhasse uma forma plástica, estética, retiniana. Texto e imagem complementam-se e formam 51

BATAILLE, 1987. p.55

52

DUCHAMP apud PAZ, 1977, p. 45

53

Ibid, p.14

35

assim o enigma do Grande Vidro, que foi deixado inacabado propositalmente pelo artista em 1923 e que ganhou diversas rachaduras provocadas por um acidente em 1926. Duchamp assumiu este acaso como parte da obra. Octavio Paz pontua que o título La Mariée mise à nu par ses célibataires, même já contém quase todos os elementos da obra: o significado de mise à nu, em francês vai muito além do nosso “despir-se”, de modo que é possível associar tal expressão à ideia de ato público ou rito. O sentido de ses célibataires indica que “o solteiro não é nem sequer pretendente e a noiva nunca será desposada”,54 enquanto o plural da expressão e o pronome possessivo “seus” confere a ideia de inferioridade dos machos. A compreensão do funcionamento desta máquina erótica criada por Duchamp não é unânime entre os diversos autores que fizeram leituras sobre ela. Ninguém de fato possui o entendimento integral do Grande Vidro e creio que era esta a intenção do artista: deixar a obra em aberto, inacabada, para que os espectadores pudessem, com seu olhar, completar o trabalho. O artista deixou o caminho a ser trilhado pelo observador: a Caixa Verde. Para Duchamp a obra de arte é fruto de dois pólos de igual importância: de quem a faz e de quem a vê. Reproduzo aqui, resumidamente, o funcionamento da máquina descrito por Octavio Paz: a parte superior do vidro é do domínio da Noiva que também pode ser chamada de Motor-desejo, Vespa e Fêmea pendurada. No topo temos uma figura parecida com uma nuvem, é a Via-Láctea e os três retângulos dentro dela se chamam Letreiro de Cima. A parte inferior trata do domínio dos Solteiros que são apenas moldes, não possuem existência de fato. Os nomes associados aos Solteiros são: Aparelho Solteiro, Máquina de Eros, Nove moldes machos, Cemitério de libres e Uniformes. Esta área do Vidro possui ainda outros elementos: o Carrinho que aloja um Moinho de Água, o Tamis que são os sete cones pendurados, o Moinho de Chocolate abaixo do Tamis e as Tesouras entre o Tamis e o Moinho de Chocolate. Na parte superior direita do domínio dos Solteiros estão as Testemunhas Oculistas, espectadores 54

PAZ, 1977. p. 30

36

de toda a operação erótica cuja origem está no Motor-desejo, um dos órgãos sexuais da Noiva, que é virgem. A Noiva envia a seus solteiros um fluido magnético ou elétrico por meio do Letreiro de Cima. Despertados pela descarga, os moldes se inflam e emitem, por sua vez, um gás que (...) passa pelos sete cones do Tamis, enquanto o Carrinho ambulante recita as suas monótonas litanias. O fluido filtrado pelos cones é convertido em um líquido, chega até as Tesouras que, ao fechar-se e abrir-se, o dispersam: uma parte na ‘região dos ‘salpicos’ [parte não pintada] e a outra, explosiva, dispara para cima e perfura o vidro. Nesse instante a Noiva 55 se desprende (imaginariamente) de suas vestimentas. Fim do ato.

Tal mecanismo erótico é cíclico: inicia na Noiva e termina nela. A Noiva comanda e não há contato direto entre ela e seus solteiros. Duchamp explica que o propósito desse mecanismo é o de fazer desabrochar a virgem. O Grande Vidro, mais do que uma ilustração ou representação, é um inventário desse desabrochar que trata da vida sexual da Noiva, plena de desejo mas que nunca será desposada. Calvin Tomkins assinala que a Noiva fica neste estado de “passagem” erótica entre o desejo e a satisfação sexual. Segundo ele, “a Noiva e os celibatários e, inevitavelmente, o observador estão suspensos em estado de permanente desejo”.56 Para Bataille, o casamento é um tipo de transgressão no sentido de que o primeiro ato sexual é uma violação sancionada, a infração permitida tal como é o assassinato dentro do sacrifício. Isso porque há sempre um pouco de perversidade no ato sexual, dentro ou fora do casamento, sobretudo quando é o primeiro ato, quando há uma virgem. Além do casamento, uma solução limitada à liberdade sexual, as festas – especificamente a orgia – possibilitavam a infração da lei, do interdito sexual, sem negar por completo a vida normal. A festa rompe temporariamente os limites da vida ordenada pelo trabalho. A orgia, porém, vai mais a fundo nesse rompimento, pois é pura subversão: rememorava o acordo arcaico entre a volúpia sensual e o êxtase religioso, indo assim para muito além da sexualidade animal. Pura atividade erótica. Ao liberar o fluxo do excesso, a orgia chegava à fusão ilimitada dos 55

PAZ, 1977. p.33

56

TOMKINS, 2004. p. 21

37

seres, o oposto do que permitiam os interditos.57 A orgia, para Bataille, era um momento de fervor religioso, o ponto máximo da verdade que se revelava no mundo do avesso da festa cuja origem é o mito báquico. Octavio Paz lê o Grande Vidro como uma cena da família de mitos relativos à Virgem, ideal de pureza, fertilidade, maternidade, doadora de vida. 58 Não seria, porém, um mito moderno, mas a visão moderna do mito. No entanto, quando Duchamp diz que a Noiva é a projeção de um objeto da quarta dimensão, (dimensão esta que é desconhecida) e deixa explícito que a origem do Vidro não pressupõe nenhuma preocupação religiosa ou anti-religiosa, tenta afastar qualquer ideia de concepção de divindade em sua obra de modo que não afirma mas também não chega a negar a metafísica. Ele, sabiamente, silencia, se abstém. Todo o mecanismo erótico presente no Grande Vidro, porém, tal como coloca Paz, traz consigo de modo implícito certa herança do pensamento religioso ocidental: O Grande Vidro é uma pintura infernal e bufona do amor moderno ou, mais claramente, de tudo o que o homem moderno fez com o amor. (...) O erotismo vive nas fronteiras do sagrado e do maldito. O corpo é erótico porque é sagrado. Ambas as categorias são inseparáveis: se o corpo é mero sexo e impulso animal, o erotismo se transforma em monótona função de reprodução; se a religião se separa do erotismo, 59 tende a tornar-se árida preceptiva moral.

Paz conclui que a visão duchampiana do mito da Virgem é irônica, crítica, uma vez que o artista não nega (ateísmo), não afirma e não é indiferente (agnosticismo) à metafísica. O Grande Vidro seria, assim, para este autor, um esforço para a renovação da ideia de pintura do passado (a janela que se abre para a contemplação do mundo) num contexto totalmente diferente: a modernidade, a era da crítica, pós Kant. Para Paz, o empreendimento de Duchamp reconcilia a arte com o espírito de sua época, a era da crítica. Voltando ao desabrochar da Noiva no Grande Vidro, Duchamp explica que este é “o último estágio da Noiva nua antes de acontecer o orgasmo que 57

BATAILLE, 1987. p.75

58

PAZ, 1977. p.36

59

Idem.

38

pode (ou poderia) causar-lhe a queda”.60 Seria este o prenuncio à Étant donnés? Duchamp não deixou registrada a resposta a essa pergunta, mas Octavio Paz acredita que sim. Enquanto a Noiva é uma aparência, uma ideia a ser decifrada no Grande Vidro, em Étant donnés ela se converte em presença. Étant donnés encarna o enigma do Grande Vidro não para elucidá-lo, mas para mostrá-lo de uma outra forma, não menos enigmática. Mas este não é o único paralelo entre as duas grandes obras de Duchamp. Em Étant donnés, nós, espectadores, voyeurs, ao espiar pelo furo na porta, encarnamos as Testemunhas Oculistas do Grande Vidro. Étant donnés não existe assim sem a nossa presença, sem nosso olhar, que, inclusive, reflete a Noiva. A operação continua circular: a Noiva desejosa se exibe, atrai nosso olhar de desejo e olhamos a Noiva que se vê nua em nosso olhar. O olhar sai dela e regressa a ela. Deste modo, segundo Paz, Étant donnés só se completa com o olhar do espectador. Você põe seus olhos nos buracos da porta espanhola, você vê uma vulva iluminada ao ar livre por uma lâmpada de 150 watts, sem pelos, e você acredita ter visto tudo que quer ver. O que você queria ver mesmo pelos buracos da porta? Justamente, após tê-lo visto, este buraco de mulher, você não sabe mais. Isto e não-isto. Buracos sobre buraco. (...) O que há a ver em um buraco? Um buraco, diz Madame 61 Rrose, é feito para ver, não para ser visto.

Eis o comentário de Jean-François Lyotard sobre a última obra de Duchamp. Palavras que nos fazem lembrar que, pelo furo da porta, vemos um outro paradigma de furo: a vagina da Noiva. Buraco sobre buraco, furo sobre furo. O furo que comporta nossos olhos, a órbita ocular, se conecta ao buraco na porta para ver o furo da vagina. Como se pode ver, a partir do erotismo, Duchamp deu bastante atenção aos furos dos corpos em sua obra. Mas não há como negar que a mulher nua de pernas abertas vista pelo buraco da porta em Étant donnés remete imediatamente a A Origem do Mundo (1866) (fig.6), flagrante nu de Gustave Courbet. Jean Clair confirma que em Duchamp, tal como em Ingres, Rodin e Courbet, o corpo da mulher e o 60

DUCHAMP apud TOMKINS, 2004, p.21

61

LYOTARD apud RIVERA, 2005. p.56

39

erotismo são fatores determinantes da obra. Esse grupo de artistas possui, para ele, “um singular, intoxicante, erotismo cerebral, às vezes obsessivo”.62 Clair vê em Étant donnés a colagem de duas grandes referências da pintura, ambas em Courbet: Mulher com papagaio (1866) (fig.7) – que Duchamp não poderia ter deixado de ver no Metropolitan Museun em Nova Iorque – e a mais evidente e importante: A Origem do Mundo. O realismo de Courbet tinha como norte retratar pessoas reais, veementemente humanas, fazendo coisas reais em lugares reais. Tal projeto artístico era naturalmente uma afronta à tradição da pintura, aos padrões neoclássicos e românticos do século XIX, ao retrato do corpo divino, sagrado com genitálias idealmente representadas. Courbet foge à convenção – tal como Duchamp, a seu modo, em Nu descendo a escada – e retrata um corpo feminino nu de pernas abertas com a vagina grosseiramente exposta, fenda úmida e negra em pelos. Como se não bastasse tal realismo, o título diz que é desta fenda úmida que viemos, lembra-nos de nossa natureza animal. Para Danto, Courbet – ao contrário do que se convencionou na tradição da pintura sobre a forma como a genitália feminina deveria ser representada, com ausência de sexo – demonstra que a mulher de fato possui algo extraordinário. A questão que interessa aqui é a razão pela qual isso que a mulher possui é tão raramente mostrado. Vagina: borda por onde palpita energia desejosa, borda que contorna o mistério de um furo: a origem do mundo. Octavio Paz, ao tratar de Étand donnés, revela: O enigma deixa-nos entrever o outro lado da presença, a imagem una e dual: o vazio, a morte, a destruição da aparência e simultaneamente a plenitude momentânea, a vivacidade no repouso. Presença feminina: verdadeira cascata em que se manifesta o escondido, o que está dentro das dobras do mundo. (...) A 63 condenação de ver-se converte-se na liberdade da contemplação.

62

CLAIR, Jean. Femalic Molds. Traduzido por Taylor M. Stapleton. Tout_fait: The Marcel Duchamp Studies Online Journal 2 (5). Disponível em: http://www.toutfait.com/issues/volume2/issue_5/news/clair/clair.html#N_14_ (originalmente publicado em Marcel Duchamp et le fin de l’art. Paris: Galimard, 2000) Acesso em julho de 2015. Tradução minha. 63

PAZ, 1977. p. 95

40

O curioso é que o nu anônimo de A Origem do Mundo se mantém provocador até os dias de hoje. Recentemente, a pintura de Courbet foi imagem de capa de duas publicações: Adorations perpétuelles de Jacques Henric e Pornocracia de Catherine Breillat. Ambos os livros sofreram episódios de censura: a primeira em livrarias das cidades francesas de Clermont-Ferrand e Besançon; e a segunda em uma feira em Braga, Portugal. E ainda, o artista dinamarquês Frode Steinicke, ao publicar em seu perfil do Facebook a imagem da pintura de Courbet, teve sua conta cancelada temporariamente sob a alegação de que as regras da rede social impedem a publicação de nudismo. 64 O texto descritivo da obra publicado no site do Museu d'Orsay diz que a pintura escapa ao caráter pornográfico graças ao virtuosismo e ao esquema de cores de Courbet, descendente de Ticiano, Veronese e Corregio. Mas que, A Origem do Mundo, ainda levanta a preocupante questão do voyeurismo. Seríamos voyeurs também em Étand donnés? A pintura foi encomendada a Courbet pelo diplomata otomano Khalil-Bey que montou uma efêmera, mas deslumbrante coleção dedicada à celebração do corpo feminino, antes de ter sido arruinada por suas dívidas de jogo.65 O destino da pintura é desconhecido até ser adquirida por ninguém mais, ninguém menos que psicanalista francês Jacques Lacan, seu último dono, teórico cujo pensamento acerca dos furos do corpo é precioso nesta pesquisa. Lacan precisava guardar A Origem do Mundo por baixo de uma outra pintura, para não causar desconforto nos vizinhos ou na empregada. Diz-se que a pintura de Courbet, nesta época, era mostrada apenas a alguns poucos conhecidos, dentre eles Marcel Duchamp.66 Imagens da obra começaram a ser divulgadas apenas nos anos 60 até que, em 1995, A Origem do Mundo passou 64

Facebook exclui usuário que expôs obra "A Origem do Mundo", de Courbet, em seu perfil. Uol entretenimento. Disponível em: http://entretenimento.uol.com.br/noticias/afp/2011/02/16/facebook-exclui-usuario-por-expor-noperfil-a-origem-do-mundo-de-courbet.htm. Acesso: ago de 2014. 65

The Origin of the World. Museu d'Orsay. Disponível em: http://www.museeorsay.fr/en/collections/works-in-focus/search/commentaire/commentaire_id/the-origin-of-theworld-3122.html?no_cache=1&S=2 Acesso: ago de 2014. 66

COELHO, Alexandra Lucas. A coisa bruta. Ipsilon Público. Disponível em: http://ipsilon.publico.pt/livros/texto.aspx?id=224625, 2003.

41

a

integrar

o

acervo

do

Museu

d'Orsay

em

Paris

e

ser

exposta

permanentemente. Portanto, é muito provável que o nu de Étand donnés seja uma homenagem de Duchamp não só a Courbet mas ao furo que é a vagina. Os muitos anos de inatividade de Duchamp fazem sentido quando consideramos a seguinte sentença: ele não trabalhava em seu projeto artístico, ele o vivia. Ou melhor, seu trabalho era viver seu projeto. “Mais difícil que desprezar dinheiro é resistir à tentação de fazer obras ou de transformar a si mesmo em obra”,67 disse Octavio Paz. Duchamp não se esforçava para vender suas obras, na medida em que a maioria era dada de presente. Ele se esforçou, ao contrário, para recuperar as que foram vendidas no passado por preços irrisórios. Esforçou-se para comunicar seu pensamento como uma totalidade. Seu projeto é esta totalidade. Projeto este que culminou no furo de Étant donnés.

67

PAZ, 1977. p.150

42

3.

PENETRANTES

[...] ter prazer, dar prazer, ter coragem, ser coragem, ser desprendida do ego, ser um fato artístico, agir com precisão de uma bomba teleguiada para aniquilar esta confusão meleca de sofrimento, anunciar a opção, o caminho a ser tomado, a direção, o ponto alvo, o X da questão. (Márcia X) 68

Em janeiro de 1960, John Cage participou de um programa de entretenimento da TV americana chamado I’ve got a secret. Ao entrar no palco, com ar sereno e até um pouco tímido, ele conta seu segredo ao pé do ouvido do apresentador que se mostra incrédulo ao ouvi-lo. O vídeo deste episódio de I’ve got a secret mostra neste momento, em legendas, o que é que o artista irá mostrar, o seu segredo: I’m going to perform one of my musical compositions… The instruments I will use are: a Water Pitcher, an Iron Pipe, a Goose Call, a Bottle of Wine, an Electric Mixer, a Whistle, a Sprinkling Can, ice cubes, 2 Cymbals, a Mechanical Fish, a Quail Call, a Rubber Duck, a Tape Recorder, a Vase of Roses, a Seltzer 69 Siphon, 5 Radios, a Bathtub and a GRAND PIANO.

A audiência ri e aplaude, talvez por não acreditar que não se trata de uma piada como o que costumavam assistir naquele programa. O apresentador pergunta a Cage sobre esta experiência sonora, como que testando sua seriedade. Cage o corrige: “experiência musical” e diz que na verdade ele fala sério, que considera a música como produção de som e que, portanto, o que irá apresentar é música. “Eles vão rir”, diz o apresentador referindo-se à audiência e Cage lhe responde: “prefiro o riso às lágrimas.” 70

68

Márcia X. Tornar Visível. Disponível em: http://www.marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=3&sText=37. Acesso em fevereiro de 2015. 69

CAGE. John. Episódio do programa I’ve got a secret. Produzido pela CBS. Janeiro de 1960. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Yybn6iKmYdQ. Acesso em abril de 2015. 70

Idem. Tradução minha.

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Uma vez que os rádios não poderiam ser ligados durante a performance por conta de uma disputa de emissoras, Cage tem a ideia de bater neles, o que gera surpresa na audiência. Em tom de mistério, o artista diz que, ao terminar, os rádios não ficarão sobre a mesa. Mais risadas do público e dele próprio. Abrem-se as cortinas. Veem-se então duas grandes mesas e entre elas uma banheira com água. Sobre as mesas, todos os objetos descritos. Por trás da mesa direita está o piano e por trás da esquerda, me parece, os amplificadores. O público se manifesta: “oh!!!”. Cage explica que o trabalho se chama Walterwalk porque na banheira contém água e porque ele caminhará ao longo da performance. O trabalho começa. O músico usa um relógio para marcar o tempo, de modo que todos os seus movimentos em relação aos objetos são bastante precisos (quanto mais assisto ao vídeo do trabalho, mais me dou conta desta precisão). Sons são retirados de dentro do piano com o peixe mecânico, o sinalizador é disparado, o peixe mecânico é colocado na banheira, gás da panela de pressão é liberado, tecla do piano é tocada, cubos de gelo colocados num copo de vidro, jarra é enchida com a água da banheira, parte interna do piano tocada, patinho de borracha apertado, vaso de flores colocado dentro da banheira e regado pelo artista. Este último gesto dispara risadas na audiência que daí por diante só aumentam, bem como o ritmo de Cage: panela de pressão, prato, vinho da garrafa para o copo, cubos de gelo no liquidificador, piano aberto violentamente, barra de ferro contra a banheira, tapa no rádio, assobio, tapa no rádio, prato na banheira, tapa no rádio, tapa no rádio, panela de pressão, pressão da garrafa de bebida, piano, pato, panela, golada no copo de bebida, gargalhadas, rádio derrubado, piano, assobio, gargalhadas, gargalhadas, rádio derrubado, rádio derrubado, gás da panela liberado, anda pra lá e pra cá, Cage tampa o orifício da panela, mais gargalhadas e, por fim, aplausos. A obra é completamente non-sense quando não se considera Duchamp e a aproximação de Cage com a filosofia zen-budista. Se Duchamp traz simbolicamente a Fonte, ou melhor, a água para sua obra, Cage o faz fisicamente e ao vivo. Em Walterwalk, a água se encontra em seus três

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estados: líquido, sólido e gasoso. A parafernália inerte de Cage, quando ganha o movimento de sua performance, mais parece inspirado no mundo imaginário do Grande Vidro – a máquina erótica de Duchamp. Seria Walterwalk também uma máquina erótica? Seria a água o fluido erótico responsável pelo funcionamento dessa máquina? Acredito que esta é uma significação possível para este trabalho de Cage. Não há nu em Walterwalk, mas há a banheira e a garrafa de vinho, o movimento da água e sua transmutação pelo som. Há o ritmo crescente, percussivo, além das gargalhadas. Por fim, há o ato público, o rito e seu executor – o próprio artista. Se o erotismo para Bataille, seja dos corpos, o sagrado ou o dos corações, conecta seres porque rememora a nostalgia de uma continuidade perdida, Walterwalk também rememora certa continuidade em cada movimento e som produzido pelo artista e as risadas subsequentes. É que todo mundo ri junto. Ao fim da apresentação, Cage solta espontaneamente seu riso e entra no ritmo do público. As risadas nos indicam a presença do público. Em nenhum momento vemos a audiência no vídeo, mas todos ali, por breves instantes, são uma única massa de risos soltos. Acrescento, inclusive, o meu próprio ao assistir ao vídeo, ainda que em tempo e espaço outros. É tudo riso. Vemos, ouvimos e rimos de Cage – vários furos do corpo são ao mesmo tempo estimulados. Segundo Octavio Paz, o riso é “signo de nossa dualidade”, porque somos sempre o eu o outro que ri, Mas as emissões violentas do falo, as convulsões da vulva e as explosões do cu nos apagam o riso da cara. (...) Agitados pela violência de nossas sensações e imaginações, passamos da seriedade à gargalhada. O eu e o outro se fundem; mais que isso: o eu é possuído pelo outro. (...) A gargalhada é uma síntese (provisória) entre a alma e o corpo, o eu e o outro (...) a gargalhada é um regresso ao estado anterior; voltamos ao mundo da infância coletiva ou individual, ao mito, ao jogo. Volta à unidade do princípio, antes do tu e do eu, em um nós 71 que abarca todos os seres, bestas e elementos.

É por isso que considero Walterwalk tão erótico. E já que se fala do músico Cage, um dos mais exemplares descendentes de Duchamp, os ouvidos 71

PAZ, Octavio. Conjunções e Disjunções. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979. p.14

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ganham notoriedade. Augusto de Campos encerra assim o prefácio do livro de conferências e escritos de Cage: HAPPY NEW EAR feliz anouvido novo (YEAR/EAR trocadilho intraduzível) NEW MUSIC: NEW LISTENING ou em canibalês brasileiro: ouvidos novos para o novo ouvir com ouvidos livres a música está ao seu redor por dentro e por fora 72 é só usar os ouvidos

Este capítulo, Penetrantes, trata precisamente de certas obras que penetram os furos do corpo porque os estimula, ainda que não diretamente, como veremos nas obras abordadas de Márcia X. O próprio corpo do artista é aqui um meio a ser investigado. Como a obra se mostra a quem a vê quando o próprio artista se expõe? Bruce Nauman expôs seu próprio corpo por meio do vídeo ou da fotografia. Ele, aliás, parece ter compreendido bem o erotismo subjacente a Duchamp. Em Autorretrato enquanto fonte (fig.8) de 1966, Nauman faz com a boca uma homenagem a Duchamp ao avesso, uma bela “deshomenagem”. Autorretrato enquanto fonte reproduz algo da vida cotidiana: uma brincadeira infantil muito comum que é encher a boca d’água e cuspir para fora o mais distante possível, tal como uma fonte. A referência a Duchamp é dupla: primeiro ao erotismo subjacente à sua obra, uma vez que usa seu próprio corpo a cuspir e isto apenas porque o caminho aberto por Duchamp lhe permitiu. E segundo, por conta da ironia do título referindo-se ao urinol, mas que mostra uma outra fonte. Nauman encarna a Fonte de Duchamp, ou a cascata de Étant donnés, e é o tempo todo ambíguo, por isso tão erótico: a boca, o furo do corpo que come e que fala é o mesmo que cospe, mas cospe enquanto fonte, cascata, a Fonte do seu mestre, um urinol invertido. Nauman, no entanto, diferente de Duchamp ou Cage não usa nenhum objeto, apenas

72

CAMPOS, Augusto de. In: CAGE, John. De Segunda a um ano. Tradução de Rogério Duprat; revista por Augusto de Campos. 2. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013. p. 27

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seu corpo e água, sua boca a cuspir a água. Assim como Cage, Nauman congela a água, mas não enquanto estado físico, e sim enquanto imagem. Como se vê, nas décadas de 60 e 70, a obra de Duchamp foi revista e revalorizada pelos artistas americanos. Viviane Matesco mostra que o corpo passou a ser, nessa época, um meio novo e autêntico, pois era um campo inexplorado. Se comparado a outros meios da modernidade, trabalhar com o próprio corpo era transgressivo, símbolo de liberdade, para os artistas da época. As artistas feministas voltadas à body art, por exemplo, através de seus corpos/selfs, buscaram denunciar o machismo embutido e camuflado dentro história da arte convencional. Por meio da exposição de seus corpos em ações dramáticas, apaixonadas e convulsivas, essas artistas desafiaram as ideologias machistas e racistas pelas quais se escorava o formalismo modernista. Vagina Painting (1965), performance de Shigeko Kubota realizada no Perpetual Fluxus Festival em Nova Iorque, na qual a artista introduz um pincel em sua vagina e, agachada, pinta com tinta vermelha o papel sob seus pés é o exemplo mais notório. Para além de toda a carga interpretativa que esta obra carrega ao longo dos anos, estaria a artista tentando conferir um poder, digamos, fálico ao furo que é sua vagina? Peggy Phelan em Unmarked, the politics of performance fala sobre a dimensão ausente na representação do feminino na cultura em detrimento da presença do masculino. Segundo a autora, Lacan e Derrida demonstraram que o pensamento binário da metafísica ocidental, em termos físicos e políticos, “distinguem e determinam valores” entre si, sendo um dos termos marcado com valor enquanto o outro é desmarcado. “O masculino é marcado com valor, o feminino é desmarcado, sem medida de valor e significado”.73 A própria teoria feminista passou a problematizar, no entanto, a existência desse sujeito que o feminismo quer representar. Judith Butler foi uma das pensadoras que, nos anos 90, se posicionou de forma mais radical nesta discussão acerca da identidade definida das mulheres. Butler também faz uma crítica ao modelo binário de pensamento ao apontar a inexistência desse sujeito a ser 73

PHELAN, Peggy. Unmarked, the politics of performance. London and New York: Routledge, 2006 (first published 1993; reprinted 1996, 1998, 2001). Tradução minha.

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representado pela teoria feminista. O feminismo, segundo Butler, só poderia funcionar dentro do humanismo, especialmente aquele que, para Heidegger, está vinculado a uma ideia de essência universal do homem, à metafísica, às identidades atribuídas às coisas.74 O informe batailleano, por exemplo, quando se opõe às categorizações do pensamento, vai de encontro a este mesmo humanismo, à ideia de um sujeito universal e à formação de identidades fixas. Os trabalhos de 60 e 70 tanto chocavam os espectadores quanto mostravam banalidades da vida cotidiana, estando a serviço da ideia de arte e vida. No entanto, conforme mostra Matesco, a reflexão radical acerca da representação já havia sido posta por Duchamp por meio dos ready-mades, bem antes desses trabalhos corporais. A autora explica que: Ao longo da década de 70 a performance acaba por se impor como meio que se desloca dessa busca de ideologia de um corpo libertário para tornar-se um processo mais intelectual. O processo inerente à arte conceitual retira o aspecto orgânico do corpo que passa a ser gradativamente compreendido como linguagem, como elemento 75 mediante o qual o artista estabelece códigos e mensagens.

Para alguns autores, a palavra perfomance designa apenas os fenômenos que acontecem ao vivo. Já Matesco pensa a performance enquanto categoria das artes visuais, enquanto meio, uma vez que tantas décadas já se passaram depois dos primeiros trabalhos corporais. Artistas como Bruce Nauman e Vito Acconci, por exemplo, conceberam trabalhos a partir do pressuposto da imagem, separando-se, assim, de seus corpos. Tal distância entre o artista e seu próprio corpo tornou este um meio como qualquer outro, segundo Matesco. E assim, as performances a partir dos anos 70 em relação ao vídeo ou à fotografia, provocam suspensão e distanciamento temporal. É o que faz Autorretrato enquanto fonte de Nauman, ainda que seja uma obra de 1966. Entre os anos 80 e 2000, a brasileira Márcia X concebe uma obra, na maioria das vezes com seu próprio corpo, cujo erotismo é pulsante. Escolho 74

RODRIGUES, Carla. Butler e a desconstrução do gênero. In: Revistas Estudos Feministas. Florianópolis. Jan/Abr, 2005. p.180 75

MATESCO, Viviane. Corpo, ação e imagem: consolidação da performance como questão. Revista Poiésis, n. 20, p. 105-118, 2012. p. 112

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tratar aqui de duas obras desta artista: Ação de Graças (2001) (fig.9) e Desenhando com terços (2000-2003) (fig.12). Roberta Barros de Carvalho, em sua tese de doutorado, propõe pensar em como nosso descaso histórico acerca das demandas feministas contribuiu para que as artistas brasileiras, como Márcia X, se desviassem de algumas “armadilhas” em seus trabalhos de arte, como: “a fixação na concepção moderna do corpo reificado, a reprodução de interpretações distorcidas das teorias psicanalíticas, a recorrente investigação dos jogos das múltiplas ‘subjetividades femininas’”.76 A autora esclarece que o mito da democracia racial, aqui no Brasil, se manifesta também no pensamento sobre a diferença entre gêneros e se mostra uma construção sofisticada de preconceito. Segundo ela, a figura do(a) mulato(a), por exemplo, atrapalha a percepção dos mecanismos de poder responsáveis pela exploração política e social e essa lógica adiaria o confronto direto entre raças, tal como se estabeleceu no contexto norte-americano. Este mesmo raciocínio equivaleria à diferença entre gêneros, se considerarmos a posição simbólica vantajosa da figura da mulata – a sensual mulher brasileira. Roberta Barros rememora o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, escrito, segundo o próprio autor, com base no registro de Montaigne, publicado em 1580, sobre o canibalismo no litoral brasileiro.77 Ao buscar as origens da cultura brasileira no Modernismo da década de 20 (e que tanto repercutiu na década de 60), Oswald, em seu manifesto, nega o mito da democracia racial. Segundo Barros, Andrade reelabora de forma inovadora a negatividade que permeava o conceito de antropofagia, transformando-a em um suposto processo crítico gerador de uma hipotética cultura brasileira autônoma. Ao mesmo tempo, entretanto, essa contribuição de artistas e literatos antropófagos promoveu a atualização das ideias de miscigenação – que, como vimos, abafam o preconceito que marca a experiência 76

BARROS, Roberta. Arte feminista ou feminina: uma questão do contexto histórico brasileiro? 2013. 26 f. Tese. (Doutorado em Linguagens Visuais) Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013. p.26 77

Ibid. p. 62

49

social cotidiana de negros e mulheres no Brasil – e reforçou sua 78 centralidade simbólica na nossa expressão cultural.

Entendo, no entanto, que, em seu contramito antropófago, o poeta modernista vai além quando introduz o manifesto, dizendo: “Só a antropofagia nos une” e ainda: “Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz”.79 Antropofagia: contramito que passa pelo corpo e que no comer e no defecar estimula dois de nossos furos: a boca e o ânus. Oswald fala da era moderna até então vivida por ele, profundamente influenciado, digase de passagem, por Freud. Ainda que trate de um contexto local, Oswald não deixa de incluir a humanidade em sua escrita. Márcia X herdou o procedimento antropofágico de seus precursores, mas em relação a eles se expôs deliberadamente ao olhar do outro de forma mais frequente e radical. É por isso que Márcia X protagoniza este capítulo Penetrantes – pela violência que nos interpela ao tomarmos conhecimento de suas ações. Talvez seja isso que a artista chame de “ser um fato artístico” – é preciso certa violência para ser contundente. Segundo Lauro Cavalcante: Pertencente a uma geração que privilegiou a pintura e a celebração da alegria, Marcia lançou mão de objetos e performances para tornar mais complexa a discussão e fixar uma estética do ‘mal-estar’. Iniciada nos oitenta, a sua obra se conecta com a linguagem experimental dos anos setenta e antecipa, de certo modo, posturas 80 que se estabeleceram na geração seguinte.

As ações de Márcia nos descem goela abaixo, de modo muito próximo ao que faz Cage com o som em Waterwalk. Aliás, quando Cage, já consagrado, veio ao Brasil, Márcia X, em parceria com Alex Hamburguer, invadiram o palco de sua apresentação como que para lembrá-lo de seu passado transgressor. Ricardo Basbaum comenta:

78

BARROS, 2013. p. 63

79

ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. Revista de Antropofagia, São Paulo, ano 1, n.1, maio de 1928. p.3 80

CAVALCANTE, Lauro. Estética do Desconforto. Disponível em: http://www.marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=36. Acesso em fevereiro de 2015.

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Filtrando motivações Dada&etc (com Duchamp-Cage-Fluxus in the background), as performances de marca M.X.&A.H. invadiram espaços in and off, muitas vezes sem pedir licença. Ousadia e lucidez não faltaram em Tricyclage (1987), realizada no concertohomenagem a John Cage, na Sala Cecília Meireles (RJ): enquanto 97% da platéia exibia reverência ao criador de 4´33", Márcia e Alex enxergaram mais longe e, sem avisar ninguém – nem o próprio Cage, que lá estava –, subiram ao palco para pedalar velocípedes durante uma peça para pianos: naquele instante, Winter Music era rebatizada como Música para dois velocípedes e pianos. A ação foi precisa, pontual; M.X.&A.H. avisavam: ‘estamos atentos, sabemos que as linguagens da arte conquistam sua densidade experimental à custa de disponibilidade invasiva e excessiva, que não espera por 81 permissão oficial’.

A obra de Márcia X enfrenta corajosamente a mais arraigada das instituições, aquela que permanece viva por trás de tantas outras, porque vive em nossos corpos: a Igreja. O longo vestido branco e o longo cabelo solto usados nas ações nos transportam para um tempo não vivido por nós, mas vivo em nossas condutas, como herança. O camisolão branco que veste o corpo ousado da artista é símbolo de pureza, de moça virgem, e rememora um passado não tão distante. Ação de graças: dar graças aos bons acontecimentos do ano, celebram os norte-americanos com um farto jantar. Márcia X, em Ação de graças, gratuitamente se oferece a outro olhar, deitada de pernas semi-abertas, como se fosse parir, sobre um gramado verde dentro de um cubo branco – uma das galerias do Espaço Cultural Sérgio Porto no Rio de Janeiro. A artista tem seus pés enfiados em galos, pelas cloacas, cada pé em um galo. “Vai tomar no cu”, é como se dissesse, mas diz cheia de graça. Pérolas cravejam os galos que, além disso, usam pequenas coroas douradas nas cristas e nos pés (fig.10). Delas partem fios finíssimos, também dourados, até a parede, sustentados por mais duas pequenas coroas. “Viva o rei!”, é como se, mais uma vez, dissesse. Carruagem de galos, gata borralheira, mãos logo abaixo do peito como se dormisse, movendo, porém, a cabeça pra lá e pra cá. Sonhando, ela espera seu príncipe? “Nestes trabalhos, imagens e ações habituais parecem contaminados pela lógica dos milagres, contos da carochinha, sonhos e

81

BASBAUM, Ricardo."X": Percursos de alguém além de equações. Disponível em: http://www.marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=43. Acesso em fevereiro de 2015.

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pesadelos”,82 coloca a artista ao comentar uma série de performances / instalações das quais Ação de graças faz parte. Sabão em pó, grama, terços católicos, bacias, são materiais e objetos muito comuns, mas ao serem usados de forma deslocada, como os galos nos quais enfio meus pés (galos de verdade cravejados de pérolas) em Ação de graças, levam-nos a perceber como são absurdas imagens até então consideradas corriqueiras e inofensivas. Por exemplo, pessoas usando pantufas em forma de coelhos de 83 pelúcia.

Próximo à parede oposta às coroas existem duas bacias, daquelas antigas, cheias de um líquido branco e viscoso. Associar o líquido branco das bacias a sêmen é irresistível. Ao término da ação, a artista retira cuidadosamente seus pés de dentro dos galos, se levanta e vai até as bacias. Mergulha seu pé esquerdo no líquido da bacia à esquerda, retira o pé e carrega a mesma bacia até os galos. Pára e despeja no galo à direita todo o líquido branco. A artista faz o mesmo procedimento com o outro pé e a outra bacia, desta vez despejando o líquido no galo à esquerda (fig.11). A ação encerra com os dois galos, as duas bacias e a artista olhando-os de frente. Ação de graças se dá, assim, aos pares. Em Ação de graças, Márcia X denuncia as finas conexões entre religião, moral, machismo e poder, ontem e hoje. É preciso coragem para percorrer de forma íntegra o caminho aberto por Duchamp. É preciso coragem para desvirginar a sua Noiva. É o que Márcia X faz com tamanha destreza, seja ao usar materiais convencionais em usos não convencionais, seja ao utilizar seu próprio corpo na ação, quase que como o emprestando à encarnação de uma virgem. Apesar de a artista afirmar que muitos de seus trabalhos, incluindo Ação de graças, reúnem componentes característicos de “obsessões culturalmente associadas às mulheres como sexo, beleza, alimentação, rotina, consumo e limpeza” 84 acredito que, para muito além disso, Márcia fala sobre o 82

Márcia X. Tornar Visível. Disponível em: http://www.marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=3&sText=37. Acesso em fevereiro de 2015. 83

84

Idem.

Márcia X. Texto de Márcia sobre as performances. Disponível em: http://www.marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=3&sText=26. Acesso em fevereiro de 2015.

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gênero humano e sobre sua relação com a realidade, tal como Duchamp, para além do readymade, fala de erotismo. São poucas as fontes textuais com referência a Ação de graças, mas tomo aqui a liberdade de fazer algumas livres associações buscando destrinchar significados desta obra. A primeira delas é que gramado me lembra futebol, a “paixão nacional”. A princípio não confiei muito nesse palpite, mas ao me deixar levar pelas outras obras da artista, pelos seus escritos e textos lidos sobre ela e um pouco pela minha intuição, acredito que a ideia de “paixão nacional” encaixa muito bem nesta leitura crítica sobre Ação de graças. “Tomar a cidade como uma experiência impregnante, que envolve todos os sentidos, participando do fluxo das multidões e dos objetos me leva a refletir a cultura que lhe é própria.” 85 diz a artista em texto onde coloca a importância do Saara, mercado popular no centro do Rio de Janeiro, em sua pesquisa artística. A ideia de fluxo lembra a forma como o futebol, aqui, move paixões. Além do gramado, temos a coroa, de modo que associar a “paixão nacional” ao “rei” Pelé não foi difícil. Ri de mim mesma quando constatei que este vínculo também poderia ser uma referência a Duchamp e sua vida dedicada ao xadrez. A associação entre o ouro e o excremento que Octavio Paz faz em Conjunções e Disjunções pode bem lançar luz ao significado do uso da coroa na obra da artista. Paz, notadamente influenciado por Freud, pontua e desenvolve a ideia de alguns autores acerca do excremento como “essência simbólica” da modernidade.86 Ele explica que se a nível social a modernidade possuiu uma idade de ouro, a nível individual o homem também o teve: foi o tempo do erotismo anal infantil. Tal associação entre o ouro e o excremento constituiria a história secreta da sociedade moderna porque ambos já foram adorados pelo homem: A condenação do excremento pela Reforma, como encarnação ou manifestação do demônio, foi o antecedente e a causa imediata da sublimação capitalista: o ouro (o excremento) convertido em cédulas 85

Márcia X. Natureza humana. Disponível em: http://www.marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=3&sText=44. Acesso em fevereiro de 2015. 86

PAZ, 1979. p.25

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de banco e em ações. (...) As privadas são o lugar infernal por definição. O lugar da podridão é o da perdição: este mundo. A condenação deste mundo é a condenação da putrefação e da paixão 87 de acumulá-a e adorá-la (...)

A relação entre a economia capitalista e a ética protestante se destaca em “Conjunções e Disjunções”, na medida em que, como se sabe, o ouro na modernidade se torna moeda abstrata, deixa de ser acumulado para se multiplicar por meio da circulação, “se transforma no sangue invisível da sociedade mercantil e circula, inodoro e incolor, por todos os países. É a saúde das nações cristãs”.88 É curioso, segundo Paz, como a transmutação do ouro em signo de todas as mercadorias, ou seja, sua moralização “é paralela à expulsão das palavras sujas da linguagem e à invenção do ‘reservado’ inglês. O banco e o W.C. são expressões típicas do capitalismo”.89 Como veremos adiante, Paz evoca a história das religiões para falar sobre a política moderna. Ouro versus excremento – a condenação e a sublimação do excremento no protestantismo também teve suas exceções, conforme relembra Paz sobre o barroco espanhol, período de disputa acirrada entre o corpo e a alma, ou, em outros termos, entre o cu e a cara. O corpo tenta a alma, quer queimá-la com a paixão para que ela se precipite no negro abismo. Por sua vez, a alma castiga o corpo; castiga-o com o fogo porque quer reduzi-lo a cinzas. O martírio da carne é, de certa forma a contrapartida dos autos-de-fé e das queimas dos hereges. E também dos sofrimentos da alma, crucificada na cruz ardente dos sentidos. Nos dois casos o fogo é purificador. (...) Mas é tal o poder da paixão, ou tal a capacidade de prazer do corpo que o incêndio se transforma em gozo. O martírio não extingue e sim ativa o prazer. As contorções dos membros abrasados alude a 90 sensações que entretecem delícias e tormentos.(...)

Ainda sobre o barroco espanhol, sobretudo na poesia, ele conclui: “Almas e corpos chamuscados. Na nossa arte barroca o espírito vence o corpo mas o

87

PAZ, 1979. p.26

88

Ibid. p.27

89

Idem.

90

Ibid. p.32

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corpo encontra ocasião para se glorificar no próprio ato de morrer. Sua desgraça é seu monumento.” 91 Paz questiona o motivo pelo qual não existe uma história acerca das relações entre a cara e o cu, o corpo e a alma, a vida e a morte e acredita ser pela mesma razão pela qual não temos uma história universal do homem. Sua ideia em Conjunções e Disjunções é propor, assim, um ponto de partida para a escrita desta história que englobe todas as culturas e civilizações, uma sintaxe universal entre as palavras corpo e espírito, sexo e face, vida e morte. A relação entre esses termos pares existiu, para Paz, em todos os lugares e em todos os tempos. Sempre houve um certo “circuito biopsíquico que vai de vida a sexo a espírito a morte a vida”92, (...) “uma espécie de combinatória de signos centrais de cada civilização”.93 Talvez este “circuito biopsíquico” explique o motivo pelo qual para falar da arte de hoje que evoque os furos do corpo eu necessite falar de erotismo e de religião. Paz toma da antropologia estrutural o método para sua investigação. Por meio da comparação, ele coloca que o fundamental são as relações de oposição e afinidade entre as palavras, porque é isso que conhecemos das civilizações: os nomes. O autor nomeia, então, dois signos que possam aglutinar todos os outros signos pares de todas as culturas: corpo e não-corpo. Tais signos não possuem um significado específico, expressam apenas uma relação contraditória entre si e o auxiliam no traçado de um comparativo mais claro entre a história do Oriente e do Ocidente. Por meio de um denso ensaio, Paz mostra que a relação entre os signos corpo e não-corpo no Oriente (Índia e China) foi pautada pela conjunção enquanto no Ocidente pela disjunção dos mesmos. Paz mostra que o tantrismo (tanto hindu como o budista) e o protestantismo são religiões extremamente opostas entre si. Ainda que ambas resolvam o conflito entre corpo e espírito em benefício do espírito, elas o fazem 91

PAZ, 1979. p.32

92

Ibid. p.41

93

Ibid. p.47

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de forma exagerada e oposta. Enquanto o tantrismo postula a total reintegração entre corpo e espírito com, por exemplo, ritos orgiásticos, o protestantismo separa corpo e espírito de forma radical de modo a exagerar o horror cristão pelo corpo. De toda a extensa lista comparativa entre ambas as religiões que Paz enumera, considero importante trazer aqui a ideia ferozmente reprimida pelo protestantismo que é a união de princípios opostos – masculino e feminino. Já o tantrismo admite que há o lado masculino na mulher e o feminino no homem. Enquanto o protestantismo acentua a divisão entre o sagrado e o profano, o lícito e o ilícito, o tantrismo propõe a anulação dessas diferenças. O primeiro, disjunção: corpo / não-corpo. O segundo, conjunção: corpo / não-corpo. Outra diferença interessante entre a religião indiana e a ocidental colocada por Paz e que vale a pena integrar este texto é que, no tantrismo, sendo o erotismo sagrado, a prática da retenção do sêmen é central, pois, por meio dela, se atinge a iluminação – o não-corpo. No protestantismo, por outro lado, o erotismo é meramente genital e Paz o associa ao extremo oposto da religião indiana: a ejaculação rápida e, portanto, uma atividade sexual frustrante. De todo modo, o sêmen como doador de vida é uma ideia presente em todas as sociedades. Paz estende sua investigação até a civilização chinesa. Lá, tanto para confucianos quanto para taoístas, “o arquétipo da ordem humana é a ordem cósmica” 94 de modo que a concepção básica sobre a sociedade, natureza e sexo se encontra no cosmos. O fundamento do I-Ching (Livro das Mutações), por exemplo, reside neste mesmo princípio: a natureza e suas metamorfoses. Assim, o cosmos é concebido “como uma ordem composta pelo ritmo dual (...) de dois poderes ou forças: o céu e a terra, o masculino e o feminino, o ativo e o passivo, yang e yin”.95 É uma concepção totalmente distinta da separação e

94

PAZ, 1979. p.89

95

Ibid. p.93

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imaterialidade protestante e da anulação dos contrários no tantristmo. O IChing foi, aliás, bastante utilizado por John Cage em suas composições. 96 No homem, a produção de sêmen, conforme acreditam os chineses, é limitada, enquanto a mulher produz um fluido vital feminino chamado Ch’i, de forma ilimitada. O homem deve preservar seu sêmen o máximo possível e deve também se apropriar do Ch’i feminino. A cunilíngua é, aliás, uma popular prática sexual entre os chineses que, como acreditam, contribui para a absorção do fluido feminino. 97 O corpo humano, sendo um duplo do corpo cósmico, como acreditam os chineses, alude às formas da natureza. Sobre a pintura de uma paisagem chinesa, por exemplo, Paz coloca: (...) não é uma representação realista, mas uma metáfora da realidade cósmica: a montanha e o vale, a cascata e o abismo são o homem e a mulher, yang e yin em conjunção e disjunção. (...) Na China o corpo é uma alegoria da natureza: riachos, ribanceiras, picos, 98 nuvens, grutas, frutas, pássaros.

E assim a erótica chinesa segundo Paz nos remete a Étant donnés de Duchamp: Étant donnés: 1. La chute d’eau; 2. Le gaz d’eclairage. (Sendo dados: 1. A cascata; 2. O gás de iluminação.) – como numa espécie de equação, Duchamp nos oferece um par de contrários: a água e o fogo. O Livro segundo: o material do I-Ching nos diz: Há um espírito misterioso presente em todos os seres, e que atua através deles. Entre tudo que movimenta as coisas, nada é mais veloz que o trovão. Entre tudo que curva as coisas, nada é mais rápido que o vento. Entre tudo que aquece as coisas, nada resseca mais que o fogo. Entre tudo que alegra as coisas, nada traz mais contentamento que o lago. Entre tudo que umedece as coisas, nada é mais úmido que a água. Entre tudo que dá início e fim às coisas, nada é mais glorioso que a quietude. Por isso a água e o fogo se complementam, o trovão e o vento não atrapalham um ao outro, as forças da montanha e do lago atuam convergindo. Somente assim é possível a modificação e a transformação. Somente assim os seres podem alcançar a perfeição.

96

CAMPOS, Augusto de. In: CAGE, 2013. p. 27

97

PAZ, Op. Cit., p.94

98

Idem.

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(...) Cada uma dessas forças atua numa determinada direção, mas há movimento e mutação apenas porque essas forças não se anulam uma à outra mas, agindo como pares complementares de opostos, 99 impulsionam a dinâmica cíclica da qual depende a vida do mundo.

Depois desse breve percurso pelos conceitos-chave das principais religiões do Oriente e do Ocidente, segundo Octavio Paz, é pertinente voltarmos à Márcia X. A ideia de religiosidade presente no trabalho da artista, se faz de uma forma específica, digamos, “abrasileirada”, ou melhor, antropofágica. A meu ver, a artista, além de evocar, ao longo de sua trajetória, aquele sentimento oceânico, segundo Freud e descrito por mim no início do capítulo Borda, também se pauta pela conjunção corpo / não-corpo, aos moldes do que descreve Paz. Isso porque as performances de Márcia não são, naturalmente, ritos religiosos no sentido de uma doutrina religiosa específica, mas são ritos artísticos aliados ao que há de conceitual em cada trabalho. Os relatos de quem assistiu seus trabalhos ao vivo são apaixonantes, e somente um rito é capaz de despertar tal paixão em quem o vê. Não posso descrever os relatos que já ouvi sobre as apresentações de Márcia X porque a memória me falha, mas posso dizer que tais relatos entraram por meus ouvidos (dois furos que possuo em meu corpo), e foram ditos por algumas bocas, professores e amigos diversos do meio de arte que a conheceram (outros furos de outros corpos). A transmissão das apresentações de Márcia chegou até mim via oral – por meio de furos dos corpos um sentimento me foi transmitido – sentimento que eu diria inexplicável se eu não tivesse o conhecimento do sentimento “oceânico” de Freud e da ideia de continuidade em Bataille. Foram por tais relatos que Márcia X se tornou para mim, referência, antes de visualizar os registros de suas obras ou ver exposições com seus trabalhos e arquivos. Eu sequer estudava arte quando Márcia X faleceu. Mas ela deixou para mim um rastro – sua obra na memória de quem a viu ao vivo e oralmente me transmitiu.

99

Livro segundo: o material. I-Ching do UOL. Versão online do "Livro das Mutações" publicada pela Editora Pensamento. Disponível em: http://www1.uol.com.br/iching/livro2.htm . Acesso em abril de 2015.

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Segundo a própria artista, a ideia para Ação de graças nasceu da prática de preparar bichos para comer junto com o costume de calçar pantufas em forma de bichos.100 Bataille mostra que através dos costumes dos povos arcaicos e de documentos da antiguidade que os primeiros homens consideravam os animais mais sagrados que a si próprios. Tanto que os primeiros sacrifícios religiosos eram de animais, não porque estes substituíam homens, tal como ocorreu mais tarde, mas porque os animais eram, de fato, divinos nestes primeiros tempos. A compreensão do sacrifício animal, para Bataille, leva à compreensão da animalidade nas cavernas pintadas. A observação dos interditos mais antigos juntamente com a transgressão organizada dos mesmos leva à noção desta divindade animal. Pouco se sabe sobre a vida erótica dos homens destes tempos, mas não se pode ignorar o “espírito da transgressão” do “deus animal que morre” durante esses primeiros sacrifícios.101 Os sacrificados levavam nossas petições aos Deuses. Mas para falar mais de sacrifico é preciso voltar às ideias de continuidade e descontinuidade formuladas por Bataille. A morte espetacular, sacrificial, de um ser descontínuo, é capaz de revelar à coletividade a ideia de continuidade perdida. “O sagrado é justamente a continuidade do ser revelada aos que fixam sua atenção num rito solene sobre a morte de um ser descontínuo”.102 A contemplação angustiante da morte que é a transgressão da lei, confere aos homens, seres descontínuos, a experiência da continuidade divina. Ou, a transgressão da lei (lei que funda a humanidade) está associada à experiência da continuidade divina. Quando o sacrifício de animais não mais pareceu angustiante ao homem, porque este não se identifica mais com aquele, passa-se a sacrificar homens. Posteriormente, ao se estabelecer a civilização, vítimas animais eventualmente retomam o lugar dos homens ou surgem sacrifícios simbólicos como no 100

REYNAUD, Ana Teresa Jardim. Sem Título. 2005. Disponível em: http://www.marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=32. Acesso em fevereiro de 2015. 101

BATAILLE, 1987. p.56

102

Ibid. p. 55

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cristianismo. “Foi preciso chegar a um acordo com uma exuberância cujo limite é a profusão da morte, mas mesmo assim foi preciso ter força. Senão a náusea prevaleceria, reforçando o poder dos interditos.” 103 O sentimento dos antigos relacionado à contemplação do sacrifício, para Bataille, só poderia ser restituído por uma experiência interior, nunca pela ciência, que é o que agita a vida moderna. Ele compara a convulsão dos órgãos em sangue no sacrifício com a convulsão erótica dos amantes. No sentido da experiência interior, o sentimento de contemplar a violência da morte da vítima num sacrifício seria semelhante àquele que toma os amantes no ato sexual. Ambos põem em movimento a carne: A carne é o inimigo que nasce dos que são possuídos pelo interdito cristão. Mas se, como eu creio, existe um interdito vago e global que se opõe à liberdade sexual sob formas dependentes de tempos e lugares, a carne é a expressão de uma volta dessa liberdade 104 ameaçadora.

Bataille pontua, inclusive, a diferença entre e carne crua, sanguinolenta, fervilhante, ingerida em ritos sagrados antigos e aquela que temos hoje sobre nossa mesa, preparada, cozida, inanimada. Desenhando com terços (fig.12), performance de Márcia X, cujo resíduo é uma instalação, foi censurada pelo Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro, em 2006. Isso porque a artista vestida com o mesmo camisolão branco, desenharia no chão da galeria uma teia de pênis eretos utilizando terços brancos. O que Márcia faz é profanar um dos maiores símbolos católicos – o Santo Rosário de Nossa Senhora? Foi o que entenderam os censores da obra. Ricardo Basbaum fala sobre Desenhando com terços realizada no Centro Cultural Casa de Petrópolis por seis horas ininterruptas: Arrancar de um dos símbolos religiosos algo que está ali inscrito (o perigo da carne) e que os imperativos morais da religião preferem ocultar, privilegiando o espírito desencarnado. Com uma manobra quase singela, em meio à grande concentração, rigor e devoção que permeiam essa longa e exaustiva ação, Márcia X. coloca em

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BATAILLE, 1987. p. 58

104

Ibid. p. 61

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movimento através do ícone fálico uma fonte de energia inesgotável 105 (virilidade), da qual visivelmente se alimenta.

Em 2010, Pedro Costa, em performance durante o 13º Salão de Artes Visuais da Cidade do Natal, Rio Grande do Norte, ajoelha-se nu diante do público e, de quatro, retira do seu cu um terço, conta por conta (fig.13). O artista, em depoimento, diz que sua ação fala sobre “a descolonização do corpo através da excreção do terço, um dos símbolos do domínio colonialista. E, ao mesmo tempo, expurgar a interdição católica sobre o prazer anal e afirmar o prazer da sodomia.”106 Vimos na investigação batailleana acerca dos povos antigos que, se o interdito rejeitava a violência, a transgressão a liberava, porém de modo organizado. Bataille mostra, no entanto, que o cristianismo, em sua essência, se opôs ao espírito da transgressão, aquele que tinha a violência organizada como norte. “O cristianismo nunca abandonou a esperança de reduzir, no final, este mundo da descontinuidade egoísta no reino da continuidade inflamado pelo amor.”107 Se o homem é ser individual, descontínuo, o é a partir dos interditos e do mundo do trabalho que o levou à razão. Antes do cristianismo, Bataille explica, a humanidade procurou sair momentaneamente deste mundo descontínuo do trabalho e dos interditos por meio da violência da transgressão, adentrando, assim, no mundo do sagrado, de modo a buscar a continuidade perdida para suportar o conhecimento que o próprio mundo descontínuo lhe ofereceu: o conhecimento da morte. Bataille mostra que o cristianismo, por sua vez, pregou a superação da violência em prol do amor de uns pelos outros porque todos teriam sidos criados por Deus e introduziu, neste sentido, profundas mudanças na esfera do sagrado, no mundo da continuidade. Esqueceu, inclusive, as origens desse mundo contínuo, negligenciou as vias pelas quais o homem, durante tanto tempo, havia experimentado a 105

BASBAUM, Ricardo."X": Percursos de alguém além de equações. Disponível em: http://www.marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=43. Acesso em fevereiro de 2015. 106

COSTA, Pedro. In: TRIGO, Luciano. Artista plástico ‘descoloniza o corpo’. G1, março de 2010. Disponível em: http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/2010/03/27/performanceem-natal-gera-polemica/ Acesso em abril de 2015. 107

BATAILLE, 1987. p.78

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continuidade. Bataille descreve com detalhes tal mudança operada pela religião cristã: Seu primeiro movimento confiava tudo à continuidade, mas num segundo movimento o cristianismo teve o poder de retomar o que sua generosidade desmedida tinha dado. Assim como a transgressão organizava a continuidade nascida da violência, o cristianismo fez entrar essa continuidade, a que ele se arrogava todo o direito, no quadro da descontinuidade. Ele não fez, é verdade, senão ir até o fim de uma tendência já forte. Mas realizou o que antes só estava esboçado. Reduziu o sagrado, o divino, à pessoa descontínua de um Deus criador. Bem mais, ele fez, geralmente, do além desse mundo real o prolongamento de todas as almas descontínuas. Povoou o céu e o inferno de multidões condenadas junto com Deus à 108 descontinuidade eterna de cada ser isolado.

Segundo Bataille, o paganismo contemplava tanto o puro quanto o impuro dentro da esfera sagrada, esta que fundamentalmente se opunha ao mundo profano. O cristianismo, influenciado pela mitologia judaica, construía novos limites para o sagrado, de modo a rejeitar a impureza, o pecado, relegando-os ao mundo profano. É sabido que a punição era prometida a quem retirasse do pecado o sentimento do sagrado. E o sagrado, no cristianismo, se ligava apenas ao bem e ambos, sagrado e bem, designavam a parte divina, não havendo mais nada de impuro e maldito dentro deste domínio. Bataille identifica um formalismo nesta operação cristã: o puro e o sagrado versus o impuro e profano, limites precisos que foram estabelecidos pela Igreja para separar o que é sagrado (ou religioso) do que é profano. Ele identifica, inclusive, a repercussão deste formalismo no domínio da ciência (a associação humanamente significativa do lado direito ao puro e do lado esquerdo ao impuro), ao passo que alguns autores, como o próprio Bataille, ressaltam a grande complexidade do domínio religioso, ou a “ambiguidade do sagrado”.109 Essa operação formalista cristã culminou no desaparecimento do caráter sagrado do erotismo. “A evolução do erotismo é paralela à da impureza”, diz

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BATAILLE, 1987. p.79

109

Ibid. p.81

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Bataille.110 O erotismo se aproximava, assim, do Mal profano. No mundo pagão, “a violência do erotismo era capaz de criar angústia, e até nojo, mas não era assimilada ao Mal profano, à violação das regras que garantem razoavelmente, racionalmente, a conservação dos bens e das pessoas.” 111 Naturalmente, esse distanciamento entre o erotismo e o sagrado não aconteceu de uma hora para outra. Mas, infelizmente, sabe-se muito pouco sobre os rituais pagãos, dada a repressão de que foram alvos na Inquisição. Nossa pouco confiável fonte de informação, como pontua Bataille, são as confissões dos torturados diante dos juízes dos processos de feitiçaria, afinal, submetidas à tortura, as vítimas podiam dizer o que os juízes desejassem que elas dissessem. Quando associamos as ações de Márcia X ao que nos traz Bataille e Octavio Paz acerca do erotismo no homem, me parece que é o cristianismo que hoje profana nossas zonas erógenas, estas que, dependendo dos estímulos, cumpriam no passado a função do sagrado para a humanidade. O absurdo de enfiar os pés nos bichos em forma de pantufas hoje é absurdo porque traz, precisamente, essa herança mais primitiva. É este o furo de Ação de Graças num misto de horror e prazer sexual: a artista enfia seus pés nas cloacas de galos de verdade. É como se Márcia X substituísse dois corpos humanos por dois galos – é o seu sacrifício. É o modo como a contemporaneidade pode, publicamente e em forma de rito, estimular nossas zonas erógenas: por meio da arte somos capazes de voltar ao corpo para libertá-lo, ou melhor, descolonizá-lo, tal como afirma Pedro Costa. O furo do cu é singular porque enquanto zona erógena não possui categoria de gênero. É importante lembrar, segundo Roudinesco, como a sodomia foi encarada de maneiras distintas em diversas épocas da civilização. Na Grécia antiga, por exemplo, era praticada como ritual de iniciação sexual dos meninos, que eram instruídos pelos homens adultos. Uma vez educados

110

BATAILLE, 1987. p.81

111

Idem.

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sexualmente eles deveriam, segundo as regras da pólis, ter esposas e procriar. Na era cristã, por sua vez, a sodomia era vista como um atentado à lei da procriação, um ato demoníaco, exemplo de perversão, sendo rigidamente combatida, porém tolerada em algumas famílias desde que o indivíduo aceitasse casar e ter filhos. Com o Iluminismo e o culto aos saberes, a sodomia passou a ser classificada pela medicina científica como anomalia sexual. Aliás, todo o comportamento sexual distinto do que era entendido como “normal” foi abarcado sob o viés da perversão e o perverso tornou-se, assim, objeto da ciência, foi desumanizado. Toda uma nomenclatura foi criada e um dos termos mais propagados por essa medicina, como se sabe, foi o “sadismo”, que suprimia o nome do Marquês de Sade, maldito por excelência, cuja obra foi proibida na época por ultrajar os bons costumes e a religião.112 E são os escritores que resgatam por conta própria – Flaubert, Huysmans, Baudelaire, Maupassant, Proust, Poe, Dostoiévski e Wilde – o antigo vocabulário silencioso rechaçado pela ciência, a fim de melhor celebrar as novas potências do mal: as cortesãs, os bordéis, a pornografia, (...) o erotismo, a mística. Por conseguinte, Sade tornase para esses escritores o herói subterrâneo de uma consciência do 113 mal capaz de subverter a nova ordem moral.

Robert Mapplethorpe em autorretrato de 1978 (fig.14) ensaia uma postura quadrúpede e utiliza um chicote tal como um rabo, bem como roupas típicas de práticas sadomasoquistas. Na imagem, o artista de costas e vestido com couro negro, parece enfiar o chicote em seu próprio cu com a mão direita enquanto gira sutilmente sobre seu eixo e mostra a cara à direita da imagem, meio que de perfil, quase que na altura de sua bunda deflagrada. Sua mão esquerda faz um sutil gesto autoprotetor. Mapplethorpe rememora, um tanto envergonhado, me parece, essa nossa origem animal e expõe ainda nos anos 70 sua total intimidade, seu lado mais obscuro. Se Naumam faz um Autorretrato enquanto fonte, Mapplethorpe mostra um autorretrato enquanto bicho – o bicho homem.

112

ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008 113

Ibid. p.80

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A separação entre a cara e o sexo, ou a cara e o cu é o que nos torna humanos, coloca Octavio Paz bastante influenciado por Freud em Conjunções e Disjunções. Para Paz o sexo é subversivo, pois é igualitário e genérico: não tem nome, nem classe, nem cara. Tal separação entre cara e cu é o que “nos condena ao trabalho, à história e à construção de sepulturas,” 114 afirma o autor mexicano. “Para a cara torna-se insuportável essa lembrança e por isso ri – ou vomita”.115 Em Ação de graças, é como um vômito o líquido que Márcia X despeja sobre os galos: um vômito de esperma, espécie de gozo profundo, impossível. Trata-se da violência que há na vida. A artista opera, assim, por um modo similar a Oswald de Andrade em seu manifesto antropófago. Não é por tratar de um contexto local: a cultura brasileira (e às vezes carioca), que seu trabalho deixa de falar de mundo. Não é por tratar de religiosidade que Ação de graças deixa de ser uma obra conceitual e intelectualizada. E não é porque a artista usa seu próprio corpo que deixa de tratar do ser humano. Ação de graças é muito menos literal do que parece. “Mundo carnal, subjugado aos sete demônios, e mundo infantil fundem convenções e códigos antagônicos, desvelando o engajamento político de Marcia X em suas escolhas éticas e artísticas” afirma Gloria Ferreira sobre a obra Pancake (fig.15) da mesma artista, rememorando os sete demônios expulsos de Maria Magdalena por Jesus tal como afirma a bíblia no Novo Testamento.116 Este comentário também poderia ser estendido a Ação de graças. Marisa Flórido, coloca que a artista, afinal, “(...) nos deixa a sabedoria de explorar as pequenas fendas,”117 e eu diria que Márcia X nos deixa a sabedoria de penetrar os pequenos furos, até mesmo os dos poros.

114

PAZ, 1979. p.24

115

Ibid. p.25

116

FERREIRA, Glória. Pancake. 2005. Disponível em: http://www.marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=33. Acesso em fevereiro de 2015. 117

CÉSAR, Marisa Flórido. O X que Indaga e Multiplica - Jornal do Brasil, fevereiro de 2005. Disponível em: http://www.marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=29. Acesso em fevereiro de 2015.

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A arte feita com o corpo (seja performance, happening, fotografia, vídeo ou body art) se institucionalizou, mas resta saber qual o sentimento do artista que utiliza seu próprio corpo ao se expor e qual o sentimento da audiência que vê um corpo semelhante ao seu, perecível, exposto. Essa troca energética vai muito além do que descrever a história ou dizer o que dita o mercado de arte. É um sentimento que acredito, vai além da própria arte mas que a arte pode muito bem resgatar, sobretudo quando os furos do corpo são estimulados. E também pouco importa – a nível de sentimento – se o corpo do artista se mostra ao vivo, diretamente ao olhar, ou é mediado. É claro que, por exemplo, quando um artista utiliza seu corpo numa fotografia, apenas uma imagem não poderia trazer consigo toda a carga psicológica responsável por tal sentimento do qual falo aqui. É necessário que o artista se volte de muitas maneiras à potencialização deste sentimento para que ele de fato exale publicamente em imagens. Rrose Sélavy, que a rigor é uma fotografia – uma imagem –, talvez não tivesse a força que tem se não viesse de um artista com tamanha carga erótica no trabalho como Duchamp. Robert Mapplethorpe também se enquadra neste exemplo. Ao performar diante do público eu experimentei algumas vezes esse sentimento estranho, principalmente em momentos de extrema tensão entre mim e o espectador, tal como descrevo no próximo capítulo. O que posso dizer é que algo invisível acontece entre meu corpo que olha os outros e os outros corpos cujos olhos me olham. Realizar um trabalho ao vivo, aliás, requer uma grande responsabilidade porque quando me exponho ao olhar e julgamento de uma audiência, não só transmito uma mensagem, mas recebo uma gama de energias que o religioso poderia de alguma forma explicar, mas que a ciência ainda vacila. Aquilo que transmito não é apenas corpo ou conceito, é energia. Por sua vez, aquilo que recebo do espectador é, também, energia. O conceito de energia será tratado no próximo capítulo quando falarei de inconsciente e do gozo de acordo com a teoria lacaniana. Por ora, o que posso dizer é que não se trata de uma energia matematizável – é por isso que digo que a ciência ainda vacila. Tal sentimento estranho de que falo certamente é produzido por essa energia.

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Quando entro em ação, algo invisível se estabelece entre meu corpo em ação e a audiência que assiste e a palavra que mais se aproxima desse algo invisível é energia. Bataille mostra que um sentimento de continuidade pode ser reconstituído por meio do erotismo. Freud afirmou não duvidar de um sentimento “oceânico” presente na experiência religiosa. Com base em ambos os autores e em minha própria experiência enquanto artista e também espectadora, eu diria então que, por meio do erotismo em arte, energias podem ser trocadas e que esta troca é feita pelos furos do corpo. Neste capítulo tratei, de um modo geral, sobre obras que exploram esta ideia – a importância dos furos do corpo para tais trocas, ou os furos do corpo enquanto antenas ou receptores dessas trocas. No próximo capítulo, entraremos no furo.

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4.

NEGRO ESCURO

Os poetas levantam mãos onde tremem vivos vitríolos sobre as mesas de céu ídolo se sustenta, e o fino sexo encharca uma língua de gelo em cada orifício, em cada lugar que o céu abandona ao avançar. o solo está incrustado de almas e de mulheres de lindo sexo cujos cadáveres diminutos desenfaixam as suas múmias. (Antonin Artaud)

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Dezenove dúzias de ovos foram atiradas em mim durante quatro horas de trabalho. O gozo silencioso (fig.16) aconteceu na Praça Tiradentes, Centro do Rio de Janeiro, na tarde de 24 de abril de 2010, durante o evento chamado Viradão Carioca. De pé e de branco sobre um pequeno tablado eu segurava uma placa de PVC que dizia: “Se me atirares um ovo, gozarei em silêncio”. Permaneci naquela posição até que todos os ovos, dispostos em um cesto próximo, fossem atirados. E o foram, superando minhas expectativas. A ação nasceu a partir da vontade de provocar o público, considerando o contexto da praça, conhecida naquele momento por ser uma área de prostituição. Assim, quando recebi o convite para me apresentar no evento, julguei que uma ação de cunho erótico se enquadraria bem naquele espaço. O trabalho foi também um teste à minha capacidade física e psicológica de suportar – enquanto artista que trabalha com o próprio corpo – uma situação constrangedora. Testei a mim e ao outro. É a primeira ação onde eu envolvi efetivamente o espectador, cujas reações foram as mais diversas. As crianças foram, sem dúvida, as mais cruéis. Elas atiravam com toda a força os ovos e não se contentavam em atirar somente um. A maioria dos 118

ARTAUD, Antonin. O pesa-nervos. Trad. de Joaquim Afonso. Lisboa: Hiena editora, 1991. p. 33

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adultos demonstrava piedade ao atirar, ou dúvida, ou não atiravam, simplesmente. Alguns passavam olhando, esboçavam um pequeno sorriso ou uma cara de espanto. Outros, mais exaltados, insistiam em obter uma resposta sobre o que afinal era aquilo que eu fazia. Eu os encarava, desafiando-os com o olhar e se me perguntavam algo eu me limitava a fazer sinais com a cabeça ou até mesmo nem isso. Um momento tenso da ação foi, já no fim da tarde, quando quatro crianças de rua se aproximaram e atiraram vários ovos ao mesmo tempo de forma que eu não conseguia me proteger com a placa, como vinha fazendo. O segurança que me acompanhava precisou agir energicamente, impedindo que as crianças continuassem com toda aquela fúria. A verdade é que eu já esperava comportamentos desse tipo (por isso contratei um segurança que ficou, digamos, à paisana durante a ação). Foi um risco que eu afinal assumi ao me expor daquela maneira. Em setembro do mesmo ano fui a Belo Horizonte com Fran Junqueira (também artista e amiga), representando o Instituto de Artes da UERJ na Bienal Universitária de Arte da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. A primeira mostra estudantil de caráter internacional promovida pela universidade foi intitulada de Bienal Zero e aconteceu nos arredores da Escola Guignard (escola de arte vinculada à Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG) e na Biblioteca Central da UFMG. Pretendia, nesta ocasião, apresentar novamente O gozo silencioso. Ficou combinado com a produção da mostra que a ação fosse realizada na Escola Guignard, mas a ideia de expor também para um público mais diverso, que não fosse só “de arte”, não me saía da cabeça. Julguei que fosse uma condição da qual esse trabalho não poderia abrir mão. Acertei, então, os detalhes para a apresentação do trabalho também na entrada da Biblioteca Central da UFMG, onde estudantes de diversos cursos da universidade poderiam participar do trabalho. Munida de todo o material para entrar em ação, por volta das 11h da manhã me posicionei. Na entrada da Biblioteca, sentada sobre um totem branco e aproveitando a sombra de uma árvore, seguro a placa e aguardo as

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primeiras reações (fig.17). O cesto com seis dúzias de ovos foi colocado sobre um cubo de acrílico logo à minha frente. Há alguns metros de distância, minha parceira Fran cuidava dos registros em foto e vídeo. Comparando com a ação realizada no Rio, eu estava consideravelmente mais confortável. Permaneci, no entanto, menos do que o esperado, durante apenas pouco mais de uma hora. Isso porque levei uma “ovada” muito forte na barriga e, assustada, decidi interromper o trabalho quando ainda havia ovos no cesto pois, desta vez, eu não tinha um segurança ao meu dispor. Fui tomar banho em seguida e soube que as pessoas continuavam a atirar os ovos em direção ao totem que me servia de banco. A ação gerou discussões no entorno da biblioteca. Eram muitos os olhares curiosos, constrangidos, risonhos. Uma estudante chegou bem perto de mim e perguntou qual era o objetivo do trabalho. Mais tarde, enquanto eu tomava banho, um auxiliar de serviços gerais que assistiu ao trabalho na íntegra travou uma conversa com a Fran que me relatou depois as diversas sutilezas que ele observou, dentre elas o desejo humano encubado de agredir o outro. Senti literalmente na pele o que a psicanálise nos diz. Parte do dever estava cumprido. Ao entardecer, partimos para a Escola Guignard e comecei a me preparar para a segunda apresentação. O local escolhido foi logo na entrada da escola, onde havia uma calçada em nível superior que me colocava em destaque em relação ao público. Já estava escuro quando me posicionei. Sentia-me cansada, um pouco nervosa, e desejando que o trabalho terminasse bem rápido. Conforme meu desejo, e para meu desespero, as cinco dúzias de ovos foram atiradas em menos de meia hora. O público “de arte” lá presente para a abertura da Bienal, estudantes em sua maioria, colocou sobre mim toda sua inexplicável fúria. Eles competiam entre si quem atirava mais forte e mais próximo do meu rosto, o alvo principal. O tempo todo a placa de PVC me servia de escudo – bastava eu movimentar os braços e rebater os ovos. Num certo momento, porém, cinco indivíduos decidiram atirar os ovos ao mesmo tempo e, assim, eu me vi encurralada. Encolhi-me atrás da placa, me sentindo ridícula. Felizmente eram

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os últimos ovos. Desci da calçada completamente suja, assustada e prometendo a mim mesma nunca mais repetir o trabalho. Voltei para o Rio refletindo aquela sensação de desespero, muito parecida com a que experimentei na Praça Tiradentes, quando crianças de rua também se mostraram cruéis ao atirar vários ovos ao mesmo tempo. De crianças de rua a estudantes de arte, uma oportunidade como essa de agredir o outro parece mesmo tentadora. Mas estaria eu me punindo ao dar ao outro uma chance de extravasar sobre mim uma pulsão destruidora? Ou estaria tentando me redimir, inconscientemente e em público, de algo que acreditava ter culpa? O motivo pelo qual eu trago este trabalho realizado há cinco anos para esta Dissertação e dentro deste capítulo Negro escuro pode ser melhor entendido por meio da tríade de palavras: ovo, gozo e olho. Essa tríade representa, neste capítulo, a batalha que marca a condição humana neste planeta – a batalha entre a vida e a morte. Como Freud nos mostrou, a civilização impõe enormes sacrifícios à sexualidade e à agressividade do homem. O homem primitivo – isto é, nas palavras de Freud, o chefe da família primeva – ao não restringir seus instintos, se encontrava em melhores condições que o homem civilizado. No entanto, este homem primevo não possuía a segurança que o civilizado adquiriu sacrificando seus instintos. Freud não se mostra contrário à civilização, mas exerce uma crítica a ela quando mostra as raízes de seu falho sistema, o qual dificulta tanto a nossa felicidade. O mandamento “Amarás ao próximo como a ti mesmo”, por exemplo, muito mais antigo do que o próprio cristianismo, segundo Freud, é uma pista para o entendimento sobre esta severa restrição sexual que nos impõe a civilização. “É precisamente porque teu próximo não é digno de amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo,”119 considera Freud. Tal natureza agressiva é o que faz a civilização gastar tanta energia, pois é exatamente o que a ameaça de desintegração. É por isso que a 119

FREUD, 1997. p. 70

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civilização incita o amor entre os homens e restringe a vida sexual, para manter-se viva, pois nada mais tão forte vai ao encontro da natureza humana do que restringir seus instintos sexuais e de agressão. Voltando à ideia de sublimação em Freud, segundo Octavio Paz, as civilizações mais antigas estabeleceram métodos que, com maior facilidade do que hoje, absorviam e transformavam os instintos humanos mais destrutivos. Paz coloca que os sistemas de símbolos do homem mais antigo, por exemplo, ofereciam uma gama de possibilidades de sublimação mais rica que os do homem moderno, pois sua leitura dos signos era corporal: “Não nego que a arte, como tudo o que fazemos, seja sublimação, cultura e, portanto, homenagem à morte. Acrescento que é sublimação que deseja encarnar: regressar ao corpo.” 120 Para Eduardo Galeano, em Celebração de bodas da razão com o coração, em algum lugar do mundo, o tempo do rito não foi esquecido: Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja, nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração. Sábios doutores de Ética e Moral serão os pescadores das costas colombianas, que inventaram a palavra sentipensador para definir 121 a linguagem que diz a verdade.

O pensamento materialista radical de Bataille também constata algo muito parecido: o homem moderno parece mesmo ter esquecido que a linguagem opera sobre os sentidos. Já Duchamp, quando tratou da vida do seu tempo em sua arte, quando falou de erotismo e apresentou, postumamente, o furo de Étant donnés, parece também evocar o desejo de regressar a esse corpo esquecido. O preço que se paga pela civilização é muito alto mas, apesar de tudo, é preciso dar graças a essa ferramenta para a memória do corpo que hoje temos nas mãos (ou nos olhos, ou na boca, narinas e ouvido e etc...) que é a arte.

120

PAZ, 1979. p.22

121

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. 3a edição, L&PM, Porto Alegre, 1991. p. 64

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Freud fala sobre o complexo desenvolvimento da teoria dos instintos na psicanálise e como ponto de partida para falar dos instintos humanos, ele utiliza a frase de Schiller: “são a fome e o amor que movem o mundo.”122 A fome se refere ao instinto de preservação do indivíduo enquanto o amor à preservação da espécie. A preservação do indivíduo se conecta ao instinto do ego e a preservação da espécie, por sua vez, se refere aos instintos objetais – o amor enquanto objeto de busca. Desta forma, existe um confronto entre os instintos do ego e objetais. Seguindo adiante em sua teoria, Freud notou que ao lado dos instintos que preservariam a unidade da vida e que se esforçariam para transformar essa unidade em uma quantidade cada vez maior de seres, deveria haver outro instinto, contrário a esses e que pretenderia dissolver tais unidades de vida até conduzi-las de volta a um estado inorgânico – este seria o instinto de morte. Freud notou também a dificuldade em perceber este instinto de morte e o quanto ele está atrelado à vida, a Eros. Ele explica que o instinto de morte se faz ver na agressividade, mas que esta agressividade – ou seja, quando o homem destrói outra coisa em vez de si mesmo, do próprio self – também estaria a serviço de Eros. O instinto agressivo se opõe à civilização e é a própria manifestação do instinto de morte, que divide com Eros o trabalho sobre a vida humana no mundo. Eros e a Morte: “é essa batalha de gigantes que nossas babás tentam apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o Céu.”123 Em suma, para Freud, o instinto agressivo no homem é uma disposição original e persistente. Sendo o instinto de agressão perigoso para o propósito da civilização, ele precisa ser domado a fim de tornar-se inofensivo. E aí entra o superego na teoria freudiana, o agente mental (cuja função é a consciência) responsável por enviar o desejo de agressão de volta para onde ele veio, de volta para o ego. Essa tensão entre ego e superego trata-se, no ser humano, de uma necessidade de punição – o famoso sentimento de culpa. Freud identifica duas origens para este sentimento que está no cerne da civilização: a primeira

122

SCHILLER apud FREUD, 1997. p. 73

123

Ibid. p. 76

73

origem é o medo de uma autoridade externa cuja renúncia instintiva tem a ver com o medo da perda do amor desta autoridade (ou do medo equivalente da agressão por parte dessa autoridade). A segunda origem está justamente ligada ao superego. Ao mesmo tempo em que faz renunciar aos instintos, diferentemente da primeira origem, esta exige punição, pois o desejo de agressão persiste sem que se possa escondê-lo da consciência. Neste sentido, a renúncia aos instintos não é recompensada com o amor como é a renúncia ligada ao medo da autoridade. “Uma ameaça de infelicidade externa – perda de amor e castigo por parte da autoridade externa – foi permutada por uma permanente infelicidade interna, pela tensão do sentimento de culpa,” 124 afirma Freud sobre a tensão entre ego e superego. Mas no complexo edipiano formulado por Freud, “a morte do pai pelos irmãos reunidos em bando,” 125 também se expressa o sentimento de culpa. O complexo edipiano, no entanto, como assume o pai da psicanálise, não oferece a explicação final para este sentimento. E, assim, suas próprias palavras podem bem resumir: Finalmente podemos apreender duas coisas de modo perfeitamente claro: o papel desempenhado pelo amor na origem da consciência e a fatal inevitabilidade do sentimento de culpa. (...) O que começou em relação ao pai, é completado em relação 126 ao grupo.

Ou seja, a batalha entre Eros e o instinto de destruição, entre o amor e a morte, é iniciada assim que os homens decidem viver juntos e o preço que se paga pela civilização é a intensificação da ansiedade social que é o sentimento de culpa. Segundo Freud, as religiões chamam este sentimento de pecado e prometem à humanidade a redenção, de modo que no cristianismo, como sabemos, “essa redenção é conseguida – pela morte sacrificial de uma pessoa isolada, que, desse modo, toma sobre si mesma a culpa comum a todos.” 127

124

FREUD, 1997. p. 79

125

Ibid. p. 81

126

Ibid. p. 82

127

Ibid. p. 84

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Logo, é de culpa e punição que O gozo silencioso trata. Levando em conta a teoria freudiana, isso não me diria respeito somente enquanto mulher ou enquanto, digamos, uma “ex-cristã” (porque foi esta a minha educação), mas enquanto ser humano. Manifestações do instinto de agressão no homem são o sadismo e o masoquismo, respectivamente para fora e para dentro do indivíduo. O sadismo e o masoquismo, no entanto, seriam fortemente revestidos de erotismo. É no sadismo que Freud percebe o mais alto grau de fruição narcísica, pois o instinto de destruição, para fora do indivíduo, dirigido a objetos de forma erótica, presenteia o ego com a satisfação de necessidades vitais de preservação deste ligadas ao controle da natureza – antigos desejos de onipotência afloram. E ainda, sobre a severidade do superego, Freud coloca: O medo desse agente crítico (...), a necessidade de punição, constitui uma manifestação instintiva por parte do ego, que se tornou masoquista sob a influência de um superego sádico; é por assim dizer, uma parcela do instinto voltada para a destruição interna presente no ego, empregado para formar uma ligação 128 erótica com o superego.

Em O gozo silencioso eu mesma me condeno. E não me são atiradas pedras (como previam as sagradas escrituras do povo judeu, descritas no Antigo Testamento bíblico), mas sim ovos – unidades de vida tão singulares e ao mesmo tempo tão frágeis. Durante a ação, notei que aqueles que permaneciam em dúvida sobre me atirarem ou não os ovos, mostravam um conflito interno. Notei também que alguns que atiravam ficavam constrangidos logo depois. É que, apesar da ação ser uma oportunidade de dar vazão a seu instinto agressivo, o outro, quando percebe que, efetivamente, destrói aquilo que poderia ser uma vida ou, ao menos, poderia alimentar um ser vivo, também se vê num conflito. O sentimento de culpa, assim, seja o meu, seja o do outro paira todo o tempo sobre a ação, de modo que existe um desconforto, um clima de culpa no ar. A minha culpa exposta mexe com a própria culpa do outro ou eu não teria recebido tantos olhares de piedade. A ideia de agressão que a palavra gozo traz mexe, da mesma forma, com a agressividade do outro, 128

FREUD, 1997. p.84

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ou eu não teria recebido tantas “ovadas”. A grande maioria dos que assistiram à ação reagiram assim: ou piedosos ou agressivos. A apatia passou longe. Não posso deixar de colocar aqui uma forte referência de O gozo silencioso: História do Olho de Bataille, novela que introduz o autor ao mundo literário. Em História do Olho, ovos fazem parte das fantasias eróticas da personagem Simone. Eles são quebrados no cu da jovem, contemplados de dentro de uma privada, quebrados num bidê, chupados, mijados, comidos cozidos e quentes e etc.129 Diz assim o rapaz, personagem da história, em relação à Simone: Quando perguntei o que lhe lembrava a palavra urinar, ela me respondeu burilar, os olhos, com uma navalha, algo vermelho, o sol. E o ovo? Um olho de vaca, devido à cor da cabeça, aliás, a clara do ovo lembra o branco do olho, e a gema, a pupila. A forma do olho, na sua opinião, era a do ovo. Pediu-me que, quando saíssemos, fôssemos quebrar ovos no ar, sob o sol, com tiros de revolver. Parecia-me impossível, mas ela insistiu com argumentos divertidos. Jogava alegremente com as palavras, ora dizendo quebrar um olho, 130 ora furar um ovo, desenvolvendo raciocínios insustentáveis.

Em História do Olho, o ovo é também associado aos colhões de um touro. Em certo momento da narrativa, Simone recebe, conforme seu desejo, os colhões de um touro morto num espetáculo espanhol o qual presenciara. Um dos colhões é mordido pela jovem e o outro enfiado por ela mesma em sua vagina, como se fosse um ovo.131 É sempre um furo do corpo que abriga em palavras esta forma branca globular, unidade de vida: seja o cu, os olhos, a boca, ou a vagina. A passagem a seguir dispensa maiores comentários: Em poucos instantes, estarrecido, vi Simone morder um dos colhões, Granero avançar e apresentar ao touro a capa vermelha; depois Simone, com o sangue subindo à cabeça, num momento de densa obscenidade, desnudar a vulva onde entrou o outro colhão; Granero foi derrubado e acuado contra a cerca, na qual os chifres do touro desfecharam três golpes: um dos chifres atravessou-Ihe o olho direito e a cabeça. O clamor aterrorizado da arena coincidiu com o espasmo de Simone. Tendo-se erguido da laje de pedra, cambaleou e caiu, o sol a cegava, ela sangrava peIo nariz. Alguns homens se precipitaram

129

BATAILLE, Georges. História do olho. Trad. Eliane Robert Moraes. 3ª reimpressão. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 49-50 130

Ibid. p. 51

131

Ibid. p. 68

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e agarraram Granero. A multidão que abarrotava a arena estava toda 132 de pé. O olho direito do cadáver, dependurado.

Bataille mostra em O erotismo que a função sexual é uma função física do erotismo. E dentro desta função, o autor dá considerável atenção à reprodução (que para ele é uma forma de crescimento), consequência mais óbvia da atividade sexual, aquela que resulta em mais indivíduos, mais vida. Investigando a reprodução dos seres assexuados e sexuados Bataille conecta, também, a ideia de reprodução à morte e é isto que nos interessa aqui. O filósofo explica que tudo começa com um excesso de energia: a pletora sexual. Nos assexuados, é o crescimento da pletora que precede a reprodução, mais especificamente, a divisão do ser mais simples. Nesta divisão, o ser originário morre e dois outros seres distintos surgem. Nos sexuados, entram em atividade os órgãos sexuais. Eles se expandem por um excesso de energia para dar início ao ato sexual, mas nenhum dos sexuados morre ao término do ato, tal como nos seres mais simples, a não ser simbolicamente já que o gozo sexual humano é conhecido como “pequena morte.” Tais aspectos objetivos da reprodução nos trazem a ideia de descontinuidade porque mostram os limites de um ser isolado, o que na experiência humana trata-se de um sentimento de si, o sentimento de um ser descontínuo que, no ato sexual, entretanto, vislumbra uma continuidade possível: (...) não se pode falar propriamente de união, mas de dois seres sob o domínio da violência, associados pelos reflexos ordenados da união sexual, partilhando um estado de crise em que tanto um quanto outro estão fora de si. Os dois seres estão ao mesmo tempo abertos à 133 continuidade.

Terminada a crise do ato sexual, a descontinuidade de ambos se mantém intacta. Mas o erotismo que, como vimos, vai muito além do ato sexual, segundo Bataille “abre para a morte” que, por sua vez, “abre para a 132

BATAILLE, 2012. p. 68-69

133

BATAILLE, 1987. p.68

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negação individual.134 É a morte portanto, para Bataille, o sentido último do erotismo. As sepulturas deixadas pelo homem de neandertal, que data do Paleolítico médio, são testemunhos do que este homem reconheceu com o trabalho: a passagem da vida à morte, sobretudo a visão do seu destino que é o cadáver de outro homem, objeto portador de uma violência que o destruiu e que destruirá a todos os outros. As sepulturas representam para Bataille o primeiro dos interditos, o homem rejeita a violência da morte quando passa a enterrar seus mortos, ou seja, quando passa a abrigar-se da desordem que é a decomposição dos seus corpos, o futuro daqueles que ficam.135 “A vida é sempre um produto da decomposição da vida.” 136 É como poderia ser resumida, nas palavras de Bataille, a afinidade entre reprodução e morte. A morte desocupa no mundo o lugar de um ser e a corrupção associada a ela trata de repor em circulação as substâncias necessárias ao surgimento da vida. O sentido da morte seria então o de renovação. O homem, no entanto, se recusa a reconhecer esta renovação como sendo o sentido da morte, ou a morte como sentido da vida. Ainda que pareça óbvia esta conexão, não é fácil admiti-la na vida prática por conta da angústia que isso nos traz. Bataille fala também sobre o sentimento de angústia dos povos arcaicos ligado à fase de decomposição do corpo morto, bem como da fase suportável da morte caracterizada pelos ossos limpos de um morto, isso que representaria a morte por um viés mais decente. Aristóteles em sua teoria da “geração espontânea”137 acreditava que alguns animais vindos da terra ou da água nasciam da putrefação. Essa matéria podre é a origem do sentimento de náusea. Hoje, a ideia que herdamos da natureza ruim, que envergonha, estaria ligada a essa crença 134

BATAILLE, 1987. p.18

135

Ibid. p.31

136

Ibid. p.37

137

In: BATAILLE, 1987. p.38

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aristotélica acerca do nascimento a partir da podridão. Os sentimentos de horror e vergonha fariam parte das nossas ideias de nascimento e morte. Assim, a sexualidade, a função de reprodução e a imundície possuiriam para Bataille, conexões sensíveis, tal como dizia Santo Agostinho: “Interfaeces et urinam nascimur” 138 [“Nascemos entre fezes e urina”]. É digno de nota o que cada palavra de Bataille acerca da angústia da morte desperta em mim como leitora, portadora de um corpo perecível. Não é tarefa fácil imaginar um corpo, ou meu próprio, em putrefação (fora de uma cena cinematográfica, por exemplo). Senti toda a náusea e repugnância da qual fala o autor, e senti isso todas as vezes que reli este texto. Bataille nos mostra que tais sentimentos não possuem, objetivamente, razão de existir, uma vez que seu fundamento seria o medo: o medo do vazio, do nada que o cadáver representa. Objetivamente um morto é apenas mais um corpo morto dentro do infinito ciclo da natureza. Mas quando a visão de um morto é conectada ao medo da própria morte, aquele corpo é capaz de despertar náusea insuportável. “Se vemos nos interditos essenciais a recusa que opõe o ser à natureza encarada como um excesso de energia viva e como uma orgia da destruição, não podemos mais diferenciar a morte da sexualidade.”139 Ambos são movimentos de corrupção, tem a violência como base e suas imagens nos despertam repugnância. Para Bataille, morte e sexualidade fazem parte de um complexo indivisível, aliado à fúria da natureza. Quando um ser se opôs a esta fúria, ainda que de modo não definitivo, é que foi possível a humanidade – o lugar dos interditos. Gostaria de mostrar em seguida, como a ideia de continuidade em Bataille toca o conceito de inconsciente na psicanálise. Vimos no capítulo Borda que o inconsciente de Freud se acha onde o sujeito vacila, pelo qual é assimilado ao desejo. Para Lacan o inconsciente é um reachado e possui a

138

AGOSTINHO apud BATAILLE, 1987. p.38

139

Ibid. p.41

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estrutura de uma hiância. Lacan em sua teoria evoca e completa o inconsciente freudiano em sua própria época, levando-o a seu limite quando introduz a lei do significante: (...) é na dimensao de uma sincronia que vocês devem situar o inconsciente – no nível de um ser, mas enquanto pode se portar sobre tudo, isto é, no nível do sujeito da enunciação, enquanto segundo as frases, segundo os modos, se perdendo como se encontrando, e que, numa interjeição, num imperativo, numa invocação, mesmo num desfalecimento, é sempre ele que nos põe seu enigma, e que fala, – em suma no nível em que tudo que se expande no inconsciente se difunde, tal o micelium, como diz Freud a propósito do sonho, em torno de um ponto central. Trata-se sempre e 140 do sujeito enquanto que indeterminado.

Lacan designa uma “estrutura escandida desse batimento da fenda” 141, ou seja, a fenda, o furo, é por onde algo por um instante é trazido à luz – apenas por um instante, pois o outro tempo é de fechamento. “Onticamente então, o inconsciente é evasivo – mas conseguimos cercá-lo numa estrutura, uma estrutura temporal, da qual se pode dizer que jamais foi articulada até agora como tal.” 142 De modo que, ele conclui, no plano ontológico o estatuto do inconsciente é frágil, porém é ético. Não pretendo me aprofundar na formulação de Lacan acerca do estatuto do inconsciente, mas é interessante perceber como as imagens do nosso próprio corpo, especificamente dos furos do nosso corpo, contribuem para assimilarmos, em teoria, tal estrutura. Nasio, em Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan, resume de modo exemplar o que é o inconsciente, uma vez que estruturado enquanto linguagem, na teoria lacaniana: O inconsciente é a trama tecida pelo trabalho da repetição significante, ou, mais exatamente, o inconsciente é uma cadeia virtual de acontecimentos ou ‘dizeres’ que sabe atualizar-se num ‘dito’ oportuno, que o sujeito diz sem saber o que está dizendo. (...) o inconsciente liga e ata os seres. Essa é, a meu ver, uma das idéias lacanianas fundamentais. O inconsciente é uma linguagem que

140

LACAN, 1988. p.31

141

Ibid. p.35

142

Ibid. p.36

80

liga os parceiros da análise: a linguagem liga, enquanto o corpo 143 separa.

O que Nasio coloca em seguida é que não se pode atribuir uma individualidade ao inconsciente, ou seja,

na experiência clínica,

um

inconsciente do analista e outro do analisando, mas sim um inconsciente “no espaço entre-dois, como uma entidade única que atravessa e engloba ambos os atores da análise.”144 E assim, a ideia da continuidade que supera o abismo entre os seres (sem considerar aqui o sagrado) encontra um paralelo dentro da psicanálise através do inconsciente lacaniano. A liga está na linguagem. Voltando ao sujeito, é no campo do real que ele está lá, para ser reencontrado. Um real que nos escapa, num encontro que é sempre marcado, por onde somos sempre chamados – repetição. Freud mostra por meio da repetição a relação do pensamento com o real. Segundo Lacan, o real é apresentado na origem da psicanálise, como trauma. “(...) Os Deuses são do campo do real,”145 afirma Lacan, de algum modo trazendo o sagrado para o terreno da psicanálise. Em O gozo silencioso eu me condeno ao gozo. Mas que tipo de gozo é esse que, de fato, eu evoco? Na psicanálise lacaniana, o gozo é um conceito de grande importância, não o prazer orgástico conforme bem conhecemos, mas a ideia de gozo mapeada por Freud e efetivamente conceituada por Lacan. Em 2010, data da ação, eu não fazia ideia de tudo isso. Para falar do que é o gozo em Lacan, Nasio rememora o desejo em Freud – o que corresponde no ser humano à aspiração à felicidade absoluta, mais especificamente, a um prazer sexual absoluto e, portanto, hipotético, que se manifestaria, por exemplo, no incesto. Para conceituar o gozo, Lacan determina categorias do gozar, estados psíquicos que nada mais são do que imagens fictícias, miragens que 143

NASIO, Juan-David. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p. 23 144

Ibid. p. 23-24

145

LACAN, 1988. p.48

81

alimentam o desejo. O gozo fálico seria a primeira categoria e corresponde a um alívio incompleto da tensão inconsciente. O mais-gozar é a segunda categoria e se trata do gozo retido no interior do sistema psíquico. Já o gozo do Outro é a terceira categoria e corresponde ao estado ideal de felicidade absoluta. Não pretendo me deter a fundo nos estados de gozar segundo Lacan, mas vejamos o que Nasio coloca acerca do mais-gozar, o gozo residual, e o que mais lança luz ao mistério dos furos do corpo: Observemos também que o gozo residual de que estamos falando permanece profundamente ancorado nas zonas erógenas e orificiais do corpo – boca, ânus, vagina, canal peniano, etc. O impulso do desejo nasce nessas zonas e, em contrapartida, o mais-gozar as estimula constantemente, mantendo-as num estado permanente de 146 erotogenia.

É importante deixar claro, conforme Nasio esclarece, que a psicanálise ao demarcar os limites do seu saber, reconhece não conhecer a essência mesma da energia psíquica, de modo que quando trata de gozo, de todos os estados de gozo, “a psicanálise conhece apenas as fronteiras significantes que delimitam as regiões do corpo que são focos de gozo.”147 O encontro entre um homem e uma mulher, por exemplo, não é entendido por Nasio como um encontro entre dois seres, mas entre “lugares parciais do corpo” “entre diferentes focos de gozo locais.” 148 Lacan deixa claro que o gozo não pode ser considerado – do ponto de vista da física – uma energia, pois não é matematizável. 149 Mas a ideia de energia foi muitas vezes usada por Freud como metáfora e é neste sentido que Nasio emprega o conceito de energia: “o gozo é a energia do inconsciente quando o inconsciente trabalha, isto é, quando o inconsciente está ativo – e ele o está constantemente.”150 Em suma, para Nasio baseado em Lacan, a energia

146

NASIO, 1993. p. 27

147

Ibid. p. 30

148

Idem.

149

Ibid. p. 32

150

Ibid. p. 33

82

que se desprende enquanto o inconsciente está ativo é o gozo e, ainda, o real se configura como lugar do gozo impensável. Dentro do inconsciente, Nasio associa o lugar do gozo com o do furo, um furo dentro do sistema significante, um furo porque a essência do gozo não pode ser representada – um furo e, sobre ele, o véu da fantasia. Nasio associa as hipotéticas bordas desse furo aos gozos locais determinados por Lacan: gozo fálico e mais-gozar, com exceção do gozo do Outro. Sobre este último estado, Nasio diz: “teremos que imaginá-lo como um ponto aberto para o horizonte, sem borda nem limite difuso, sem vínculo com um sistema particular.”151 Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem porque somos seres falantes e habitados pela linguagem, a psicanálise vai mais além e nos diz que nosso corpo é submetido à linguagem: A concepção psicanalítica da relação do sujeito com a linguagem encontra seu valor e toda a sua força, portanto, sob a estrita condição de pensarmos não apenas que o sujeito diz sem saber o que está dizendo, mas, principalmente, que, quando do reviramento do sujeito pela fala, o corpo é atingido. Mas, que corpo? O corpo como gozo. O corpo definido, não como organismo, mas como puro gozo, pura energia psíquica, da qual o 152 corpo orgânico seria apenas a caixa de ressonância.

Gozo não é prazer, esclarece Nasio. O gozo é inconsciente e não tem necessariamente uma sensação. O gozo se trata de alta tensão psíquica inconsciente que se manifesta por atos cegos, enquanto o prazer é tensão reduzida sentida pelo eu. Gozo é quando “o sujeito é apenas corpo (...) o corpo toma tudo; o sujeito não fala nem pensa.” E ainda: “a irmã do gozo é a ação, enquanto a do prazer é a imagem.”153 Não que o sujeito goze, mas alguma coisa fora dele goza nele – é tensão conectada à vida. Vejo que meu sentimento ao me expor em performance encontra alguma relação com o terreno do gozo em Lacan.

151

NASIO, 1993. p. 34

152

Ibid. p. 37

153

Ibid. p. 42

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Depois de pesquisar mais profundamente sobre erotismo e sobre o gozo para a psicanálise, a frase escrita na placa “se me atirares um ovo, gozarei em silêncio” perdeu parte de sua força para mim. Há uns dois anos, Anna Bella Geiger me disse, com muita honestidade, não gostar da frase, pois ela não funcionava bem como um aforismo. Ela tomava como base o trabalho da americana Jenny Holzer. Somente hoje eu entendo plenamente o que Anna Bella quis dizer porque somente hoje eu vejo no outro parte de mim e vejo em mim uma parte do outro. É possível que, num trabalho de arte ao vivo, o dentro e o fora do artista se misture com o dentro e o fora do espectador e quanto mais direto é o artista que se apresenta, maior essa possibilidade pois menos ruídos haverá na “comunicação”. É quando a arte vira rito. Porque a linguagem, como nos ensina Lacan, pode atravessar os corpos. Se eu pudesse reescrever a tal frase, colocaria na placa: “Me atire ovos e gozo contigo.” 154 Antes de apresentar O gozo silencioso, no mesmo ano de 2010, realizei uma ação no Largo do Machado, Rio de Janeiro, chamada Homenagem ao olho (fig.18). Em meio ao público passante da praça, segurei com os braços esticados uma grande bexiga branca e, lentamente, aproximei-a de mim até bem perto de meu rosto. Ainda lentamente, pressionei a bola contra minha face até não poder respirar – a bola tapava nariz e boca, furos de minha face. A bexiga branca assim se “ovalava”, tornando-se um grande ovo. Aguentei nesta posição, a bexiga-ovo contra meu rosto, o quanto pude até finalmente afastá-la de mim do mesmo modo, lentamente, e largá-la na praça para provocar ainda mais a curiosidade dos que passavam. Nesta ocasião, História do Olho estava recente em minha memória e quis assim prestar ao ovo, e a Bataille, uma homenagem: formas brancas e globulares também me atraem. Tal como o ovo atravessa a narrativa batailleana porque rememora o olho – o globo ocular – a forma branca globular percorre meu trabalho, insiste em aparecer. Quando tiro toda a sobrancelha direita com a pinça ao vivo numa galeria, por exemplo, (Bem me quer, mal me quer, 2010) (fig.19), não apenas rompo a simetria de um rosto feminino por 154

Na construção da nova frase, opto por utilizar a próclise de modo informal e, digamos, “oswaldiano”.

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meio de um “ritual” de beleza. O que faço ali, e Bataille me deixa claro, é retirar uma moldura – a sobrancelha – para fazer saltar um dos olhos, aos moldes do que faz Bataille, com as palavras em História do Olho, ao arrancar com o chifre do touro, o olho do toureiro. É preciso lembrar que Duchamp emoldura o furo da boca da Monalisa em L.H.O.O.Q., desenhando-lhe um fino bigode. Eu, por sua vez, “apago” uma de minhas sobrancelhas, uma das molduras de meus olhos porque, se o olho salta, o furo que o comporta aparece. Não acredito que o que moveu Bataille a escrever e Duchamp a produzir seja distinto do que me move. Desejo de vida e também de morte, que vira arte, mas sempre desejo. Entrevidas da série Fotopoemação (1981) (fig.20) de Anna Maria Maiolino mostra os pés descalços da artista passando cautelosamente por entre um chão repleto de ovos. Segundo Maiolino, Entrevidas é uma resposta à repressão da ditadura no Brasil – a imagem mostra a artista como que “pisando em ovos.” Mas o trabalho também significa a oposição entre Eros e a Morte, a morte que está por entre a vida.155 De todo modo, o foco é no chão e nos pés: nada podia ser mais batailleano. E sobre os ovos, Maiolino também faz a sua homenagem, rememorando o “pai” da Monalisa: Cogito que Se Leonardo [Da Vinci] tivesse nascido antes da galinha teria inventado o OVO com a Divina Proporção e extrema razão no OVO nada sobra sem machucar sai do pequeno orifício do corpo simplesmente sai e sempre original entra no mundo O OVO é o OVO protótipo de inteireza mesmo aberto na frigideira ... 156 reverencio a galinha e a invejo

Uma outra fotografia da série Fotopoemação de Maiolino é X, II (1974) (fig.21). Trata-se de um díptico. Na primeira imagem, uma tesoura semi-aberta 155

TATAY, Helena. Anna Maria Maiolino. Trad. Claudio A. Marcondes. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 48 156

MAIOLINO In: TATAY, 2012. p. 249

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aponta para o olho esquerdo da artista, em close-up. O olho retribui, digamos “o olhar”. Na segunda imagem, com o mesmo enquadramento, a tesoura parece fechar juntamente

com o olho.

Mas apenas o olho fecha

completamente, a tesoura permanece semi-aberta, sempre pontiaguda. Maiolino condensa claramente em X, II imagem, poema e ação. É, aliás, uma ultra-condensação, bomba artística que não explode porque presa no tempo. O trabalho guarda esta tensão. Sua violência é psicológica, implosiva, na verdade, de modo muito similar à Entrevidas da mesma artista. A famosa cena de O cão andaluz (1929) (fig.20) de Luis Buñuel, na qual uma navalha corta o globo ocular de uma jovem é referência imediata. Em X, II não se trata, no entanto, de um corte na vista efetivamente realizado, mas da eterna ameaça de um furo nessa vista – um furo sobre um furo. A violência da eternidade é a violência da culpa. Como não associar ao mito edipiano? Só que a vista em X, II é de uma mulher, da própria artista, aliás. A mulher também tem culpa e também tem vista, portanto também possui poder. “O olhar é um ditador”, disse Maiolino, quarenta anos depois, na palestra proferida no encerramento da disciplina ministrada por Livia Flores e Ronald Duarte no segundo semestre de 2014, no PPGAV/EBA – UFRJ, na qual estive presente. Em X, II há uma disputa entre a ponta da tesoura e o olhar e, assim, é o poder do olho que a artista nos faz entrever. A associação de Bataille entre olhos e ovos é poderosa precisamente porque se o ovo é uma mina de vida, o olho é a mina da vida humana. A tesoura em X, II não é apenas um objeto de uso cotidiano da mulher que costura, é um objeto pontiagudo que carrega algum tipo de energia misteriosa. No feng-shui, a arte chinesa de decorar ambientes, objetos pontiagudos não devem ser expostos. Em manuais de caça às bruxas, a feiticeira deveria ser espetada com objetos pontiagudos. Voltando a Entrevidas de Maiolino, é interessante perceber a semelhança desta imagem com uma das cenas finais de Anticristo, filme de 2010, escrito e dirigido por Lars Von Trier e bastante pertinente a este capítulo Negro escuro. Após o assassinato de sua esposa, o homem do filme caminha pela floresta durante a noite quando são superpostas à cena aérea imagens de

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antigas ilustrações de cadáveres femininos, como se o homem caminhasse por esses corpos (fig.23). Anticristo possui prólogo, três capítulos e epílogo. O prólogo mostra a morte do filho do casal. O bebê, ainda vacilante em seu andar, sai de seu quarto durante a noite, assiste ao coito de seus pais, em seguida sobe numa cadeira e cai da janela. Ao longo de todo o filme, apenas o bebê possui identidade – se chama Nik – homem e mulher não tem nome. O sofrimento é o título do primeiro capítulo e mostra a mãe, a mulher, em uma clínica psiquiátrica, assim que sai de um estado de choque. Os diálogos com seu marido mostram como a culpa pela morte de seu filho a faz sofrer. O marido, psicanalista, decide tirá-la da clínica e tratá-la ele mesmo. O casal volta para casa, a mulher se desfaz de suas medicações e o tratamento é iniciado. O marido acredita que a mulher precisa aprender a lidar com os próprios medos. A mulher identifica como medo a mata de Éden, o local onde passou seu último verão com Nik, longe do marido, escrevendo sua tese acadêmica. Ela culpa o marido por não ser presente e pontua sua frieza em relação à morte da criança. No capítulo dois – Dor (o caos reina) – o casal retorna a Éden, como parte do tratamento. Retornam especificamente à cabana onde a mulher fazia sua pesquisa, um lugar ermo no meio da floresta. Durante a viagem o marido faz uma espécie de hipnose com a esposa. Dentro de seus medos, a mulher enumera três elementos durante a hipnose: a ponte sobre um rio, a velha toca da raposa, o tronco da árvore que apodrece e a relva próxima à cabana. A viagem requer algum tempo de caminhada pela floresta. É quando coisas estranhas começam a acontecer, nada que abalasse, porém, a racionalidade do marido, pois, para ele, tudo é provocado pela mente. A mulher rememora o que passou no último verão com Nik, o choro angustiado de criança que ouviu enquanto seu filho não chorava, o barulho das bolotas de carvalho que caíam incessantemente sobre o telhado da cabana. Contou ao marido que depois do último verão em Éden ela passou a ouvir o que não ouvia antes como, por exemplo, o grito de tudo que estava para morrer, associando a queda das

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bolotas à queda de seu filho. Ela tem então uma superação súbita de seus medos e aí o marido parece desconfiar dela. Desespero (Feminicídio) é o terceiro capítulo, quando se compreende o tema da tese da mulher: a crueldade e morte de mulheres provocada pela Inquisição. No entanto, ela vai um pouco mais além do que o mero envolvimento acadêmico com o assunto. Algo na natureza lhe desperta novos sentidos e ela às vezes parece possuída: “a natureza é a casa de Satã”, 157 diz ela ao marido que, por sua vez, encontra estranhas evidências do tipo de envolvimento que tem a mulher com o assunto de sua tese. Nik aparecia, por exemplo, com os sapatos trocados em todas as fotos do referido verão em Éden. Ao ver desmascarada a sua natureza má, a mulher tortura o marido e mutila a si mesma – corta com uma tesoura seu clitóris quando lembra que viu seu filho próximo da janela momentos antes dele cair e não o interrompeu pois estava em meio ao coito com o marido – preferiu o prazer do gozo que culminou na morte de seu filho. O marido consegue escapar da tortura e estrangula a esposa – a mulher morre como Marcela de Historia do olho. A passagem do ar lhe é impedida pelo estrangulamento e seus olhos se reviram nas órbitas, aterrorizados pela chegada da morte. O marido, em seguida, queima o corpo da mulher morta na relva de frente para a cabana – ela morre, afinal, como uma bruxa. Quando o homem abandona o Éden, após o assassinato, Trier cria uma imagem similar à Entrevidas de Maiolino. Similar, porém, oposta: em Trier quem caminha é o homem, o chão é o natural da floresta (enquanto Maiolino mostra paralelepípedos) e as vidas são corpos nus, esbranquiçados e mortos. A semelhança maior entre Entrevidas e a cena final de Anticristo é que ambas as imagens tratam de repressão, a primeira política, a segunda religiosa, mas sempre e violenta repressão – violência contra a vida e até mesmo contra a própria morte. O epílogo, em seguida, mostra o homem pela manhã ainda na floresta, sendo surpreendido por mulheres anônimas que saem de todas as

157

TRIER, Lars Von. Anticristo. 2009, cor, 112 min. Cópia dublada disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=O0Q5dZgTszs. Acesso em abril de 2015.

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partes da mata, como se fossem almas (fig.24). O que é que acontece com o homem? O diretor deixa subentendido. Mostra-nos, apenas, em perspectiva aérea, uma mancha negra de mulheres que se aglomeram em torno dele na floresta: um Negro escuro (fig.25). Não há como não lembrar aqui de Étand donnés de Duchamp: o corpo feminino nu está deitado sobre uma relva de galhos secos. Não há fogo, mas há a lamparina que o próprio corpo segura. O artista não deixa que vejamos a identidade do nu feminino. E ao fundo a natureza. Apesar de muitas interpretações serem possíveis, Anticristo parece tratar o tempo todo de forças opostas: a sanidade e a loucura, o homem e a natureza, o masculino e o feminino, a razão e o caos. Cristina Salgado não acredita que Anticristo seja um filme misógino, tampouco que Trier tenha mostrado simplesmente o feminino mal e irracional. Salgado levanta algumas questões em sua interpretação: “A culpa feminina desde Eva seria atribuída ou autoimposta? E a aliança entre gozo e culpa seriam da mesma ordem que a aliança entre feminino e natureza, feminino e mal?.”158 E conclui: “Talvez, para Trier, a absoluta fragilidade humana em relação à natureza seja o que a faz ‘templo de Satã’, e a mulher é quem mais sente esse absurdo na própria pele e quem mais pagou por ele.”159 Bataille nos lembra que o fato de não existirem documentos sobre a existência do culto a Satã – os sabás – por conta da repressão cristã, não significa que tal culto não tenha existido. “Pode-se imaginar uma mitologia semi-cristã, conforme a sugestão teológica, substituindo por Satã as divindades que os camponeses adoravam na Alta Idade Média.”160 Para Bataille, tudo leva a crer que o culto noturno a Satã de fato existiu, ainda que as mentes dos juízes de feitiçaria tenham criado exageros sobre tal prática. “Você sabe quantas mulheres inocentes foram mortas só no século XVI apenas por serem 158

SALGADO, Cristina. Anticristo. In: Arte & Ensaios no. 22. Rio de Janeiro. Julho / 2011. p. 212 159

Idem.

160

BATAILLE, 1987. p. 82

89

mulheres?”161, diz o homem, no filme, à esposa, na tentativa de trazê-la à realidade, lembrando-a do excesso fabuloso que a história conta sobre a Inquisição. Em todo caso, os sabás, para Bataille: descrevem o desencadeamento de paixões que o cristianismo implicava, que o cristianismo continha: o que, imaginários ou não, eles definem [os sabás], é a situação cristã. Relativamente, a transgressão, na orgia religiosa anterior ao cristianismo, era lícita: a piedade o exigia. À transgressão opunha-se o interdito, mas sua suspensão parecia possível, desde que se observassem os limites. O interdito, no mundo cristão, foi absoluto. A transgressão teria revelado o que o cristianismo encobriu: que o sagrado e o interdito se misturavam, que o acesso ao sagrado se faz através 162 da violência de uma infração.

Acredito que trazer à luz essa sombria possibilidade é mais uma mensagem do diretor de Anticristo ou não haveria razão para dar este título ao longa-metragem, ou não seria necessário trazer tanta violência e tamanha carga erótica nas cenas. A violência sexual na vida do homem, segundo Bataille, ao contrário da vida animal para a qual ela não tem barreiras, abre uma ferida. Raramente a ferida se fecha sozinha: é preciso fechá-la. Mesmo sem uma constante atenção, que a angústia cria, ela não pode permanecer fechada. A angústia elementar ligada à desordem sexual é significativa da morte. A violência dessa desordem, quando o ser que a experimenta tem o conhecimento da morte, reabre nele o abismo que a morte lhe revelou. A angústia mortal não leva necessariamente à volúpia, mas a volúpia, na angústia mortal, é mais 163 profunda.

Essa ferida, essa fissura, própria da sensualidade humana, é que engaja o prazer. Ou seja, a violência sexual no homem não é livre. A origem da crise sexual no homem, ligada aos órgãos genitais, é um movimento animal, mas quando esse movimento carnal se desencadeia sem barreiras, este não é mais humano, para Bataille, pois está entregue ao movimento cego dos instintos.

161

TRIER, Lars Von. Anticristo. 2009, cor, 112 min. Cópia dublada disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=O0Q5dZgTszs. Acesso em abril de 2015. 162

BATAILLE, 1987. p.82-83

163

Ibid. p.86-89

90

Um interdito vago e geral se opõe à total liberdade sexual, neste sentido. A atividade sexual no homem é essencialmente uma trangressão: Não se trata, depois do interdito, de voltar à liberdade primeva. A transgressão é o acontecimento da humanidade organizado pelo trabalho. A própria transgressão é organizada. O erotismo é no seu todo uma atividade organizada, e é na medida em que é organizado 164 que ele muda através do tempo.

O pecado, o Mal, foi por muito tempo reprimido e a psicanálise nos ensina que o que é reprimido em algum momento vem à tona. Isso serve para a mente humana, mas também para a cultura. Demorei a entender o seguinte escrito de Baudelaire: “Quanto a mim, eu digo: a volúpia única e suprema do amor está na certeza de se fazer o mal. E o homem e a mulher sabem de há muito que toda a volúpia está no mal.” 165 Anticristo e Bataille mostram o real sentido desta sentença. O que temos hoje, em termos de erotismo, não é mais o que tivemos no passado. É por isso que dou graças à arte: a frente e o verso de Deus eu encontro nela.

164

BATAILLE, 1987. p.71

165

BAUDELAIRE apud BATAILLE, 1987. p.83

91

5.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Até 2012 não parei de performar até que por circunstâncias da vida, ou mesmo por maturidade, entendi que o trabalho de arte necessita de tempo para maturação. Trabalhos são como ovos. É preciso que sejam incubados para que se desenvolvam. A partir deste entendimento, entre 2012 e 2013 estava totalmente voltada à incubação de Bailarina. Para que Bailarina viesse ao mundo, utilizei as trocas realizadas tanto no presente curso de Mestrado que agora concluo, quanto no curso Aprofundamento da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Com pouco mais de um ano, entre embrião e execução, o trabalho foi realizado. Gostei desse processo mais lento, na contramão do ritmo que sempre tive porque é assim que, no geral, se aprende. O processo de Bailarina fluiu. Tudo que eu tinha em mente, ou para mais além da mente, foi ali posto sem forçar muito. Durante a execução, meu corpo atendeu até onde pode, do mesmo modo, sem forçar muito. Usava um vestido apertado, estilo “piriguete”, na cor marfim. Cabelo bem amarrado, descalça, maquiagem básica. Saí do salão do Parque Lage imediatamente próximo ao pátio da piscina e caminhei ao redor dela, entre o público presente. A condição em que me coloquei neste início de ação, nesta primeira volta ao redor da piscina, era: olhe profundamente nos olhos das pessoas. Assim o fiz. Na segunda volta, algo acontecia: o público silenciava lentamente ao me ver passar. Volto ao salão de onde saí e o falatório recomeçou. Segundos depois, reapareço, dou mais uma volta, e paro em uma das extremidades do pátio, entre a piscina e o corredor interno. Começo a girar em torno de meu próprio eixo, lentamente, do mesmo modo que lentamente o público volta a silenciar. Reparo que alguém se aproxima. Identifico: uma pesquisadora bastante conhecida no meio de arte começa a girar junto comigo. Essa eu não esperava. Mas o que é que se espera? Aumentei o ritmo do giro bem aos poucos, a mulher se afasta, e o giro vira rebolado sensual (fig.26). Sinto o vestido subir, isso eu esperava. Sinto ser observada de uma forma

92

estranha, como nunca senti em trabalhos ao vivo. De fato era este o propósito: concentrar a energia de meu corpo na bunda e na face e de fato essas regiões atraíam os olhares. Sinto desconforto. Paro lentamente de girar e volto ao salão. Se a psicanálise é a reflexão que põe o sujeito do inconsciente para fora de si, torna-o problemático, Tania Rivera mostra que a arte, sobretudo a performance, pode bem “presentificar” toda essa história quando trata da potência da presença do corpo para a convocação do outro. “A performance põe em questão o sujeito – e a arte, talvez seu reduto mais próprio.”166 Algo acontece entre artista e espectador na presença de um corpo oferecido ao olhar. O sujeito que aparece numa situação performática não estaria, propriamente, no corpo de alguém (no do artista que realiza a performance ou no do espectador que participa ou naquele que apenas assiste), mas na passagem de um corpo a outro, no ato. Trata-se, para o sujeito, de assumir, por um breve instante (...) sua condição de quase-objeto (...), e com isso ver-se quase-sujeito: não propriamente sujeito de seus atos, mas assujeitado a eles. Paradoxalmente, ao se assujeitar – pode-se engatar a posição de 167 sujeito.

Tania fala assim sobre uma “subversão do eu” quando há um corpo presente no campo do olhar. O sujeito não é mais do que um rápido efeito que se perde em seguida (...), ao contrário do eu que é imagem enganosa surgida no espelho com a promessa, nunca inteiramente cumprida, de permanecer sempre a mesma. O sujeito é efeito de um ato que se dá numa trajetória, num circuito que necessita do outro, o convoca 168 e só com ele se completa. O sujeito é o acontecimento – o sujeito é ato, é gesto, é movimento que transforma o espaço, mas só depois, nunca antes, só depois que o outro empresta a esse gesto seu olhar, seu corpo. 169

166

RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: arte contemporânea e psicanálise. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p. 20 167

Ibid. p. 25

168

Ibid. p. 28

169

Ibid. p. 45

93

A relação entre meu corpo em ação com o silêncio do público talvez mostre isso de que fala Rivera. Além disso, para a autora, a performance possui um caráter “moebiano” (em alusão à fita de Moebius), um caráter do que se dá, em arte entre o eu e o outro de forma fugaz. Ela mostra que esse sujeito, desmaterializado, “problematizou suas fronteiras em relação ao outro, entre o dentro e o fora, no mesmo passo em que se temporalizou e deslocou em uma nova concepção, fragmentada, do espaço.”170 “Caminhante, o sujeito é um itinerário interior fora de mim”, já afirmava Lygia Clark. Seria a performance afinal “o sujeito tornado espaço?”, indaga Rivera. Ainda dentro do salão, antes da última volta da ação, me sinto tensa, internamente confusa. O rebolado criou uma espécie de centrífuga de energias, como se este tal sujeito de que fala Tania Rivera, de fato, se fizesse presente entre meu olhar e os olhares do público. Digo energias metaforicamente, tal como Freud usou esse termo em seus escritos. O vestido, de tão apertado, mantinha juntas as minhas nádegas, meus ovos de trás. Nádegas são como dois ovos moles juntos e o espaço entre eles é abismo, ninguém sabe. E aí, rebolando, é como se eu me perdesse de mim para me tornar puro olhar alheio. Era preciso dar conta disso novamente. Saio do salão, dou mais uma volta e paro na extremidade oposta do pátio. O público não silenciou desta vez, permaneceu disperso, o que me deixou ainda mais tensa, pois este seria o momento crucial do trabalho. As voltas pelo pátio, que serviam justamente para anunciar que eu retomaria a ação, eram na verdade uma “faca de dois gumes”. Apesar disso, era preciso ir até o fim. Respirei fundo e reiniciei o rebolado sensual cujo ritmo aumentava a cada giro até se tornar um rebolado grotesco. Se no momento anterior a ideia era atrair, neste momento a intenção era causar repulsa. Rebolei grotescamente o máximo que meu preparo físico me permitiu. O vestido subiu mais ainda – a bunda saltaria como os olhos de Historia do olho (fig.27) ? Até certo ponto me sentia invisível, pois o público estava bastante disperso. Exausta e com vontade de parar, percebi novamente o silêncio 170

RIVERA, 2013. p. 21

94

chegar, o que me dizia que a ação voltara a ser vista pela maioria dos que lá estavam. No entanto, não resisti mais que alguns segundos. Extremamente cansada, diminuo o ritmo do rebolado e encerro a ação voltando ao salão que me abrigava. Antes da ação, pedi a amigos que se posicionassem em várias partes do pátio e filmassem a reação do público. Registrar os olhares durante a ação era algo importante para o trabalho e novo em meu processo. Ter um feedback não enquanto fala, mas enquanto puro olhar, era a ideia. Nos dias subsequentes à ação reuni todo o material, mas decidi não mostrar esses vídeos durante a exposição para evitar problemas com relação a direitos de imagem. Infelizmente ainda não consigo fazer uma avaliação precisa acerca do olhar alheio em relação ao meu corpo exposto. Foi bastante difícil, segundo meus amigos, capturar os olhares, de modo que o registro que tenho é bastante limitado. No entanto, estou certa de que se trata de um material precioso de pesquisa porque, diante de todo o arcabouço teórico que expus nesta Dissertação e diante do meu próprio sentimento ao me apresentar, eu, de fato, acredito no poder que guarda apenas um olhar, que dirá tantos olhares (figuras 28 a 32). Assim aconteceu Bailarina, um trabalho motor para esta pesquisa acerca dos furos do corpo em arte. Primeiro o olhar e os sons – os furos da face. Depois o rebolado, do sensual ao grotesco, os furos das zonas erógenas. A bunda e a cara numa tentativa de conjunção. Ao concluir este texto entendo que meu corpo foi atravessado não só por olhares, mas pela teoria, melhor dizendo, pelas palavras – ditas, lidas, ouvidas e escritas durante o processo. Assim, não exagero quando digo que a presente pesquisa me fez ocupar de modo mais consciente o espaço e a vida. Mundo ideal é sentir-se parte de qualquer coisa que exista – pessoas, animais, espaços, objetos. Mas o homem moderno é ser descontínuo e assim temos

angústia

porque

tendemos

a

encarar

a

sangue

frio

nossa

individualidade. Pelos furos do corpo, hoje, uma tentativa de continuidade pode ser estabelecida, seja pela respiração (narinas); seja pela fala (boca) e pela

95

escuta (ouvido) na produção de linguagem; seja pelo erotismo dos corpos (zonas erógenas orificiais); sejam pelos olhos que olham e que são olhados no contato mais imediato com o mundo. É mais gostoso viver quando se elabora uma continuidade. Assim a angústia, que consome qualquer ser que não a anestesie, pode ser superada, ainda que por instantes. Nossos furos, eu diria, são a fechadura da porta da angústia. Resta escolher o tipo de chave com a qual abriremos esta porta.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXO 1 – FIGURAS

Fig. 1 – Marcel Duchamp – Étant donnés: 1. La chute d'eau, 2. Le gaz d'éclairage (Sendo dados: 1. A cascata; 2. O gás de iluminação), 1946-1966

100

Fig. 2 – Marcel Duchamp – Nu descendo a escada, 1912

Fig. 3 – Marcel Duchamp – L.H.O.O.Q., 1919

101

Fig. 4 – Marcel Duchamp – Rrose Sélavy, 1921 – Fotografia de Man Ray

102

Fig. 5 – Marcel Duchamp – A noiva despida pelos seus celibatários, mesmo (Grande Vidro), 1915-1923

103

Fig. 6 – Gustave Courbet – A Origem do Mundo, 1866

Fig. 7 – Gustave Courbet – Mulher com papagaio, 1866

104

Fig. 8 – Bruce Nauman – Self-Portrait as a Fountain, 1966

Fig. 9 – Márcia X – Ação de Graças, 2001

105

Fig. 10 – Márcia X – Ação de Graças, 2001

106

Fig. 11 – Márcia X – Ação de Graças, 2001

Fig. 12 – Márcia X – Desenhando com terços, 2000-2003

107

Fig. 13 – Ação de Pedro Costa durante o 13º Salão de Artes Visuais da Cidade do Natal, 2010

Fig. 14 – Robert Mapplethorpe – Autorretrato, 1978

108

Fig. 15 – Márcia X – Pancake, 2001

Fig.16 – Luana Aguiar – O gozo silencioso, 2010 – Rio de Janeiro

109

Fig.17 – Luana Aguiar – O gozo silencioso, 2010 – Belo Horizonte

Fig. 18 – Luana Aguiar – Homenagem ao olho, 2010

110

Fig. 19 – Luana Aguiar – Bem me quer, mal me quer, 2010

Fig. 20 – Anna Maria Maiolino – Entrevidas da série Fotopoemação, 1981

111

Fig. 21 – Anna Maria Maiolino – X, II da série Fotopoemação, 1974

Fig. 22 – Cena de Um cão andaluz, 1929 de Luis Buñuel

112

Fig. 23 – Cena de Anticristo, 2010, de Lars Von Trier. O homem caminha à esquerda da imagem, próximo ao antigo tronco no centro e mais iluminado – testemunha de um passado sangrento.

Fig. 24 – Cena de Anticristo, 2010, de Lars Von Trier. Mulheres anônimas saem de todas as partes da floresta de modo a cercar o homem.

113

Fig. 25 – Cena de Anticristo, 2010, de Lars Von Trier. As mulheres da floresta sobem a colina onde se encontra o homem. Trier não mostra o que acontece, mostra apenas que a aglomeração dessas mulheres cresce e se torna uma mancha negra crescente na imagem.

Fig. 26 – Luana Aguiar – Bailarina, 2014 – EAV Parque Lage, Rio de Janeiro

114

Fig. 27 – Luana Aguiar – Bailarina, 2014 – EAV Parque Lage, Rio de Janeiro

Fig. 28 –Bailarina, 2014 – olhares do público

115

Fig. 29 –Bailarina, 2014 – olhares do público

Fig. 30 –Bailarina, 2014 – olhares do público

116

Fig. 31 –Bailarina, 2014 – olhares do público

Fig. 32 – Bailarina, 2014 – olhares do público

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