BORRILLO,Daniel.Homofobia-Historia e crítica de-um preconceito(2010)

June 6, 2017 | Autor: Fabrício Vilela | Categoria: Gay And Lesbian Studies, Estudos de Gênero (Gender Studies), Estudos Queer
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Descrição do Produto

Daniel Borrillo

Homofobia História e crítica de um preconceito

Tradução

Guilherme

João de Freitas Teixeira

autêntica

Copyright © 2000 Presses Universitaires de France Copyright desta edição @ 2010 Autêntica Editora TITULO ORIGINAL

L'homophobie TRADUÇÃO

Guilherme João de Freitas Teixeira PROJETO GRÁFICO DE CAPA

Diogo Droschi EDITORAÇÃO ElETRONICA

Alberto Bittencourt REVISÃO

Cecilia Martins EDITORA RESPONSÁVEL

Rejane Dias

7

Revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico. Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorizaçâo prévia da Editora.

AUTÊNTICA

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Prefácio a esta edição

13 Introdução 21 Capítulo I: Definições e questões terminológicas 24

Homofobia irracional e homofobia cognitiva

25

Homofobia geral e homofobia específica

30

Homofobia, sexismo e heterossexismo

34

Racismo, xenofobia, classismo e homofobia

43 Capítulo lI: Origens e elementos precursores

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Cãmara Brasileira do Livro. Sp, Brasil)

45

O mundo greco-romano

48

A tradição judaico-cristã

57

A Igreja Católica contemporânea e a condenação da homossexualidade

Borrillo, Daniel Homofobia : história e critica de um preconceito / Daniel Borrillo ; [tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira]. - Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

63 Capítulo llI: As doutrinas heterossexistas e a ideologia homofóbica

- (Ensaio Geral, 1).

Título original: l'homophobie. ISBN 978-85-7526-456-0

64 A homofobia clínica

1. Discriminação contra homossexuais 2. Homofobia 3. Preconceitos I. Título. 11.Série.

73

A homofobia antropológica

10-03240

76

A homofobia liberal

78

A homofobia "burocrática": o stalinismo

82

A homofobia em seu paroxismo: o "holocaustogay"

CDD- 300 Indices para catálogo sistemático: 1. Homofobia

: Preconceitos:

Sociologia 300

87

Capítulo IV: As causas da homofobia

88 A homofobia como elemento constitutivo da identidade masculina 90 A homofobia, guardiã do diferencialismo sexual

Prefácio a esta edição

94 A homofobia e o fantasma da desintegração psíquica e social 96 A personalidade homofóbiea 100 A homofobia interiorizada 105 Conclusão: Recursos

para lutar contra a homofobia

107 A prevenção da homofobia

Hornofobia Muitos fenômenos sob o mesmo nome Prof. Dr. Marco Aurélio Máximo Prado·

113 A punição dos comportamentos homofóbicos

120 A lei contra a homofobia e a identidade gay 121 Referências

A homofobia como termo para designar uma forma de preconceito e aversão às homossexualidades em geral tem se lançado na sociedade brasileira com alguma força política, conceitual e analítica nos últimos anos. Ainda que, do ponto de vista histórico e analítico, não revele mais a complexidade das formas de hierarquização sexual, violência e preconceito social, é um conceito que hoje carrega um sem-número de sentidos e fenômenos que ultrapassam a sua descrição conceitual primeira. O conceito tem sido utilizado para fazer referência a um conjunto de emoções negativas (aversão, desprezo, ódio ou medo) em relação às homossexualidades. No entanto, entendê-Io assim implica limitar a compreensão do fenômeno e pensar o seu enfrentamento somente a partir de medidas voltadas a minimizar os efeitos de sentimentos e atitudes de "indivíduos" ou de "grupos homofóbicos': deixando de lado as instituições sociais que nada teriam a ver com isso. Desde que foi cunhado, em 1972, em referência ao "medo expresso por heterossexuais de estarem em presença de homossexuais", o conceito passou por vários questionamentos e ressignificações (JUNQUEIRA, 2007). No entanto, o termo,

* Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros) da Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista do CNPq e da Fapemig. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.

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a partir de meados dos anos 1970, ganhou notoriedade e conheceu considerável êxito, especialmente nos países do Norte, e foi adquirindo novos contornos semânticos e políticos. Além de ser empregado em referência a um conjunto de atitudes negativas em relação a homossexuais, o termo, pouco a pouco, passou a ser usado também em alusão a situações de preconceito, discriminação e violência contra pessoas LGBT.

lhação, exclusão e violência que adquire requintes a partir de cada cultura e formas de organização das sociedades locais, já que essa forma de preconceito exige ser pensada a partir da sua interseção com outras formas de inferiorização como o racismo e o classismo, por exemplo. Nesse ponto, Daniel Borrillo é insistente, ao evidenciar que a homofobia se alimenta da mes-

Passou-se da esfera estritamente individual e psicológica para uma dimensão mais social e potencialmente mais politizadora. Mais recentemente, verifica-se a circulação de uma compreensão da homofobia como dispositivo de vigilância das fronteiras de gênero que atinge todas as pessoas, independentemente da orientação sexual, ainda que em distintos graus e modalidades.

ma lógica que as outras formas de violência e inferiorização: "desumanizar o outro e torná-Io inexoravelmente diferente".

Este livro, oportunamente traduzido acompanha o movimento de atualização

Nesses termos, o livro que ora o leitor tem em mãos apresenta um debate afinado de como o acirramento das diferenças, mui-

para o português, do preconceito se-

xual na sociedade contemporânea. Para além da origem psíquica das fobias, Daniel Borrillo não só traz para o debate as origens históricas da homofobia, mas também enfatiza a intensa relação entre a homofobia individual e as formas de homofobia institucional, jurídica e social. Nesse ponto, cabe-nos ressaltar um dos aspectos que merecem ser sublinhados neste livro: a sua atualidade, marcada por uma compreensão da complexa relação entre as instituições, a cultura, as leis e os indivíduos quando se trata de compreender a homofobia muito além de qualquer sentimento de aversão individual de cunho psicológico. Aí, sem dúvida, podemos perceber a importância de uma abordagem para o fenômeno da homofobia ao considerar também que as instituições revelam-se espaços de produção, reprodução e atualização de todo um conjunto de disposições (discursos, valores, práticas, etc.) por meio das quais a heterossexualidade é instituída e vivenciada como única possibilidade legítima de expressão sexual e de gênero (WARNER,1993). No Brasil, o livro de Daniel Borrillo vem sendo bastante utilizado, mesmo sem uma tradução para o português até o momento, e ganhou importante espaço em debates entre grupos de pesquisa e ativistas, exatamente pela sua atualidade ao evidenciar as relações entre indivíduos e sociedade numa cumplicidade silenciosa e perversa sobre as formas de inferiorização 8

e preconceito sexual. Ao demonstrar as particularidades da homofobia individual, social, na cultura e nas instituições, este livro abre novas oportunidades de pesquisa e compreensão das lógicas de hierarquização e inferiorização social. A homofobia tem se revelado como um sistema de humi-

Homofobia

tas vezes, ocupa disfarçadamente a lógica de exclusão social. Na sociedade brasileira ainda temos pouco conhecimento sobre a homofobia. Sim, sabemos que ela existe tanto através de dados empíricos, de pesquisas quanto pela lógica da experiência. No entanto, estamos em um momento bastante contraditório: sabemos que ela existe, mas sabemos tão pouco sobre como ela funciona e quais as suas dinâmicas ao se articular com outras formas de inferiorização. Compreender o funcionamento da homofobia, sobretudo quando é evidente que o preconceito não só reside nos indivíduos, mas também se articula na cultura e nas instituições, é fundamental para aprimorar as formas de enfrentamento e desconstrução de suas práticas violentas e silenciosas. É ainda no campo do não nomeado e do não pensável que a homofobia, como mecanismo que é produto e produtor das hierarquias sexuais (RUBIN, 1984), das violências e das naturalizações das normas de gênero (BUTLER, 2006), reside e se sustenta. Não nomeado porque sua descrição é de difícil apreensão e não pensável porque não refletida pelos sujeitos e pelas instituições. Nossa compreensão é a de que o duplo aspecto da norma, discutido por Butler (2006) a partir de Foucault, evidencia o quanto a norma implica diretamente a formação e orientação Prefácio a esta edição

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das ações, mas também a normalização violenta que alimenta a construção de coerções sociais com relação às posições sexuadas. Dessa maneira, abriga aí a violência da normalização, a qual cria o terreno do não pensável e do silêncio para a violência homofóbica, já que a esta corresponde certa coerência que se encontra implícita no cotidiano da cumplicidade entre indivíduos e instituições, como bem evidencia Borrillo neste livro. Assim, as praticas homofóbicas se instituem como préreflexivas, e trazer a tona esse mecanismo é urgente na sociedade brasileira. A prática da violência homofóbica é, então, de difícil diagnóstico nas sociedades atuais, o que neutraliza possibilidades de enfrentamentos. Aí reside outro aspecto importante da obra de Borrillo, pois através da história e da categorização da homofobia como forma de violência e humilhação com cumplicidade jurídica, científica, cultural e institucional, o autor nos ajuda a dar nomes no terreno do não pensável e do não nomeado. Ou seja, é através do preconceito homofóbico como elemento de conservação cognitiva e social das hierarquias invisibilizadas que se constrói e dinamiza o terreno do impensável. Portanto, se este não se revela como limite da percepção e da cultura, mas sim como uma violência que esconde a violência da não nomeação, elemento fundamental na manutenção das hierarquias sociais pré-reflexivas, necessário se torna o seu enfrentamento através da nomeação e da reflexão de sua dinâmica de funcionamento.

praticado por indivíduos, grupos e ideologias que pactuam em algum nível um mundo do sensível que exclui e inclui! Exclui porque o consentimento sempre pressupõe a exclusão de outras sociabilidades. E inclui porque busca, através da política do armário e do preconceito, integrar nas bases do consentimento a subalternização de alguns grupos e indivíduos. Estamos, portanto, diante de um fenômeno pouco explorado no seu funcionamento e bastante complexo, exatamente porque não se localiza num âmbito só, nem indivíduo nem sociedade. Ele se articula em torno de emoções, condutas, normas e dispositivos ideológicos e institucionais, sendo instrumento que cria e reproduz um sistema de diferenças para justificar a exclusão e a dominação de uns sobre os outros (PRADO;ARRUDA;TOLENTINO, 2009). Encarar a homofonia, nesta perspectiva, exige muito de todos nós. Um bom começo o leitor terá aqui no trabalho que, apesar de recente, se tornou clássico. Através dele, o leitor terá recursos para nomear formas de preconceito até então residentes no terreno do impensável.

Essa tarefa poderá ser encontrada com algumas pistas no trabalho de Borrillo, o qual consegue, ao ir além da conceituação das fobias, descortinar ao leitor os muitos mecanismos da homofobia nas sociedades ocidentais. Dessa forma, o autor nos ajuda a pensar o preconceito como um paradoxo que busca esconder outro paradoxo: a historicidade e a contingência das relações sociais (PRADO;MACHADO,2008). Assim, pensar a homofobia exige-nos compreender essas práticas do preconceito não como meramente individuais, mas, sobretudo, como consentimentos das práticas sociais, culturais e econômicas que constituem uma ideologia homofóbica. A homofobia pode ser pensada como um consentimento social 10

Homofobia

Prefácio a esta edição

11

Introdução "'->

A homofobia é a atitude de hostilidade contra as/os homossexuais; portanto, homens ou mulheres. Segundo parece, o termo foi utilizado pela primeira vez nos EUA, em 1971; no entanto, ele apareceu nos dicionários de língua francesa somente no final da década de 1990: para Le Nouveau Petit Robert, "homofóbico" é aquele que experimenta aversão pelos homossexuais;l por sua vez, em Le Petit Larousse, a "homofobia" é a rejeição da homossexualidade, a hostilidade sistemática contra os homossexuais.2 Mesmo que seu componente primordial seja, efetivamente, a rejeição irracional e, até mesmo, o ódio em relação a gays e lésbicas, a homofobia não pode ser reduzida a esse aspecto. Do mesmo modo que a xenofobia, o racismo ou o antissemitismo, a homofobia é uma manifestação arbitrária que consiste em designar o outro como contrário, inferior ou anormal; por sua diferença irredutível, ele é posicionado a distância, fora do universo comum dos humanos. Crime abominável, amor vergonhoso, gosto depravado, costume infame, paixão ignominiosa, pecado contra a natureza, vício de Sodoma - outras tantas designações que, durante vários séculos,

serviram para qualificar o desejo e as relações sexuais ou afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Confinado no papel do marginal ou excêntrico, o homossexual é apontado pela

1

Em sua edição de 1993, ele inclui somente o termo "homofóbico'; "homofobiâ:

mas não

"Homo'; elemento de composição, antepositivo, deriva do grego homós, que significa "semelhantê; "igual"; a distinguir de seu homônimo "homo'; nominativo latino de homo, hominis, ou seja, "o homem'; "o gênero humano'; "um homem': (N.T.). 2

Esses dois termos aparecem, pela primeira vez, na sua edição de 1998.

I-

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norma social como bizarro, estranho ou extravagante. E no pressuposto de que o mal vem sempre de fora, na França, a homossexualidade foi qualificada como "vício italiano" ou "vício grego", ou ainda "costume árabe" ou "colonial". À semelhança do negro, do judeu ou de qualquer estrangeiro, o homossexual é sempre o outro, o diferente, aquele com quem é impensável qualquer identificação. A recente preocupação com a hostilidade contra gays e as lésbicas modifica a maneira como a questão havia sido problematizada até aqui: em vez de se dedicar ao estudo do comportamento homossexual, tratado no passado como desviante, a atenção fixa-se, daqui em diante, nas razões que levaram a atribuir tal qualificativo a essa forma de sexualidade. De modo que o deslocamento do objeto de análise para a homofobia produz uma mudança tanto epistemológica quanto política: epistemológica porque se trata não tanto de conhecer ou compreender a origem e o funcionamento da homossexualidade, mas de analisar a hostilidade desencadeada por essa forma específica de orientação sexual; e política porque deixa de ser a questão homossexual (afinal de contas, banal do ponto de vista institucional),3 mas precisamente a questão homofóbica que, a partir de agora, merece uma problematização específica. Independentemente de tratar-se de uma escolha de vida sexual ou de uma questão de característica estrutural do desejo erótico por pessoas do mesmo sexo, a homossexualidade deve ser considerada, de agora em diante, como uma forma de sexualidade tão legítima quanto a heterossexualidade. Na realidade, ela é apenas a simples manifestação do pluralismo sexual, uma variante constante e regular da sexualidade humana. Enquanto atos consentidos entre adultos, os comportamentos homoeróticos são protegidos - pelo menos, na França - como qualquer outra manifestação da vida privada.

Por ser um atributo da personalidade, a homossexualidade deveria manter-se fora de qu~lquer intervenção institucional; do mesmo modo que a cor da pele, a filiação religiosa ou a origem étnica, ela deve ser considerada um dado não pertinente na construção política do cidadão e na qualificação do sujeito de direitos. Ora, de fato, se o exercício de uma prerrogativa ou a fruição de um direito deixaram de estar subordinados à filiação real ou suposta, a uma raça, a um ou ao outro sexo, a uma religião, a uma opinião pública ou a uma classe social, em compensação, a homossexualidade permanece um obstáculo à plena realização dos direitos. No âmago desse tratamento discriminatório, a homofobia desempenha um papel importante na medida em que ela é uma forma de inferiorização, consequência direta da hierarquização das sexualidades, além de conferir um status superior à heterossexualidade, situando-a no plano do natural, do que é evidente. Enquanto a heterossexualidade é definida pelos dicionários (Le Grand Robert, 1992; Le Petit Robert, 1996) como a "sexualidade (considerada como normal) do heterossexual" e este como aquele "que experimenta uma atração sexual (considerada como normal) pelos indivíduos do sexo oposto", por sua vez, a homossexualidade está desprovida de tal normalidade. Nos dicionários de sinônimos, nem há registro da palavra "heterossexualidade"; em compensação, termos tais como androgamia, androfilia, homofilia, inversão, pederastia, pedofilia, soeratismo, uranismo, androfobia, lesbianismo, safismo e tribadismo são propostos como equivalentes ao de "homossexualidade': E se Le Petit Robert considera que um hete-

rossexual é simplesmente o oposto de um homossexual, este é designado por uma profusão de vocábulos4: gay, homófilo, pederasta, veado, salsinha, michê, boiola, bicha louca, tia, sandalinha, invertido, sodomita, travesti, lésbica, maria homem, homaça, hermafrodita,

3

baitola, gilete, sapatão, bissexual. Essa

A banalização institucional implica que os grandes aparelhos do poder normalizador - tais como a religião, o direito, a medicina ou a psicanálise - renunciem a abordar a questão homossexual; deste modo, os gays e as lésbicas têm a possibilidade de criar, individualmente,

sua própria identidade e de negociar suas

contribuições a uma cultura específica.

14

Homofobia

4

Vocábulos citados no original: gay, homophile, pédéraste, enculé, folle, homo, lope, lopette, pédale, pédé, tante, tapette, inverti, sodomite, travesti, travelo, lesbienne, gomorrhéenne,

tribade, gouine, bi, à voile et à vapeur. (N.T.).

Introdução

15

desproporção no plano da linguagem revela uma operação ideológica que consiste em nomear, superabundantemente, aquilo que aparece como problemático e deixar implícito o que, supostamente, é evidente e natural. A diferença homo/hétero não é só constatada, mas serve, sobretudo, para ordenar um regime das sexualidades em que os comportamentos heterossexuais são os únicos que merecem a qualificação de modelo social e de referência para qualquer outra sexualidade. Assim, nessa ordem sexual, o sexo biológico (macho/fêmea) determina um desejo sexual unÍvoco (hétero), assim como um comportamento social específico (masculino/feminino). Sexismo e homofonia aparecem, portanto, como componentes necessários do regime binário das sexualidades. A divisão dos gêneros e o desejo (hétero) sexual funcionam, de preferência, como um dispositivo de reprodução da ordem social, e não como um dispositivo de reprodução biológica da espécie. A homofobia torna-se, assim, a guardiã das fronteiras tanto sexuais (hétero/homo), quanto de gênero (masculino/feminino). Eis por que os homossexuais deixaram de ser as únicas vítimas da violência homofóbica, que acaba visando, igualmente, todos aqueles que não aderem à ordem clássica dos gêneros: travestis, transexuais, bissexuais, mulheres heterossexuais dotadas de forte personalidade, homens heterossexuais delicados ou que manifestam grande sensibilidade ... A homofobia é um fenômeno complexo e variado que pode ser percebido nas piadas vulgares que ridicularizam o indivíduo efeminado, mas ela pode também assumir formas mais brutais, chegando até a vontade de extermínio, como foi o caso na Alemanha Nazista. À semelhança de qualquer forma de exclusão, a homofobia não se limita a constatar uma diferença: ela a interpreta e tira suas conclusões materiais. Assim, se o homossexual é culpado do pecado, sua condenação moral aparece como necessária; portanto, a consequência lógica vai exigir sua "purificação pelo fogo inquisitorial': Se ele é aparentado ao criminoso, então, seu lugar natural é, na melhor das hipóteses, o ostracismo e, na pior, a pena capital, como ainda ocorre em alguns países. Considerado doente,

ele é objeto da atenção dos médicos e deve submeter-se às terapias que lhe são impostas pela ciência, em particular, os eletrochoques utilizados no Ocidente até a década de 1960. Se algumas formas mais sutis de homofobia exibem certa tolerância em relação a lésbicas e gays, essa atitude ocorre mediante a condição de atribuir-Ihes uma posição marginal e silenciosa, ou seja, a de uma sexualidade considerada como inacabada ou secundária. Aceita na esfera Íntima da vida privada, a homossexualidade torna-se insuportável ao reivindicar, publicamente, sua equivalência à heterossexualidade. A homofobia é o medo de que a valorização dessa identidade seja reconhecida; ela se manifesta, entre outros aspectos, pela angústia de ver desaparecer a fronteira e a hierarquia da ordem heterossexual. Ela se exprime, na vida cotidiana, por injúrias e por insultos, mas aparece também nos textos de professores e de especialistas ou no decorrer de debates públicos. A homofobia é algo familiar e, ainda, consensual, sendo percebida como um fenômeno banal: quantos pais ficam inquietos ao descobrir a homofobia de um(a) filho(a) adolescente, ao passo que, simultaneamente, a homossexualidade de um(a) filho(a) continua sendo fonte de sofrimento para as famílias, levando-as, quase sempre, a consultar um psicanalista? Invisível, cotidiana, compartilhada, a homofobia participa do senso comum, embora venha a culminar, igualmente, em uma verdadeira alienação dos heterossexuais. Por essas razões é que se torna indispensável questioná-Ia no que diz respeito tanto às atitudes e aos comportamentos quanto a suas construções ideológicas. O que é a homofobia? Quais são suas relações com as outras formas de estigmatização? Quais são suas origens? De que modo e a partir de quais discursos foram construí das a supremacia heterossexual e a desvalorização correlata da homossexualidade? Como definir a personalidade homofóbica? Quais são os recursos à nossa disposição para lutar contra essa forma de violência? No decorrer dos quatro capítulos deste livro, vamos tentar responder a essas questões, e nossa conclusão é apresentada sob a forma de proposição de ação.

Homofobia

Introdução

16

17

Começaremos nosso estudo pela análise das definições possíveis e dos problemas terminológicos encontrados quando se trata de circunscrever o fenômeno homofóbico. Além

problematização se elabora atualmente. As citações históricas, assim como as referências teóricas do discurso homofóbico, são necessariamente incompletas e suscetíveis de serem aprofundadas. A hostilidade contra todas as formas de "transgressões sexuais" e, em particular, contra a homossexualidade, é tão antiga quanto a civilização judaico-cristã; o simples recenseamento de tais manifestações exigiria vários volumes. Os exemplos pontuais extraídos da História têm a única finalidade de ilustrar uma demonstração teórica, sem qualquer pretensão de ser um estudo exaustivo. Em vez de pesquisa sociológica, análise psicológica ou ensaio jurídico, esta obra apresenta o balanço atual sobre a questão da homofobia.

disso, para compreender melhor o alcance da questão e de suas principais implicações, vamos colocá-Ia sob a perspectiva de outras formas de exclusão, tais como o racismo, o antissemitismo, o sexismo ou a xenofobia. Em um segundo momento, vamos dedicar-nos ao estudo das origens do ódio homofóbico. A relativa tolerância que o mundo pagão havia reservado às relações homossexuais contrasta, consideravelmente, com a hostilidade do cristianismo triunfante. A condenação da sodomia na tradição judaico-cristã - pedra angular do sistema repressivo - aparece como o elemento precursor fundamental das diferentes formas de homofobia. Analisaremos, em seguida, a ideologia heterossexista veiculada pelas principais doutrinas que substituem a noção de "vício sodomítico" pela noção de "perversão sexual" e que, daí em diante, consideram a homossexualidade como um "acidente na evolução afetiva", uma "regressão da cultura amorosà: uma "simples escolha de vida privadà: um "vício burguês" ou um "perigo para a raçà: Já não será em nome da ordem natural, nem em nome da religião que gays e lésbicas serão objeto das perseguições, mas em nome da psiquiatria, da antropologia, da consciência de classe e/ou da higiene do 3° Reich, que, ao substituir a teologia, hão de reatualizar, com eficácia, o ódio homofóbico. A dupla dimensão da questão, rejeição irracional (afetiva), por um lado, e, por outro, construção ideológica (cognitiva), obriga-nos a considerá-Ia no plano individual e no social. Assim, as predisposições psicológicas da personalidade homofóbica e os elementos do meio circundante heterossexista serão objeto da quarta parte deste livro. Por último, à guisa de conclusão, vamos nos interessar pelas estratégias institucionais, preventivas e/ou repressoras, suscetíveis de lutar contra essa forma específica de hostilidade e de exclusão. A única pretensão deste livro consiste em fornecer alguns elementos de reflexão a propósito de um fenômeno cuja )-,

18

Homofobia

Introdução

19

Capítulo 1

Definições e questões terminológicas "'-'

Foi apenas em 1998 que o termo "homofobià' apareceu, pela primeira vez, em um dicionário de língua francesa; dez anos antes, ele era ainda ignorado, até mesmo pelos léxicos especializados.5 Segundo parece, a invenção da palavra pertence a K. T. Smith que, em um artigo publicado em 1971, tentava analisar os traços da personalidade homofóbica; um ano depois, G. Weinberg definirá a homofobia como "o receio de estar com um homossexual em um espaço fechado e, relativamente aos próprios homossexuais, o ódio por si mesmo".6 Ao apresentar sempre essa hostilidade contra os homossexuais, exclusivamente sob sua dimensão fóbica, diferentes especialistas sugeriram, no mesmo período, outros termos:

5

Em seu Vocabulaire de l'homosexualité masculine, C. Courouve (1985) passa do termo "homofilia" para o vocábulo "homossexualidade". Em 1994, em compensação,

o Dictionnaire

longo artigo à homofobia. fobia tem as seguintes homossexual.

determinados

sexual, para realizar esse recalcamento,

ergue a barreira

[préjugé/pré-juízo]

todas as formas de prazeres não associadas reprimido.

O heterossexual

no caso concreto, a possibilidade

desfavorável

à reprodução

detesta o homossexual

atribui-lhe

determinados

daí recontra

[... ]. c) O desejo

porque, à semelhança

do

aspectos que ele não tem:

mais ou menos fantasmática

com grande faCilidade, a numerosos 6

da aversão, do pu-

e acaba por traduzi-Ios

b) A religião e a moral judaico-cristã

um preconceito

judeu ou do magrebino,

pessoa seja

desejos que estão em si, o heteros-

contra esses desejos reprimidos

em rejeição do homossexual. sultante acarretam

para quem a homo-

origens: "a) O medo de que a própria

Ao reprimir

dor e da moralidade

Gay, de L. Povert, dedica um

O autor cita G. Weinberg,

de ter acesso,

parceiros ..:'.

Eis a definição de homofobia, segundo G. Weinberg (1972): "The dread ofbeing in dose quarters with homosexuals and in the case of homosexuals themselves, self loathing."

21

"homoerotofobià'

(CHURCHILL, 1967),

"homossexofobià'

(LEVIT; KLASSEN, 1974), "homossexismo" (LEHNE, 1976) e "heterossexismo" (MORIN; GARFINKLE,1978). As primeiras críticas provêm de

J.

Boswell (1985), ao ob-

servar que o termo "homofobià' significaria, de preferência, "receio do semelhante'; em vez de "receio do homossexual': Por essa razão, esse historiador prefere retomar a palavra "homossexofobià; na medida em que este termo parece-lhe mais adequado do ponto de vista etimológico, apesar de seu caráter híbrido. Todavia, essa denominação continua sendo insatisfatória por referir-se exclusivamente à atitude extrema de apreensão psicológica (fobia), ocultando outras formas de hostilidade menos irracionais. Ora, se existem reações virulentas contra os gays e as lésbicas, a homofobia cotidiana assume, sobretudo, a forma de uma violência do tipo simbólico (BOURDIEU, 1998), que, na maior parte das vezes, não é percebida por suas vítimas. Nesse sentido, e a fim de circunscrever melhor a questão, Hudson e Ricketts (1980) propuseram a distinção entre homofobia e homonegatividade: esta última refere-se não só ao caráter de aversão e de ansiedade peculiares à homofobia no sentido clássico do termo, mas também e sobretudo ao conjunto das atitudes cognitivas de cunho negativo para com a homossexualidade nos planos social, moral, jurídico e/ou antropológico. O termo "homofobià' designa, assim, dois aspectos diferentes da mesma realidade: a dimensão pessoal, de natureza afetiva, que se manifesta pela rejeição dos homossexuais; e a dimensão cultural, de natureza cognitiva, em que o objeto da rejeição não é o homossexual enquanto indivíduo, mas a homossexualidade

imigração, na França, são muito significativos, no sentido em que a questão da igualdade foi cuidadosamente esquivada). A partir da crítica do termo "homofobià' - adotado por razões de ordem prática8 -, tentaremos extrair uma definição mais adequada da hostilidade contra as lésbicas e os gays no contexto da França contemporânea. A ideologia que preconiza a superioridade da raça branca é designada sob o termo "racismo"; a que promove a superioridade de um gênero em relação ao outro se chama "sexismo': O antissemitismo designa a opinião que justifica a inferiorização dos judeus, enquanto a xenofobia refere-se à antipatia diante dos estrangeiros. Portanto, em função do sexo, da cor da pele, da filiação religiosa ou da origem étnica é que se instaura, tradicionalmente, um dispositivo intelectual e político de discriminação. O sistema a partir do qual uma sociedade organiza um tratamento segregacionista segundo a orientação sexual9 pode ser designado sob o termo geral de "heterossexismo': Esse sistema e a homofobia - compreendida como a consequência psicológica de uma representação social que, pelo fato de outorgar o monopólio da normalidade à heterossexualidade, fomenta o desdém em relação àquelas e àqueles que se afastam do modelo de referência - constituem as duas faces da mesma intolerância e, por conseguinte, merecem ser denunciados com o mesmo vigor utilizado contra o racisrpo ou o antissemitismo.

8

do fenômeno, de maneira mais satisfatória, de-

bia'; para a homofobia em relação aos homossexuais

como fenômeno psicológico e social. Essa

masculinos; "lesbofobia",

no caso de mulheres homossexuais, vítimas do menosprezo em decorrência

distinção permite compreender melhor uma situação bastante disseminada nas sociedades modernas que consiste em tolerar e, até mesmo, em simpatizar com os membros do grupo estigmatizado; no entanto, considera inaceitável qualquer política de igualdade a seu respeito (os debates sobre o PaCS7 e sobre a

Para exprimir a complexidade

veríamos utilizar, em vez de homofobia específica, os seguintes termos: "gayfode

sua orientação sexual; "bifobia", ao se tratar de bissexuais; ou, ainda, "travestifobia" ou "transfobia'; em relação aos travestis ou aos transexuais

que sofrem

tal hostilidade. Por razões de economia de linguagem, adotamos "homofobia" para o conjunto desses fenômenos. 9

A orientação

sexual é uma componente

de comportamentos

relacionados

da sexualidade

enquanto

conjunto

com a pulsão sexual e com sua concretiza-

ção. Se a atração sexual é dirigida para pessoas do mesmo sexo, designamos 7

Para obter mais esclarecimentos sobre o debate em torno do PaCS [Pacte civil de solidarité/Pacto Civil de Solidariedade - regulariza, na França, a união entre pessoas do mesmo sexo], conferir Borrillo, Fassin e Iacub (1999).

22

Homofobia

tal orientação por "homossexualidade"; se ela se inclina para o sexo oposto, trata-se de "heterossexualidade"; e, ainda, de "bissexualidade'; se o sexo do parceiro é indiferente.

Definições e questões terminológicas

23

Homofobia irracional e homofobia cognitiva Uma primeira forma de violência contra gays e lésbicas caracteriza-se por sentimento de medo, aversão e repulsa. Trata-se de uma verdadeira manifestação emotiva, do tipo fóbico, comparável à apreensão que pode ser experimentada em espaços fechados (claustrofobia) ou diante de certos animais (zoofobia). Esse teria sido o sentido original do termo "homofobiá' que, no entanto, se revelou bem depressa como extremam ente limitado, abrangendo de forma bastante parcial a amplitude do fenômeno. Com efeito, essa forma brutal de violência corresponde unicamente a uma atitude irracional que encontra suas origens em conflitos individuais. Outras manifestações menos grosseiras, sem deixarem de ser menos insidiosas, exercem suas violências cotidianamente. Essa outra forma de homofobia, mais eufemística e de cunho social, enraíza -se na atitude de desdém constitutiva de um modo habitual de apreender e de categorizar o outro. Se a homofobia afetiva (psicológica) caracteriza-se pela condenação da homossexualidade, a homofobia cognitiva (social) pretende simplesmente perpetuar a diferença homo/hétero; neste aspecto, ela preconiza a tolerância, forma civilizada da clemência dos ortodoxos em relação com os heréticos. Neste último registro, ninguém rejeita os homossexuais; entretanto, ninguém fica chocado pelo fato de que eles não usufruam dos mesmos direitos reconhecidos aos heterossexuais. Como é ironicamente descrito por Fassin (1999): No mundo social, toda a gente gosta dos homossexuais em geral - inclusive, muitas pessoas têm amigos homossexuais em particular. Entretanto, ninguém iria ao ponto de defender a igualdade das sexualidades, proposição radical que esbarra no senso comum: mesmo que nada exista de anormal na homossexualidade, cada um de nós sabe que o casamento ou a filiação reconhecidos aos casais do mesmo sexo não seriam considerados uma situação normal.

escárnio. A injúria constitui a injunção da homofobia afetiva com a cognitiva na medida em que, de acordo com a observação de D. Éribon (I999a, p. 29), [...] as expressões "veado nojento" ("sapatão sem vergonhà')lo estão longe de ser simples palavras lançadas ao vento, mas agressões verbais que deixam marcas na consciência, traumas que se inscrevem na memória e no corpo (de fato, a timidez, o constrangimento e a vergonha são atitudes corporais resultantes da hostilidade do mundo exterior). E uma das consequências da injúria consiste em modelar a relação com os outros e com o mundo; portanto, em modelar a personalidade, a subjetividade e o próprio ser de um indivíduo.

A violência em estado puro - destilada pela homofobia psicológica - nada é além da integração paradigmática de uma atitude anti-homossexual que, aliás, permeia a história de nossas sociedades. O medo, às vezes pueril, suscitado ainda pela homossexualidade resulta da produção cultural do Ocidente judaico-cristão. Dos textos sagrados às leis laicas, passando pela literatura científica e pelo cinema, a campanha de promoção da heterossexualidade não hesita em proferir o anátema não só contra a homossexualidade, mas também contra qualquer manifestação de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Assim, a homofobia cognitiva serve de fundamento a um saber sobre o homossexual e a homossexualidade baseado em um preconceitoll que os reduz a um clichê.

Homofobia geral e homofobia específica Considerando a complexidade do fenômeno, se essa primeira distinção entre homofobia psicológica (individual) e homofobia cognitiva (social) é indispensável, ela é insuficiente. Outras classificações são necessárias para circunscrever melhor o mosaico de situações que, sob o mesmo termo, agrupa diversas formas de antipatia contra gays e lésbicas.

10

Presente nos insultos, nas piadas, nas representações caricaturais, assim como na linguagem corrente, a homofobia descreve os gays e as lésbicas como criaturas grotescas, objetos de 24

Homofobia

No original, "sale pédé" ("sale gouine"); "pédé" é a abreviatura, em francês, de "pédéraste". (N.T.).

II No original, "préjugé" [em castelhano: "prejuicio"; em italiano: "pregiudizio"; e em inglês "prejudice"], literalmente: "pré-juízÔ'. (N.T.).

Definições e questões terminológicas

25

Como já descrevemos, a homofobia mostra hostilidade não só contra os homossexuais, mas igualmente contra o conjunto de indivíduos considerados como não conformes à norma sexual. Em função da amplitude do termo, é possível estabelecer uma primeira distinção entre homofobia geral e homofobia específica. O sociólogo D. Welzer-Lang foi o primeiro que, na França, ampliou a noção de homofobia a discursos e comportamentos que, superando a mera apreensão em relação a gays ou lésbicas, articulam uma forma geral de hostilidade contra atitudes opostas aos papéis sociossexuais pré-estabelecidos. Para esse autor, a homofobia geral nada é além de uma manifestação do sexismo, ou seja, da discriminação de pessoas em razão de seu sexo (macho/fêmea) e, mais particularmente, de seu gênero (feminino/masculino). Essa forma de homofobia é definida como "a discriminação contra as pessoas que mostram, ou às quais são atribuídas, determinadas qualidades (ou defeitos) imputadas ao outro gênero': Assim, nas sociedades profundamente marcadas pela dominação masculina, a homofobia organiza uma espécie de "vigilância do gênero': porque a virilidade deve estruturar-se em função de dois aspectos: negação do feminino e rejeição da homossexualidade. De acordo com Welzer-Lang (1994, p. 20; ver também KOPELMAN, 1994), [...] a homofobiano masculino é a estigmatização[...] por designação,repulsaou violência,das relaçõessensíveis- sexuaisou não - entre homens,particularmente,quando estes são apontadoscomohomossexuaisou se afirmamcomotais. A homofobia é, igualmente,a estigmatizaçãoou a negação das relaçõesentre mulheres que não correspondem a uma definiçãotradicionalda feminilidade. É assim que a homofobia geral permite denunciar os des-

vios e deslizes do masculino em direção ao feminino e viceversa, de tal modo que se opera uma reatualização constante nos indivíduos ao lembrar-Ihes sua filiação ao "gênero correto': Segundo parece, qualquer suspeita de homossexualidade é sentida como uma traição suscetível de questionar a identidade mais profunda do ser. Desde o berço, as cores azul e rosa marcam os territórios dessa summa divisio que, de maneira 26

Homofobia

implacável, fixa o indivíduo seja à masculinidade, seja à feminilidade. E quando se profere o insulto "veado!" ["pédé!"], denuncia-se quase sempre um não respeito pelos atributos masculinos "naturais" sem que exista uma referência particular à verdadeira orientação sexual da pessoa. Ou quando se trata alguém como homossexual (homem ou mulher), denuncia-se sua condição de traidor(a) e desertor(a) do gênero ao qual ele ou ela pertence "naturalmente': Ao contrário da homofobia geral, a homofobia específica constitui uma forma de intolerância que se refere, especialmente, aos gays e às lésbicas. Alguns autores propuseram a distinção entre "gayfobia" e "lesbofobià' - noções que designam declinações possíveis dessa homofobia específica. As representações de cada um dos sexos, assim como as funções que lhes são inerentes, merecem efetivamente uma terminologia peculiar. A lesbofobia12 constitui uma especificidade no âmago de outra: com efeito, a lésbica é vítima de uma violência particular, definida pelo duplo desdém que tem a ver com o fato de ser mulher e homossexual. Diferentemente do gay,ela acumula as discriminações contra o gênero e contra a sexualidade. Na opinião de F. Guillemaut (1994, p. 225), o que caracteriza as lésbicas nas relações sociais baseadas no gênero é o seguinte fato: em razão de sua feminilidade, elas são invisíveis e silenciosas. A historieta atribuída à rainha Vitória, no momento da atualização, no século XIX, das penas contra as relações sexuais entre homens é bastante eloquente. Tendo sido interrogada sobre a impunidade das relações sexuais entre mulheres, a rainha respondeu: "Como punir algo que não existe?". Do mesmo modo, em sua obra Psychopathia sexualis, R. von Krafft-Ebing (1886) observa que "todas as informações suscetíveis de serem obtidas na literatura especializada demonstram claramente que, em relação às mulheres, trata-se raramente de uma autêntica homossexualidade, mas sobretudo de uma pseudo-homossexualidade"; de qualquer modo, no pressuposto de que ela venha a ser confirmada "a homossexualidade

12

A gayfobia é abordada, mais adiante, no primeiro título do Capítulo IV.

Definições e questões terminológicas

27

da mulher não tem as graves consequências da homossexualidade do homem': 13 O fato de tornar essa sexualidade invisível parece estar, portanto, no âmago da violência homofóbica em relação às mulheres. Se é mais difícil "detectar" a homossexualidade feminina, assinala H. Ellis (1895), é precisamente porque "estamos habituados ao fato de que a intimidade é maior entre mulheres que entre homens; ora, tal constatação impede-nos de suspeitar da existência de uma paixão anormal entre elas': Alguns anos depois, ao analisar a homossexualidade, S. Freud refere-se quase exclusivamente aos homens; o pai da psicanálise dedica um único estudo à homossexualidade feminina (1920) e, diferentemente do que ocorre com os outros analisandos, ele não chega a adotar um pseudônimo para a paciente.14 Se as lésbicas foram, visivelmente, menos perseguidas que os gays, tal constatação não deve ser interpretada, de modo algum, como indício de uma maior tolerância a seu respeito; pelo contrário, essa indiferença nada mais é do que o sinal de uma atitude que manifesta um desdém muito maior, reflexo

As instâncias judiciais europeias compartilhavam

13

o ponto de vista do psiquia-

tra do século XIX. Com efeito, na petição apresentada à Comissão Europeia dos Direitos Humanos, em 1975, por um cidadão alemão que havia sido condenado por sodomia, o pleiteante evocava uma violação do princípio de igualdade entre os sexos; de fato, tratando-se

de uma mulher homossexual,

não havia punição

para as relações com um individuo do mesmo sexo. O tribunal respondeu que "a existência de um perigo social específico a propósito da homossexualidade masculina [...] pelo fato de que os homossexuais masculinos constituem, frequentemente, um grupo sociocultural distinto que se empenha em um nítido proselitismo em relação aos adolescentes, que, desse modo, correm um sério risco de isolamento social [...], a questão dos atos homossexuais entre mulheres nunca foi considerada como suscetível de criar para os jovens um dos inconvenientes semelhantes àqueles que são desencadeados

pela homossexualidade

masculinà: Por

essa razão é que a Comissão tirou a conclusão segundo a qual, nesse caso concreto, não existe discriminação (Petição n° 5935/72, de 30 de setembro de 1975). 14

"Essa omissão é impressionante,

sublinham N. O'Connor e J. Ryan: ... deixar de

atribuir um nome a alguém é, de algum modo, recusar-lhe o estatuto de sujeito. Como efeito, esse procedimento

cria um distanciamento,

ção e uma reificação, além de representar

provavelmente

uma despersonalizao primeiro indício da

dificuldade onipresente entre os psicanalistas para abordar a questão do lesbianismo" (1993, p. 30, apud PEERS; DEMCZUK in DEMCZUK, 28

Homofobia

1998, p. 85).

de uma misoginia que, ao transformar a sexualidade feminina em um instrumento do desejo masculino, torna impensáveis as relações erótico-afetivas entre mulheres. A iconografia pornográfica heterossexual ilustra perfeitamente essa realidade: os jogos sexuais entre mulheres são sistematicamente representados para excitar o homem, e, mesmo que elas deem a impressão de ter prazer, o desfecho do espetáculo sexual é sempre protagonizado pela penetração e pela ejaculação do homem. O menosprezo dos homens pela sexualidade feminina - incluindo a da lésbica, considerada como inofensiva - transforma-se em violência quando as mulheres contestam o status atribuído a seu sexo, ou seja, quando elas rejeitam ser esposas e mães. A obra organizada por Ch. Bard (1999), Um século de antijeminismo, dá testemunho do ódio contra as lutas libertadoras das mulheres: se rejeitam a maternidade, as mulheres tornam-se um perigo para si mesmas e para a sociedade porque, ao assumirem uma atitude viril, elas colocam sob ameaça não só sua identidade, mas, sobretudo, o equilíbrio demo gráfico. No momento em que as reivindicações feministas começaram a surgir, os médicos reagiram vigorosamente ao considerar essas mulheres emancipadas como depravadas "que preferem o laboratório ao quarto dos filhos". Ao abandonar sua função social, essas mulheres constituíam, "do ponto de vista moral e físico, uma geração de pervertidas que, além de tudo, produzem filhos efeminados e filhas viris" (HOWARD, 1900, p. 687); e se rejeitam os papéis de esposa e mãe que lhes são atribuídos, é precisamente por detestarem os homens. Como sublinha Ch. Bard (1999, p. 28) [...] ao desafiarem, por sua simples existência, a norma de um sexo destinado "por naturezà' ao casamento e à maternidade, as lésbicas são associadas espontaneamente aos/às feministas que contestam a rigidez exclusiva de tais "destinos': Antifeminismo e lesbofobia se nutrem, portanto, reciprocamente; neste caso, a lesbofobia é um recurso eficaz para descrever um feminismo "contra a naturezà' e "imoral':

Eis como a caricatura antifeminista transformou a mulher autônoma em uma lésbica e a própria lésbica em uma Definições e questões termino lógicas

29

personagem invisível, discreta, simples vítima de um sentimento necessariamente passageiro e suscetível de "reparação" pela intervenção salutar de um homem "de verdade':

Homofobia, sexismo e heterossexismo A homofobia é inconcebível sem que seja levada em consideração a ordem sexual a partir da qual são organizadas as relações sociais entre os sexos e as sexualidades. A origem da justificativa social dos papéis atribuídos ao homem e à mulher encontra-se na naturalização da diferença entre os dois sexos: a ordem (chamada "natural") dos sexos determina uma ordem social em que o feminino deve ser complementar do masculino pelo viés de sua subordinação psicológica e cultural. O sexismo define-se, desde então, como a ideologia organizadora das relações entre os sexos, no âmago da qual o masculino caracterizase por sua vinculação ao universo exterior e político, enquanto o feminino reenvia à intimidade e a tudo o que se refere à vida doméstica. A dominação masculina identifica-se com essa forma específica de violência simbólica que se exerce, de maneira sutil e invisível,precisamente porque ela é apresentada pelo dominador e aceita pelo dominado como natural, inevitável e necessária. O sexismo caracteriza-se por uma constante objetificação da mulher. Como sublinha P.Bourdieu (1998, p. 73) [As mulheres] existem, em primeiro lugar, pelo e para o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos acolhedores, atraentes e disponíveis. Espera-se que elas sejam "femininas'; ou seja, sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, reservadas e, até mesmo, invisíveis. E a pretensa "feminilidade" não passa, na maior parte das vezes, de uma forma de complacência em relação às expectativas masculinas, reais ou supostas, particularmente em matéria de ampliação do ego. Por conseguinte, a relação de dependência para com os outros (e não só dos homens) tende a tornar-se constitutivo de seu ser.

j

A heterossexualidade aparece, assim, como o padrão para avaliartodas as outras sexualidades. Essa qualidade normativa e o ideal que ela encarna - é constitutiva de uma forma específica de dominação, chamada heterossexismo, que se define como a crença na existência de uma hierarquia das sexualidades, em que a heterossexualidade ocupa a posição superior. Todas as outras formas de sexualidade são consideradas, na melhor das hipóteses, incompletas, acidentais e perversas; e, na pior, patológicas, criminosas, imorais e destruidoras da civilização. Outra faceta do heterossexismo - mais moderna em sua retórica, sem deixar de ser violenta em suas deduções - caracteriza-se pela interpretação da diferença entre heterossexualidade e homossexualidade. Nesta lógica, o tratamento diferenciado de situações distintas não constitui, de modo algum, uma discriminação injustificada. Com efeito, não é em nome de uma hierarquia ou de uma normatividade (consideradas pelos setores liberais como valores negativos), mas em virtude da proteção da diversidade (vivenciada, em compensação, como uma atitude positiva) que se verifica a oposição à supressão das fronteiras jurídicas entre as sexualidades. Do mesmo modo que em relação às novas formas de racismo (TAGUIEFF,1990; 1997), o heterossexismo diferencialista parece descartar o princípio da superioridade heterossexual em benefício do princípio da diversidade de sexualidades. Em razão da diferença, e não de qualquer vontade normalizadora, é que foi possível justificar um tratamento diferenciado de gays e lésbicas, privando-os, em particular, do direito ao casamento, à adoção ou às técnicas de reprodução assistida.15

15

Como especialista rença homossexual"

30

Homofobia

a fim de justificar

um tratamento

a "dife-

discriminatório

de

acesso à igualdade dos direitos para os gays e as lésbicas. Para esta socióloga, a heterossexualidade

Essa ordem sexual, ou seja, o sexismo, implica tanto a subordinação do feminino ao masculino quanto a hierarquização das sexualidades, fundamento da homofobia; por conseguinte, a evocação constante da superioridade biológica e moral dos comportamentos heterossexuais faz parte de uma estratégia política de construção da normalidade sexual.

do governo francês, Irene Théry problematizou

seria "a instituição

é a base do casamento e da família porque o casamento que articula a diferença dos sexos e a diferença das gera-

ções" e, de acordo com a autora, a diferença dos sexos é a própria heterossexualidade: ''A instituição jurídica da diferença resume-se a este aspecto, cuja imensidade ainda não foi avaliada em sua totalidade: reconhecer a finitude de cada sexo, que tem necessidade

do outro para que a humanidade

se man-

tenha viva e se reproduzá' (THÉRY, 1997, p. 80; o mesmo texto é publicado como Note de Ia Fondation Saint-Simon*, n° 9, 1997). Ver, também, o

Definições e questões terminológicas

31

Em nome

dessa pretensa

pluralidade

das sexualidades

e a

o apartheid

sul-africano

evoluiu

criar, em 1983, urna assembleia

para

o segregacionismo

parlamentar

ao

para cada etnia.

fim de preservar a diferença de sexos e de gêneros, o discurso diferencialista atualiza a ordem heterossexista e, ao mesmo tem-

A França

po, denuncia as mais brutais manifestações heterossexismo diferencialista é, também,

para justificar a segregação de pessoas ao instaurar, por meio da lei de 3 de outubro de 1940, o "Estatuto dos Judeus".l?

fobia - certamente ao rejeitar lário

mais sutil, mas não menos

a discriminação

urna forma

da diferença,

de um regime

ram propostas,

tanto

para

exclusiva

segundo

parece,

homofóbicos:

um aspecto

da personalidade

um obstáculo mento

para

essa diferença

(real ou fantasmática),

discursos,

práticas,

procedimentos

assim

a "especificidade

um dispositivo

de pensar

modernas

O pensamento

diferencialista

sobre

dos indivíduos,

si mesmo,

de dominação aparece,

a diferença

estão

(FoucAuLT, assim,

corno

mona ori-

1976). o subs-

trato ideológico de certa maneira de produzir sujeitos cuja identidade sexuada e sexual articula-se em torno das cate-

te em função Ser homem

da outra

hétero/homo. Essas categorias não menos, inocentes: cada urna só exise a partir

é, em primeiro

da negação

lugar

e antes

de seu contrário. de mais nada,

não

ser mulher; além disso, ser heterossexual implica, necessariamente, não ser homossexual. Desde o livro do Gênesis até

dos direitos,

o pensa-

a psicanálise,

o fato de que

e sublinhar

estar dirigida

não para

mas para o conjunto e instituições

necessitando

16

não deixa

a organizar

passando

tem sido pensada

corno

dele para

pela literatura um homem atingir

romântica, incompleto

sua completude);

a mulher (portanto, do mesmo

de

que, ao pro-

homossexual':

destinado

a maneira

de sujeição

gem das formas

gorias homem/mulher, são autônomas e, ainda

de produzir

em questionar

deveria

esses mecanismos

também,

constitui

(a orientação

a atenção

delando

e teorizou,

sexual)

em vez de denunciar

blematizar de fortalecer

políticas

progressistas

só tem condições

empenha-se

Todavia,

fo-

tipo de problematização

o reconhecimento

diferencialista

a diferença.

gays e lésbicas

até então,

qualquer

da homossexualidade

argumentos

de igualdade

por personalidades

quanto por intelectuais considerados, (BORRILLO; FASSIN; IAcuB, 1999). Assim,

Em nome

do princípio

de exceção

na França,

tem corno coro-

de segregacionismo. parcial

Todos

eficaz -, porque,

de homossexuais,

eufemística

a derrogação

e a criação

homofóbicas. Ora, o urna forma de homo-

de Vichy16 invocou

os indiví-

Cidade em que, durante a ocupação dos nazistas (1940-1944),se instalou a sede do governo francês, chefiado pelo marechal Pétain. (N.T.).

relatório encomendado pelos ministros franceses do Emprego e da Justiça a esta socióloga (THÉRY,1998). *Estainstituição- a Fondation Saint-Simon(1982-1999)- exerceu,ao longo das últimas duas décadasdo século XX, grande influênciapolítica na França,tornando-se um ponto de encontro entre representantesda universidadee do empresariado que visavamreformar a sociedadepor meio de estudos críticossobreo mundo contemporâneo (cf.CORREA,2006;BOURDIEU;WACQUANT,2000).(N.T.).

Artigo 10: "Para a aplicaçãoda presente lei, o qualificativode judeu é atribuído à pessoadescendentede três geraçõesde raçajudaica ou de duas geraçõesda mesma raça se o cônjuge é judeu:' Levantava-se,então, o problema da falta de indicação para sabercomo seriadeterminado que os ascendenteseram de "raçajudaica':Essa "lacuna"será preenchida, parcialmente,por uma lei de 2 de junho de 1941 que "prescreviao censo dos judeus" e, em seu artigo 10, estipulavao seguinte:"É considerado como judeu: l/Aquele ou aquela,pertencente ou não a uma confissão qualquer,descendente de três gerações,no mínimo, de raça judaica, ou de duas gerações,somente se o cônjugeé descendentede duas geraçõesde raça judaica. O qualificativode judeu é atribuído ao avô que tenha pertencido à religiãojudaica. 2 / Aqueleou aquela que pertence à religiãojudaica ou era seu membro em 25 de junho de 1940,além de ser descendentede duas geraçõesde raça judaica. A não filiaçãoà raçajudaica é estabelecidapelaprovada adesãoa outra confissãoreligiosa reconhecidapelo Estado,antesda lei de 9 de dezembrode 1905:'* *Suaadoção - Lei da Separação entre as Igrejas e o Estado - marca o desfecho do confronto violento que havia subsistido quase 25 anos e havia oposto duas visões da França: de um lado, a clerical, favorávelao sistema de Concordata; e, de outro, a republicana e laica. (N.T.).

Homofobia

Definiçõese questõestermino1ógicas

duos enquanto ção diferencialista lheres

32

Lembremos outrora,

cívicos

a inferiorização

completamente

igualmente,

da década

dos negros

(BROWN, 1954). No mesmo

que a argumenta-

a fim de privar

- foi evocada,

Corte dos EUA, até meados

homologar cluído

- utilizada,

de seus direitos

Suprema racial

seres sexuados.

pela

de 1950, para

com base na diferença

espírito,

os não brancos

as mu-

depois

dos direitos

de ter expolíticos,

17

33

modo, o/a homossexual é a prova, sempre presente, de uma personalidade inacabada, produto de uma deficiente integração à sua "natureza" masculina ou feminina. Fenômeno global, ao mesmo tempo, cognitivo e normativo, o heterossexismo pressupõe a diferenciação elementar entre os grupos homos/héteros, reservando a este último, sistematicamente, um tratamento preferencial. O heterossexismo é para a homofobia o que o sexismo é para a misoginia: apesar de esses conceitos serem distintos, um não pode ser concebido sem o outro.18 Mas, antes de equiparar a homofobia a outras formas de exclusão, parece necessário resumir suas características constitutivas a fim de não menosprezar sua especificidade. A homofobia pode ser definida como a hostilidade geral, psicológica e social contra aquelas e aqueles que, supostamente, sentem desejo ou têm práticas sexuais com indivíduos de seu próprio sexo. Forma específica do sexismo, a homofobia rejeita, igualmente, todos aqueles que não se conformam com o papel predeterminado para seu sexo biológico. Construção ideológica que consiste na promoção constante de uma forma de sexualidade (hétero) em detrimento de outra (homo), a homofobia organiza uma hierarquização das sexualidades e, dessa postura, extrai consequências políticas.

Racismo, xenofobia, classismo e homofobia Enquanto violência global caracterizada pela supervalorização deuns epelo menosprezo deoutros, ahomofobia baseia -se

18

É. Fassin estabelece uma distinção entre homofobia e heterossexismo:

a primeira

é considerada como uma manifestação psicológica, enquanto o segundo é visto como a ideologia não igualitária das sexualidades (FASSIN in BORRILLO; LAS-

na mesma lógica utilizada por outras formas de inferiorização: tratando-se da ideologia racista, classista ou antissemita, o objetivo perseguido consiste sempre em desumanizar o outro, em torná-Io inexoravelmente diferente. À semelhança de qualquer outra forma de intolerância, a homofobia articula-se em torno de emoções (crenças, preconceitos, convicções, fantasmas ...), de condutas (atos, práticas, procedimentos, leis...) e de um dispositivo ideológico (teorias, mitos, doutrinas, argumentos de autoridade ...). O profundo conservadorismo do conjunto das manifestações de exclusão evocadas reside no fato de que todas elas, por um lado, se inspiram no fundo irracional comum de uma opinião particularmente orientada para a desconfiança em relação aos outros e, por outro, elas transformam tal preconceito corriqueiro em doutrina elaborada. Para analisar a intolerância, é necessário compreender essa convergência entre a opinião comumente aceita e a construção intelectual da rejeição que engendra a legitimação da intolerância. A homofobia constrói-se a partir da atribuição de uma identidade consistente ao grupo estigmatizado, de uma capacidade para mobilizar recursos cada vez mais ocultos e de uma aptidão para apoiar-se em redes mais ou menos secretas.19 Todavia, uma questão elementar é sistematicamente dissimulada: como explicar que essa organização, supostamente tão poderosa, aceitou que seus membros tenham sido, durante tanto tempo, discriminados e, ainda hoje, continuem desprovidos dos direitos mais elementares, tais como casamento, adoção, acesso às técnicas de reprodução, agrupamento familiar, igualdade patrimonial dos casais, acesso aos direitos sociais, etc.?

COUMES, 1999). Na mesma ótica, Irene Demczuk (1998, p. 10) prefere o termo "heterossexismo" a "homofobià'; em seu entender, "a homofobia remete ao sentimento de medo manifestado em relação às pessoas homossexuais e, mais amplamente, em relação às pessoas dotadas de uma aparência ou de comportamentos

19

Assim, para Armand Laferrere (diplomado [Instituição pública encarregada

da École nationale d'administration

de selecionar por concurso e formar os altos

que não se conformam com os cmones da feminilidade ou da virilidade. Ora, o

funcionários

conceito de heterossexismo afasta-se dos esquemas de explicação mais psicológica

Contas): "Ao prestar auxílio ao PaCS como se tratasse de um casamento, a lei

sobre a obsessão da diferença, até mesmo, sobre o 'medo do outro em si'; ele enfatiza as relações sociais e as estruturas que engendram e mantêm as crenças e as

anuncia que um lobbying eficaz é tão meritório quanto um compromisso de assistência mútua duradoura, a criação de um quadro estável para a educação

atitudes depreciativas, para não dizer odiosas, contra pessoas homossexuais':

dos filhos e a perenidade

34

Homofobia

da administração

francesa. (N.T.).], conselheiro do Tribunal de

da sociedade" (1999-2000, p. 99).

Definições e questões terminológicas

35

Do mesmo modo que os estrangeiros, os/as homossexuais, em decorrência de suas "práticas bizarras': vivem sob a suspeita de que ameaçam a coesão cultural e moral da sociedade; o discurso homofóbico serve-se desse fantasma como principal arma de seu combate. E até mesmo quando consegue superar a hostilidade, a fala homofóbica não pode deixar de assumir um tom paternalista. Como acontecia, outrora, com as mulheres ou, ainda hoje, com as crianças ou com os portadores de deficiências físicas, tenta-se submeter os/as homossexuais a uma espécie de vigilância protetora, reservando-Ihes um tratamento destinado a uma classe inferior: incapazes de empreender um projeto conjugal ou parental, de transmitir seu patrimônio livremente ou, ainda, suscetíveis de serem submetidos a terapias para obter a guarda dos próprios filhos... Nesses casos, o tratamento desigual de que os/as homossexuais são vítimas é justificado por um mecanismo de dominação que consiste em ocultar as práticas discriminatórias impostas pelo grupo dominante e em enfatizar a ideia de uma "deficiência estrutural" dos dominados: aliás, esta pode ser identificada com a cor da pele, a ausência de pênis e determinados traços psicológicos atribuídos a homossexuais - por exemplo, narcisismo, incapacidade afetiva e não reconhecimento da alteridade, ou seja, produtos de uma estagnação na evolução normal do aparelho psíquico. De qualquer modo, por meio de uma retórica moralizadora ou de uma linguagem erudita, a lógica discriminatória funciona segundo uma dialética de oposição entre nós-civilizados e eles-selvagens.2o No início do século XX, numerosos artigos de antropologia dedicados à moral sexual dos indígenas tentaram demonstrar que a tolerância da homossexualidade nas comunidades autóctones deveria aparecer como um traço comum das culturas primitivas (cf., em particular, SELIGMANN, 1902). A exuberância de uma sexualidade selvagem, mais próxima do bestialismo que da afeição, obcecava as mentes coloniais. Na mesma época e de acordo com a mesma ordem de ideias, os médicos pressupunham que a libertinagem sexual e a sensualidade eram características próprias

20

Essas expressões são utilizadas por P.-A. Taguieff (1997).

36

Homofobia

às classes populares e que somente a burguesia havia atingido o senso do pudor e da moderação. G. Chauncey mostra perfeitamente como a teoria da degenerescência permite explicar a imoralidade dos pobres e a própria pobreza, a partir de uma degradação peculiar a essa classe. Alguns alienistas do século XIX defendiam que, tanto a moralidade quanto a saúde mental eram construções sociais e uma função de classe: a emergência de um comportamento próprio às classes populares (imorais) em uma pessoa da classe superior era sintoma de uma perturbação psicológica. Outros afirmavam que as classes populares eram mais atingidas por distúrbios e doenças sexuais em decorrência de seus excessos libidinais (CHAUNCEY, 1985).

Os intrusos da classe operária nos lares burgueses, tais como os empregados domésticos, foram suspeitos de introduzir perversões no seio de famílias respeitáveis,a tal ponto que os médicos da época advertiam seus pacientes contra eventuais práticas masturbatórias de que os filhos poderiam ser vítimas; aliás, tais práticas estariam na origem da futura homossexualidade desses jovens. Na mesma ordem de ideias, a suspeita de lesbianismo visava, em particular, as prostitutas, que eram obrigadas a satisfazer às "demandas perversas" dos clientes. O conjunto das categorias evocadas constitui uma forma de poder gerador de desigualdades: tratando-se das categorias de raça, classe ou gênero e sexualidade, todas elas têm o objetivo de organizar, intelectualmente, a divergência ao naturalizá-Ia. Durante muito tempo, a diferença de sexos serviu de justificativa para o tratamento discriminatório (tutelar) das mulheres, assim como a diferença de raças havia legitimado a escravidão e o colonialismo (GUILLAUMIN, 1995). Apesar dos progressos realizados na matéria, o problema da desigualdade está longe de ter encontrado uma solução: as mulheres continuam recebendo salários inferiores aos dos homens, além de terem de desempenhar tarefas do lar e a educação dos filhos, não obstante suas atividades profissionais. Por outro lado, na França, as pessoas de origem africana ou magrebina é que, sobretudo, encontram a maior dificuldade para obter um emprego (BATAILLE, 1997). Definições e questões terminológicas

37

Na interação das diferentes formas de opressão que acabamos de evocar, é possível discernir a lógica da dominação que consiste em fabricar diferenças para justificar a exclusão de uns e a promoção dos outros. Disposição de um poder que vai do individual ao social, as categorias evocadas organizam um critério de acesso desigual aos recursos econômicos, políticos, sociais e/ou jurídicos. No plano pessoal, um processo mental de subjetivação que consiste em levar o indivíduo discriminado a aceitar a natureza essencial de sua diferença - é o que torna possível alimentar regularmente a resignação dos dominados ao status atribuído pelos dominantes. O fato de constatar a sub-representação das mulheres nas instâncias de decisão política, econômica ou administrativa, implica apenas reações bastante tímidas e limitadas a círculos restritos (FASSIN; FEHER, 1999). A persistência das práticas discriminatórias no mundo do trabalho contra pessoas de origem estrangeira não suscita a menor indignação (BATAILLE, 1997; ver, igualmente, GIUDICE, 1989). O entusiasmo provocado pela criação de uma forma específica de união conjugal, concebida (de maneira inconfessável) para casais do mesmo sexo,21mostra perfeitamente até que ponto, enquanto grupo dominado, alguns homossexuais acabaram integrando o discurso heterossexista dominante, que apresenta, como confirmado e legítimo, o abandono do princípio da igualdade em relação ao casamento e à filiação. A memória é, infelizmente, bastante curta: os argumentos adotados, atualmente, contra o casamento homossexual veiculam preconceitos semelhantes aos que haviam sido utilizados nos EUA para proibir os casamentos interraciais.22 O problema da homofobia supera a questão gay,

inscrevendo-se na mesma lógica de intolerância que, em diferentes momentos da História, produziu a exclusão tanto dos escravos e dos judeus quanto dos protestantes; até mesmo os comediantes haviam sido, outrora, excluídos do direito ao casamento. À semelhança do que ocorre em relação à diferença cultural entre nacional e estrangeiro (espécie de eufemismo do racismo), a diferença sexual entre homem e mulher, assim como a diferença das sexualidades entre heterossexual e homossexual, é apresentada como um indicador objetivo do sistema desigual de atribuição e de acesso aos bens culturais, a saber, direitos, capacidades, prerrogativas, alocações, dinheiro, cultura, prestígio, etc. E, embora o princípio da igualdade seja formalmente proclamado, é efetivamente em nome das diferenças e ao dissimular precavidamente qualquer intenção discriminatória, que os dominantes entendem reservar um tratamento desfavorável aos dominados. A construção da diferença homossexual é um mecanismo político bem rodado que permite excluir gays e lésbicas do direito comum (universal), inscrevendo-os(as) em um regime de exceção (particular). O fato de que nenhum país no mundo tenha reconhecido aos casais homo os direitos conjugais atribuídos aos casais hétero ilustra perfeitamente a generalização dessa política "segregacionistà' que consiste em atribuir determinados direitos (excepcionais) sem atingir a igualdade total desses direitos. Se conseguimos constatar a existência de similitudes entre as diversas formas de intolerância, torna-se necessário, porém, assinalar algumas diferenças significativas; nesse sentido,

à Constituição

dos EUA. Vinte e seis anos depois, a Suprema Corte do Estado

do Havaí considera, no processo Baehr v. Lewin, que a negação do direito de se 21

22

Como é o caso, na França, em relação ao Pacte civil de solidarité (PaCS), forma

casar para um casal do mesmo sexo constitui uma discriminação

de subcasamento

Constituição; aos argumentos que consistem em dizer que não existe discrimi-

que homologa a segregação dos casais do mesmo sexo.

contrária

à

de raça diferente, o Tribunal de Instância do Estado da Virgínia considerava,

nação porque o casamento entre pessoas do mesmo sexo não é aplicável a um homem ou a uma mulher, o Tribunal de Havaí responde que esses mesmos ar-

em 1966, que 'Deus Onipotente

gumentos haviam sido rejeitados pela Suprema Corte ao serem evocados para

''A fim de justificar a aplicação de uma lei que proíbe o casamento entre pessoas criou as raças branca, negra, amarela, malásia

e vermelha, além de colocá-Ias em continentes Ele as tenha separado demonstra misturassem:

38

separados

[...]. O fato de que

que Ele não tinha a intenção que as raças se

Em 1967, a Suprema Corte Federal considerou

Homofobia

essa lei contrária

a questão racial. De fato, até essa decisão, nenhum

negro podia casar-se com

uma branca, tampouco uma negra com um branco" (BORRILLO, "Le mariage homosexuel..:', in FEDIDA, 1999).

Definições e questões termino1ógicas

39

parece ser pertinente o exemplo de uma minoria religiosa, mencionado por J. Boswell. De acordo com esse historiador, [o judaísmo] é transmitido pelos pais aos filhos; ora, com seus preceitos morais, ele legou, de geração em geração, uma verdadeira sabedoria política, extraída no decorrer de séculos de opressão e perseguição [...]. Além disso, ele conseguiu oferecer, pelo menos, aos membros da comunidade, o reconforto da solidariedade diante da opressão. [...] A maior parte dos homossexuais não são oriundos de famílias de homossexuais. Eles sofrem uma opressão dirigida contra cada um deles, isoladamente, sem se beneficiar dos conselhos nem sequer, frequentemente, do apoio afetivo dos pais e amigos. Eis o que torna sua situação mais comparável, em determinados aspectos, à dos cegos ou canhotos que estão, também, disseminados na população, não reunidos por uma herança comum, além de serem, igualmente, em um grande número de civilizações' vítimas da intolerância (BOSWELL, 1985, p. 37-38). Diferentemente de outras formas de hostilidade, o que caracterizaria a homofobia, portanto, é o fato de que ela visa, sobretudo, indivíduos isolados, e não grupos já constituídos como minorias. O homossexual sofre sozinho o ostracismo

monoteístas, a maioria dos políticos, numerosos intelectuais, a maior parte das associações familiares e até o ex-presidente da República Prancesa23 têm manifestado atitudes e falas desdenhosas em relação a gays e lésbicas, sem que essa postura tenha suscitado a menor reação da sociedade civil. Atualmente, é inimaginável proferir, sem risco, afirmações injuriosas contra outras minorias - tal como ocorre em relação aos homossexuais -, entre outros motivos, porque tal atitude é punida por lei. Essa ausência de proteção jurídica contra o ódio homofóbico posiciona os gays em uma situação particularmente vulnerável, 24 tanto mais grave quanto a homossexualidade usufrui do triste privilégio de ter sido combatida, durante os últimos dois séculos, simultaneamente, enquanto pecado, crime e doença: mesmo escapando à Igreja, ela acabava caindo sob o jugo da lei laica ou sob a influência da clínica médica. Essa crueldade deixou marcas profundas nas consciências de gays e lésbicas, a tal ponto que eles(as) integram, frequentemente, a violência cotidiana - de que eles(as) são as primeiras vítimas como se fosse algo normal e, de algum modo, inevitável.

associado à sua homossexualidade, sem qualquer apoio das pessoas à sua volta e, muitas vezes, em um ambiente familiar também hostil. Ele é mais facilmente vítima de uma aversão a si mesmo e de uma violência interiorizada, levá-Io até o suicídio.

suscetíveis de

Sublinhemos, também, que a orientação sexual, por si só, é ainda evocada oficialmente como empecilho legítimo ao reconhecimento de direitos; ou, dito por outras palavras, a homossexualidade permanece como a única discriminação inscrita formalmente na ordem jurídica. Nenhuma outra "categoria" da população é excluída da fruição dos direitos fundamentais em razão de sua filiação a uma raça, religião, origem étnica, sexo ou a qualquer outra designação arbitrária. Além disso, enquanto o racismo, o antissemitismo, a misoginia ou a xenofobia são formalmente condenados pelas instituições, a homofobia continua sendo considerada quase uma opinião de bom senso. Praticamente, o conjunto da doutrina jurídica (BORRILLO, "Pantasmes des juristes ..:: 1999), as religiões 40

Homofobia

23

A propósito

do debate sobre o reconhecimento

da união entre pessoas do

mesmo sexo, o ex-presidente francês J. Chirac declarou: "Não se deve correr o risco de desnaturar o direito do casamento, nem de banalizá-Io, ao colocar no mesmo plano outras realidades humanas de nosso tempo que se afastam claramente dos valores fundamentais da família" (6 de junho de 1998). Citado por Fourest e Venner (1999). 24

A primeira proposta de lei contra as afirmações homofóbicas foi registrada na Assembleia Nacional francesa, sob o n° 1.893, em 9 de novembro de 1999, pelo deputado liberal François Léotard. Inspirado stratégie contre l'homophobiê'

pelo "Manifeste pour une

[Manifesto em favor de uma estratégia contra

a homofobia], publicado pelo periódico parisiense de esquerda Libération, em 3 de dezembro de 1999, o Partido Comunista francês apresentou, em 1° de fevereiro de 2000, uma proposta de lei com o objetivo de combater a incitação ao ódio homofóbico. Um mês depois, adotando o mesmo procedimento,

o

grupo socialista do Senado apresentou uma proposta "no sentido de sancionar as afirmações de caráter discriminatório"; apresentaram,

e com o mesmo intuito, os Verdes

igualmente, a proposição nO2.376.

Definições e questões terminológicas

41

Capítulo

11

Origens e elementos precursores C"-'

Não é fácil falar de homofobia em períodos da história ocidental durante os quais a homossexualidade não se apresentava da mesma forma, além de suscitar reações diferentes, das que ocorrem nos dias de hoje.25 Desenvolvida no final do século XIX, sua problematização teria provocado a maior surpresa aos espíritos gregos ou romanos, para quem o próprio termo "homossexualidade" estava desprovido de qualquer significação. A sexualidade que caracterizava o universo antigo outorgava, na vida social, toda a legitimidade às relações entre homens e entre mulheres.26 Os elementos precursores de uma hostilidade contra lésbicas e gays emanam da tradição judaico-cristã. Para o pensamento pagão, a sexualidade entre pessoas do mesmo sexo era considerada um elemento constitutivo, até mesmo indispensável, da vida do indivíduo (sobretudo, masculino). Por sua vez, o cristianismo, ao acentuar a hostilidade da Lei judaica, começou por situar os atos homossexuais - e, em seguida, as pessoas que os cometem - não só fora da Salvação, mas também e, sobretudo, à margem da Natureza.27 O cristianismo

25

Sobre o debate entre "essencialistas"

e "construtivistas';

ver o artigo de R.

Halwani (1998). 26

"Plutarco relata que, em Esparta, as mais destacadas mulheres da elite amam as moças; além disso, quando duas têm afeição pela mesma moça, elas empenham-se em aperfeiçoá-Ià'

27

Será tempo perdido mossexual"

(SPENCER, 1998, p. 57).

procurar,

nos documentos

ou "homossexualidade':

ou gregos, tais como arsenokoites,

religiosos, as palavras "ho-

A noção aparece sob os termos latinos catamiti, elicatus, cincedus, eifeminatus,

ephebi, gemelli, malakos, molles, pathici, pcederastes, pcedicator, pcedico, poidophthoros, etc.

43

triunfante28 transformará

essa exclusão da natureza

no ele-

mento precursor e capital da ideologia homofóbica. Mais tarde, se o sodomita é condenado à fogueira, se o homossexual é considerado um doente suscetível de ser encarcerado ou se o perverso acaba seus dias nos campos de extermínio, é porque eles deixam de participar da natureza humana. A desumanização foi, assim, a condi tio sine qua non da inferiorização, da segregação e da eliminação dos "marginais em matéria de sexo". Além disso, se a origem do androcentrismo deve ser procurada no pensamento pagão, como é ilustrado pelo estudo de F. Valdes (1996), as fontes do heterossexismo e da homofobia encontram-se, sem qualquer dúvida, na concepção sexual do pensamento judaico-cristão. Segundo esse autor, as elites judaico-cristãs, assim como as do universo greco-romano, acreditavam na superioridade do masculino e na ordem patriarcal que é sua consequência. Mas elas introduziram, igualmente, um elemento novo que modificará radicalmente o paradigma da sexualidade: a abstinência. A única exceção a esse ideal asceta que, ao mesmo tempo, permite confirmar seu status é o ato sexual reprodutor no âmbito do casamento religioso. A sexualidade não reprodutora - e, em particular, a homossexualidade, forma paradigmática do ato estéril por essência - constituirá, daí em diante, a configuração mais acabada do pecado contra a natureza. Ao apoiar-se em uma leitura incompleta e preconceituosa dos textos bíblicos,29 o cristianismo - desde os Padres da Igreja30 até a teologia moderna, passando pela Escolástica e pela tradição canônica - não deixou de transformar

28

29

30

Ao tornar-se religião oficial do Império Romano, em 380. O imperador Cons-

o homossexual

em um pária suscetível de comprometer

os

próprios alicerces da sociedade (FOUCAULT, 1999). Ao enfatizar a condenação da homossexualidade e ao dissimular as narrativas em que personagens bíblicos manifestam, abertamente, seus sentimentos para com pessoas de seu sexo, a Igreja organiza uma censura dos textos sagrados a fim de promover, incessantemente, a heterossexualidade monogâmica. Além de ser obrigatório lembrar o castigo impiedoso infligido a Sodoma e Gomorra, conviria silenciar as intensas relações - sinal de uma homofilia latente - entre as figuras bíblicas, tais como Davi e Jônatas (Primeiro Livro de Samue118, 20,41; Segundo Livro de Samuel, 1,23 e 1,26), Rute e Noemp! ou ainda Jesus e João, seu discípulo bem-amado.32

o mundo

greco-romano

A Grécia Antiga reconhecia oficialmente os amores masculinos; se as relações sexuais entre homens desempenhavam uma função iniciática, nem por isso tais ritos estavam desprovidos de desejo e prazer. Assim, impregnada por essa atmosfera de erotismo viril, a sociedade grega considerava a homossexualidade como legítima. Com efeito, embora a relação entre o adolescente (eromenos) e o adulto (erastes) assumisse o caráter de uma preparação para a vida marital, os atos homossexuais usufruíam de verdadeiro reconhecimento social. O termo "pederastià' - do grego pais, paidós (menino) e éros, érotos (amor, paixão, desejo ardente) - implicava a afeição espiritual e sensual de um homem adulto por um menino. Um diálogo apócrifo do escritor grego Luciano de Samósata (atualmente, cidade da Síria), nascido por volta de 120 de nossa era, relata que

31

"Mas Rute respondeu: 'Não insistas comigo para que te deixe e me afaste de ti!

tantino havia concedido aos cristãos - em 313, com a publicação do Edito de

Porque aonde fores, irei contigo; onde pousares, lá pousarei eu; teu povo será

Milão - o direito de praticar livremente sua religião.

meu povo e teu Deus será meu Deus. Onde morreres, ali morrerei e serei sepul-

J. Boswell (1985) elaborou uma crítica radical contra a leitura proposta pelas au-

tada onde estiver tua sepultura. Que o Senhor me trate como quiser; somente

toridades religiosas sobre a sodomia e os sodomitas (d. VALLE, 2006; LIMA, 2007; 2009; FERNANDES, 2008; LONGO, 2009; SILVA, 2009).

da Família. Petrápolis: Editora Vozes, 2001.

Referência aos bispos, do Ocidente e do Oriente, que se distinguiram, século V, na defesa da verdadeira doutrina cristã. (N.T.).

44

Homofobia

antes do

a morte me separará de ti!" (Livro de Rufe, 1,16-17). Cf. Bíblia Sagrada. Edição

32

"Um deles, a quem Jesus amava [...] inclinando-se

sobre o peito de Jesus [...]"

(Evangelho de João, 13,23-25). Ver Frontain, 1997.

Origens e elementos precursores

45

[...] o casamento é, para os homens, uma necessidade e algo de precioso se esse homem é feliz; por sua vez, o amor pelos efebos (adolescentes, geralmente, de 16 a 18 anos) é, em minha opinião, efeito da verdadeira sabedoria. Assim, o casamento destina-se a todos, enquanto o amor pelos efebos é um privilégio reservado aos sábios (SAMOSATENSIS, 1867, p. 403).

A relação entre o Erastes e o Eromenos foi uma instituição das cidades gregas. Paralelamente à pederastia, existiam práticas homossexuais entre adultos que correspondiam a uma necessidade, de preferência, do tipo militar: em vários Estados gregos, o amante e o amado eram posicionados lado a lado no campo de batalha, para que essa proximidade lhes inspirasse um comportamento heroico. Convém, todavia, sublinhar que a pederastia era extremamente regulamentada; assim, aqueles que mantinham práticas homossexuais exclusivas constituíam uma minoria não aceita. Sólon, o célebre legislador de Atenas, normatiza a pederastia, por volta do ano 600 a.c., ao proibir as relações sexuais entre escravos e meninos livres. Na Roma Clássica, a homossexualidade era tolerada sob as seguintes condições: não afastar o cidadão de seus deveres para com a sociedade; não utilizar pessoas de estrato inferior como objeto de prazer e, por último, evitar absolutamente de assumir o papel passivo nas relações com os subordinados. Evidentemente, o cidadão romano deveria, sobretudo, casar-se, tornar-se pater famílias, assim como zelar pelos interesses não só econômicos, mas também da linhagem. Na realidade, somente a bissexualidade ativa era bem vista e aceita em Roma. Embora as sociedades gregas e romanas tenham sido agressivamente sexistas e misóginas, elas nunca caíram no heterossexismo peculiar da tradição judaico-cristã. No próprio âmago da instituição familiar, a pederastia situava uma forma específica de homossexualidade, ao outorgar, por esse fato, uma importante função social às relações entre homens. O reconhecimento do termo "homossexualidade" mostra até que ponto os clássicos integravam esse tipo de práticas. Amar 46

Homofobia

um homem não constituía uma escolha fora da norma, mas fazia parte da vida; além disso, na maior parte do tempo, as experiências homossexuais alternavam com as relações heterossexuais. De Safo a Anacreonte, de Teógnis a Píndaro,33 as paixões entre pessoas do mesmo sexo inspiraram belíssimas páginas da literatura na Antiguidade. Por outras razões e sob formas diferentes, os romanos e os gregos consideravam totalmente normal que homens tivessem relações sexuais com outros homens e, também, com mulheres. A regra segundo a qual a virilidade consiste em assumir o papel ativo na relação sexual era comum à moral das duas civilizações.34As dicotomias "macho/fêmea", "ativo/passivo" definiam os papéis sociais, o acesso ao poder e a posição de cada indivíduo segundo seu gênero e sua classe. O sistema de dominação masculina do tipo patriarcal consolida-se com a tradição judaico-cristã; no entanto, esta introduziu uma nova dicotomia, "heterossexual/homossexual", que, desde então, serve de estrutura, do ponto de vista psicológico e social, à relação com o sexo e com a sexualidade. A oposição pagã "atividade/passividade': assimilando a virilidade, de preferência, ao papel ativo, e não ao sexo do parceiro, aparecia daí em diante como contrária à nova moral sexuaL O cristianismo, herdeiro da tradição judaica, transformará a heterossexualidade no único comportamento suscetível de ser

33

Safo: poetisa grega (nascida na ilha de Lesbos [hoje, Mitilene] entre os séculos VII e VI a.c.], cujas poesias formavam, compreendiam

epitalâmios,

na Antiguidade,

nove livros que

elegias e hinos, dos quais só restam fragmentos.

Teógnis: poeta lírico grego (Mégara, segunda metade do século VI a.C.) de quem a tradição conservou acos em que predominam de temática homossexual.

uma coleção de cerca de setecentos versos elegipoemas gnômicos e de conotação política, além Anacreonte: poeta lírico grego (segunda metade

do século VI a.c.), cujas obras, de que restam apenas fragmentos, o amor, a boa mesa, os prazeres da vida; elas inspiraram cença denominada

celebram

a poesia da Renas-

anacreôntica. Pindaro: poeta lírico grego (entre os séculos

VI e V a.c.), cujas poesias pertencem a todos os gêneros do lirismo coral, tais como hinos, ditirambos e odes; elas constituem a expressão máxima do lirismo grego. (N.T.). 34

Assim, o homem adulto que continuasse assumindo relação homossexual

o papel passivo em uma

era vítima de zombarias.

Origens e elementos precursores

47

qualificado como natural e, por conseguinte, como normal. Ao outorgar esse caráter natural, em conformidade com a lei divina, às relações sexuais entre pessoas de sexo diferente, o cristianismo inaugurou, no Ocidente, uma época de homofobia, totalmente nova, que ainda não havia sido praticada por outra civilização.

A tradição judaico-cristã Sob a influência do cristianismo, o Império Romano empenha-se na repressão das relações entre pessoas do mesmo sexo.35 A crença na qualidade natural e a moralidade das relações heterossexuais monogâmicas - e, correlatamente, a percepção da homossexualidade como prática nociva para o indivíduo e para a sociedade - levam o imperador Teodósio 1°, em 390, a ordenar a condenação à fogueira de todos os homossexuais passivos. De acordo com o Código Teodosiano (Teodósio lI, 438), a atitude passiva, associada necessariamente à feminilidade, implicava uma ameaça para o vigor e a sobrevivência de Roma. A fim de justificar tal severidade, foi necessário apoiar-se nos fundamentos bíblicos da condenação: o Antigo Testamento fornecerá as narrativas de Sodoma e Gomorra; o Novo Testamento, pelo viés das epístolas paulinas, vai permitir a renovação da inveterada hostilidade contra os homossexuais. Com efeito, a história terrificante de Sodoma no livro do Gênesis (cf. capítulos 18,20 e 19),36assim como as prescrições lapidares do Levítico, constitui a prova incontestável do ódio manifestado na Bíblia contra os homossexuais masculinos e femininos. Sem sombra de dúvida, Sodoma, cidade situada no sul

35

A primeira lei contra os homossexuais foi promulgada, em 342, pelo imperador Constâncio II; no entanto, as Novellce 77 e 114 do imperador Justiniano (527-565) é que representam as primeiras condenações penais, baseadas na teologia cristã.

36

Na citada Bíblia Sagrada, encontra-se

o seguinte comentário

ao versículo 20

(cap. 18): ''A ruina de Sodoma e Gomorra foi provocada por sua iniquidade que se tornou típica no Antigo Testamento. homossexualismo

O pecado aqui é caracterizado

(cf. Gênesis, 19,4-6) ou sodomia. IsaÍas (1,9; 3,9) o qualifica

mias (23,14) como imoralidade

me com mulher. É uma abominação", prescreve o Levítico, 18,22. A punição para essa atrocidade é prevista dois capítulos mais adiante: "Se um homem dormir com outro como se fosse com mulher, ambos cometeram uma abominação e serão punidos com a morte: seu sangue cairá sobre eles" (20,13). O contexto histórico em que tais prescrições foram enunciadas permite compreender melhor sua severidade: após sua libertação do Egito, o povo de Israel foi obrigado a editar normas estritas, destinadas a garantir sua sobrevivência demo gráfica e cultural. Os alicerces patriarcais do povo judeu encontrar-se-iam, efetivamente, em perigo se viessem a disseminar-se outras práticas além da relação com mulheres. Essa dupla necessidade - preservação biológica da comunidade dos eleitos e conservação cultural da sociedade patriarcal- explica a hostilidade contra as práticas homossexuais. Em nossos dias, o que parece particularmente surpreendente não é tanto a hostilidade anti -homossexual no contex-

geral". (N.T.).

to sociopolítico de emergência do Levítico, mas seu uso constante e repetido pelas autoridades na época contemporânea:

Homofobia

Origens e elementos precursores

como injustiça social; Ezequiel (16,46-51) como maus-tratos

48

como

do Mar Morto, e Gomorra permaneceram célebres como arquétipos de comunidades dominadas pelo pecado: menosprezo pelas regras da hospitalidade, orgulho e, sobretudo, homossexualidade são as características de seus habitantes, que foram aniquilados por enxofre, sal e cinzas, em uma terra completamente queimada. O Dictionnaire des mots de ia foi chrétienne (1989) define a sodomia como o "pecado, cujo nome deriva da cidade de Sodoma, designando qualquer relação homossexual ou contra a natureza. Vício". Preocupado em garantir uma progenitura prolífica, o povo de Israel condenará, com vigor, qualquer comportamento sexual que não tenha o objetivo da procriação. Baseado na ideia de filiação biológica, o povo eleito transformará o esperma em um elemento quase sagrado, cuja dissipação era passível da mais firme condenação. A reprovação - além da masturbação e das relações com uma mulher durante os períodos não fecundáveis - atingiu ainda mais as relações entre homens: "Não dormirás com um homem como se dor-

aos pobres; e Jere-

49

várias leis atuais contra a sodomia nos EUA baseiam-se

nes-

Não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não vos iludais: os fornicadores [imorais/BSFV; libertinosl BSCB; impuros/BJFA], idólatras, adúlteros, depravados [efeminados/BSFV e BJFA], sodomitas [pederastas/BSFV], assim como os ladrões, avarentos, beberrões, caluniadores ou estelionatários, nenhum desses herdará o Reino de Deus

ses trechos bíblicos. Além disso, uma carta recente da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé [instância vaticana], dirigida aos bispos católicos, lembra que a condenação levítica faz precisamente referência aos comportamentos homossexuais. A Suprema Corte dos EUA justifica, em uma decisão de 1986 (BOWERS), a constitucionalidade de uma lei do Estado da Geórgia ao reprimir a sodomia com base nos valores judaico-cristãos que amparam tal proibição. Do mesmo modo, na França, o procurador do Supremo Tribunal evocava a "moral tradicional" para rejeitar direitos aos casais do mesmo sexo.37 Contrariamente à moral sexual rabínica, a doutrina de Cristo deixou de colocar no centro de suas preocupações

(Primeira Epístola aos Coríntios, 6,9-10).

Enquanto os outros discípulos de Cristo ignoravam a homossexualidade, Paulo retomava sistematicamente a questão ao compará-Ia com a lei mosaica. Sabemos que a Lei é boa (diz o apóstolo), contanto que dela se faça uso legítimo e tendo em vista que ela não se destina aos justos, mas aos transgressores da Lei e rebeldes, ímpios e pecadores, sacrílegos e profanadores, parricidas e matricidas, assassinos, fornicadores [devassos/BSFV; dados à prostituição ou libertinos, devassos/BSCB; impuros/BJFA], sodomitas [pederastas/BSFV] [...] (Primeira Epístola a Ti-

a

reprodução e a multiplicação do povo de Israel; ele chega, até, a ordenar a seus discípulos que deixem as esposas para se consagrarem ao celibato. Mesmo que, em momento algum, Jesus mencione o pecado de sodomia ou faça referência a qualquer condenação das paixões entre pessoas do mesmo sexo, o apóstolo Paulo não hesita em condenar, com firmeza, os amores sáficos. Na Epístola aos Romanos, ele lembra: "Por isso, Deus os entregou a paixões vergonhosas: entre eles, as mulheres mudaram o uso natural em uso contra a naturezâ' (1,26). E, ao fazer referência

aos homossexuais

masculinos,

o apóstolo acrescenta: "Os homens, também, abandonando a aliança dos dois sexos que é segundo a natureza, arderam em um desejo brutal de uns pelos outros, o homem praticando torpezas detestáveis com homem, e recebendo, assim, em si mesmos a merecida punição por sua cegueira (1,27)". A velha tradição judaica de excluir os marginais da Salvação é reatualizada, vigorosamente, por Paulo quando ele lembra, com veemência, aos cristãos de Corint038:

móteo,1,8-1O).39

A Patrística [acervo das obras dos Padres da Igreja] prolonga o pensamento paulino ao condenar a voluptuosidade de uma sexualidade julgada como efeminada, tais como a masturbação, o adultério e, em particular, as relações homossexuais. Clemente de Alexandria, um dos grandes apologistas do século lU, articula a condenação da homossexualidade em torno da noção de ato contra a natureza, noção compreendida segundo a acepção platônica das Leis. Todavia, Agostinho de Hipona (354-430), um dos principais representantes da Patrística, é que marcará, sobretudo, a doxa católica. Em sua obra Confissões ele fala da sodomia como se tratasse de um crime detestável, contrário à lei natural e à lei divina.40 As primeiras

39 37

38

Assinalemos

que a tradução

condenações

formais não tardaram

a

francesa da Bíblia de Jerusalém utiliza o termo

Conclusões do jurista Mareei Dorwling-Carter, procurador do Supremo Tribunal,

"homossexuais"

JO [Diário Oficial], 14 de abril de 1990, Jurisprudência, p. 217-228.

em francês, prefere o termo "pederastas". Em várias outras versões francesas, o termo "efeminados"

Tradução literal do original. Entre colchetes, os termos utilizados em três versões da Bíblia, em português: BSFV [Bt'bliaSagrada, Edição da família, Editora Vozes,

em vez de "sodomitas";

40

por sua vez, a tradução

precede o de "sodomitas"

ecumênica,

ou "pederastas".

De acordo com a observação de Colin Spencer (1998), o próprio Agostinho

2001]; BSCB [Bt'bliaSagrada, tradução da CNBB, 2001]; e BJFA [Bíblia traduzi-

tinha vivido uma ardente paixão com um homem, exprimindo

da por João Ferreira de Almeida, Sociedade Bíblica do Brasil, 2004]. (N.T.).

sofrimento pela morte do amigo: "Parecia-me que nossas duas almas (escreve

50

Homofobia

Origens e elementos precursores

seu profundo

51

ser pronunciadas: o Concílio de Elvira, reunido na Espanha em 305, prevê a excomunhão; por sua vez, o Concílio de Ancira (hoje, Ancara), em 314, organiza as punições para o 1997, p. 26).41 pecado sodomítico (LEROY-FoRGEOT, No início do ano 1000, Pedro Damião (1007-1072) - eremita italiano e bispo de Óstia - escreve um tratado, intitulado Liber Gomorrhianus (Livro de Gomorra), dedicado à análise e à condenação das relações homossexuais e, em particular, àquelas praticadas entre os membros do clero. A fim de sensibilizar as autoridades eclesiásticas para esse "flagelo': o teólogo não poupa seu ódio contra um fenômeno que, segundo parece, ele conhece perfeitamente. Nenhum outro vício poderá ser razoavelmente comparado com esse que, no tocante à impunidade, prevalece em relação a todos os outros. Com efeito, esse vício traz em seu bojo a morte do corpo e a destruição da alma; ele COllSpurca a carne, embaça a luz da inteligência, lança o Espírito Santo fora de seu templo - o coração do homem - e instala o diabo em seu lugar, despertando-o para desejos malvados; obstrui absolutamente o espírito para a verdade; engana e induz à mentira; coloca armadilhas no caminho e, quando um homem cai na fossa, impede-lhe qualquer fuga; ao abrir as portas do Inferno, ele encerra as do Paraíso; transforma o cidadão da Jerusalém celeste em herdeiro da Babilônia infernal (PEDRODAMIÃO,capo XVI apud BOSWELL,1985).

ça, para rejeitar o reconhecimento legal da união entre pessoas do mesmo sexo.

Homofobia

Origens e elementos precursores

são Agostinho) eram uma só em dois corpos; eis por que minha vida tornou -se um horror porque eu não queria viver como uma metade".

42

Um ato humano é um pecado, assinala Tomás de Aquino, quando é contrário à ordem estabelecida pela razão. Ora, essa ordem consiste na adaptação dos meios ao fim; portanto, não há pecado em utilizar, segundo a razão, as coisas para seu próprio fim, ao respeitar a ponderação e a ordem, contanto que esse fim seja um verdadeiro bem. Mas a conservação da espécie é um bem não menos excelente que o do indivíduo; ora, do mesmo modo que este serve-se da alimentação como meio, aquela utiliza a volúpia. O que os alimentos são para o homem, diz santo Agostinho, o comércio carnal o é para a humanidade. Portanto, do mesmo modo que o uso dos alimentos pode ser isento de pecado, se ele é adequado para a saúde dos corpos, assim também o uso da volúpia pode sê-Io, se observar a ponderação e a ordem capazes de garantir seu fim que é a propagação humana (ToMÁSDEAQUINO, II a II ae, q. 153, a. 2).

A resposta moral é clara: o prazer sexual é legítimo somente na medida em que não é acompanhado de um ato suscetível de entravar a reprodução. Com efeito, a masturbação é vigorosamente condenada, assim como qualquer comportamento sexual com a espécie errônea (bestialismo), o sexo errôneo (homossexualidade) ou o órgão errôneo (sexo oral ou anal) (11a 11ae, q. 154, 11). A Escolástica vai construir, assim, uma norma que continua modelando a ideologia sexual ocidental: o coito heterossexual do tipo conjugal e a submissão da mulher na relação sexual, cujo único objetivo consiste na inseminação procriadora. Mas, sobretudo, ela dará forma a uma homofobia, difusa na época, ao comparar as relações homossexuais aos pecados mais abjetos, tais como canibalismo, bestialidade ou ingestão de imundícies (11a 11ae, q. 142,4,3).

Luca da Penne considera a sodomia mais grave que o homicídio, porque este destrói somente uma vida individual, enquanto aquela aniquila a raça humana ao impedi -Ia de reproduzir-se (DYNES,1990, p. 957),42

41

A tradição homofóbica da Igreja encontra seus mais importantes alicerces no pensamento da Escolástica e, em particular, em Tomás de Aquino (1225-1274). Em sua Suma Teológica - síntese do cristianismo com a visão aristotélica do mundo que procede a uma sistematização do conhecimento teológico e filosófico de sua época -, o doutor da Igreja questiona-se para saber se qualquer ato voluptuoso constitui um pecado. Da resposta a essa questão pode deduzir-se o tratamento moral que o teólogo reserva à sodomia:

No entanto, convém sublinhar

que o Concílio de Ancira condenava

tialismo, e não a sodomia.

Uma interpretação

uma tradução sodomíticos.

do grego, é que vai ampliar

equivocada

posterior,

o bes-

em decorrência a punição

de

aos atos

Observemos que os mesmos argumentos foram utilizados, recentemente, na Fran-

52

53

A grande peste negra de 1348-1350 - que dizimou mais de um terço da população europeia - reanimará a velha hostilidade anti-homossexual. No futuro, haverá quem considere a sodomia uma ameaça direta ao repovoamento; a partir desse momento, sobretudo, é que se instalou uma verdadeira caça aos sodomitas, de modo que centenas de homossexuais acabaram na fogueira. Ora, a condenação à morte pelo fogo não é, entretanto, um fenômeno novo. O edito do imperador Teodósio já enunciava na época: "Todos aqueles que aviltam vergonhosamente seus corpos ao submetê-Io, como se fossem mulheres, ao desejo de outro homem, e dedicando-se assim a relações sexuais estranhas, esses devem expiar tal crime nas chamas vingadoras, diante de todo o povo". Apesar das condenações formais, as aplicações da punição permaneceram rarÍssimas. Durante os séculos XIII a Xv, é que a perseguição dos homossexuais vai acentuar-se; até o final do século XVIII, todas as disposições penais, sem exceção, fazem referência ao mito de Sodoma para justificar a punição de gays e lésbicas. A morte pelo fogo aparece como uma forma específica e necessária de purificação, não só do indivíduo - queimando-lhe a carne para salvar a alma -, mas igualmente da comunidade, extirpando assim o mal que a corrói em seu âmago. A tradição teológica organiza, ideologicamente, essa forma radical de perseguição contra os homossexuais. Eis a razão pela qual estes são considerados, daí em diante, como indivíduos extremamente perigosos, na medida em que eles se opõem ao que há de mais precioso na ordem da criação: a lei natural, expressão da vontade divina. Impregnado do espírito canônico, o poder régio não tardará, por sua vez, a instalar um sistema de repressão brutal em relação aos sodomitas. Em meados do século XIII, o direito consuetudinário da região de Touraine-Anjou [Coutume de Touraine-Anjou] estabelece o seguinte: "Se alguém é suspeito de devassidão [bougrerie] contra a natureza, a justiça deve prendê-Io e enviá-Io ao bispo; e se for comprovado seu ato, ele deverá ser queimado; todos os seus bens móveis são entregues ao suserano. E deve-se adotar esse procedimento em relação aos heréticos". 54

Homofobia

Ainda mais impressionante, o direito consuetudinário da região de Orléans [Coutume d'Orléans] prescreve que "o sodomita comprovado deve perder os bagos e, ao tornar-se recidivista, deve perder o membro; e, se cometer o ato pela terceira vez, deve ser queimado". A pena capital pelo fogo corresponde à prescrição bíblica, estabelecida no Apocalipse (21,8): "o lugar deles é o lago ardente de fogo e enxofre': Em 10 de outubro de 1783, ocorrerá, na França, a última condenação à morte de um homossexual: nesse dia, JacquesFrançois Pascal foi jogado nas chamas da fogueira, sob a inscrição "devasso contra a natureza e assassino". A Revolução Francesa pôs termo à condenação da sodomia: inspirado na filosofia das Luzes, o Código Penal de 1791, assim como o de 1810, cessam de incriminar os costumes contra a natureza. A liberdade individual aparece, desde então, como um valor fundamental que deve ser preservado; em nome dessa liberdade é que o Estado abstém-se de interferir na vida privada dos indivíduosY No entanto, esse espírito de tolerância continua sendo precário. Com efeito, em duas oportunidades, a ordem jurídica francesa voltou atrás no tocante a essa decisão de ignorar a homossexualidade dos cidadãos: em 6 de agosto de 1942, alguns meses depois da lei sobre o "Estatuto dos Judeus", o regime do marechal Pétain modificará o Código Penal ao introduzir o delito da homossexualidade;44 e, em 1960, por ocasião do debate parlamentar a propósito da implementação dos recursos destinados a lutar contra

43

O liberalismo do século XIX deve ser diferenciado, demonstração

de

J.

em seguida, de 1810 - é acompanhado

tanto por uma jurisprudência

larmente repressiva contra os homossexuais psiquiátrico 44

porque, de acordo com a

Danet (1997), o silêncio dos Códigos Penais - de 1791 e,

extremamente

particu-

quanto por um aparato médico-

violento.

Do ponto de vista penal, a maioridade era de 13 anos para os atos heterossexuais e de 21 anos para os atos homossexuais. A decisão do governo de Pétain tem a ver com a política eugenística do poder nazista. De acordo com a observação de

J.

Danet (1977, p. 82), "para proteger a raça com eficácia, para salvar o povo

da França de si mesmo, o marechal protege sua juventude e deve, evidentemente, protegê-Ia dos perversos". Sobre a história da penalização e despenalização, ver o artigo de Lascoumes (1998).

Origens e elementos precursores

55

alguns flagelos sociais, uma emenda será votada a fim de incluir a homossexualidade ao lado do alcoolismo, proxenetismo e do tráfico de mulheres.45 Daí em diante, em vez de "pecado" contra a natureza, competência das autoridades religiosas, a lei laica vai punir o "crime" e a "doença homossexual': Apenas em 1982, ao eliminar a diferença de idades para o consentimento sexual, é que a França vai pôr termo à discriminação penal dos atos homossexuais.46 No outro lado do Atlântico, as disposições bíblicas do Levítico foram adotadas, ao pé da letra, pela lei penal. Em 1786, a Pensilvânia tornou -se o primeiro Estado a aplicar a pena de morte para os sodomitas; a última execução ocorreu na Carolina do Sul, em 1873. Atualmente, um terço dos Estados norte-americanos continuam considerando as relações entre homens como um delito, e, em uma decisão de 1986, a Suprema Corte dos EUA julgava que a condenação da sodomia não estava em contradição com a Constituição estadunidense, já que ela está enraizada nas normas morais e éticas da tradição judaico-cristã.47 Ainda hoje, na França,

45

o autor da emenda,

deputado Mirguet, defendia sua opinião com o seguinte argu-

mento: "Penso que é inútil insistir detalhadamente porque todos nós temos plena consciência da gravidade desse flagelo que é a homossexualidade,

flagelo contra o

qual temos a obrigação de proteger nossos filhos': 46

Após a Libertação, em 1945 - ano em que os aliados derrotaram os nazistas que haviam ocupado a França, desde 1940 -, e até 1974, foi mantida a incriminação.

tanto os juristas quanto os políticos obstinam-se em fazer apelo à tradição e à ordem natural para se oporem à igualdade dos direitos em relação a gays e lésbicas. Nesse aspecto, uma obra recente dedicada à noção jurídica de casal dá o tom da reflexão ao proceder, desde a primeira página, à seguinte proclamação: "Há urgência em definir o casal, porque Sodoma reivindica a plenitude de direitos" (BRUNETTI-PONS,1998).48Os exemplos são, portanto, numerosos e ilustram perfeitamente as relações estreitas existentes entre as raizes bíblicas do ódio contra os homossexuais e os discursos político-judiciais contemporâneos.

A Igreja Católica contemporânea e a condenação da homossexualidade Embora tenha demonstrado certa coragem ao pedir, publicamente, perdão por algumas de suas vítimas no decorrer da história - tais como Galileu, a comunidade judia ou os descendentes dos escravos -, a Igreja não se arrependeu das atrocidades cometidas contra os homossexuais; muito pelo contrário, ela persiste em justificar as discriminações de que eles ainda são vítimas. Em um documento recente da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, o Vaticano lembra que as condenações tanto do Levítico, quanto do apóstolo Paulo mantêm-se atuais; a Igreja considera, efetivamente, que

A lei penal foi modificada apenas uma vez, pelo artigo 15 da Lei de 5 de julho de

[...] esse julgamento da Sagrada Escritura não permite concluir que todos aqueles que sofrem dessa anomalia sejam pessoalmente responsáveis, mas ele confirma que os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados e, qualquer que seja a circunstância, exclui-se a possibilidade de aprová-Ios.49

1974, fixando a idade da maioridade civil aos 18 anos, o que levou a suprimir, na definição da menoridade, a menção de 21 anos. Pela Lei de 23 de dezembro de 1980, estabelece-se que os atentados ao pudor sem violência, qualquer que seja a natureza do ato, são todos aqueles cometidos com crianças e adolescentes com idade inferior a 15 anos. Portanto, ainda persistia a discriminação relativa à incriminação de homossexualidade

a propósito de atos cometidos com adolescentes

de 15 a 18 anos, até mesmo com seu consentimento.

Ao ab-rogar a 2a alínea do

artigo 331 do Código Penal, a Lei n° 82-683 de 4 de agosto de 1982 - na vigência do primeiro mandato do presidente socialista, F. Mitterrand, eleito em 1981 -,

48

""Proibições contra a conduta (homossexual) têm raizes antigas [...] a condenação

Para a crítica dos argumentos

apresentados

pelos juristas, ver "Fantasmes des

juristes ..:' (BORRILLO, 1999).

pôs fim à discriminação penal da homossexualidade. 49

Documento

romano - Declaração "Persona humanà'

- de 1976 sobre algumas

dessas práticas está firmemente enraizada nos padrões morais e éticos da tradição

questões de ética sexual; cf. Théo - EEncyclopédie eatholique pour tous, 1989,

judaico-cristã [...] a invocação do requerente do Levítico e dos Romanos [...] é uma

p. 823; cf. ALISON, 2008; BOFFO, 2009; BENTO XVI, 2010; SCOFIELD JR., 2010.

afirmação de que os valores judaico-cristãos proíbem tal condutà' (BOWERS, 1986).

56

Homofobia

Origens e elementos precursores

57

Além disso, a última versão do Catecismo da Igreja Católica (1992) estabelece o seguinte, na alínea 23575°: A homossexualidadeS! designa as relações entre homens, ou entre mulheres, que sentem atração sexual, exclusiva ou predominante, por pessoas do mesmo sexo. Ela assume formas muito variáveis ao longo dos séculos e das culturas. Sua gênese psíquica continua amplamente inexplicada. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves [cf. Gênesis, 19,1-29; Epístola aos Romanos, 1, 24-27; Primeira Epístola aos Coríntios, 6,9-10; Primeira Epístola a Timóteo, 1,10] a tradição declarou in-

cessantemente que "os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados". Eles são contrários à lei natural. Fecham o ato sexual ao dom da vida. Não procedem de uma verdadeira complementaridade afetiva e sexual. Em caso algum, podem ser aprovados". A tolerância compassiva em relação a indivíduos homossexuais, assim como a condenação inapelável de qualquer política tendente a banalizar a homossexualidade, articula o discurso da autoridade eclesiástica do Vaticano: "Um número não negligenciável de homens e mulheres apresentam tendências homossexuais profundamente enraizadas", constata o mesmo Catecismo. "Eles não escolhem sua condição homossexual; ela constitui, para a maioria, uma provação:' Por conseguinte, a Igreja Católica considera que

50

Essa alínea está incluída no subtítulo Castidade e Homossexualidade,

que, por

sua vez, se encontra na 3" Parte - A vida em Cristo; artigo 6° - Sexto Mandamento; 11. A vocação à castidade. (N.T.). 51

Chamada

para a alínea 2333*: "Cabe [referência à alínea 1603: O matrimôsexual. A diferença e a complementaridade

espirituais estão orientadas da vida familiar. A harmonia

E como conclusão, o Catecismo acrescenta: As pessoas homossexuaiss2 são chamadas à castidade. Pelas virtudes de autodomínio, educadoras da liberdade interior, às vezes, pelo apoio de uma amizade desinteressada, pela oração e pela graça sacramental, elas podem e devem aproximar-se, gradual e resolutamente, da perfeição cristã (alínea 2359). Apesar da mudança de tom, subsiste a homofobia católica. E, em vez de lançar os sodomitas na fogueira, trata-se, agora, de acolhê-Ios com compaixão a fim de que, na melhor das hipóteses, eles fiquem curados e, na pior, possam viver na abstinência. A hostilidade da Igreja é, atualmente, muito mais sutil: já não é a homossexualidade enquanto fenômeno individual que será objeto da condenação eclesiástica, mas sobretudo o indiferencialismo subjacente ao liberalismo contemporâneo que, pela renúncia a problematizar a "diferença homossexual", vai situá-Ia em um nível semelhante ao da heterossexualidade; ora, é precisamente essa equivalência

"Chamada para a alínea 2347 (subtítulo: A integralidade da doação de si mesmo)': "A virtude da castidade desabrocha na amizade. Mostra ao discípulo como seguir e imitar Aquele que nos escolheu como seus próprios

amigos

[Evangelho de João 15,15: 'Já não vos chamo servos; com efeito, o servo não

nio na ordem da criação] a cada um, homem e mulher, reconhecer sua identidade

[...] eles devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, para com eles, qualquer sinal de discriminação injusta. Essas pessoas são chamadas a realizar a vontade de Deus em suas vidas e, se forem cristãs, a unir, ao sacrifício da cruz do Senhor, as dificuldades que podem encontrar por causa de sua condição (alínea 2358).

e aceitar

físicas, morais e

para os bens do casamento

e para o desabrochar

do casal e da sociedade

depende, em parte, da

maneira como se vivem, entre os sexos, a complementaridade,

a necessidade

sabe o que faz o seu Senhor. Eu vos chamo amigos porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Par], que se doou totalmente a nós e nos faz participar de sua condição divina. A castidade é promessa de imortalidade.

A castidade

exprime-se, principalmente, na amizade ao próximo. Desenvolvida entre pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, a amizade representa um grande bem para todos e conduz à comunhão espiritual':

e o apoio mútuos': *Subtítulo: I. "Homem e mulher os criou..." e referência às alíneas 369-373 (cf. ra

* Chamada para a alínea 374 (1" Parte; 2" Seção - A profissão dafé cristã; Capítulo

Parte; 2" Seção - A profissão da fé cristã; Capítulo 1 - Creio em Deus Pai; Parágrafo

primeiro homem não só foi criado bom, mas também foi constituído em uma

1 - Creio em Deus Pai; Parágrafo 6 - O homem; IV. O homem no paraíso): "O

6 - O homem; m. "Homem e mulher os criou": 369-370 - Igualdade e diferença

amizade com seu Criador e em tal harmonia consigo mesmo e com a criação que

queridas por Deus; 371-373 - "Um para o outro" "Uma unidade a dois"). (N.T.)

o rodeava que só serão superadas pela glória da nova criação em Cristo': (N.T.).

58

Homofobia

Origens e elementos precursores

59

que se torna insuportável para as autoridades teológicas. A diferença entre as orientações sexuais (hétero/homo) é a pedra angular da própria diferença sexual (masculino/feminino) (LACROIX, 1996). Nesse sentido, sem deixar de mostrar-se sensível às discriminações de que os homossexuais são vítimas no plano individual, a Igreja nos adverte contra a "reivindicação homossexual" enquanto manifestação política. Ao servirem-se de um jargão psicanalítico e antropológico, os teólogos católicos falam da homossexualidade como se tratasse de uma situação problemática resultante do acúmulo de um duplo obstáculo: por um lado, a incapacidade de reconhecer a alteridade (em que esta é reduzida sistematicamente à dimensão sexual, na medida em que ela é, necessariamente, do sexo oposto) e, por outro, a impossibilidade de aceitar a finitude do ser (a "esterilidade fenomenológicá' dos casais do mesmo sexo é interpretada como uma denegação de nossa condição mortal). Enquanto comportamento sexual adequado, somente a heterossexualidade seria suscetível de permitir aos indivíduos a superação narcísica original (pecado) e o impulso para avançar ao encontro do outro. Segundo essa doutrina, a diferença sexual pode concretizar-se unicamente na heterossexualidade. "O reconhecimento da diferença sexual é apresentado perfeitamente na Bíblia como o apogeu da ordem da criação': observa o teólogo X. Thévenot (1992, p. 266), que acaba deduzindo o seguinte: "Uma vez que o reconhecimento em ato da diferença sexual condiciona o próprio surgimento do sujeito humano, é "a-normativa" qualquer conduta sexuada ou sexual que seja construída com base em uma denegação do movimento de diferenciação': Eis por que é necessário, para a Igreja, resistir às reivindicações igualitárias dos/as homossexuais, sob pena de colocar em perigo o próprio processo de humanização; assim, o padre Thévenot lembra-nos que "o aspecto moral não está separado do aspecto teológico" e, em seguida, acrescenta que, "se o mau uso da diferença sexual é considerado grave, deve-se ao fato de ser, antes de mais nada, o sintoma de uma perversão teoantropológicà' (p. 268). Desde então, qualquer reivindicação igualitária aparece como uma ameaça à ordem da criação e da 60

Homofobia

reprodução, imbuída de uma "violência desorganizadora da relação humana e do tecido social" (p. 267). Com um discurso renovado em sua forma, mas veiculando a mesma ideologia essencialista, a doutrina católica permanece fiel ao princípio da autoridade e confirma sua vocação tradicionalista. Portanto, o tratamento teológico contemporâneo da homossexualidade não está, de modo algum, em ruptura com o pensamento da Escolástica, na medida em que ele se inscreve facilmente na lógica tomista. Ou, dito por outras palavras, segundo a Igreja, se é possível pressupor que os atos homossexuais consentidos não prejudicam a pessoa, comete-se um profundo equívoco, porque eles são contrários a algo muito mais precioso que a liberdade de outrem, a saber: tais atos opõem-se à ordem natural dos sexos e das sexualidades, assim como à vontade divina, que, ao criar-nos homens e mulheres, atribuiu uma posição preeminente, no âmago dessa ordem, à heterossexualidade.

Origens e elementos precursores

61

Capítulo III

As doutrinas heterossexistas e a ideologia homofóbica ""

Neste capítulo, vamos analisar as principais construções intelectuais que, na qualidade de condicionamentos cognitivos, têm definido os contornos da homossexualidade como uma manifestação específica da sexualidade humana. A elaboração dessa diferença, longe de permitir uma compreensão mais aprofundada das sexualidades que teria facilitado sua aceitação, constituiu, em compensação, um instrumento temível de repressão, em primeiro lugar, dos "vícios contra a naturezà' e, em seguida, das "transgressões do instinto sexual normal': Convém examinar, separadamente, os dois grandes momentos da concepção e do desenvolvimento da homofobia. No capítulo precedente, empenhamo-nos em compreender as origens teológicas das atitudes anti-homossexuais; forma embrionária das futuras teorias sobre o "desejo gay': a tradição canônica limitava-se a condenar atos contrários à ordem divina sem que, por isso, tivesse outorgado uma significação específica ao que constituía uma falta moral. Ao condenar o adultério, o roubo, a idolatria, a hipocrisia ou a sodomia, a tradição teológica não tentou construir, a partir dos atos contrários à Lei de Deus, uma personalidade adúltera, criminosa, idólatra, hipócrita ou sodomita; tratava-se de uma proibição geral, enunciada sob diferentes formas do pecado da carne (FOUCAULT, 1976-1984). E se, em algum momento, foi mencionado o "vício contra a naturezà' para fazer referência à homossexualidade, essa natureza foi interpretada, sobretudo, como uma ordem moral, e não como um dado científico neutro. Ora, essa passagem da condenação do vício sodomítico para a interpretação "científicà' da atração sexual e afetiva por pessoas de seu próprio sexo, parece-nos capital. Com efeito, nesse momento, algumas formas secundárias da heterossexualidade, tais como a sexualidade 63

infantil, a masturbação, o fetichismo e a sodomia, assumem verdadeira autonomia. Começando por estar a serviço da medicina e, em seguida, das ciências sociais (e em detrimento do direito e da moral), os prazeres homossexuais tornam-se o objeto privilegiado de uma nova tentativa de normalização dos indivíduos e da subjugação das consciências. A antiga hostilidade religiosa contra os sodomitas encontra nova vitalidade em um discurso que, revestido de linguagem científica, torna legítima a inferiorização e, às vezes, até mesmo o extermínio dos indivíduos considerados, daí em diante, não mais como pecadores, contrários à ordem divina, mas como perversos (ver FOUCAULT, 1976-1984, t. I, p. 59) e perigosos para a ordem sanitária. A ideologia homofóbica está contida no conjunto das ideias que se articulam em uma unidade relativamente sistemática (doutrina) e com finalidade normativa (promover o ideal heterossexual). Forma sofisticada das concepções populares e cotidianas sobre a homossexualidade, as teorias homofóbicas, através de suas diferentes vertentes, propõem uma forma de considerar os gêneros e as sexualidades pela construção de um sistema de valores (a promoção da heterossexualidade monogâmica) e pela proposição de um projeto político (a diferenciação, a cura, a segregação ou a eliminação dos/as homossexuais). As doutrinas heterossexistas permitem fortalecer a dominação dos "normais" sobre os "anormais", além de ter em comum - da medicina à sexologia, passando pela psicanálise e pela antropologia - essa formidável capacidade para produzir discursos sobre a homossexualidade; aliás, tais discursos estão na origem da justificativa das políticas discriminatórias. Vamos abordar, aqui, as principais opiniões (apresentadas em sua linguagem científica), agrupando-as em função da ideia central, articuladora de uma forma problemática de analisar o desejo pelas pessoas de seu próprio sexo.

mas sobretudo do discurso na área da medicina. A própria noção de homossexualidade é o resultado de uma tentativa de medicalização da velha ideia de sodomia; seus precursores foram Karl Heinrich Ulrichs53 (1825-1895), assim como Károly Mária Kertbeny54 (1824-1882). Com efeito, eles consideram que a ausência de desejo pelas pessoas do sexo oposto impele a relações necessariamente estéreis, situação considerada forçosamente patológica, sobretudo, em um momento em que a teoria darwiniana sobre a evolução das espécies - amplamente disseminada nas esferas científicas - confere posição de destaque à reprodução sexual. Outros médicos e psiquiatras da época propõem uma interpretação mais diferenciada. Em particular, nos escritos de Carl Friedrich Otto Westphal (1833-1890), Ríchard Freiherr von Krafft-Ebing (1840-1902) e Arrigo Tamassia (1849-1917), foi possível ler que a atração de pessoas por outras de seu próprio sexo constitui uma forma de "monomania afetivà' que, entretanto, não afeta, de modo algum, o resto da personalidade do homossexual. Embora esses autores tivessem tido a intenção de lutar, pelo viés da medicalização, em favor de uma descriminalização dos comportamentos homoeróticos, uma forma moderna de hostilidade começou a desenhar-se, desde o final do século XIX, desencadeada por essa patologização da homossexualidade. Do mesmo modo que a teoria contemporânea do darwinismo social serviu, conforme sublinha G. Chauncey (1985), para legitimar o racismo e o colonialismo, ao defender a ideia de uma hierarquia racial do desenvolvimento social baseada na biologia, assim também as primeiras teorias sexológicas justificaram a subordinação das mulheres ao afirmar seu caráter biologicamente determinado; e, paralelamente, em razão

53

114

llomofobia

K. Ulrichs publicou numerosos artigos sob o pseudô-

nimo de "Numa Numantius" ao popularizar o termo "uranismo" para referir-se

A homofobia clínica No decorrer do século XIX, a força normativa do casal heterossexual culmina na rejeição do celibatário e do homossexual. Essa normatização deixará de emergir - como ocorria durante os séculos precedentes - da lei divina ou do direito,

Ele próprio homossexual, à homossexualidade

provocada

por uma anomalia hereditária

que produzia

uma "alma feminina presa no corpo de um homem'; mais tarde, Carl Westphal retoma as teses de Ulrichs para afirmar a existência de um "terceiro sexo': no qual ele coloca os homossexuais. 54

Esse escritor húngaro de expressão alemã teria sido, segundo T.-C. Feray (1989, p. 24), o inventor da palavra "Homosexualitiit':

As doutrinas heterossexistas e a ideologia homofóbica

65

de seu destino anatâmico, os homossexuais acabaram sendo situados em uma posição marginal no âmago da "hierarquia sanitárià' dos sexos e das sexualidades. A crença nas relações estreitas que se estabelecem entre o físico e o moral incentiva a forjar uma imagem feminina da nova espécie: o apreço por joias, o balanço dos quadris, a maquiagem e os perfumes equiparam o "pederastà' à mulher. Aliás, com esta, ele compartilha os defeitos: tagarelagem, indiscrição, vaidade, inconstância e duplicidade. Ao pretender desmascarar a personagem, a medicina legal esboça, a seu respeito, um retrato extravagante, colando-lhe todas as marcas de infâmia do século XIX. Em 1857, o perito médico-legal, A.-A. Tardieu (1995), escreve que [...] o pederasta transgride a higiene e a limpeza, além de ignorar a lustração que purifica. A própria morfologiapermite seu reconhecimento:a configuraçãodas nádegas,o relaxamentodo esfíncter,o ânus afunilado ou, então, a forma e a dimensão do pênis confirmama filiaçãoà nova espécie. Monstrona nova galeriados monstros, o pederastamantém uma estreitarelaçãocom o animal;em seus coitos,eleevoca o cão.Sua natureza acabapor associá-loao excremento;ele vai à procura do fedor das latrinas... Mesmo que, mais tarde, a justificativa discriminatória tenha tendência a girar em torno das "anomalias psíquicas" em vez das causas somáticas, estas nunca foram totalmente abandonadas na explicação da homossexualidade. 55 A interpretação proposta pela medicina - e, em sua esteira, pela psicanálise - a respeito da homossexualidade será, por si só, uma forma de homofobia, já que a diferença nunca é

55

O Dr. E. Bérillon (1859-1948), médico-inspetor

dos asilos públicos franceses para

alienados, sublinha que, "se a primeira condição para ser um bom heterossexual e o objeto da atração do sexo oposto consiste em ter um bom odor, de modo que o estado contrário predispõe certamente à homossexualidade.

[...] para um homem,

a transgressão do instinto genésico tem seu ponto de partida em uma atenuação das percepções olfativas e gustativas; na mulher, as anomalias da atração sexual encontram sua causa primitiva em uma ampliação das mesmas percepções sensoriais. Portanto, feitas as contas, a inversão sexual, ou a homossexualidade, em um ou outro sexo, não passaria de uma inversão sensorial. Dessa noção, deriva, no tratamento da homossexualidade, a indicação formal de situar a reeducação do sentido olfativo na base de qualquer intervenção terapêuticá' (1909, p. 46).

66

Homofobia

procurada com o objetivo de integrá-Ia em uma teoria pluralista da sexualidade normal, mas, exatamente o contrário, vai situá-Ia nas categorias da doença, neurose, perversão ou excentricidade. Enquanto a homossexualidade masculina é claramente medicalizada, por sua vez, a figura da lésbica assume contornos mais equívocos, de acordo com a observação de H. Corbin (1964): "O imaginário de Safo, elaborado pelos homens desta época, permanece ambíguo; ela traduz o vaivém entre o fasCÍnio exercido pela profusão feminina e o temor que inspira o prazer da mulher ao manifestar-se na ausência do homem'. O desaparecimento da mediação do masculino transforma a lésbica em uma personagem subversiva. Assim, as primeiras explicações psicoanalíticas do lesbianismo falam de uma rejeição dos homens e de uma recusa da feminilidade (O'CONNOR; RYAN apud PEERS; DEMczuK, 1998, p. 86). A feiticeira e o xamã foram investidos, outrora, pelo imaginário popular dessa inversão dos papéis. Da exclusão à qual esses personagens foram submetidos durante o Antigo Regime, passa-se, com o triunfo da burguesia, para uma qualificação mais racional, mais "científicà' dos invertidos; daí em diante, em vez de excluí-los, trata-se de endireitálos, corrigi-los e curá-los a fim de adaptá-los melhor à norma imposta pelo modelo monogâmico heterossexual, único detentor da sexualidade legítima, insígnia exibida por uma classe ascendente. Na tentativa de fornecer uma explicação para a questão "como alguém se torna homossexual?", todas as teorias na área da medicina pressupõem que tal situação deve ser evitada; e é, justamente, por essa razão que, em vez de se limitarem a uma tarefa puramente hermenêutica, elas empenham-se em um verdadeiro empreendimento terapêutico do tipo normativo. Eis por que - a fim de livrar os moralistas e, em particular, a Igreja, dessa questão - convinha, em primeiro lugar, demonstrar que a homossexualidade constituía uma patologia suscetível de ser diagnosticada e tratada pelas ciências médicas. No entanto, a medicina nunca conseguirá desvencilhar-se da referência à ordem natural, entendida simultaneamente como As doutrinas heterossexistas e a ideologia homofóbica

67

ordem moral

56

e ordem jurídica. As ciências médicas do final

do século XIX qualificam, sistematicamente, as relações entre pessoas do mesmo sexo como atos "contra a natureza"; ora, não é anódino se a questão é abordada, em primeiro lugar, pela medicina legal (Dictionnaire encyclopédique, 1886, p. 239). Todavia, para os teólogos, o vício se encontra na alma, enquanto para os médicos ele tem de ser procurado no corpo: a genitália, o pênis, o escroto, a ranhura bálano-prepucial, as coxas, o ânus, a boca, os dentes ... por toda parte, no físico do sodomita, é possível encontrar as marcas de sua perversão. Os cabelos frisados, a tez maquiada, o colarinho aberto, a cintura apertada de maneira a fazer sobressair as formas, além de dedos, orelhas e peito carregados de joias, toda a personalidade exalando o odor dos mais penetrantes perfumes e, na mão, um lenço, flores ou algum tipo de bordado; tal é a fisionomia estranha, repugnante e, com toda a razão, suspeita, que atraiçoa os pederastas. Um traço não menos característico - e, inúmeras vezes, observado por mim - é o contraste dessa falsa elegância e desse culto externo da pessoa com uma imundície sórdida que, por si só, bastaria para ficar afastado desses miseráveis. É assim que A.-A. Tardieu (1995, p. 173)57 define o pederasta passivo. Em relação à "devassidão felatória", o médico observou o seguinte: "Uma boca de través, dentes muito curtos, lábios espessos, entornados, completamente deformados, em relação com seu uso infame" (Dictionnaire que, 1886, p. 250), assim como

encyclopédi-

[...] o desenvolvimento excessivo das nádegas, a deformação infundibuliforme do ânus, o relaxamento do esfíncter, a supressão das dobras, as cristas e carúnculas em volta do ânus, a dilatação extrema do orifício anal, a incontinência das matérias, as ulcerações, as rágades, as hemorroidas, as fístulas, a

560

qualificativo "vício" - utílízado, regularmente,

cina - mostra o posicionamento 57

moralizante

nos textos da área da medi-

adotado pelos médicos.

A terceira parte dessa obra é dedicada à pederastia e à sodomia: "Durante muito tempo, hesitei em introduzir, neste estudo, o quadro repugnante da pederastià; sublinha o autor. E cita a afirmação daquele que é considerado

como o pai da

medicina legal, E-E. Fodéré (1764-1835): "O que eu não daria para livrar-me de conspurcar minha pena com a infame torpeza dos pederastasl" (p. 155).

68

Homofobia

blenorragia retal, a sífilis, os corpos estranhos introduzidos no ânus [...] dimensão exagerada do pênis [ou, ainda], um pênis encurvado [eis alguns dos sinais característicos do homossexual] (TARDIEU,1996, p. 177 e 189). Ora, esses estigmas físicos não passam do testemunho material de uma depravação profunda inscrita no espírito dos invertidos. No decorrer do século XX, desenvolve-se um verdadeiro empreendimento de investigação das origens psicológicas da inversão sexual. Ao transformar a sexualidade na chave hermenêutica do comportamento humano, a teoria psicanalítica interessa-se, particularmente, pela homossexualidade. Em sua célebre obra Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), S. Freud apresenta a hipótese da bissexualidade original: ideia audaciosa que lhe permite abordar a questão da homossexualidade sem condená-Ia. No entanto, ele não escapa à sua época; com efeito, se a bissexualidade é algo de peculiar à organização psíquica humana, a heterossexualidade permanece a referência em função da qual deve ser analisada a homossexualidade. Desde as primeiras páginas de seu livro, o médico austríaco empenha-se em proceder a uma análise aprofundada do que ele designa por inversão: esta pode ser congênita ou adquirida, ocasional ou absoluta, "limitar-se a um episódio que leve a uma evolução normal; e pode, até, exteriorizar-se tardiamente, após um longo período de sexualidade normal" (FREUD, 1963, p. 24). A inversão permite, assim, definir a normalidade, porque, se é possível admitir uma forma de bissexualidade subjacente em todos os indivíduos, um espírito constituído saudavelmente deve tender apenas para a heterossexualidade exclusiva. Freud e, ainda mais, seus discípulos, consideram a homossexualidade como um "contratempo" na evolução sexual; sem ser um crime ou um pecado propriamente dito, tampouco uma doença, a homossexualidade torna-se um acidente no percurso relacional da criança com os pais. Fixado em uma fase autoerótica (narcisismo), assustado pela ideia de perder o pênis (teoria da castração), incapaz de resolver convenientemente a relação com a mãe (teoria do complexo de Édipo), identificado com ela e invadido pelo ciúme em relação ao pai, o homossexual é descrito como um deficiente no plano da afetividade que não As doutrinas heterossexistas e a ideologia homofóbica

69

pôde ou não soube superar os conflitos capitais da infância. A ideia segundo a qual uma "boà' solução dos conflitos culmina necessariamente na heterossexualidade exclusiva encontra-se no âmago da teoria psicanalítica. A preeminência de uma forma de sexualidade em relação a outra aparece como uma concessão intelectual à sociedade conservadora do início do século XX. Ao ser formulada a questão para saber se um homossexual podia tornar-se psicanalista, tanto S. Freud quanto S. Ferenczi - que, em sua época, não deixavam de ser bastante progressistas58 - dobraram-se às exigências de E. ]ones, que, no âmago da International Psychoanalytical Association, recusou categoricamente considerar a questão ao assinalar que, na percepção das pessoas, a homossexualidade era "um crime repugnante: se um de nossos membros viesse a cometê10, seríamos gravemente desacreditados por sua presença, ele iria atrair para nós um grave descrédito': Mais tarde, Anna Freud há de empreender uma ardente luta contra o acesso dos homossexuais à profissão psicanalítica. Sendo ela própria lésbica, a filha do pai da psicanálise "teve sempre o objetivo de transformar seus pacientes homossexuais em bons pais de família heterossexuais, no decorrer de sua prática clínicà' (PLON;ROUDINESCO, 1996, verbete "Homosexualité", p. 450). Do mesmo modo, J. Lacan, figura progressista da nova psicanálise, não escapará aos preconceitos homofóbicos. De fato, ele vai ainda mais longe que Freud ao lembrar o caráter fundamentalmente perverso da homossexualidade, tanto na Antiguidade quanto em nossos dias: "Apretexto de ser uma perversão aceita, aprovada, até mesmo, festejada, não nos venham dizer que não se trata de uma perversão.

"Em

1903, Freud defende publicamente,

cessado judicialmente

no diário Die Zeit, um homem pro-

por práticas homossexuais.

Em 1935, em carta enviada

a uma mãe que lhe havia pedido conselho em relação ao filho, ele escreve o seguinte: "De acordo com sua carta, fiquei com a impressão de que seu filho é homossexual

[...]. A homossexualidade

não é, evidentemente,

uma vantagem,

mas não há qualquer motivo para sentir vergonha: não se trata de um vício, nem de um aviltamento, nós a consideramos

que ela é: uma perversão" (LACAN,1991, p. 42-43).59 As explicações propostas pela psicanálise têm a ver com a ideologia. Os gays e as lésbicas são oriundos de famílias dotadas de tipos semelhantes às dos heterossexuais ou bissexuais; o desejo por pessoas do mesmo sexo ou por pessoas mais idosas ou mais jovens, a atração por louros ou morenos, por intelectuais ou artistas, assim como a preferência pelo tipo asiático ou mediterrâneo poderiam ser explicados de várias maneiras e no contexto de cada história pessoal. Afinal de contas, "qual é prova de que a heterossexualidade não é tão complexa quanto a homossexualidade e não é também o produto de lutas na primeira infância e na infância para superar, entre outros aspectos, traumatismos, conflitos e frustrações?" (STOLLER, 1989,p. 135). Se pode parecer legítimo questionar-nos sobre nossos próprios desejos ou procurar conhecer as razões que condicionam nossas preferências sexuais, a problematização de um tipo de desejo, em detrimento de todos os outros, pressupõe que os únicos seres a serem considerados "normais" sejam aqueles que amam as pessoas do sexo oposto, além de terem a mesma cor de pele, a mesma idade, serem oriundas do mesmo meio social, praticarem a mesma religião e pertencerem a uma cultura comum. Na realidade, esse pressuposto não possui qualquer apoio racional, mas baseia-se em um postulado arbitrário que consiste em acreditar na superioridade das tendências heterossexuais e na doxa etnocêntrica segundo a qual é preferível permanecer entre pessoas do mesmo meio, em vez de expor-se às diferenças, sejam elas sexuais, culturais, sociais, de geração e/ou políticas. A busca das causas da homossexualidade constitui, por si só, uma forma de homofobia (DORAIS,1994), já que ela se baseia no preconceito que pressupõe a existência de uma sexualidade normal, acabada e completa, a saber: a heterossexualidade monogâmica em função da qual se deve interpretar e julgar todas as outras sexualidades. Partindo da ideia de que as diversas formas de sexualidade entre adultos conscientes

seria possível qualificá-Ia como doença;

como uma variação da função sexual, provocada por uma

espécie de interrupção

70

tampouco

A homossexualidade - sublinha Lacan - não deixa de ser o

do desenvolvimento

Homofobia

sexual".

59

Sobre a homofobia psicanalítica, ver Éribon, 1999b.

As doutrinas heterossexistas e a ideologia homofóbica

71

merecem o mesmo respeito e considerando que a pluralidade constitui um valor das democracias modernas, trata-se de abordar a questão relativa à origem não da homossexualidade, mas, de preferência, da homofobia. Ora, foi apenas há pouco que a psicanálise começou timidamente a problematizar a violência homofóbica quando, afinal, a questão homossexual nunca chegou a ser abandonada. Qualquer classificação ou hierarquização das orientações sexuais deve ser considerada arbitrária, por estar destituída de um fundamento legítimo; trata-se de simples juízo moral, de um preconceito e de uma recusa do pluralismo das sexualidades. Mas, como observa D. Éribon (1996): Esse inconsciente homofóbico é, sem dúvida, o aspecto mais bem compartilhado no mundo dos psicanalistas; até mesmo os mais abertos procuram manter não só uma diferença entre as sexualidades e entre as orientações sexuais, mas uma hierarquia, que reserva sempre uma posição inferior e subordinada à homossexualidade.60 Recentemente, foi ainda pelo viés da psicanálise que várias personalidades - com o apoio público dos representantes dessa disciplina - opuseram-se, na França, à igualdade dos direitos para gays e lésbicas.6l O antigo "senso comum homofóbico" voltou a aparecer sob as aparências retóricas da psicanálise - a "negação do outro': a "recusa da alteridade': a "estagnação narcísica" ou a "denegação da realidade da castração" -, que foram evocadas como causas possíveis do desejo homossexual. No entanto, essas teorias foram, há muito tempo, vigorosamente desmentidas no próprio âmago das disciplinas psicomédicas, a tal ponto que, em 1974, a American Psychiatric Association, suprimiu a homossexualidade da lista das doenças mentais62 - decisão confirmada, mais tarde, pela Organização Mundial da Saúde.

A homofobia antropológica Baseada em uma figura específica do darwinismo social, a homofobia antropológica surge do recurso à teoria da degenerescência das culturas a fim de explicar a inversão sexual. Assim, o processo de evolução psicossexual do indivíduo e o da civilização estão estreitamente associados. De fato, KrafftEbing afirmava que a sociedade primitiva aceitava práticas sexuais que a civilização considera como contrárias à ordem moral e jurídica. Ao prazer sem freios dos selvagens, a sociedade vitoriana (que o autor considera como a civilização mais avançada) opõe a ordem das relações sexuais humanas fundadas no amor heterossexual monogâmico; por conseguinte, qualquer outra forma de sexualidade - e, em particular, a homossexualidade - é considerada uma regressão a um estágio inferior da evolução e, nesse sentido, um perigo para a própria civilização. O antropologismo moderno deixa de se basear na hierarquia das sexualidades e até condena o discurso que reenvia certas práticas sexuais às margens da civilização. A homossexualidade deve ser não só tolerada, mas também reconhecida, com a condição de que ela não elimine a divisão entre masculino e feminino, considerada como estruturante do indivíduo, do casal e da sociedade. O antropologismo contemporâneo postula, assim, a diferença entre os sexos como um dado universal e a transforma em pedra angular do regime das sexualidades. Enquanto reivindicação individual (e na medida em que ela permanece confinada à privacy ou a uma forma limitada de reconhecimento), a homossexualidade pode ser integrada, sem qualquer problema, à ordem da diferença dos sexos. Em compensação, se ela supera a liberdade individual ou o reconhecimento no âmbito de determinados limites para situar-se em um plano político e jurídico semelhante à heterossexualidade, a homossexualidade é, então,

60É impressionante

61

constatar que a Bncyclopédie Universalis (1994, t. lI, p. 621)

confirma essa inferiorização ao designar a homossexualidade versão" com incidências "essencialmente conservadoras':

como uma "per-

Com exceção, por exemplo, de S. Prokhoris, É. Roudinesco,

G. Delaisi de Par-

distúrbio mental constitui a primeira etapa na desmedicalização dos comporta-

seval e M. Tort. Ver, em particular, os artigos de S. Prokhoris Parseval em Borrillo, Fassin e Iacub (1999). 62

e G. Delaisi de

A retirada da homossexualidade do Diagnostic Statistieal Manual (DSM) enquanto

72

Homofobia

mentos homoeróticos. Mas, apenas em 1987 é que o processo chegará a seu termo, quando a homossexualidade

egodistônica (uma forma de nosologia que permite

atribuir o qualificativo "patológico" às tendências homossexuais daqueles ou daquelas que têm dificuldade em vivê-Ias) desaparece também da lista.

As doutrinas heterossexistas e a ideologia homofóbica

73

percebida pela ideologia antropologista como uma ameaça à diferenciação dos sexos, elemento indispensável para a estruturação psíquica do indivíduo e para a sobrevida da civilização. Assim, a reivindicação homossexual corre o risco de embaralhar essa necessária diferenciação e de colocar em perigo a própria sobrevivência da ordem heterossexual. Além disso, [...] a banalização do sexo, assim como a exploração erótica, a mudança frequente de parceiros, a atividade sexual solitária da masturbação ou o sexo indiferenciado da homossexualidade dão testemunho de um profundo desencantamento e deixam de ser o sinal de originalidade: através de todas essas práticas, o indivíduo não tem outra saída além da solidão e da busca de ser seu inencontráve1 (ANATRELLA, 1990). Essa paixão pela dessimbolização é, assim, denunciada como um deslize em direção à insensatez individual e à loucura social. A homofobia antropológica não se satisfaz em constatar a diferença anatômica dos sexos. Ao transformar esse dado biológico em um princípio fundamental ao qual a sociedade deve submeter-se - sob pena de provocar uma importante catástrofe antropológica -, os partidários dessa variante do heterossexismo, ao pretenderem respaldar a ordem social em princípios universais e imutáveis, reatualizam o pensamento naturalista. A igualdade dos direitos para gays e lésbicas é considerada, por conseguinte, uma ameaça para a essencial divisão dos sexos; além disso, em nome dessa divisão é que as uniões homossexuais devem ser deixadas à margem do direito da família. Apresentada como científica, essa doutrina representa uma forma particularmente dissimulada de militância anti-homossexual, já que a diferença dos sexos torna-se não só a justificativa da exclusão, mas também o critério em função do qual gays e lésbicas são denunciados enquanto responsáveis pela destruição dos princípios fundamentais da civilização. O fantasma segundo o qual o reconhecimento igualitário do casal homossexual colocaria em perigo a diferença dos sexos é alimentado por um duplo preconceito heterossexista: por um lado, que o desejo sexual pelas pessoas do mesmo sexo implica, necessariamente, a recusa dos indivíduos do sexo oposto e, por outro, que a verificação biológica da dessemelhança 7~

Homofobia

permite que esta seja erigida como princípio político. Ora, a ausência de atração erótica pelas pessoas do outro sexo não implica, de modo algum, uma recusa ou qualquer negação da alteridade, a não ser que o outro seja reduzido à sua pura dimensão sexuada. Mesmo que essa diferença fosse facilmente constatada, nada permitiria transformá-Ia em um critério qualquer de organização social e política. Devemos nos precaver não da homossexualidade, mas da homofobia. Longe de se preocupar da preservação da diferença dos sexos, os países que haviam estabelecido a igualdade dos direitos em favor de gays e lésbicas são, também, aqueles que garantiram, muito antes da França, a igualdade das mulheres. Em compensação, o discurso que enfatiza a divergência sexual encontra-se na origem da legitimação das desigualdades. Do mesmo modo que a diferença das raças ou a das classes, a distinção dos sexos permitiu organizar uma distribuição desigual dos papéis sociais. A organização da sociedade em função unicamente de dois sexos e o fato de ver "naturalmente", em cada indivíduo, um homem ou uma mulher, constitui o suporte "objetivo': "evidente" e "anistórico" da atribuição do status e dos papéis em função unicamente do critério sexual. O "consenso cognitivo"63 da diferença entre os sexos oposto aos homossexuais a fim de limitar a amplitude de suas reivindicações é semelhante ao que serviu para tornar natural e normal, na ordem social, a subordinação das mulheres. Contrariamente a essa "evidência antropológica': a diferença entre os sexos não constitui um atributo dos indivíduos, mas uma informação construída e concretizada sempre na relação com os outros. Como é ilustrado por C. West e S. Fenstermaker (1995), muito mais que um papel ou uma característica do indivíduo, a dicotomia masculino/feminino é um mecanismo pelo qual determinada situação social contribui para a reprodução da estrutura social. De tal modo que a reação antropológica à igualdade de direitos em favor de gays e lésbicas contribui para a reprodução da ordem social das sexualidades,

63

Para uma análise mais aprofundada Zimmerman,1978.

sobre a construção cognitiva dos sexos, ver

As doutrinas heterossexistas e a ideologia homofóbica

75

permitindo que, uma vez mais, seja legitimada a inferiorização dos homossexuais e dos casais do mesmo sexo.

A homofobia liberal A vida privada não pode ser fonte de direitos; para o liberalismo, a garantia das liberdades individuais é algo distinto da outorga efetiva de direitos. Considerada uma manifestação íntima, a sodomia foi descriminalizada na França, imediatamente após a Revolução Francesa, porque o novo Estado abstinha-se de interferir na esfera privada; mas, na realidade, a supressão do crime de sodomia não impediu que os juízes continuassem a punir os atos eróticos entre pessoas do mesmo sexo (cf. DANET, 1977). Uma dupla ideia organiza o discurso dos liberais sobre os homossexuais: por um lado, eles consideram a homossexualidade uma escolha, cuja natureza é semelhante a de uma opinião política, de uma confissão religiosa ou de um compromisso intelectual; por outro, tal opção estaria relacionada exclusivamente à vida íntima do indivíduo. Em função desses pressupostos é que a homofobia liberal preconiza a tolerância para com os homossexuais, mas considera que a heterossexualidade é a única a merecer o reconhecimento da sociedade e, por conseguinte, o único comportamento sexual suscetível de ser institucionalizado. Em compensação, relativamente a gays e lésbicas, o Estado deve simplesmente assegurar o respeito por suas vidas privadas no sentido estrito do termo, ou seja, garantir o respeito da esfera íntima do indivíduo; no entanto, além dessa esfera, não se deve, em nenhuma hipótese, ceder às reivindicações de igualdade. Baseada na dicotomia vida privada/vida pública, a homofobia liberal remete a homossexualidade a uma escolha de vida privada, círculo Íntimo em que toda intervenção externa é condenável (é por essa razão que os liberais são a favor da descriminalização da homossexualidade), mas, igualmente, a partir do qual é proscrita qualquer outra reivindicação além do respeito pela intimidade. A tolerância é a palavra de ordem da homofobia liberal, mas convém distinguir entre tolerar e reconhecer: para essa doutrina, é impossível tentar passar da tolerância dos comportamentos '111

Íntimos ao reconhecimento I-Tomofobia

dos direitos iguais,

independentemente da orientação sexual dos indivíduos. Forma de expressão específica, a homofobia liberal confina os homossexuais no silêncio da vida privada; as dicotomias privado/ público, dentro/fora, interior/exterior organizam a hierarquia das sexualidades, reservando a posição visível para um aspecto, mantendo o outro em segredo. O pudor e a discrição devem orientar os atos homossexuais, sempre taciturnos, ao passo que a heterossexualidade exibe-se livremente, sem necessidade de qualquer justificativa. As práticas homossexuais e suas manifestações são de natureza privada e permitidas com a condição de permanecerem circunscritas a esse espaço. Em compensação, ao assumirem a forma heterossexual, as mesmas condutas tornam-se expressão do amor e se desenvolvem livremente no espaço público: os heterossexuais beijam-se e dançam juntos na rua, mostram publicamente as fotos dos/as parceiros/as, declaram em público amor eterno e nunca fazem o comingout heterossexual, já que o espaço público lhes pertence. Mas, quando um gay ou uma lésbica têm a ousadia de empreender uma dessas manifestações, eles/as são imediatamente considerados/as militantes ou provocadores/as. Essa forma de homofobia pode ser considerada liberal no sentido que ela pretende garantir o respeito pela intimidade e por suas manifestações privadas sem que seja reconhecida qualquer garantia aos indivíduos homossexuais perante a sociedade. Com efeito, o aspecto em que a liberdade se diferencia do direito é o seguinte: ela não implica qualquer dever em contrapartida. Enquanto não há direito sem obrigação, a liberdade exige apenas o respeito por sua manifestação. É assim que, para a ideologia liberal, o Estado deve simplesmente garantir o exercício da liberdade homossexual, exclusivamente, nos limites da intimidade; em compensação, tratando-se dos indivíduos heterossexuais, sua vida íntima - em particular, a vida de casal e de família - supera amplamente a esfera privada, obtendo o reconhecimento e a proteção específica do próprio Estado, que assume o dever de sua garantia. Enquanto os casais heterossexuais tornam-se verdadeiros beneficiários dos direitos conjugais, sociais, patrimoniais, sucessórios, extrapatrimoniais, familiares ..., as uniões entre pessoas do mesmo sexo são convidadas a permanecer na discrição de sua intimidade. As doutrinas heterossexistas e a ideologia homofóbica

77

Ao inventar o mito da "escolhade vida privadà: a homofobia liberal encontrou a justificativa para sua lógica de exclusão. Assim, se os/as homossexuais não usufruem de direitos, é porque eles/as situaram-se, pela escolha de suas práticas sexuais,voluntariamente fora do contrato social e,por conseguinte, do direito. Apesar de seu caráter contestável, baseado no pressuposto de que os homossexuais escolhem sua sexualidade, nada permite excluir, neste caso, que os heterossexuais escolhem sua heterossexualidade: mas então, por que uma escolha privaria umas pessoas dos direitos atribuídos a outras a não ser pelo fato de que tal opção é a da homossexualidade? Com efeito, ou ninguém escolhe sua sexualidade e o Estado garante os mesmos direitos para todos, ou todo o mundo faz sua própria escolha e tal opção não condiciona, de modo algum, o exercício dos direitos. O aspecto inaceitável é a política de dois pesos e duas medidas preconizada pela homofobia liberal. A noção de vida privada, exibida contra o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo é, além de anacrônica, unilateral. De acordo com a observação de O. de Schutter, a vida privada, enquanto simples garantia da confidencialidade de algumas informações ou preservação de uma esfera íntima circunscrevendo o indivíduo, deve ser completada por uma dimensão que, para além dessa esfera, consiste em garantir "o direito a cada um para procurar, em suas relações com outrem, as condições de seu pleno e livre desabrochamento" (SCHUTTER,1999, p. 64). Tal concepção da vida privada permitiria sair do impasse em que a vulgata da liberdade sexual se encontra confinada. A referência à intimidade preconizada pela ideologia liberal subentende a ideia de que, na homossexualidade, existe algo de nefasto que deve ser dissimulado.

A homofobia "burocráticà':

O

Homofobia

Os pederastas já são numerosos e estão descobrindo que constituem um poder no Estado. Só lhes falta a organização, mas, segundo parece, ela já existe em segredo; além disso, contam com homens importantes em todos os partidos mais antigos e, até mesmo, nos mais recentes, desde Rõsing até Scheweitzer. Daqui em diante, vai virar moda dizer "guerra às xoxotas, paz para os fiofós" [guerre aux cons, paix aux trous-de-cul]. Que sorte a nossa, por sermos demasiado idosos; assim, não teremos a obrigação de pagar tributo com nosso corpo à vitória desse partido. Mas e a jovem geração! Diga-se de passagem, apenas na Alemanha é que um tipo semelhante (Ulrichs) pode manifestar -se e transformar tal obscenidade em teoria [... ]. Infelizmente, ele ainda não tem coragem de confessar abertamente o que é [... ]. Mas está aguardando somente que o novo Código Penal da Alemanha do Norte reconheça os "direitos da sacanagem" e a situação vai mudar completamente (COUROUVE; KOZERAWSKI,Fragments 2, 1980-1981).

Engels considera que a emergência da homossexualidade na Grécia Antiga seja o resultado da desintegração moral dos homens. Em seu livro publicado em 1884- A origem da família, da propriedade privada e do Estado -, o filósofoalemão sublinha que [...] o aviltamento das mulheres refluiu sobre os próprios homens e, também, acabou por aviltá-Ios ao ponto de levá-Ios às repugnantes práticas da pederastia e a desonrarem seus deuses e a si próprios pelo mito de Ganimedes [único amor homoerótico de Zeus com um jovem mortal] (ENGELS,1983, p. 140).

O povo alemão é apresentado como preservado das práticas homossexuais:

stalinismo

Se, para a corporação dos médicos do início do século XX, a explicação das degenerescências sexuais (entre as quais aparece a homossexualidade) encontra-se do lado das classes populares, em compensação, para os porta-vozes políticos do movimento operário, ela resulta do caráter decadente das sociedades capitalistas e burguesas. Os ideólogos do 711

comunismo foram incapazes de escapar à doxa homofóbica.64 Em uma carta enviada para K. Marx, em 22 de junho de 1869, F. Engels escrevia o seguinte:

Em suas migrações - observa Engels -, particularmente para o Sudeste, em direção às estepes do Mar Negro, povoadas

64

A homofobia pré-revolucionária homossexualidade

da Rússia czarista era muito mais violenta. A

masculina constituía um crime grave: o artigo 995 do Código

Penal de 1832 proíbia o muzhelozhsfvo (sodomia entre homens); além disso, seus praticantes perdiam os direitos cívicos e eram deportados para a Sibéria por quatro ou cinco anos (MILLER, 1995, p. 201).

As doutrinas heterossexistas e a ideologia homofóbica

79

em caso de desordem psíquica. [...] Nos países burgueses, a homossexualidade, sinal da decomposição moral das classes dirigentes, é, efetivamente, deseriminalizada.65

por nômades, os germanos sofreram sensível decadência do ponto de vista moral, adquirindo desses povos, além da arte da equitação, vergonhosos vícios contra a natureza [...] (p. 146; cf. CARNEIRO, 2007, p. 101).

Em vez de terem sido o produto da revolução bolchevique, Para a ideologia comunista da época, a homossexualidade deve ser tratada como um fenômeno político, resultante da decomposição moral própria ao sistema capitalista. Em uma sociedade "saudável" - cuja manifestação mais acabada é o comunismo em sua versão stalinista -, tais comportamentos desaparecerão naturalmente: como a ordem social se confunde com a ordem moral, uma vez restaurada a primeira a partir do comunismo, há de emergir uma nova moral individual, isenta de homossexualidade. Na primeira edição da Grande Enciclopédia Soviética, de 1930, a homossexualidade não constitui um crime contra a moralidade nem um ato contra a natureza; por sua vez, sua edição de 1952, impregnada stalinismo, enuncia que

de

[...] a homossexualidade é uma inclinação antinatural por pessoas do mesmo sexo; ela ocorre entre homens e entre mulheres; pode coexistir com uma vida sexual normal, mas frequentemente as tendências normais foram rechaçadas. Os cientistas burgueses consideram a homossexualidade como uma genuína manifestação psicopatológica. Em princípio, os psiquiatras e os médicos legistas é que se ocupam da homossexualidade: eles julgam que se trata de uma anomalia congênita, de uma variante biológica [...]. Ao negar o papel e a importância da influência do meio social e ao reduzir a questão a fatores biológicos, essa concepção foi submetida a uma crítica impiedosa por parte dos cientistas soviéticos. [...] Na sociedade capitalista, a homossexualidade é um fenômeno frequente; basta indicar que a prostituição homossexual tornou-se uma profissão. O alcoolismo e as impressões sexuais da primeira infância têm grande importância no desenvolvimento da homossexualidade. Sua origem está associada às condições de existência social: na esmagadora maioria das pessoas que praticam a homossexualidade, essas desnaturações cessam desde que o sujeito esteja posicionado em um quadro social favorável. A exceção é constituída por personalidades psicopatas e por doentes mentais [...]. Na sociedade soviética, que usufrui de uma moralidade saudável, a homossexualidade é reprimida enquanto depravação sexual e sancionada pela lei, salvo 80

Homofobia

a repressão da homossexualidade e as campanhas homofóbicas foram a consequência da tomada do poder por Stalin. Com efeito, o primeiro Código Penal Revolucionário de 1922 - até mesmo após sua reforma, em 1926 - não continha qualquer incriminação concernente às relações homossexuais a partir dos 16 anos. A política soviética da década de 1920 afastou-se da condenação moral do marxismo tradicional e, daí em diante, considerou a homossexualidade como uma afecção. Em uma obra de vulgarização, A vida sexual da juventude contemporânea, publicada pelo Comissariado para a Saúde Pública, em 1923, a homossexualidade é designada como uma forma de alienação da atração sexual normal; em virtude dessa postura, ela deixou de ser abordada como um crime para ser considerada uma enfermidade. No mesmo ano, ao publicar A revolução sexual na Rússia, o Dr. G. Batkis, diretor do Instituto de Higiene Social de Moscou, sublinhava

o seguinte:

No que diz respeito à homossexualidade, à sodomia ou a diversos outros atos sexuais, considerados na legislação europeia como ofensas contra a moralidade pública, a legislação soviética aborda tais comportamentos de forma semelhante às relações sexuais chamadas naturais [...]. Essa relativa tolerância

desaparecerá

com a consolidação

política de Stalin: numerosos homossexuais foram detidos na sequência da promulgação da Lei de 7 de março de 1934, segundo a qual as relações homossexuais por consentimento são punidas com cinco anos de trabalhos forçados. Nessa ocasião, em um texto difundido pela imprensa soviética, M. Gorky escreverá que a condenação da homossexualidade constitui uma vitória do humanismo proletário por ser por intermédio dela que se produz o fascismo. Por uma triste

65

Extrato do verbete "Homosexualisme'; publicado na 2" edição da Grande Encyclopédie soviétique,

1952. Para uma análise mais aprofundada, ver Besnard-Rousseau, 1979.

As doutrinas heterossexistas e a ideologia homofóbica

81

ironia da História, a Alemanha

Nazista instalava, na mesma

época, um plano de perseguição e de extermínio dos homossexuais ao equipará-Ios aos comunistas (KARLINSKY,1989).

A homofobia em seu paroxismo: o "holocausto gay" "Um Estado que zele ciosamente pela conservação dos melhores elementos de sua raça deve tornar-se, um dia, o senhor da terrà' (HITLER in BorSSON, 1988, p. 31). Essa frase do Führer resume perfeitamente a política implantada pela Alemanha Nazista. Max von Grüber (1988), especialista em higiene sexual, solicitava que "os homens procurassem aprimorar a raça humana': uma vez que, sublinha o expert nazista, "se realizarmos uma criação seletiva bastante rigorosa no domínio humano, obteremos, em um período limitado, tudo o que existiu de melhor até o presente, tanto pela beleza da raça quanto pela sua força e suas qualidades': A crise de decrescimento demográfico após a derrota na Primeira Guerra Mundial foi apresentada pelas autoridades do 3° Reich como o principal obstáculo para a realização da política nazista; por isso, seja no âmbito do casamento, seja no âmbito extramatrimonial, os membros da raça ariana deveriam reproduzir-se para garantir a supremacia alemã. Assim, H. Himmler - chefe da Gestapo, da polícia do 3° Reich e ministro do Interior - não deixou de proclamar sua felicidade sempre que nascia uma criança, independentemente da maneira como tivesse sido concebida (BorSSON, 1988, p. 45). A reprodução da "boa raça" tornara-se uma obsessão do Estado; desse modo, uma lei de "prevenção" prescrevia a esterilização de todas as pessoas consideradas deficientes, de maneira a evitar que elas viessem a reproduzir novas anomalias. A política de crescimento do povo ariano e a expansão demográfica da nação alemã articulavam a resposta nazista para a questão homossexual; é evidente que, em tal contexto, esta era absolutamente incompatível com os objetivos oficiais. Com efeito, a reprodução da espécie não dependeria, de modo algum, da esfera privada dos indivíduos, mas constituía uma verdadeira questão de Estado. Assim, o fundamento biológico do Volk deveria ser cuidadosamente preservado pela 1\2

Homofobia

autoridade do 3° Reich. Qualquer desvio sexual foi percebido, daí em diante, como um atentado contra o principal valor do Estado, a saber: a raça. A mestiçagem66 e a homossexualidade foram consideradas, desde então, como as principais causas do declínio biológico: a primeira colocava em perigo a pureza racial, enquanto a segunda ameaçava seu crescimento. O ministro Hans Frank julgava a homossexualidade uma atitude "contrária à perpetuação da espécie" (BOISSON,1988, p. 51). Desde 1930, as experimentações médicas para "curar" a homossexualidade não cessam de se multiplicar: enquanto ariano, o homossexual deveria ser recuperado para a função reprodutora. Com esse objetivo, o Dr. Vrernet submeteu 180 indivíduos a um tratamento hormonal e, em troca do fornecimento de deportados-cobaias de que ele dispunha com toda a liberdade, o cientista teve de ceder a patente do "tratamento" que, supostamente, eliminava o "desejo anormaf' (BURLEIGH;WIPPERMANN, 1991, p. 195-196). A fim de recuperar "produtores de crianças': os gays e as lésbicas67 ariano(a)s foram submetidos, igualmente, a "estágios de reabilitação': Em uma crônica terrificante, um sobrevivente de campo de concentração, Heinz Heger (1981), relata como ele próprio e os outros deportados homossexuais eram obrigados, pelos integrantes da 55 (Sehutztaffel- organização altamente disciplinada, encarregada da proteção pessoal de Hitler), a copular com prostitutas. Todavia, esses procedimentos terapêuticos não produziram os resultados pretendidos, e a consequência dessa constatação de fracasso foi tão brutal quanto a solução proposta: diante da impossibilidade de curar os homossexuais, foi necessário castrá-Ios para privá-Ios, daí em diante, de qualquer prazer.68 Um projeto de lei que preconizava a castração dos homossexuais já havia sido apresentado em 1930 por aquele que, mais tarde, seria o ministro do Interior do 3° Reich, o deputado Wilhelm Fiek (MossE, 1985, p. 158).

66

Uma lei de setembro de 1935 sobre "a proteção do sangue alemão e da honra alemã' proibe as relações sexuais entre judeus e não judeus.

67

Sobre a questão específica da perseguição das lésbicas, ver Schoppmann,

68

Essa solução foi proposta pelo próprio Himmler diante do fracasso de seu programa

1996.

de reabilitação. Em uma declaração de 30 de junho de 1934, ele vociferou: "Temos de abater essa peste com a morte" (BURLEIGH; WIPPERMANN,

As doutrinas heterossexistas e a ideologia homofóbica

1991, p. 177).

83

o

horror era inimaginável, em particular, para aqueles que haviam conhecido a Berlim de outrora, cosmopolita e gay.69 No final do século XIX, duas revistas homófilas eram exibidas nos quiosques da cidade: Der Eigne e Sapho und Soerates. Além disso, em 1897, o médico Magnus Hirschfeld e o editor Max Spohr criaram a primeira organização em favor dos direitos dos gays: o Comitê Científico- Humanitário (Wissensehaftlieh-humanitiires Komitee, WhK). Alguns anos depois, em 1919, Hirschfeld fundou o Instituto para a Ciência Sexual (Institut für Sexualwissensehaft), que, em pouco tempo, abrigará a maior biblioteca sobre a questão gay. Em 6 de maio de 1933, o Instituto foi atacado de forma brutal: 12.000 publicações e 35.000 fotografias relativas à homossexualidade foram queimadas. Nesse momento, seu diretor encontrava-se no exterior e não conseguiu voltar para a Alemanha; destituído de sua nacionalidade, M. Hirschfeld morreu no exílio, dois anos depois. Nesse mesmo ano, Hitler elimina, em circunstâncias misteriosas, R6hm e outros líderes da AS (Sturmabteilung, milícia paramilitar nazista).7o De acordo com uma tese, foi a partir do assassinato de R6hm que começou a perseguição dos homossexuais pelo nazismo; até então, havia reinado um clima de tolerância. O principal estudo sobre a questão (LAUTMANN,1977 apud HAEBERLEin DUBERMAN, 1989) refuta vigorosamente essa hipótese, ao lembrar que o Partido Nacional Socialista tinha tomado posição, bem cedo, sobre esse assunto: com efeito, desde 1928, ele declarava que o interesse geral prevalece em relação ao interesse individual; além disso, "aqueles que são favoráveis ao amor entre homens ou

69

entre mulheres são nossos inimigos" (HAEBERLE, 1989; ver, também, a excelente obra de GRAU, 1995). Foi somente em 1935 que as punições contra a homossexualidade se tornaram mais duras: daí em diante, o artigo 175 do Código Penal Imperial Alemão previa até dez anos de prisão e até mesmo as manifestações afetivas sem relação sexual seriam punidas; a simples suspeita de homossexualidade era suficiente para condenar alguém (WERRES, 1973). Um ano depois da reforma desse Código Penal, Himmler cria a Agência Central do Reieh para Combater a Homossexualidade e o Aborto, cuja atividade revela-se particularmente eficaz: se no decorrer de 1934 foram pronunciadas apenas 766 condenações, estas atingirão a cifra de 4.000 após a criação da Agência e, em 1938, o número de gays detidos elevar-se-á a 8.000 (BURLEIGH; WIPPERMANN,1991, p. 192). Em um célebre discurso de 18 de fevereiro de 1937, Himmler afirmava que "a homossexualidade provoca o fracasso de qualquer desempenho [...] ela destrói o Estado em seus alicerces': porque somente "um povo que dispõe de um grande número de crianças pode ter a pretensão de conseguir a hegemonia geral':n Em torno da aptidão reprodutiva, a ideologia nazista organiza a condenação biológica e moral dos comportamentos homossexuais. Com efeito, ainda de acordo com Himmler, "a destruição do Estado começa no momento em que intervém um princípio erótico [...] um princípio de atração do homem pelo homem" (BOISSON,1988, p. 219). Combater essa "praga" torna-se, então, uma obrigação capital para a nação e um gesto de sobrevivência. Devemos compreender - acrescenta o dignitário nazista que a disseminação crescente desse vício na nossa nação, sem que possamos combatê-Io, decretará o fim da Alemanha, o fim do mundo germânico. [E ele tira a seguinte conclusão:] Dizer que nos conduzimos como animais seria um modo de insultar os animais. Uma vida sexual normal constitui, portanto, um problema para todos os povos.

Comumapopulaçãode 2,5 milhõesdehabitantes,Berlimcontava,no finaldo séculoXIX, com40 baresgayse 320 publicaçõessobrea questãoda homossexualidade,verNorton,1975.

?OEm30 de junho de 1934, ErnestRõhm,homossexualnotório,e outras 200 pessoasforamassassinados.No dia seguinte,um comunicadoda agênciade imprensanazistapublicavaa seguinteinformação:"[...] algunsdesseschefesss estavamcom'garotosdeprogramâ [...]. O Führerdeu ordemparaexterminar, sem qualquerescrúpulo,essapeste.Elejá não permitiráque,no futuro,milhõesde pessoashonestassejamimportunadase aviltadaspor seresanormalmenteconstituídos"(BOISSON,1988, p. 76). 11'1

Homofobia

No editorial de 4 de março de 1937, o semanário da SS Das Sehwarze Korps - denuncia a existência de dois milhões

71

Otextointegraldaconferência encontra-senosanexosdaobradeBoisson,1988. Asdoutrinasheterossexistas e aideologiahomofóbica

85

de homossexuais e preconiza, ardentemente, seu extermínio. Todavia, os criminosos nazistas não tinham aguardado essa proposta para desencadear a perseguição de gays e lésbicas: desde 1936, eles foram enviados em massa para os campos de concentração; aliás, foi mínimo o número de sobreviventes. Se existe a estimativa de que 15.000 homossexuais tenham sido vítimas desses campos, de acordo com F. Rector (1981), parece razoável considerar que, no mínimo, 500.000 homossexuais tenham sido mortos nas prisões, nas execuções sumárias, por suicídio ou por ocasião de tratamentos experimentais. Em uma narrativa pungente, H. Heger lembra a sorte dos homossexuais que terminaram seus dias nas pedreiras de Sachsenthausen ou no campo de Flossenbürg. O testemunho de Pierre Seel (1994) mostra, igualmente, até que ponto o ódio contra os homossexuais chegou a atingir dimensões terrificantes. "Entre os milhões de homens e de mulheres que Hitler havia decidido eliminar em função de critérios racistas, houve centenas de milhares de homens perseguidos e torturados até a morte, unicamente por amarem pessoas do mesmo sexo" (HEGER,1981, p. 159-160). As pessoas que traziam o triângulo cor-de-rosa72 nos campos de concentração nunca chegaram a ser reconhecidas como vítimas do nazismo e, por conseguinte, elas não receberam qualquer indenização: a base legal de sua perseguição - o artigo 175 do Código Penal Imperial Alemão - subsistiu até 1969. A possibilidade oferecida às vítimas, no final da Segunda Guerra Mundial, de solicitar uma espécie de asilo ao governo dos EUA foi expressamente recusada aos homossexuais em razão de sua "doençà' (RECTOR,1981, p. 110).73 Essas razões explicam o silêncio a que as vítimas haviam sido submetidas. n Cada

vítima tinha sua cor: o rosa para os homossexuais

homens; o amarelo

para os judeus; o vermelho para os politicos; o preto para os associais e as lésbicas; o malva para as testemunhas

de Jeová; o azul para os imigrantes e o cas-

tanho para os ciganos. 73

Se alguém, depois de ter obtido o direito de permanência ser identificado

como homossexual,

nos EUA, viesse a

era passível de expulsão; tal situação foi

confirmada pela Suprema Corte, em 1967 (ver HAEBERLE, 1989, p. 378-379).

llll

Homofobia

Capítulo IV

As causas da homofobia ~

Enquanto fenômeno psicológico e social, a homofobia enraíza-se nas complexas relações estabelecidas entre uma estrutura psíquica do tipo autoritário e uma organização social que considera a heterossexualidade monogâmica como ideal no plano sexual e afetivo. A interação do psicológico e do social é que deve ser questionada para se compreender melhor os elementos constantes que facilitam, incentivam ou banalizam a homofobia. Se, em cada um de nós, existe um homofóbico enrustido, é porque a homofobia parece ser necessária à constituição da identidade de cada indivíduo. Ela está tão arraigada na educação que, para superá-Ia, impõe-se um verdadeiro exercício de desconstrução de nossas categorias cognitivas. A despeito de sua estreita relação, a homofobia individual (rejeição) e a homofobia social (supremacia heterossexual) podem funcionar distintamente e existir de maneira autônoma. Assim, é possível não experimentar qualquer sentimento de rejeição em relação a homossexuais (e até mesmo ter simpatia por eles/as) e, no entanto, considerar que eles/elas não merecem ser tratados/as de maneira igualitária. O mesmo ocorre com a misoginia: quantos homens desejam e amam mulheres, sem que essa atitude os impeça de tratá-Ias como objetos? Uma forma de homofobia é possível fora da hostilidade manifestada contra homossexuais. Ou, dito por outras palavras, alguém pode ser objetivamente homofóbico e, ao mesmo tempo, considerar-se amigo de gays e lésbicas: o heterossexismo manifesta-se sem ter necessidade, de modo algum, da hostilidade irracional ou do ódio contra os "pédés': bastando-lhe justificar, intelectualmente, essa diferença que situa a homossexualidade em um patamar inferior. Quando se faz apelo à diferença, esta nunca é evocada em favor de gays e 87

i lésbicas; ninguém pensa em enfatizar a especificidade homossexual para reconhecer outros direitos aos gays ou para implementar dispositivos de discriminação positiva em seu favor. Os dados históricos e ideológicos descritos nos capítulos precedentes delimitam bre a homossexualidade moldura,

a esfera em que nossas imagens soforam construídas. Para além dessa

existem outros elementos de explicação que, even-

tualmente, nos permitem circunscrever melhor a hostilidade contra os gays e as lésbicas. Ao preconizar a divisão dos sexos e ao radicalizar a diversidade dos gêneros, a ideologia diferencialista transforma a repulsa (ou a segregação) relativamente a homossexuais em um elemento central capaz, ainda por cima, de garantir o equilíbrio individual e a coesão social.

A homofobia como elemento constitutivo da identidade masculina No primeiro capítulo, foi enfatizado o modo como a homofobia geral manifesta hostilidade não só a gays e lésbicas, mas também a qualquer indivíduo que não se adapte aos papéis, supostamente, determinados pelo sexo biológico. A lógica binária que serve de estrutura para a construção da identidade sexual funciona por antagonismo: assim, o homem é o oposto da mulher, enquanto o heterossexual opõe-se ao homossexual. Em uma sociedade androcêntrica como a nossa, os valores apreciados de forma especial são os masculinos; neste caso, sua "traição" só pode desencadear as mais severas condenações. Portanto, o cúmulo da falta de virilidade consiste em assemelhar-se à feminilidade, "disfarçar-se de drag-queen", "assumir trejeitos femininos", "maquiar-se para frequentar casas noturnas" ou "falar com uma vozinha aguda e efeminadà' (ver a pesquisa de DURET, 1999, p. 52; d. LOURO,2008, p. 84). Um estudo efetuado com uma população heterossexual masculina por uma equipe de psiquiatras mostra a estreita ligação entre a homofobia e a impossibilidade de estabelecer relações de intimidade entre pessoas do gênero masculino. Várias pesquisas dão testemunho da grande dificuldade experimentada pelos homens para exprimir sua intimidade. Em relação às mulheres, apesar de travarem mais facilmente amizade BB

Homofobia

com os colegas, os homens demonstram um incômodo particular para manifestar seus sentimentos em tais relações. Essa barreira em relação à intimidade parece encontrar sua origem na socialização masculina: a competição, a forte apreensão relativamente à demonstração de vulnerabilidade, o controle dos sentimentos e a homofobia constituem os elementos que modelam

o jeito de ser homem. De acordo com aparece como o mais importante desses elementos na (auto)construção da masculinidade. Com base em 24 estudos empíricos que mostravam maior tolerância das mulheres e, correlatamente, hostilidade mais marcante dos homens heterossexuais contra os J. Tognoli (1980), o ódio contra homossexuais

gays (KITE, 1984), o medo de ser considerado "pédé" constitui uma importante força na composição do papel masculino tradicional. Segundo o processo de socialização masculina, a aprendizagem desse papel efetua-se em função da oposição constante à feminilidade. Como observa É. Badinter: "Em vez de ser obtida

automaticamente,

a virilidade

deve ser

construí da, digamos, fabricada. O homem é, portanto, uma espécie de artefato e, como tal, ele corre sempre o risco de ser defeituoso': A carência mais grave do maquinismo destinado a fabricar a virilidade é a produção de um veado [pédé]. Ser homem significa ser rude (e até mesmo grosseiro), competitivo, bagunceiro; ser homem implica menosprezar as mulheres e detestar os homossexuais. O caráter mais evidente da masculinidade permanece a heterossexualidade: "Após a dissociação da mãe (não sou seu neném) e a dissociação radical em relação ao sexo feminino (não sou uma moça), o rapaz deve provar (a si mesmo) que não é homossexual, portanto, que evita desejar outros homens ou ser desejado por estes" (BADINTER, 1992, p. 149). Fortalecer a homofobia é, portanto, um mecanismo essencial do caráter masculino, porque ela permite recalcar o medo enrustido do desejo homossexual. Para um homem heterossexual, confrontar-se com um homem efeminado desperta a angústia em relação às características femininas de sua própria personalidade; tanto mais que esta teve de construir-se em oposição à sensibilidade, à passividade, à vulnerabilidade e à ternura, enquanto atributos do "sexo frágil': As causas da homofobia

89

II

~II

Nesse sentido, um grande número de homens que assumem um papel ativo na relação sexual com outros homens não se consideram homossexuais; na realidade, em vez do sexo do parceiro, a passividade é que, para eles, determina o pertencimento ao gênero masculino. O fato de ser penetrado aparece, assim, como o caráter próprio do sexo feminino; essa passividade, vivenciada como uma feminização, é suscetível de tornar o sujeito efetivamente homossexuaL Em compensação, ao adotar o papel ativo, o indivíduo não atraiçoa seu gênero e, por conseguinte, não corre o risco de tornar-se "pédé'~No entanto, é insuficiente ser ativo: ainda é necessário que essa penetração não seja acompanhada de afeto, porque essa atitude poderia colocar em perigo a imagem de sua própria masculinidade. Eis, portanto, por um efeito de denegação, como vários homens, sem deixarem de ter relações homossexuais regulares, podem rejeitar qualquer identidade gay e sentir ódio homofóbico. Tal ódio serve, neste caso, à reestruturação de uma masculinidade frágil que, constantemente, tem necessidade de se afirmar pelo menosprezo do outro-não-viril: o maricas e a mulher. Sexismo e homofobia aparecem, portanto, como as duas faces do mesmo fenômeno sociaL A homofobia - e, em particular, a masculina - desempenha a função de "policiamento da sexualidade" ao reprimir qualquer comportamento, gesto ou desejo que transborde as fronteiras "impermeáveis" sexos. Segundo Ch. Gentaz (1994, p. 219):

dos

Em razão de sua função sociopsíquica, a homofobia protege - à semelhança de um preservativo - os heterossexuais de serem atingidos pela feminilidade ao impedir qualquer forma de intrusãomasculina externa: trata-se de uma espécie de alfândega do gênero masculino. Poderíamos, então, pressupor que a homofobia é constitutiva da psicogênese de qualquer indivíduo masculino.

A homofobia, guardiã do diferencialismo sexual A crença social na existência exclusiva de dois sexos, associada à atribuição - correlata e lógica - a cada indivíduo de uma natureza, essencialmente masculina ou feminina, permite a reprodução 90

de uma ordem sexual apresentada Hornofobia

como

objetiva e factual (MATHIEU, 1977). Nesse aspecto, não se trata, de modo algum, de questionar os dados fisiológicos relacionados com a existência de machos e fêmeas entre os mamíferos humanos; tampouco de negar as diferenças físicas entre os sexos. Apesar disso, existe outra maneira de abordar a questão, precisamente, ao desconfiar dessa evidência "natural'~ As dúvidas que se opõem a essa certeza incidem sobre o modo como a dicotomia masculino/feminino, considerada o estorvo do pensamento, organiza uma consciência de si e uma relação com o mundo totalmente peculiares. Convém, então, interrogar-se sobre a pertinência desse dado fisiológico na elaboração da lei. A opinião sobre a diferença entre os sexos baseia-se na ideia de que a natureza biológica dos seres determina uma forma específica de atribuição social, de tal modo que a posse de órgãos genitais, masculinos ou femininos, legitimaria um tratamento jurídico diferenciado; assim, a mulher é definida como radicalmente distinta do homem, além de ser pensada através de sua função reprodutora. Se a equivalência entre os órgãos de um e do outro sexo é frequentemente evocada, aparece como prova de uma complementaridade e, até mesmo, de uma subordinação. Essa estranha operação intelectual permite ordenar um dispositivo de papéis e status no âmago do qual os indivíduos haveriam de se inserir naturalmente. O ser biológico declina-se, assim, como homem ou mulher com uma naturalidade semelhante à da noite que vem após o dia ou à sucessão das estações. Por conseguinte, é muito naturalmente que nos submetemos ao destino da natureza (macho/fêmea) e assumimos nossa vocação antropológica, masculina ou feminina. O pensamento diferencialista tenta, assim, enraizar a diferença entre os sexos, seja no biológico, seja no cultural: as mulheres, em decorrência de suas capacidades maternas, seriam mais altruístas, mais amáveis e menos ambiciosas que os homens; elas mostrariam maior sensibilidade e seriam muito mais atenciosas para com os outros. Por sua vez, os homen§, de natureza mais agressiva, estariam mais bem dotados para a vida fora de casa, o comércio e a política. Eis outras tantas ideias preconcebidas que articulam a doxa. No entanto, em As causas da hornofobia

91

vez de serem atribuições individuais, o masculino e o feminino se constroem na relação com os outros; longe de representarem categorias naturais ou universais, o masculino e o feminino são o resultado de uma forma específica de socialização (FERRAND, 1991). A distinção entre os sexos constitui um mecanismo político de ação e reprodução social que permite a legitimação tácita das desigualdades. Apresentada como antropologicamente inevitável, essa diferença serve de estrutura para nossa concepção normativa sobre as propriedades dos seres "necessariamente" sexuados. De algum modo, somos reféns de um sistema cultural que nos impele à adesão cega a uma lógica binária em matéria de gênero e de sexualidade: cada um de nós é homem ou mulher, homossexual ou heterossexual; além disso, quando se é homem, deve-se ser masculino e sentir atração por mulheres femininas, e vice-versa. A alternativa para pensar a diferença entre os sexos consiste em considerá-Ia não como uma realidade biológica, mas como uma elaboração política ou, para retomar uma palavra forjada por Foucault, como um dispositivo, ou seja, [...] um conjunto heterogêneo de discursos, instituições, práticas e procedimentos, permeado por relações de poder; nesse conjunto, indivíduos e coletividades são constituídos como objetos passíveis de intervenção e, simultaneamente, como sujeitos que se pensam em relação com as categorias do dispositivo (ef. LOURO, 2007, p. 11-12; WEEKS,2007, p. 44). Sob essa perspectiva, a divisão entre os sexos, longe de constituir um dado natural, representa um empreendimento político de sujeição dos indivíduos. A maneira pela qual representamos o "modelo de dois sexos" é uma invenção recente, como é demonstrado por T. Laqueur (1992, p. 10-20): Desde o século XVIII, a ideia predominante - sem ser, de modo algum, universal - havia consistido em defender que existiam dois sexos opostos, estáveis, incomensuráveis; além disso, a vida política, econômica e cultural dos homens e das mulheres, seus papéis enquanto gêneros são baseados, de uma forma ou de outra, nesses "fatos". A biologia - o corpo estável, anistórico, sexuado - é compreendida como o fundamento epistêmico das afirmações normativas relacionadas com a ordem social. 92

Homofobia

Se a reivindicação do direito ao casamento e à filiação por parte de gays e lésbicas desencadeia um número tão grande de reações negativas é porque ela questiona a dicotomia masculino/feminino, suporte da atual ordem sexual. As categorias "homem" e "mulher" continuam sendo operacionais em direito, servindo de justificativa para a desigualdade de tratamento do gênero masculino em relação ao feminino. Nesse sentido, a defesa da ordem sexual baseada na diferença entre os sexos (macho/fêmea) pressupõe, igualmente, a manutenção da diferença de sexualidades (homossexual/heterossexual). Em compensação, se a diferença dos sexos deixasse de ser um elemento pertinente na qualificação do sujeito de direitos, se o fato de ser homem ou mulher já não afetasse o exercício dos direitos, inclusive no domínio do casamento e da filiação, as reivindicações de gays e lésbicas poderiam inscrever-se, pacificamente, no processo de abstração do sujeito de direitos. Eis por que a igualdade das sexualidades é percebida como uma iniciativa subversiva, suscetível de ameaçar a ordem estabelecida dos sexos. A preservação do dispositivo político da distinção entre os sexos implica, igualmente, a conservação da diferençà entre as sexualidades. A crença em uma "naturezá' feminina e em outra "naturezá' masculina, dessemelhantes e complementares, encontra-se na origem de uma opinião disseminada segundo a qual as relações heterossexuais são as únicas a desempenhar o verdadeiro encontro dos seres que, por sua diferença sexuada, teriam a vocação para se completar. Nessa lógica, as uniões homossexuais são aceitas sob a condição de que elas não ameacem, por um "igualitarismo desenfreado'; o modelo de casal heterossexual como espaço simbólico no âmago do qual se realiza a diferença entre os sexos enquanto valor político e cultural. A segregação dos casais aparece, assim, como uma necessidade antropológica, a fim de preservar essa diferença. À semelhança da velha doutrina da Suprema Corte dos EUA, ou seja, "separate and equal" - que servia para justificar o regime de apartheid em relação aos negros (PLESSY,1896) -, a homofobia diferencialista pretende afastar os homossexuais do direito comum (em particular, o direito ao casamento), a fim de salvaguardar a supremacia normativa da heterossexualidade. As causas da homofobia

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A homofobia e o fantasma da desintegração psíquica e social Se a homossexualidade desperta, ainda, um número tão grande de reações de hostilidade é porque ela é percebida como uma etapa suplementar do processo de decadência psicológica e moral em que estariam soçobrando as sociedades contemporâneas: ao confundirem a liberdade com um narcisismo egoísta, estas se encontrariam instrumentalizadas por um individualismo desenfreado. Semelhante tentativa individualista estaria na origem da legalização da contracepção, do aborto e da banalização da multiparceria, apresentadas como práticas nocivas para a integridade do tecido social; todavia, nessa evolução, a homossexualidade representa a etapa mais acabada da desintegração civilizacional. A maneira dos antropólogos do final do século XIX que não hesitavam em assimilar a homossexualidade a práticas selvagens, os ideólogos modernos consideram o desejo por pessoas do mesmo sexo o sinal de uma adolescência afetiva, impregnada de narcisismo. Eis por que as "sexualidades contemporâneas" - e, particularmente, a homossexualidade - são denunciadas como se estivessem orientadas exclusivamente para a realização egoísta do indivíduo, ao excluir sua dimensão relacional (ANATRELLA, 1990, p. 131). Por isso é que a heterossexualidade é vislumbrada como a única forma de sexualidade capaz de associar prazer individual e coesão social, no sentido em que ela está a serviço dos fins da espécie: "Transmitir a vida é, também, um ato social, e não unicamente uma gratificação narcísica que fornece o sentimento de estar libertado da impotêncià' (p. 134). Assim, qualquer forma de sexualidade dissociada da reprodução aparece como suspeita, por fazer preceder a sobrevivência do indivíduo à da espécie. A repressão da homossexualidade é justificada, nessa ideologia, como uma espécie de "legítima defesà' social. De acordo com o padre-psicanalista T. Anatrella (1990, p. 211): Quando a tendência homossexual não foi precocemente erotizada,elatransforma-seem sentimentossociais:a partir dela, constrói-sea relaçãosocial.Ao impelir à aproximação com "o mesmo",essa tendência permite o estabelecimento 94

Homofobia

do vínculosociale do consenso,em poucaspalavras,de uma sociabilidade[00']' ''A economia da homossexualidade': para não falar de sua repressão, encontra-se na própria base da socialização. Legitimar a homossexualidade equivale a colocar em perigo a sociedade. O amor por si e a sexualidade primitiva atribuídos ao desejo homossexual devem ser mantidos a distância, sob pena de implicar a desintegração cultural da sociedade. Esse raciocínio baseia-se em uma teoria da defesa da sociedade (heterossexual) a partir da qual - no pressuposto de que a ordem antropológica (heterossexual) é ameaçada pelo indivíduo - é a heterossexualidade que deve necessariamente prevalecer. Se o fortalecimento da diferença entre os sexos e o incentivo à heterossexualidade são imperativos relevantes para o desenrolar adequado do processo civilizacional, a inferiorização e a estigmatização da homossexualidade aparecem como as consequências lógicas do dever moral que é a defesa da sobrevivência comunitária. Por essa dialética, que consiste em estabelecer a oposição entre dois polos, basta determinar arbitrariamente o que pertence ao "bem comum" para tirar a conclusão de que este deve necessariamente prevalecer ao "interesse individual"; em caso de contradição, a sobrevivência de um desses polos pode justificar o desaparecimento do outro. Ora, além da imoralidade de tal raciocínio, nada permite considerar a homossexualidade como um comportamento nocivo para a sociedade. No entanto, a fim de justificar a exclusão, é enfatizada, sem hesitação, a incapacidade reprodutora dos casais homossexuais. Mas então, se a reprodução qualifica o interesse social de uma sexualidade (heterossexual) em detrimento de outra (homossexual), por que não impor, por um lado, a obrigação de casamento para os celibatários heterossexuais e, por outro, a reprodução aos casais heterossexuais? E por que não impor aos estéreis a obrigação de se curarem ou de adotarem crianças? E, finalmente, por que continuar autorizando a contracepção ou a interrupção voluntária da gravidez? Eis outras tantas situações que nos levam a nos interrogar se, por trás do argumento da reprodução, não se dissimularia certa hostilidade anti-homossexual. As causas da homofobia

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Foi dito, igualmente, que os gays e as lésbicas encontrarse-iam na impossibilidade de reconhecer o outro, já que, para a vulgata psicanalítica, eles seriam impedidos de reconhecer, por sua estrutura psíquica, a diferença entre os sexos e, por conseguinte, a alteridade. Ora, o pressuposto segundo o qual a alteridade é necessariamente o oposto sexual parece ser não só falso, mas também, e sobretudo, ideologicamente perigoso: o outro é amado enquanto tal, de modo que limitá-Io à sua dimensão anatômica constitui uma forma de materialismo reducionista. Além disso, a heterossexualidade nunca foi garantia de consideração e de respeito por outrem. As mulheres, apesar de representarem o "sexo oposto" dos homens, podem ser o testemunho da opressão de que têm sido, e continuam sendo, vítimas por parte dos heterossexuais; no entanto, supostamente, estes possuem todas as qualidades psicológicas necessárias para reconhecer a alteridade ... O fantasma da desintegração cultural - pretensa consequência do reconhecimento social da homossexualidade provém, no fundo, do temor relativo ao fim da continuidade genealógica. Em algumas pessoas, a mera evocação das uniões do mesmo sexo provoca uma ansiedade que não passa da angústia de morte e manifesta-se sob a forma de uma hostilidade contra os homossexuais, desde então, julgados como responsáveis pelo risco imaginário do desaparecimento da espécie. Tal dimensão fantasmática é que instaura e alimenta a homofobia. Ora, nada nos permite pensar, com seriedade, que os homossexuais colocariam em perigo a sobrevivência da espécie; constata-se que eles existem desde sempre, o que não impediu o povoamento do Planeta (até mesmo, a superpopulação). Considerando o estado atual das técnicas de procriação, quem pode ainda supor que a reprodução da espécie dependa unicamente do coito heterossexual?

A personalidade homofóbica A interpretação restritiva da homofobia como temor irracional de tipo patológico foi amplamente criticada, por limitarse a uma consideração parcial do fenômeno analisado. Eis por que preferimos aprofundar a homofobia como manifestação 96

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cultural e social, comparável ao racismo ou ao antissemitismo. Parece-nos, no entanto, que os aspectos puramente psicológicos da questão merecem ser abordados a fim de compreendermos melhor os efeitos da interação entre uma socialização heterossexista e uma integração acentuada das normas culturais hostis a gays e lésbicas. As reações homofóbicas mais violentas provêm, em geral, de pessoas que lutam contra seus próprios desejos homossexuais. Nesse sentido, chegou a ser proposta uma explicação sobre a dinâmica psicológica segundo a qual a violência irracional contra gays é o resultado da projeção de um sentimento insuportável de identificação inconsciente com a homossexualidade, de tal modo que o homossexual colocaria o homofóbico diante de sua própria homossexualidade experimentada como intolerável. A violência contra os homossexuais é apenas a manifestação do ódio de si mesmo ou, melhor dizendo, da parte homossexual de si que o indivíduo teria vontade de eliminar. A homofobia seria uma disfunção psicológica, resultado de um conflito mal resolvido durante a infância e que provocaria uma projeção inconsciente contra pessoas, supostamente, homossexuais. Esse mecanismo de defesa permitiria reduzir a angústia interior de se imaginar em via de desejar um indivíduo do mesmo sexo (SUSSAL, 1998). Presente unicamente nos homens, segundo L.Bersani (1998, p. 99-100), essa disposição irracional à homofobia "poderia ser a expressão odiosa de um fantasma, mais ou menos disfarçado, de participação - principalmente, sob a forma de penetração anal - na experiência imaginária terrificante da sexualidade femininà: Entre os homens heterossexuais, um elemento considerado igualmente como facilitador da homofobia parece ser a inveja inconsciente em relação aos gays,percebidos como desvencilhados da obrigação de corresponder ao ideal masculino e como se tivessem sido beneficiados com maior liberdade sexual. Mas, na impossibilidade cultural de realizar tal desejo, este se transforma em hostilidade contra os entes invejados. Numerosos estudos psicológicos conseguiram demonstrar que alguns fatores - tais como idade, sexo, nível de estudos, meio social, além de filiação religiosa ou política - constituem fiM CtlUStls

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