“Brados do desengano”: a escrita conventual feminina no século XVIII e o caso de Leonarda Gil da Gama

August 25, 2017 | Autor: Filipa Medeiros | Categoria: Emblemática
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“Brados do desengano”: a escrita conventual feminina no século XVIII e o caso de Leonarda Gil da Gama Filipa Medeiros (Universidade de Coimbra/Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos)

“Digo que o falar das Religiosas não diminui o martírio da Cruz, porque ainda que falam alguma vez, falam com tais circunstâncias, que fazem maior o tormento, porque o seu falar é com escutas, e falar com escuta é maior pena que calar. (…) A outra razão é porque ainda que as Religiosas falam, falam com licença; e para os que sabemos que cousa é Religião, é certo que mais custa a licença que o silêncio. E a razão é clara: porque o silêncio é calar e a licença é pedir, e muito mais custa abrir a boca para pedir, que fechá-la para calar.” (Padre António Vieira, Sermão da Exaltação da Santa Cruz1)

“Falar com escutas e com licença”. É nestes termos que o Imperador da Língua Portuguesa define a liberdade de expressão das religiosas de clausura, presas ao voto de silêncio por compromisso institucional e condenadas a um estatuto passivo por imposição social2. Neste sentido, a emergência da literatura monástica feminina no contexto português resulta naturalmente de uma tensão estruturante entre a vontade de falar e o dever de calar, uma vez que a escrita era uma actividade vigiada e fortemente direccionada, no espaço conventual e fora dele3. Numa época em que raras eram ainda as damas de corte capazes de cumprir os preceitos de B. Castiglione, o silente recato era aconselhado às mulheres casadas, e casadouras, como sinal de virtude4, pelo que ganhava especial ênfase nos tratados morais e na sermonária. Este apelo à contenção verbal figurava igualmente nas regras monásticas, exortando as religiosas a cultivar esse princípio ascético5, ao mesmo tempo que se preconizava um controlo apertado sobre a leitura, ainda que nem sempre eficaz. E se, no refúgio do lar, as esposas tinham de                                                                                                                         1

Pregado no Convento da Anunciada em Lisboa, em 1645. Note-se que o isolamento e a segregação era uma realidade igualmente dura para as mulheres leigas do século XVIII, que viviam confinadas aos muros domésticos e tinham no estrado o seu espaço natural, totalmente afastadas da convivência heterossexual (Lopes: 47). 3 Também a leitura estava fortemente condicionada, na sequência do Índice Expurgatório de 1624 (Marquilhas:147). Sobre esta questão em particular, veja-se a obra de Raul Rego (1982), Os índices expurgatórios e a cultura portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. 4 O recente estudo intitulado O Padre António Vieira e as Mulheres indica várias passagens de sermões vieirinos que apontam neste sentido (Franco e Morán Cabanas: 2008). Por outro lado, Diogo Paiva de Andrada, no Casamento Perfeito (Lisboa: Jorge Rodrigues, 1630), recomenda a todas as mulheres a “moderação da língua” como reflexo da sua virtude, invocando uma pintura antiga de Vénus com o pé em cima de um cágado, símbolo do silêncio e da passividade (ed. Livraria Sá da Costa, 1944:167). Na verdade, Pausânias (Periegesis, 6.25.1) atribui a Fídias uma estátua de Afrodite nesta posição e também Plutarco abordou este ícone da fidelidade doméstica (Coniugalia praecepta 32, Moralia 142), que inspirou o Emblema 195 de Alciato. 5 Soror Maria do Céu dirige às suas religiosas um apelo semelhante na obra Aves Ilustradas em Avisos para as Religiosas servirem os ofícios nos seus Mosteiros (1734): “Fazei, Senhora, guardar o silêncio, porque aí assiste Deus, aonde o há” (p.17). 2

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obter autorização para se recrear com leituras pias6; no convento, este contacto era muito mais metódico, havendo também maior disponibilidade para confessar ao papel a intimidade das meditações7. Paradoxalmente, a clausura regular, que ameaçava a liberdade das fidalgas desde o século XII, registou um crescimento notável na Idade Moderna, concedendo às professas mais instruídas uma preciosa oportunidade para colocar o seu engenho ao serviço da espiritualidade pós-tridentina, que abriu caminho à valorização da vida intraclaustral e sua produção literária (Morujão, 2011: 36). Nestas circunstâncias, estimuladas pelos orientadores8 ou movidas por vontade própria, as religiosas criaram o hábito de compor biografias, cartas e variadíssimos relatos de vivências místicas, que transformaram a realidade bibliográfica conventual feminina num fenómeno complexo e ainda hoje enigmático, como atesta a bibliografia já conhecida (Morujão: 1995). Com o nobre intuito de catequizar as almas, as professas eram incentivadas pelos confessores a partilhar os seus escritos exemplares e até a correspondência, de modo a servirem de intermediárias à “eloquência do Céu”9. Estas obras de registo intimista, apesar de algumas terem sido apresentadas por narradores masculinos a partir de missivas ou relatos autógrafos10, assumem hoje uma importância determinante para conhecer o testemunho das freiras, ainda que por via indirecta e necessariamente alterada, dado que esta prática dissolvente da escrita feminina tem a                                                                                                                         6

Na linha dos manuais L’ éducation de la femme chrétienne (1523) de Louis Vives, Espejo de la perfecta casada (1623) de Alonso de Herrera e Carta de Guia de casados (1651), de D. Francisco Manuel de Melo, Frei António das Chagas sugere as vidas de Santos e os escritos edificantes como as leituras mais adequadas ao público feminino (Chagas: 144-145). 7 Paradoxalmente, os conventos, por oposição aos lares, ofereciam muito mais oportunidades de convívio, de manifestações poéticas e até de contactos heterossexuais (Lopes: 53). De facto, era comum a organização de recepções festivas intra muros, que serviam de pretexto para apresentar as produções intelectuais, e não podemos deixar de referir como exemplo os famosos outeiros do Convento de Chelas, em que participou a Marquesa de Alorna durante a sua estadia compulsiva. 8 O ímpeto catequético pós-tridentino incitava as servas de Cristo a difundir a sua expressão evangelizadora fora de portas, através dos prelos, preservando a sua privacidade, ao mesmo tempo que publicitavam as Ordens e divulgavam arquétipos morais (Poutrin: 21). 9 Frei José Caetano, editor da biografia e das cartas da carmelita Madre Maria Joana, usa esta expressão nas páginas introdutórias da Memória da vida, e virtudes da serva de Deus Soror Maria Joana, religiosa do Convento Real do Santíssimo Sacramento do Louriçal. Lisboa: Miguel Rodrigues (1762). Note-se que também Soror Madalena da Glória compôs biografias panegíricas, nomeadamente a de Santa Rosa de Santa Maria (Astro Brilhante em novo mundo. Lisboa: Pedro Ferreira 1733), a quem dedicou também uma Novena (Lisboa: Offic. da Música, 1734); e a de Santo Agostinho, Águia real (Lisboa: Offic. da Música, 1744). Além disso, a sua intenção de divulgar modelos de comportamento devoto é igualmente visível nos Brados do desengano contra o profundo sono do esquecimento em três histórias exemplares (I Parte, Lisboa: Miguel Rodrigues, 1736; II Parte, Officina da Música, 1739) e no Orbe celeste (Lisboa: Pedro Ferreira, 1742), uma miscelânea de discurso e novelas morais. 10 Recorde-se, a este propósito, Fr. Miguel de Azevedo e o seu Memorial das Instrutivas Palavras e Edificantes Obras da Muito Virtuosa Madre Mariana da Purificação (Lisboa: Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1802), que completa a versão de Fr. Caetano do Vencimento com palavras da protagonista (Fragmentos da prodigiosa Vida da Venerável Madre Mariana da Purificação. Lisboa: Oficina de António da Silva, 1747), de modo a enfatizar a dimensão exemplar da obra.

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vantagem de preservar a memória das vivências ameaçada pela extinção dos mosteiros (Morujão, 2011: 46-47). Não podemos, porém, entender essa postura coadjutora como prática corrente e generalizada; muitos eram ainda os entraves conservadores à erudição feminina, que proporcionava uma capacidade reflexiva mais consciente e perigosamente ilustrada11. A escrita abria caminho à evasão intelectual, ajudava a construir uma memória colectiva e dava asas à imaginação, pelo que era alvo de apertada censura, ao mesmo tempo que criava grande expectativa no público laico (Morujão, 2011: 52). Como refere Maria Antónia Lopes, inspirada por Maravall, “a freira exercia um fascínio, uma atracção pelo inacessível, pelo obscuro e difícil que apaixonava os espíritos barrocos” (Lopes: 57), daí que os seus escritos granjeassem forte aplauso e os seus dotes movessem uma verdadeira legião de devotos admiradores12. Não esqueçamos, contudo, que a expressão em linguagem perene trazia muitas inquietações à sensibilidade das mulheres, ainda por cima professas, desde sempre educadas para uma vivência discreta e calada. Nesse contexto, a ousadia de pegar na pena era, por si só, sinal de mudança de mentalidades, ainda que fosse um gesto muitas vezes ordenado pela ideologia conservadora vigente e não pelo fogo que o amor de Deus acendia no coração das autoras13. Conclui-se, assim, que a cultura das letras traduz efectivamente um traço identitário da vivência espiritual da clausura feminina na Idade Moderna, pelo que esta realidade promete disponibilizar um profícuo campo de análise para os Estudos de Género14. Não é                                                                                                                         11

D. Francisco Manuel de Melo, no Apólogo Dialogal Hospital das Letras, tece um comentário claramente depreciativo a propósito de um escrito de Soror Violante do Céu, “feito público por D. Leonardo; ambas as cousas a meu juízo escusadas por decoro de duas pessoas religiosas interpostas nesta discreta ociosidade” (Apólogos Dialogais, vol. II – Escritório Avarento e Hospital das Letras, Prefácio e Notas do Prof. José Pereira Tavares. Lisboa: Sá da Costa, 1959, p.186). 12 Este incentivo masculino materializava-se muitas vezes nos textos encomiásticos que precediam a maioria das obras impressas, o que comprova que, apesar da reclusão, as monjas conseguiam ter acesso directo ou indirecto à sociabilidade masculina. O freirático assumiu-se, de resto, como um tipo social característico do século XVIII, ainda que Sóror Maria do Céu ameaçasse: “Todo aquele, que se atreve a pôr os olhos nas Esposas de Deus, merece que lhos tirem” (Obras varias e admiráveis. Lisboa: Manuel Fernandes da Costa, 1735, p. 53). No entanto, esse interesse desvaneceu-se à medida que as mulheres seculares foram conquistando um lugar cativo nos espaços sociais (Lopes: 60). 13 Cf. J. Cardoso, Agiológico Lusitano dos Santos. Consagrado aos Gloriosos S. Vicente, e S. Antônio, insignes Patronos desta ínclita cidade de Lisboa, Tomo III. Lisboa: Oficina Craesbeekiana, 1652. (Edição facsimilada de Maria de Lurdes Correia Fernandes (2002). Porto: Faculdade de Letras. p. 345). 14 A antologia de textos de Elaine Showalter, The New Feminist Criticism. Essays on Women, Literature and Theory (1985) propôs uma “revolução crítica feminista”, que teria essencialmente duas frentes de batalha: a demonstração da especificidade do olhar da leitora e da crítica (no feminino), mais atento a perspectivas e interpretativas negligenciadas; e a divulgação de escritoras esquecidas ou silenciadas pelo cânone. Este tipo de abordagem debruça-se, pois, sobre as representações literárias da diferença sexual, quer no domínio genológico, quer no âmbito da metaliteratura, de modo a estabelecer o género e o espaço do feminino como categoria fundamental nos estudos literários. A escrita conventual feminina oferece, pois, vasta matéria para as duas linhas de investigação, não só porque permite conhecer melhor a tipologia textual preferida pelas autoras,

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esse, todavia, o princípio orientador deste trabalho, uma vez que implicaria uma análise mais aprofundada, mediante a aplicação da complexa metodologia já definida por K. Ruthven15. Pretende-se apenas mostrar em que medida a obra-prima de Leonarda Gil da Gama16 se destacou inter pares pela originalidade com que soube adaptar modelos convencionais. De facto, tendo como ponto de referência o enquadramento histórico-social que acolheu a produção do Reyno da Babilónia, facilmente se percebe que este fruto poético nasceu de uma árvore enraizada num determinado solo e sujeita a condições atmosféricas muito específicas. Concretizando, é óbvio que a condição feminina e o estatuto eclesiástico condicionaram a priori o universo temático de Soror Madalena da Glória; tal como é evidente que os princípios estético-literários do Barroco influenciaram as suas opções estilísticas e formais. Daí que a obra se apresente como um Discurso moral, que recria os episódios de uma novela pastoril ao longo de dezasseis capítulos, todos introduzidos por um emblema17 explicativo do seu conteúdo. Assim, o percurso sugerido pelas composições linguísticovisuais acompanha o desenrolar do enredo, a partir do momento em que os passos de Angélica (Alma) se cruzam com o Filho do Supremo Imperador (Cristo). Este apaixona-se de imediato pela rara beleza da aldeã e mostra-se disposto a enfrentar todos os desafios para a                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     maioritariamente desconhecidas, como lança novas pistas sobre o sistema literário coevo. Tomemos como exemplo a aplicação desta perspectiva ao caso paradigmático da professa mexicana Sor Juana Inés de la Cruz (1651-1695), que sempre defendeu o princípio da igualdade entre sexos no acesso à Cultura e foi considerada uma das precursoras do feminismo, pelo que deu origem à colectânea editada por Stephanie Merrim (1991). Feminist Perspectives on Sor Juana Inés de la Cruz. Detroit: Wayne State University Press. 15 K. K. Ruthven (1991). Feminist Literary Studies. Cambridge: Cambridge University Press, p. 24: “Feminism criticism is a scanning device in this sense: it operates in the service of a new knowledge which is constructed by rendering visible the hitherto invisible component of ‘gender’ in all discourses produced by the humanities and the social sciences.” 16 Pseudónimo anagramático de Soror Madalena da Glória, filha de Henrique Carvalho de Sousa, Provedor das Obras do Paço de Sintra, e de D. Helena de Távora. Barbosa Machado indica que a menina teria nascido no ambiente áulico do Palácio Real de Sintra (11.05.1672), mas o Termo de preguntas feitas a Magdalena Eufémia de Vilhena, antes de professar no Seráfico Convento de Nossa Senhora da Esperança, declara-a natural de Lisboa (Reis: 9). Segundo o testemunho da Biblioteca Lusitana (III, 1933:158), a autora cultivava o ideal de otium cum dignitate, dedicando o seu tempo livre a “devotas composições onde se admiram felizmente unidas elegância do estilo, sublimidade de juízo, ternura de afectos e cópia de pensamentos discretos”. No entanto, só em 1733 publicou a primeira obra, dando início a uma série de produções de temática religiosa que, para além dos títulos já citados, inclui o Reyno de Babylónia, ganhado pelas armas do Empyreo (Lisboa, Pedro Ferreira, 1749) e o Obséquio de uma alma devota (Ms.). O Dicionário Bibliográfico Português confirma estas informações, acrescentando a afinidade estilística com a companheira de clausura, Soror Maria do Céu, e uma breve recepção crítica acerca da autora, que o público contemporâneo tinha agraciado com o epíteto de “Fénix dos engenhos”. Condena, no entanto, o “estilo esquisitamente conceituoso e metafórico”, que obedecia aos princípios estéticos da época em que floresceu, mas rapidamente foi ultrapassado pelas novas tendências (t. V, 1860:345). 17   Estas composições tripartidas, constituídas por lema/figura/epigrama, foram inicialmente criadas para serem reutilizadas nas artes decorativas e nas manifestações de arte efémera, como confessa Alciato no prólogo do Emblematum liber (1531). Cedo, porém, se transformaram num profícuo catálogo de motivos para educadores, pregadores, políticos e intelectuais, pelo que foram usadas como instrumentos ao serviço do programa de acção social próprio da cultura europeia do século XVII, como conclui Maravall no estudo intitulado Teatro y Literatura en la Sociedad Barroca (1990).  

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conquistar, enfrentando uma série de tentativas infrutíferas. Finalmente, a donzela ganha força para vencer as suas fragilidades e torna-se digna de desposar o amado, com quem sobe ao trono do Empíreo, cumprindo o ideal cristão de purificação terrena. Com efeito, a obra de Leonarda Gil da Gama reproduz claramente os modelos da literatura conventual pós-tridentina, quer pelo enquadramento no subgénero didácticorecreativo, quer pela relação umbilical com os Pia Desideria (Antuérpia, 1624) de Herman Hugo (1588-1629). É sabido que o jesuíta belga alcançou larga difusão em terras lusitanas, pelo que os leitores facilmente reconheceriam os motivos temáticos e os quinze emblemas que a autora franciscana imita para recriar o trajecto da Alma, guiada pela mão do Amor divinus, em busca do caminho de volta à proximidade do Senhor18. Ainda assim, afigura-se-nos legítimo procurar traços singulares num livro totalmente consentâneo à orientação pragmática das publicações de carácter místico, ascético-moral e catequético, que pretendiam comunicar aos leigos as orientações dos decretos conciliares. Não esqueçamos que as Artes, em geral, e as Letras, em particular, com a intervenção morigeradora da sermonária, dos exercícios espirituais, dos catecismos e da hagiografia19, para além de narrativas ficcionais de leitura ético-moral, assumiram então um papel preponderante como veículos pedagógicos e mecanismos publicitários ao serviço da Fé. Importa ressalvar, no entanto, que a Contra-Reforma não pode ser “apontada como a causa determinante do Barroco, deve porém ser tida em conta como um dos elementos fundamentais                                                                                                                         18

Claramente sob a influência de Otto van Veen, os emblemas do jesuíta retratam o percurso inaciano de contemplação divina, recuperando a linguagem alegórica do Cântico dos Cânticos. Sob o título expressivo de Geminus Animae Poenitentis, Vota Animae Sanctae e Suspiria Animae Amantis, cada uma das partes contém quinze capítulos que repetem o modelo: imagem/ citação bíblica (lema)/ desenvolvimento/nova citação da Patrística. Esta estrutura reproduz o caminho percorrido pela Alma até encontrar o Divino Esposo, pelo que no primeiro livro surge entregue aos prazeres; no segundo, procura ajuda; e no último alcança a união com Cristo. Facilmente se reconhece neste itinerário as três etapas da ascese mística, que prevê a via purgativa (penitência), iluminativa (oração) ou unitiva (união com Deus). A feliz conjugação de gravuras descritivas das metáforas sagradas e de elegias piedosas ditaram o sucesso imediato desta antologia, que moldou a emblemática religiosa do século XVII, rica em elementos iconológicos imediatamente identificados pelo grande público (Almas, putti e corações) e cada vez mais despida de alegorias simbólicas, como conclui A. Spica (1996: 354). O livro foi alvo de inúmeras traduções e adaptações, tendo exercido uma clara influência também em Portugal, como atesta o estudo de Adriano Carvalho a propósito da versão simplificada de José Pereira Veloso, Desejos Pios de huma Alma Saudosa do seu Divino Esposo Jesu Christo (1687), que aproveita as gravuras e os lemas bíblicos originais. De matriz didáctica, a adaptação propõe uma “leitura dissolvente do conteúdo emblemático” na qual se sobrevaloriza a importância da meditação penitencial e eucarística (Carvalho: 192). 19 Maria de Lurdes Fernandes, para além de lembrar o significativo sucesso editorial do Catecismo e práticas espirituais de Frei Bartolomeu dos Mártires, sublinhou a extraordinária divulgação dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola no século XVII, quer no formato original, quer em versões adaptadas, como a Arte de orar de Diogo Monteiro, o Manual de exercícios espirituais, de Tomás de Villacastín, e os Exercícios Espirituais do padre Manuel Bernardes (Fernandes, 2000: 33).

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que estruturaram a ideologia, a sensibilidade e a temática” desse período (Aguiar e Silva: 485)20. Nesta perspectiva, impõe-se analisar o Reyno da Babilónia à luz do carácter instrumental da Literatura didáctico-recreativa, que veio acrescentar ao princípio horaciano de docere et delectare a função catártica do mouere21. A cultura das Musas assumia, assim, uma dimensão perlocutória com base na sedução dos sentidos, ou seja, usava o poder da imaginação para purgar as almas através do “deslumbramento deleitoso suscitado pelos artifícios retóricos mobilizados na construção do discurso engenhoso” (Pires: 23). Não admira, portanto, que o discurso moral de Soror Madalena da Glória tenha tomado a forma de um subgénero narrativo ficcional de particular fortuna no barroco português, especialmente no universo feminino, a novela alegórica pastoril (Moreira: 36)22. De facto, a obra encena o relacionamento amoroso de Angélica e do Príncipe com base numa representação alegórica da alma que reproduz um modelo já explorado na Literatura nacional pelo Bosco Deleitoso e pelos autos vicentinos, no entanto, este dispositivo tropológico assume no contexto pós-tridentino uma função crucial enquanto instrumento de dominação ideológica para veicular uma mensagem conservadora e direccionada, através de um formato mais apetecível. De resto, a opção da freira do Convento da Esperança enquadrase perfeitamente na generalizada tendência barroca para a alegorização da arte (Hatherly: 71), como estratégia de persuasão emotiva. Cumpre, porém, salientar que a autora foi mais longe na utilização da linguagem icónica ao serviço da ideologia moral, uma vez que aplicou os emblemas, considerados por Emílio Orozco o “género preferido para la expresión del pensamiento filosófico, político y moral del Barroco” (Orozco: 51). A revalorização da iconografia constitui, de facto, um dos traços mais marcantes das manifestações artísticas seiscentistas, que acompanharam a reacção contra-reformista à iconoclastia Protestante, no sentido de enfatizar a utilidade prática da demonstração visual dos feitos históricos e dos textos bíblicos, a título de estímulo e exemplo, ao mesmo tempo que se apostava no carácter espectacular do culto para garantir a adesão dos fiéis (Sebastián:14).                                                                                                                         20

Acreditando no papel social da arte no período barroco, associado ao movimento da Contra-reforma, Maravall assinala todo um “sistema práctico” posto em marcha para “reformar, enmendar y corregir las costumbres de los hombres” (Maravall: 138). 21 Como afirmou Aníbal Pinto de Castro, “a criação poética não era considerada uma actividade estética, meramente lúdica ou evasiva, antes visava uma explícita função social, de intenção formativa no plano ético, tanto ou mais importante que a sua finalidade estética” (Castro: 25). 22 Não importa aqui discutir a definição do conceito de alegoria nem a classificação genológica da obra, no entanto, convém salientar que, apesar do evidente tratamento alegórico do conteúdo moral e religioso, é possível identificar no Reyno da Babilónia a miscigenação de elementos estéticos que remetem para outras formas literárias, nomeadamente as novelas pastoris e sentimentais, as narrativas de viagem, os livros de emblemas e o processo de transformação “a lo divino” (Moreira: 65).

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Daí que a opção de articular discurso alegórico e emblemas revele invulgar perspicácia da professa, porque não só atesta o cabal domínio das diferentes técnicas semióticas como reflecte a total consonância com os pressupostos estéticos e pragmáticos da produção literária coeva ao serviço da evangelização do público23. Aproveitando o imaginário metafórico das novelas sentimentais que dominaram a escrita conventual feminina24, Leonarda Gil da Gama enriqueceu a estrutura textual alegórica com a incrustação de emblemas, de forma a construir com materiais humanos um complexo monumento de culto divino. De facto, todos os componentes estruturais da obra potenciam uma leitura moralizante da linguagem simbólica à luz da espiritualidade cristã, uma vez que os elementos bucólicos prefiguram um apelo à vida contemplativa, a alegoria amorosa pressupõe uma concepção neoplatónica de amor fortemente divinizada e os emblemas ilustram a relação erótica entre Deus e a Humanidade. Este tipo de leitura bidimensional enquadra-se perfeitamente na definição que Sánchez Martínez propôs para a literatura “a lo divino”, dado que subentende um processo de transcodificação assente na substituição das referências humanas por realidades do universo sagrado e transcendente (S.M.: 23)25. Só no contexto da divinização genérica da novela pastoril se poderia aceitar a utilização da linguagem erótica por parte de uma religiosa, que usa a alegoria com intuito piedoso. Apesar de essa ser uma prática poética vulgarizada a partir da sua consagração no Cântico dos Cânticos, não seria muito ortodoxo para os mais conservadores colocar essa apologia do amor sublimado na boca de uma mulher.26                                                                                                                         23

Note-se que se entendermos a alegoria como dispositivo tropológico que implica um abrangente processo de representação de uma ideia abstracta por elementos concretos mediante o exercício analítico de decifração da linguagem imagética de natureza convencional (Kothe, 1986: 16), este recurso aproxima-se da representação emblemática na medida em que transmite uma mensagem literal e outra de sentido figurado. 24 Por oposição ao desgastado paradigma cavaleiresco privilegiado pelos autores masculinos, a sensibilidade feminina identificou-se mais com a tranquilidade pastoril, que encenava o retorno à época de ouro e formulava um apelo à pacificação interior através da perfeição natural das suas paisagens tópicas. O estudo de Micaela Moreira aponta a encenação de um percurso de purificação da alma como estratégia comum na literatura religiosa feminina com base na ambivalência pastoril lúdica e didáctica, a partir de uma amostra constituída por: Reino da Babilónia, A Preciosa e os Enganos do Bosque, Desenganos do Rio de Soror Maria do Céu. Comprova, assim, que esta concepção atemporal da existência se adequava totalmente à mundividência cristã, que entende a terra como morada temporária e concentra as atenções na vida eterna (Moreira: 72). 25 Esta transformação designada por Wardropper como Contrafactum pressupunha dois tipos de intervenção: a efectiva alteração de textos no sentido da reparação construtiva - divinização textual; e a simples adaptação de temas e géneros - divinização temática e genérica. De qualquer modo, consubstancia uma forma de censura pós-tridentina sobre a arte profana, ao mesmo tempo que concretiza uma estratégia proactiva de catequização (Wardropper: 328). Recorde-se, a propósito da dimensão deste fenómeno, que Helmut Hatzfeld considerou a migração da linguagem simbólica entre a esfera do profano e plano do sagrado como um dos aspectos mais significativos da literatura ocidental, desde a poesia provençal (Hatzfeld: 172-173). 26 Lembramos, por exemplo, que Frei António de Almada publicou os Desposórios do espírito celebrados entre o divino amante e sua amada Esposa a Venerável Madre Soror Mariana do Rosário, religiosa de véu branco no convento do Salvador da cidade de Évora, a partir do relato pessoal da religiosa (Lisboa: Manuel Lopes Ferreira, 1694).

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Não deixa, por isso, de ser muito significativa a inclusão de emblemas no Reyno da Babilónia, cujas gravuras contribuem activamente para a materialização do relacionamento erótico heterossexual aos olhos dos potenciais leitores. A recepção criativa do Emblematum liber em Portugal tem sido avaliada, comparativamente ao que se registou noutras regiões periféricas, como um fenómeno “modesto, tardio, frustrado e derivativo” (Amaral: 2). No entanto, os catálogos bibliográficos e os testemunhos literários atestam a divulgação da obra em território lusitano27, bem como a franca circulação de antologias sucedâneas28, sobretudo de temática religiosa29. Não faltariam, pois, a Leonarda Gil da Gama modelos inspiradores no âmbito da literatura emblemática, mas a autora escolheu claramente uma das obras mais influentes no panorama intelectual português, os Pia Desideria Emblematis Elegiis et affectibus. Essa relação intertextual foi, de resto, salientada por Inocêncio Silva ao descrever o fólio “com estampa no frontispício e mais dezasseis gravuras alusivas aos assuntos de outros tantos capítulos em que divide esta espécie de romance moral e alegórico, cujo fundamento, ou primeira ideia se encontra na obra do jesuíta Hermano Hugo” (Silva, 1860: 345). Parece, por isso, ser evidente o objectivo pedagógico de Soror Madalena da Glória, tal como salienta Maravall, a propósito do papel determinante desempenhado pelas “palavras ilustradas” na resposta à crise social, política e religiosa que sucedeu ao período renascentista, dando como exemplo a acção preventiva do teatro e dos emblemas na educação das elites                                                                                                                         27

Leite de Vasconcelos elaborou uma longa lista dos exemplares existentes em Portugal, tanto em bibliotecas públicas como particulares (Vasconcelos: 9-10). 28 Nomeadamente os Emblemata et aliquot nummi antiqui operis (1564) de Sambuco, os Emblemata de Hadrianus Iunius (1565), e a Iconologia de C. Ripa (1593). A par destas miscelâneas, foram surgindo também recolhas mais homogéneas, por exemplo de ordem ética, como os Emblemas morales de S. Orozco Covarrubias (1589), de grande influência na Península Ibérica, e o Theatro Moral de la vida humana en cien emblemas tradução espanhola do livro de Otto Vaenius, Q. Horatii Flaccii Emblemata (1607), publicada pela primeira vez com esse título em 1672 (Brussselas: Francisco Foppens). Menor difusão parecem ter tido as colectâneas amorosas, ao contrário da matéria religiosa, naturalmente favorecida pelo contexto contra-reformista. No domínio da temática política, chegaram ao nosso país os Emblemata ethico-politica de Johan Kreihing (1661), bem como a famosa obra de Juan de Solorzano Pereira, Emblemata centum, regio-politica (1653). Além disso, a popularidade do género acabou por abrir as fronteiras nacionais a subgéneros emblemáticos como as Devises heroïques (1551) de Claude Paradin, Le imprese illustri (1566) de Girolamo Ruscelli, as Imprese illustri (1586) de Camillo Camilli e o Teatro d’ Imprese (1623) de G. Ferro. No domínio religioso, as empresas foram adaptadas à glorificação da gesta hagiográfica, de acordo com o modelo das Imprese sacre do teatino Paolo Aresi, publicadas em sete volumes de 1615 a 1635. Não conhecemos os contornos da repercussão desta obra em Portugal, porém, um dos seus contemporâneos, Juan Francisco de Villava, organizou uma recolha de grande significado para a história da espiritualidade ibérica pós-tridentina, Empresas espirituales y morales (1613). Igualmente familiar à elite culta portuguesa, então sob o domínio espanhol, seria a antologia de J. Typotius, Symbola divina et humana (1601-1603), que mistura as características das recolhas heróicas e dos catálogos monásticos, bem como a Idea de el buen Pastor (1682) de Nuñez de Cepeda. Este parece ter sido um dos modelos seguidos por Frei João dos Prazeres, o primeiro autor português a usar a estrutura emblemática tripartida numa obra impressa, como se pode verificar nos dois tomos do Príncipe dos Patriarcas (1685 e 1690). 29 Por exemplo, a Via vitae aeternae iconibus do Jesuíta Antoine Sucquet (1620), que reproduz o itinerário ascético de um jovem peregrino, ou a Introduction à la vie devote de S. Francisco de Sales (1608). Tal como Alciato tinha atribuído uma carga moral à mitologia e hieróglifos numa perspectiva didáctica, assim os autores católicos souberam imprimir uma interpretação teológica aos seus emblemas de carácter catequético.

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políticas e eclesiásticas. Consciente do efeito persuasivo dos recursos iconográficos, amplamente comprovado pelas manifestações artísticas contemporâneas, a religiosa reconheceu a superioridade da visão na Era Moderna pelo seu papel de informadora da alma e intermediária dos afectos, daí que fosse o estímulo mais eficaz para a actividade intelectual (Maravall, 1990ª: 505). Além disso, a imagética simbólica dava acesso a uma linguagem universal, cujas potencialidades foram amplamente exploradas pelo movimento religioso contra-reformista, promovendo um processo de cristianização que deu origem ao fenómeno de “emblemática a lo divino” fortemente impulsionado pela instrumentalização jesuíta (Rodríguez de la Flor: 58). Importa, porém, frisar que a proliferação de antologias, maioritariamente compostas por servos da Companhia de Jesus, contribuiu para a auto-destruição da literatura emblemática, uma vez que se acentuou a tendência para usar as gravuras com mera função decorativa (Praz: 170), provavelmente para limitar a liberdade interpretativa dos leitores, como pretendiam os catecismos ilustrados publicados na sequência do Concílio de Trento (Spica: 357). Não nos parece, todavia, que os emblemas do Reyno da Babilónia tenham uma função meramente ilustrativa. Pelo contrário, se considerarmos o forte investimento retórico nesta obra de finalidade didáctico-moral, torna-se evidente que estes mecanismos logo-icónicos desempenham um papel estrutural ao serviço da dispositio e da elocutio. A nível formal, cada uma das composições resume o conteúdo do capítulo respectivo e determina a sua sequência lógica. Enquanto recursos da arte de mouere, é inegável que os emblemas seduzem intérpretes de diferentes níveis de erudição para o jogo de decifração semântica, construído pela articulação entre figura, lema e quadra, pois o seu verdadeiro sentido metafórico só é esclarecido pela leitura conjunta da narrativa e das notas, que orientam o leitor na descodificação do sentido moral das composições30. Por conseguinte, o contributo das composições emblemáticas em termos de ludicidade, beleza e efeito persuasivo afigura-se-nos indiscutível, sobretudo numa publicação em que se torna particularmente expressiva a finalidade de conquistar o grande público, patente, desde logo, na indicação em página própria sobre os locais de venda. Além disso, a dedicatória de Reinério Bocache ao Senhor Francisco Ferreira da Silva, cavaleiro professo da Ordem de Cristo é sintomática do investimento colocado na divulgação deste fruto da “ilustre e discreta autora”. Primeiro porque a intervenção do prestigiado editor da Crónica do Felicíssimo Rei de                                                                                                                         30

Umberto Eco assinalou o reinado da arte emblemática no Barroco, associando essa hegemonia a uma necessidade pragmática de transmissão e fixação de sentidos, uma vez que o comentário conduzia inevitavelmente à decifração mais exacta de cada figura, de modo a extrair uma única e só moral (Eco: 153).

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Damião de Góis sugere o interesse comercial da obra; depois porque o pedido de protecção dirigido a tão nobre figura “para que todos a leiam com estimação, e vejam com respeito” denota o cuidado de preservar a modéstia e a privacidade da religiosa, a quem não ficaria bem a procura de patrocínio. Por outro lado, o apoio das autoridades à produção ascético-mística das franciscanas do Convento da Esperança ganha neste caso peculiar entusiasmo verbal, dado que as Licenças inquisitoriais tecem elogios mais expansivos que o habitual31. Ainda que feitas as devidas reservas ao carácter estereotipado deste tipo de aprovação, não deixa de ser significativo, porém, o discurso apologético do Consultor do Santo Ofício em defesa das qualidades morais e literárias da “disfarçada” autora em particular, e das mulheres em geral, o que comprova a desconfiança discriminatória reinante. Reveladora será igualmente a comparação da “famosa serrana” de Cintra à célebre Juana Inês de la Cruz, cujo valor competia “com o gigante engenho do incomparável Vieira”. Este elogio à pioneira do feminismo claustral depreende, pois, uma perspectiva vanguardista pouco comum nos revisores, na medida em que incentiva a circulação das Artes e das Ciências “das Aulas aos estrados, das disputas e literárias fadigas aos enleios do espelho e almofada”. Para além dos louvores à discreta compositora, não deve ser ignorado o enfoque destes textos na finalidade ascética e morigeradora da obra32, que veicula uma “doutrina muito clara, e sublime” apesar da “matéria enigmática, e parabólica”. Este comentário do Qualificador do Santo Ofício reitera a ideia de que os artifícios literários aplicados em nada prejudicaram o entendimento do conteúdo ideológico. Causa, por isso, certa estranheza que no domínio técnico seja referido o contributo da alegoria para “combater o fastio do coração humano, ou desterrar a náusea”, bem como o suave concurso das expressões líricas, mas nada se diga dos                                                                                                                         31

Micaela Moreira defende a pertinência da análise conjunta aos paratextos da obra para a apreciação do seu contexto de produção e recepção, pela sua função pragmática de criar acessibilidades ao texto numa espécie de protocolo de leitura. Conclui, assim, que a alegada relutância na publicação sugerida pelo uso do pseudónimo e pela dedicatória é desmascarada pelo Prólogo ao leitor, em que a autora seduz os interlocutores através da captatio beneuolentiae com base nos topoi da modéstia e da justificação por antecipação (refutatio). Além disso, as opiniões oficiais da Igreja e do Estado comprovam a evolução que estes textos foram sofrendo no sentido da subjectividade e da prolixidade, pelo que se aproximam de discursos propagandísticos com vista à afirmação pessoal dos censores através dos comentários eruditos. Os textos encomiásticos, por sua vez, configuram uma estratégia publicitária convencional, que revela a estreita relação entre o convento e a sociedade culta. Lembre-se que a correspondência literária entre professas e poetas era uma prática comum, bem como a troca epistolar na rede monasterial, de que é exemplo o louvor redigido por D. Joana de Noronha, freira no Convento de Santos-oNovo, a quem Soror Madalena da Glória dedicou a primeira edição de Brados do desengano em 1736 (Moreira:181). Sobre os autores destas composições laudatórias e seu conteúdo, veja-se o estudo introdutório de Ana Reis (p. 17 sgs.). 32 Frei Tomás de São Joseph acentua a proveitosa utilidade do livro nestes termos: “nele acharão todos para a reforma dos costumes um grande incentivo; para a firmeza da Fé uma forte coluna, para crédito da Nação uma mortal glória, e para o Catálogo das Heroínas Portuguesas mais esta sapientíssima Pastora”. Este intuito morigerador estava de resto implícito nas características genéticas do discurso moral.

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emblemas, porque seriam talvez um dos expedientes mais marcantes do “estilo cortês” que o censor descreve. Postura bem diferente manifesta a autora no breve prólogo que dirige ao leitor, pois segue o conveniente topos da modéstia na apresentação da obra com que a “pena entreteve a melancolia”, mas apela precisamente a que os seus intérpretes memorizem “o que expõem aos olhos o misterioso das pinturas”, lembrando que “nunca ficam de morte cor as estampas, que já levam rectas as primeiras linhas”. Apesar deste destaque do mal disfarçado punho autoral, que atesta, como já tínhamos referido, a sua clarividente sensibilidade ao poder da linguagem visual, nenhum dos inúmeros encómios poéticos concedeu especial atenção aos dispositivos logo-icónicos. Nota-se efectivamente uma certa tendência para minimizar o valor estrutural dos emblemas no Reyno da Babilónia, equiparando-os a um estatuto passivo de meras ilustrações, como já indiciava o comentário do Dicionário Bibliográfico33. Afigura-se-nos, porém, injusta esta interpretação amputada das composições, uma vez que para além das picturae34 e das inscriptiones herdadas de H. Hugo, apresentam quadras no lugar da canónica subscriptio, formando assim a tradicional estrutura tripartida. Parece-nos, pois, que este “processo de captação do público” (Moreira: 321) merece um olhar mais atento, não só pelo valor individual de cada emblema, mas também pelas relações intertextuais que estabelece com o enredo da novela alegórica35. A convicção de que o conjunto de elementos icónicos se reveste “de uma dimensão significativa cuja importância não deve ser menosprezada” (Moreira: 142) é reforçada pela                                                                                                                         33

Citamos, como exemplo desta perspectiva, a descrição de Micaela Moreira, que identifica claramente a natureza emblemática das composições mas não as considera como um todo: “A novela propriamente dita consta de dezasseis capítulos, todos antecedidos por uma gravura, um brevíssimo resumo explicativo do seu conteúdo e uma quadra introdutória. As gravuras a que se faz referência são quase todas reproduções de algumas das que se encontram no livro de emblemas escrito em latim pelo padre jesuíta Hermano Hugo, intitulado Pia Desideria. Apenas são originais as gravuras do frontispício e do décimo sexto e último capítulo. A gravura inicial está assinada por Debrie; as restantes não têm qualquer referência ao artista gravador que as terá estampado.” (Moreira: 139). Corrija-se que as cinco primeiras ilustrações estão assinadas pelo mesmo gravador. 34 Não se conhece ao certo a data de nascimento do pintor parisiense, Guilherme Francisco Lourenço Debrie, discípulo de Bernard Picart, que Bénézit identifica com a Escola Flamenga, acrescentando a possibilidade de ter um filho homónimo, cuja obra pictórica se confunde com a do pai (Dictionnaire critique et documentaire des peintres, T. III, 1961: 87). Sabe-se que foi convidado por D. João V para trabalhar em Portugal como desenhador e gravador, tendo produzido cerca de oitocentas estampas, entre retratos, portadas, livros, vinhetas, capitais, registos de santos, alegorias e fechos de páginas. Os biógrafos situam a sua actividade entre 1729 e 1754, tendo colaborado com obras de renome como A História Genealógica da Casa Real Portuguesa, de D. António Caetano de Sousa e a Biblioteca Lusitana (Cf. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. VIII, 1998: 430-431). Foi um dos gravadores e retratistas de maior sucesso no séc. XVIII português, sendo significativa a sua participação no Reino da Babilónia, cujas gravuras não figuram no Catálogo das estampas gravadas por Guilherme Francisco Lourenço Debrie, publicado por José Zeferino de Meneses Brum (Rio de Janeiro, 1908. Edição online: http://www.archive.org/stream/3478309#page/114/mode/2up, acesso em 6/10/2011). 35 Note-se que o discurso erótico presente na obra pressupõe uma concepção neoplatónica da relação amorosa de natureza espiritual, uma vez que o objecto de desejo é a união com o divino, representada em termos profanos para seduzir os leitores. Daí que esse relacionamento esteja direccionado para a celebração

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certeza de que Leonarda Gil da Gama conhecia bem o “horizonte de expectativa” dos seus leitores. Como preconiza a expressão divulgada por Jauss no seu ensaio nuclear (A Literatura como Provocação, 1970), a franciscana escreveu para um determinado público, de acordo com o sistema de referências contextuais e a experiência literária do género. E como o ideal barroco da persuasão assentava no convencimento emocional dos sentidos, convocou todos os recursos retóricos para “mover os afectos e deleitar, comovendo, pelo patético” (Castro: 29). O discurso sensual, a psicomaquia moral, o convencionalismo das personagens e a indefinição crono-espacial favoreciam, assim, a empatia com as vivências humanas, pautadas pela hesitação e pela inconstância sentimental. No entanto, o maior estímulo para o grande público, sobretudo o menos instruído, seria provavelmente produzido pelos mecanismos logo-icónicos, tendo em conta que o suporte visual do ideário foi largamente aproveitado na época barroca, sobretudo pela Literatura e pela religião, dando lugar a um fenómeno de instrumentalização da emblemática “a lo divino” que se manifestou entre católicos e protestantes, todos eles cientes do seu extraordinário poder comunicativo (Egido: 32). A “Fénix dos engenhos” tinha certamente contacto próximo com a linguagem simbólica, daí que a inegável fidelidade aos emblemas do jesuíta belga indicie uma intenção propositada de aproveitar o sucesso do original para publicitar a sua obra. Importa salientar também que a sua selecção no corpus de H. Hugo não foi de todo aleatória. Ainda que nos primeiros nove episódios siga de perto a ordem primitiva, nos seis seguintes a busca alargou-se aos segundo e terceiro livros dos Pia Desideria, pelo que é evidente a predilecção pelo primeiro momento da obra e o repúdio pelas gravuras mais macabras36. Não seria decerto apenas uma questão de sensibilidade feminina; na verdade, a autora procurou uma perspectiva amenizada do discurso soteriológico que conduz à Vida Eterna. Com base no leitmotiv da oposição aparência/engano, uma distinção filosófica que afectou profundamente a mundividência coeva, a religiosa do Convento da Esperança tratou temas fulcrais como o “amor-próprio”, “a volúpia” e “a soberba”, de modo a formular um apelo à moderação, através de uma dura batalha interior que conduziria a um processo de regeneração pela penitência. Ora, este caminho torna-se, sem dúvida, mais premente quando contemplamos os emblemas do Reino da Babilónia, que funcionam como chave-mestra para a leitura alegórica e para o entendimento místico do discurso moral. Ao contrário do que                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     matrimonial, pelo que a ambiguidade das metáforas amorosas deve ser sempre dirimida no contexto da doutrina cristã e dos bons costumes. 36 São, de facto, mínimas as alterações efectuadas nas gravuras, embora se note uma tendência generalizada nos quadros de Debrie para representar figuras mais adultas, em poses mais ousadas, e com ligeiras alterações na disposição das figuras humanas (cap. 1, 3 e 4).

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acontece na narrativa hagiográfica do Príncipe dos Patriarcas, as composições não vêm acompanhadas de uma glosa desmistificadora de sentidos, pelo que o leitor é forçado a uma postura mais activa. Observadas isoladamente, as picturae desenham uma “intriga de direcção quase linear” (Moreira: 327), no entanto, é preciso não negligenciar a interacção destas imagens com a linguagem verbal nos seus diferentes formatos. No seio de cada uma das dezasseis unidades orgânicas complexas, o elemento icónico articula-se com o lema latino (inscriptio) e com a quadra expositiva (subscriptio), no entanto, esse composto relaciona-se ainda com o título/legenda em português e com o texto central, que muitas vezes incorpora composições líricas. Ora, a constatação de que a estrutura tripartida do emblema cristalizada por Alciato corresponde perfeitamente ao molde nuclear de cada composição de Leonarda Gil da Gama contraria a suposição de que as estrofes seriam apenas um resumo antecipatório dos capítulos sucessivos (Moreira: 365). Parece-nos, por isso, mais pertinente considerá-las parte constituinte de um composto logo-icónico, como procuraremos demonstrar em pormenor. Por outro lado, em vez de analisar as estampas como se fossem mero aparato visual, a apreciação holística de cada emblema permite perceber a sua dimensão sedutora, o seu valor estético, a sua funcionalidade pragmática e o seu contributo didáctico, uma vez que prende o olhar do leitor, conquista a sua simpatia, aguça a curiosidade intelectual e fornece pistas de leitura sobre a narrativa. No primeiro capítulo, a imagem reproduz um típico cenário pastoril, em que se movimentam os protagonistas, também eles com posturas estereotipadas – a jovem mulher corre em busca de socorro, o Príncipe transmite serenidade e aponta o caminho do Altíssimo. Neste quadro, ressalta o simbolismo luminoso da candeia e da auréola que assinalam o carácter divino do esbelto mancebo. Esses pormenores da gravura só podem ser compreendidos à luz do lema, que aponta o sentido místico da busca nocturna da alma, reforçado pelo título do capítulo. A quadra, pelo contrário, reforça a leitura alegórica da imagem, depois desenvolvida pelo texto narrativo. Neste emblema, a inscriptio esclarece o sentido figurado da Alma perdida; e a subscriptio, por sua vez, antecipa a linguagem metafórica do enredo amoroso, explorando a ambiguidade da antítese ‘noite/luz’ e a promessa de um amor regenerador. Assim sendo, o engenhoso artifício dos emblemas conduz o leitor simultaneamente em dois planos semânticos distintos: o alegórico, sugerido nas quadras e

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amplificado no relato novelesco; e o ascético, insinuado pelo lema e descodificado nas notas marginais37. O episódio seguinte repete a estrutura e o mesmo tipo de representação, embora a mulher assuma aqui um aspecto mais grotesco. Ponto comum aos três constituintes do emblema é a oposição insipientia/pudor, algo diluída no salmo, mas bem evidente na gravura, que coteja a jovem carregada de acessórios de luxúria e o mancebo de cara escondida, apontando para o Céu. Também o quarteto aposta nos lexemas de significado afim (‘recato’, ‘vaidade’, ‘fantasma’, ‘ídolo’), salientando a falsidade da vida hedonista de Angélica, depois descrita em detalhe pelo texto narrativo. De novo se verifica que a subscriptio opta por um discurso alegórico que só pode ser entendido no seu sentido religioso em articulação com o lema bíblico, à luz da imagem. O mesmo acontece com o capítulo terceiro, cuja pictura recria uma cena conjugal em tudo semelhante a uma vivência profana, se não fosse a presença das asas e do resplendor do jovem a corroborar a leitura divinizada que a inscrição do salmo imprime. De facto, o ambiente interior sugere uma aproximação entre os protagonistas do amor, mas a quadra acentua a relação entre “paciente febril” (moralmente perturbada) e “médico” (Salvador) para justificar o carácter intimista da situação dramaticamente explorada no texto em prosa. O quarto emblema é o primeiro a infringir a ordem de H. Hugo, introduzindo também leves alterações no modelo primitivo que agudizam o sensualismo do quadro, nomeadamente a inversão espacial dos amantes e a compleição atraente do ser divino, disfarçado de soldado armado. Esta pose contrasta com a da mulher rendida, que larga a espada num gesto de total capitulação perante a soberania do amor. A típica peleja entre dois seres apaixonados é enfatizada pelos quatro decassílabos, pois destacam “os duros golpes” desse sentimento e o inevitável “render de armas”, pelo que só a introdução das palavras de Job permite ao leitor perceber que se trata da contrição da Alma pecadora perante o divino Príncipe. Mais significativas são as alterações na gravura do capítulo seguinte, que transferem a representação da fragilidade terrena para um espaço aberto, onde a mulher sopra o pó com que o oleiro molda uma figura feminina38. Este quadro mundano é revestido de sentido                                                                                                                         37

A autora direcciona a liberdade interpretativa, de acordo com os princípios do movimento contrareformista de que era agente operacional, enquanto professa. Daí que veicule uma mensagem conservadora e dirigida, que reflecte o estereótipo feminino vigente (conotado com a incerteza e debilidade de um ser que precisa de ser orientado), ao mesmo tempo que procura moldar os comportamentos devotos. A transmissão desta ideologia concretiza-se através de subtis mecanismos perlocutórios, que asseguram a complementaridade dos dois níveis de sentido, tendo em conta que “este funcionamento continuará sendo auxiliado por notas marginais que interagem com o texto central, forçando a descodificação pretendida” (Cruz: 24). 38 A partir deste ponto, é evidente a diferença na qualidade das ilustrações, de autor desconhecido, bem como a maior proximidade às figuras infantilizadas dos Pia Desideria.

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místico pelo lema que introduz o motivo do memento homo como clave de leitura da metáfora genesíaca da fugacidade humana, conjugada com a pá enterrada no campo. O simbolismo do barro que o artífice procura dissimular com forma efémera e aparente solidez é recuperado na quadra e logo retomado na narrativa. Este será um dos exemplos mais expressivos da articulação do composto logo-icónico com o enredo, tendo em conta que, na sequência da tentadora intervenção dos cinco sentidos, ministros da realidade aparente, surge o Príncipe, trazendo o pó como insígnia. Importa salientar, portanto, que no diálogo travado entre os protagonistas ecoam as duas interpretações sugeridas pelo lema e pela subscriptio, uma vez que Angélica reconhece na argila não só um signo da soberania divina sobre as criaturas como um representante do poder do Amor sobre os homens. O emblema VI contrasta com a harmonia do debuxo anterior pelo gesto de rejeição do Jovem celeste, que ilustra as palavras de Job. Os decassílabos associam o rosto voltado a um sinal de ciúme e esta leitura profana é acentuada pela narrativa, que recria a cena e dá forma de romance ao desespero da aldeã perante o desprezo do amado. O narrador convoca, porém, a Esperança para intermediar a reconciliação e restabelecer a confiança da pastora na misericórdia do Monarca, pelo que mais uma vez se cruza a mensagem mística com a trama erótica. A ameaça de abandono continua a dominar o capítulo seguinte, no qual assistimos ao pranto da figura feminina, diante de uma fonte e sob o olhar atento de um ser alado, que derrama sobre a amada cabeça a água purificadora, símbolo da renovação vital. Esta gravura ilustra perfeitamente o versículo de Jeremias, pela referência às lágrimas de pio arrependimento, mas a quadra versa sobre o choro da mulher como sinal de uma correspondência amorosa ameaçada. Além disso, a representação icónica introduz um terceiro elemento antropomórfico que a narrativa apresenta como a alegoria do Amor-próprio, um terrível obstáculo para o reconhecimento dos erros. Verifica-se, então, que o texto em prosa desenvolve todos os elementos semióticos contidos no emblema, explorando a ambiguidade linguística dos termos, de modo a transmitir simultaneamente duas mensagens complementares, a remissão dos pecados e o perdão dos amantes. Também a pictura do capítulo VIII desenha uma personagem alegórica, a Justiça, facilmente identificada pela tradicional venda e pela presença da espada e da balança. Pretende-se assim recriar a circunstância do Juízo Final, colocando de um lado a ré acompanhada pela cega figuração e do outro o divino Juiz, escoltado pela tábua dos Dez Mandamentos e com o dedo apontado para o Pai celestial. O lema colhido no Salmo penitencial de David (S. 143) traduz a consciência de que nenhuma alma escapa à Lei divina, no entanto, o mesmo cenário é entendido pelo quarteto de versos como um ajuste de contas 15    

entre os apaixonados, tendo em consideração os desagravos de Angélica. O discurso narrativo, por sua vez, opta por colocar a pastora num dilema entre os apelos do Mundo e do Espírito, e perante a sua indecisão face aos argumentos da banda negra e da banda branca, vem o Embaixador do amado salvá-la dessa armadilha maniqueísta, oferecendo-lhe um espelho em que finalmente se reconhece submissa ao Príncipe. Note-se que neste caso o cenário evocado pelo emblema funciona como pano de fundo da disputa entre Bem e Mal, não sendo propriamente desenvolvido o anunciado contexto forense. De qualquer modo, cumpre registar que esta concepção judicativa da culpa está omnipresente na primeira parte da obra, como se verifica no emblema seguinte, a propósito do resgate da descendente de Eva, perdida nas turbulentas águas do pecado, segundo aventa a passagem do Salmo 68. Também o quarteto de decassílabos refere a ameaça das “encrespadas ondas ” que ameaçaram a vida de Angélica até que o desengano do mundo lhe garantiu a tábua de salvação para resistir ao naufrágio dos males terrenos. A metáfora de profícua tradição literária subjacente à composição é depois amplificada pelo longo relato do narrador, que apresenta com detalhe o percurso da protagonista pela mão do Divertimento através dos perigos da vil Babilónia, nomeadamente a lisonja e a presunção, que a tornaram surda aos apelos da Verdade. Todavia, quando a pastora finalmente se apercebeu de que tinha sido atraída para o meio da tempestade, pediu socorro ao Príncipe que vigiava em terra firme e não tardou a salvá-la, cumprindo o desfecho antecipado pela subscriptio. Assiste-se, então, a um ponto de viragem no enredo, assinalado pelo dispositivo icónico que abria o segundo livro dos Pia Desideria, intitulado Os votos da alma santa. De acordo com o desejo de seguir as sagradas Leis manifestado no lema, a moldura é preenchida com três figuras humanizadas: à esquerda o representante do Amor divino segurando as iluminadas Tábuas, à direita o mitológico Cupido transportando o barro tentador, ao centro a jovem mulher, que volta costas ao filho de Vénus para se dedicar à disciplina cristã. Com esta opção, renuncia Angélica aos “precipícios para seguir os acertos”, como sintetiza o título, depois confirmado pela quadra, que anuncia a vitória da donzela sobre os perigos, guiada pelo “luzido farol da fé”. A psicomaquia é retomada pelo condutor da narração que introduz alterações nas insígnias39 dos combatentes e aprofunda a dimensão dramática da disputa esboçada com diálogos acesos e diversas composições líricas. Estes recursos enfatizam a                                                                                                                         39

Segundo o narrador, os Generais trazem por armas “abrasadas chamas” e “venenosas flechas”, tendo o amor divino como signo cénico um escudo azul, com uma esfera “e nela umas tábuas em que se divisavam dez cifras separadas com esta letra: Com estas Céu e Terra se conquista. O das flechas tinha no escudo pintado o Ar, escurecido de nuvens, e cheio de asas, com esta letra: Quanto mais venço mais voo.” (p. 143). Note-se aqui o

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mensagem sintetizada pelo emblema, onde a linguagem mística se entrecruza com o discurso alegórico para acentuar a conversão da bela pastora, que é confirmada na próxima composição logo-icónica. Na pictura surge uma mulher suplicante, que confia o seu coração ao embaixador dos caridosos Mandamentos para que seja purificado, como elucidam as palavras do salmo que compõem o lema. No entanto, esta entrega simbólica da penitente adequa-se também à rendição da amada, que finalmente troca a luxúria dos diamantes pela pureza do sentimento que o Príncipe há muito lhe dedicava, como comenta o quarteto em verso livre. Esta dupla interpretação é, de resto, largamente explorada ao longo do capítulo, que aproveita o cenário emblemático para nele situar quatro diálogos significativos. No primeiro, Aura interpela Angélica com o intuito de a seduzir com jóias. No segundo, o interlocutor é o próprio Príncipe, a quem a amada entrega o coração, reproduzindo a cena emblemática. No terceiro, a Formosura vem oferecer-lhe seus tributos e perante a hesitação da pastora, o Amado envia um sábio Ancião para a chamar à razão e reconduzir ao bom caminho. A confirmação dessa mudança de atitude é ilustrada no capítulo XII, que, respeitando a ordenação original de H. Hugo, apresenta a natural consequência da conversão de Angélica, na medida em que materializa a renúncia mundana no abandono da cidade. Esta imagem expressiva dos dois pastores que transpõem as portas urbanas toma como lema a atitude paralela entoada no Cântico dos cânticos e serve de mote a uma prudente reflexão na subscriptio, em que se aconselha o afastamento dos perigos como estratégia de prevenção. Partindo do elogio da simplicidade campestre como lugar predisposto para a vivência do Amor puro, o discurso narrativo dramatiza o pedido de Angélica para deixar a cidade, depois de o Embaixador da Verdade lhe ter mostrado através de um cristalino globo a total destruição das glórias de Babilónia. Posto isto, recupera-se o lema da composição emblemática através de umas expressivas endechas alusivas ao paraíso rural, e o capítulo termina com a partida do casal de mãos enlaçadas, como se tinha antevisto na gravura. Esta encenação manifesta a feliz aproximação dos protagonistas que finalmente parecem ter chegado ao entendimento, mas contrasta com a mensagem logo-icónica do capítulo seguinte, que traz para o centro do espaço visual um leito vazio, ao lado do qual uma mulher de candeia na mão traduz a atitude angustiada de quem procura o companheiro desaparecido. Importa salientar que a autora selecciona novamente uma cena conjugal, na intimidade do quarto, que só pode ser entendida no sentido ascético-místico à luz da                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     emprego da rebuscada técnica de mise en abyme que projecta o significado destas empresas pintadas no plano da narrativa, uma vez que se antecipa o desfecho do duelo entre Eros e Anteros.

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inscriptio, reveladora da demanda espiritual representada pelos referidos elementos pictóricos. Na quadra, porém, essa postura averiguadora é atribuída, não à alma, mas ao coração esquivo que anseia por satisfazer o seu desejo reprimido e no texto em prosa a busca de Angélica estende-se por um doloroso caminho de penitência que percorre movida pela inspiração divina. Ao longo dessa via crucis encontra vários exemplos de redenção e nunca deixa de seguir as pistas que a levem ao seu Senhor, pelo que nos parece lícito concluir que esta expiação itinerante retoma o tema da composição logo-icónica, como acontece nas restantes secções da obra, ainda que não reproduza tão fielmente os termos e as metáforas visuais utilizadas no composto emblemático. O capítulo XIV, que reproduz o emblema inaugural do terceiro livro do jesuíta belga (designado por Suspiros da Alma que ama), é o único em que se nota a ausência do protagonista masculino, colocando em cena três mulheres, duas delas ricamente vestidas, em contraste com a simplicidade da terceira, Angélica, deitada no chão e visivelmente debilitada pela ferida de uma seta que lhe trespassa o peito. O lema torna-se, pois, essencial porque reproduz as palavras da vítima, que, indiferente ao luxo das mensageiras, pede para anunciarem ao seu amado o sofrimento que padece por causa de Eros, recorrendo aos termos do Canticum Canticorum. O topos da separação e da renúncia preside a esta composição, que retoma nos decassílabos o conceito de ‘busca’, aliado ao de ‘martírio’ em antítese com as ‘ternuras’ e os “afectos”, para sublinhar a dualidade do caminho conducente à Felicidade40. Também o texto em prosa explora esta oposição para mais uma vez testar a firmeza da jovem com a tentação do “oculto pretendente” que a tenta seduzir na ausência do Amado. No entanto, apesar do sofrimento ditado pelo abandono, a protagonista persiste no caminho da penitência, tal como se transmite no emblema, até que encontra o seu companheiro crucificado pela ingratidão. Essa contemplação do sacrifício mortifica a transfigurada aldeã, mas deve ser entendida como um passo imprescindível para o seu processo de reabilitação, que conduz à plenitude através do sacrifício expiatório. De facto, esta associação paradoxal, implícita desde logo no conceito de Paixão, predomina no penúltimo capítulo, que começa por conferir suporte visual à beatífica união entre os amantes, embora o texto em prosa introduza notações disfóricas. Assim sendo, a pictura recria o simbólico ritual da coroação mútua, que toma lugar num simpático horto, onde não faltam elementos sugestivos da ideia de harmonia, nomeadamente                                                                                                                         40

Lembre-se que o estilo barroco, para além de tomar como elemento fulcral a metáfora, é particularmente afeito a “fortes tensões vocabulares, polivalências significativas, de estruturas complexas e surpreendentemente inéditas”, como bem exemplifica o discurso do Reino da Babilónia (Aguiar e Silva: 497).

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o jardim geométrico, o palácio simétrico, a representação da natureza fértil e a disposição alinhada do casal. Esta imagem de concordância, em oposição ao espaço nocturno inicial, reflecte claramente a ordenação do caos que também é insinuada pelo lema, ao evocar o triunfo da luz sobre as trevas, graças ao místico enlace dos amantes celebrizado pelo Canticum Canticorum. No entanto, os artificiosos decassílabos deixam transparecer uma visão menos eufórica da relação amorosa, uma vez que exaltam o carácter inexorável do amoroso raio fulminante. Esta estratégia contrastiva parece ter como objectivo o reforço da relação intrínseca entre sofrimento e ventura, que subjaz à escatologia cristã, uma vez que o texto narrativo vai enfatizar o suplício de Angélica. A jovem procura consolo nos piedosos exemplos de Santas figuras e recebe a visita alegórica da Fé e da Esperança, que lhe ensinam a encarar a ausência do Amado como incentivo ao fortalecimento da sua união espiritual, e assim sobe mais um degrau na escada do Altíssimo. Nota-se, portanto, neste capítulo, a evidente contaminatio dos planos interpretativos, dado que intervêm abertamente no enredo amoroso duas virtudes teologais, cuja identificação simbólica geralmente é remetida para as notas marginais. Cumpre destacar, além disso, o valor expressivo do emblema, pois encerra a semente da dicotomia que suporta os alicerces de todo o episódio, ao mesmo tempo que antecipa o desfecho da história. Não será, portanto, despiciendo o facto de a autora ter tomado a opção estilística de rematar a obra com uma composição logo-icónica aparentemente tão dissonante da antecessora. Apesar de ser o único original, o derradeiro emblema segue o paradigma de H. Hugo na selecção do lema, elegendo como mote o versículo da Carta de S. Paulo aos Gálatas (2:20): Christo confixa sum cruci; vivo autem iam non ego, vivit vero in me Christus. Deixando de lado as considerações que esta expressão poderia suscitar a propósito da relação com o princípio neoplatónico da identificação total entre amador e amada (cristalizado por Camões num verso que poderíamos alterar para “Transforma-se a coisa amada no Amador”), torna-se óbvia a intenção de coroar o Reyno da Babilónia com uma composição emblemática que realmente impressionasse os leitores, daí a preferência por um capítulo epilogal de glorificação do conúbio com um ícone capaz de restringir o contexto de referenciação ao plano do Sagrado. Contrariamente ao anterior, propenso a uma leitura perigosamente mundana e hedonista, este conjunto de lema e pictura remete inequivocamente para uma ligação amorosa que começou na terra da Perdição mas elevou os protagonistas ao plano celeste, através do sacrifício na cruz, porque só assim a sua união pode conquistar a eternidade e coroar-se de glória. De facto, a crucificação conjunta por cima da esfera coroada ilustra bem a dicotomia entre o plano imanente e o transcendente que subjaz à concepção 19    

estrutural da obra como sinédoque da existência humana. Este princípio doutrinal é enfatizado pela quadra que através da simbologia floral mostra como “vencer a culpa é coroa da fineza”, ou seja, o objectivo da vida terrena é expiar o pecado de modo a obter uma grinalda de candura para ser admitido à presença do Pai. Importa salientar que a teia semântica inerente à concepção deste emblema reflecte inequivocamente a densidade de recursos retóricos empregues no longo capítulo final, que começa por explorar o simbolismo amoroso do hieróglifo solar para depois introduzir o emotivo solilóquio de Angélica. Neste acto de contrição, a pastora confessa-se rendida ao apelo do Empíreo, mas a sua fidelidade é mais uma vez posta à prova pelos moradores de Babilónia, que procuraram acender nela a chama da presunção com um concurso de louvores em que comparam a sua beleza a luzes e flores41. Convencido pela resistência segura da amada, o Príncipe põe fim ao afastamento e ouve-a reafirmar a sua devoção, pelo que lhe envia como companheiras as alegóricas figurações da Penitência e do Fervor. Com o intuito de fortalecer a sua fé, a jovem recebe então cinco lanças para vencer os sentidos e sete espadas para lutar contra os vícios, tomando como principal adversário os maus pensamentos, de modo a emular a perfeição do Salvador. Convém sublinhar neste ponto decisivo a sensibilidade da autora ao transpor a metáfora bélica para o universo musical, metamorfoseando o percurso ascético da bela donzela em exercícios espirituais de aperfeiçoamento que originam sete romances ao som da cítara. Neste contexto, os “enternecidos brados dos seus desenganados sentimentos” (p. 270) transformam-se em melodia, exemplificando o efeito regenerador do Amor divino que culmina nas bodas celestes. Importa, por fim, fazer notar que este rendilhado estilístico vem apenas repetir a estrutura conceptual definida no composto linguístico-visual, que exprime a relação umbilical entre imolação e glorificação com um extraordinário poder de síntese e consequente efeito persuasivo. Posto isto, julgamos lícito concluir que esta perspectiva sobre a selecção de emblemas apresentada por Leonarda Gil da Gama reforça a pertinência da interpretação holística das composições com base em três argumentos de natureza distinta. O primeiro, de natureza editorial, reflecte o compromisso intrínseco da autora e desta obra em particular com o movimento pós-tridentino que a impulsionou, uma vez que o investimento implicado na reprodução de imagens só se justificaria pela novidade da adaptação de um modelo sobejamente conhecido. O segundo, de índole literária, firma-se na constatação de que o                                                                                                                         41

 Sobre o simbolismo místico das flores, Isidoro Barreira, Tratado das significações das plantas, flores e fructos (1698).

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recurso aos mecanismos logo-icónicos reforça a consonância com a estética barroca, quer pela apetência pictórica e ornamental42, quer pela intrincada teia de relações intra e intertextuais que desenvolve com a obra do jesuíta belga, as Sagradas Escrituras, e a alegoria pastoril protagonizada por Angélica43. O terceiro, de carácter pragmático, defende a originalidade de Soror Madalena da Glória, em função da reciclagem dos materiais pré-existentes que propõe, com base no apurado conhecimento sociológico do seu horizonte de expectativa. Ainda que o aproveitamento emblemático numa narrativa ficcional fosse uma técnica já experimentada, não deixava de ser sedutor o convite a explorar a inter-relação dos elementos visuais e linguísticos, porque, tal como pressupõe a teoria do género criado por Alciato, para descodificar o sentido global é preciso conjugar a carga semiótica das gravuras, do lema e da subscriptio, uma vez que os feixes de sentido se projectam reciprocamente entre si. Além disso, todas as composições sintetizam a mensagem alegórica e figurativa do capítulo a que dizem respeito; por conseguinte, embora tenham sentido individual, a análise sequencial permite construir um macrotexto mais complexo, que faz a ponte entre o texto de partida e a versão de chegada44, ao mesmo tempo que enfatiza os pilares do projecto de execução do Reino da Babilónia: a inspiração bíblica, o modelo alegórico e o intuito persuasivo.                                                                                                                         42

Note-se que os emblemas são enquadrados por uma moldura de padrão uniforme, que conjuga folhas de acanto nas esquinas com fileiras de elementos vegetais entrelaçadas com fitas e esferas. Na parte inferior da gravura surge o lema inscrito num painel irregular ricamente decorado com volutas. No que diz respeito aos motivos icónicos que compõem o horizonte das pinturas, verifica-se que seguem igualmente as linhas orientadoras da estética barroca, porquanto os mais frequentes reproduzem símbolos de fugacidade (a água, a nuvem e a chama), ou então recriam a célebre oposição campo/cidade, ícones da dicotomia pureza/corrupção. Além disso, a própria estrutura conceptual do Reino da Babilónia revela total afinidade com a tendência coeva, que tem por alicerces a exploração estilística da coincidentia oppositorum e a expressão da dicotomia gozos celestes/prazeres mundanos, a partir da linguagem antitética que põe em contraste a fruição terrena e a renúncia ascética, a beatitude e o pecado. De resto, a expressão da religiosidade através do discurso erótico e do provocante apelo aos órgãos sensoriais caracteriza a Literatura do século XVII, cujo paradigma se prolongou pelas décadas seguintes (Aguiar e Silva: 490). Ao longo da obra, surgem ainda alusões a outras leituras edificantes, como a Comédia de Calderón (p. 35), o que comprova o gosto pelas representações visuais. 43 Este mosaico de ligações semânticas complica-se ainda mais se tivermos em conta que a leitura profana geralmente proposta pela subscriptio é posteriormente explorada pela narrativa através de diferentes modos de expressão discursiva, pois integra inúmeras e variadas formas poéticas, recria diálogos, proporciona descrições impressivas e transcreve versículos bíblicos ou textos dos salmos conhecidos, sobretudo nas notas marginais. Com efeito, o Reino da Babilónia incorpora noventa e seis composições líricas, trinta e duas em castelhano e as restantes em português, cuja inclusão preenche, geralmente, momentos de pausa na acção, servindo para reforçar determinados aspectos. Merece particular destaque, no entanto, o conjunto de sete romances no remate da obra que parafraseiam o mesmo número de Salmos Penitenciais apresentados em paralelo com o texto poético. Sobre a sua funcionalidade lúdico-pedagógica, veja-se a interpretação de Micaela Moreira, na obra citada (Moreira: 365 sqq.), bem como o estudo aprofundado de Isabel Morujão sobre a poesia conventual de inspiração bíblica (2005). 44 Como observou Micaela Moreira, referindo-se apenas às imagens: “As gravuras contemplam claramente todos os principais filões temáticos e todas as grandes questões abordadas na narrativa: a oposição entre a aparência e a realidade que leva a perspectivar o mundo como um lugar de desengano; a necessidade de arrependimento e de penitência; a efemeridade da vida; a certeza do julgamento divino.” (Moreira: 327).

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Deste modo, se tivermos em conta a definição de obra literária enquanto processo de comunicação45, os emblemas revelam-se um recurso facilitador do entendimento entre emissor e receptor na medida em que fornecem uma sintética ferramenta de leitura ao interlocutor, ao mesmo tempo que oferecem um prático instrumento de persuasão ao autor46. Estes mecanismos compósitos espelham a natureza artificiosa do estilo barroco, que seguiu a tendência fusionista para mesclar valores contrastantes de modo a suscitar surpresa e maravilha, através da profusão imagística e das metáforas em cadeia (Aguiar e Silva:499). Com efeito, a sétima obra literária da franciscana ilustra cabalmente a finalidade pragmática do mouere que a Arte Barroca acrescentou aos princípios retóricos aristotélicos, uma vez que soube colocar o “Belo ao serviço do Bem” através da literatura espiritual com finalidade ético-social (Moreira: 320). Mesmo que esse objectivo implicasse o fortalecimento da moral ascética por intermédio do hedonismo sensorial, esse acordo paradoxal em nada chocava a sensibilidade barroca, contraditória em si mesma. Daí que a apreciação dos emblemas como estrutura tripartida lhes confira maior impacto enquanto instrumentos de persuasão e de doutrinação porque convencer significava impressionar e envolvia a estimulação dos sentidos, num constante desafio aos limites da imaginação burilada com base na filigrana conceptual e nas técnicas rebuscadas, imitando o ideal de bel composto de Bernini. Neste contexto, a inusitada estratégia de Soror Madalena da Glória torna a sua obra especial no domínio da escrita conventual feminina do século XVIII, porque dá a entender que a autora, apesar de limitada pelas circunstâncias da sua condição e vigiada pelas restrições impostas à produção literária coeva, soube usar todas as armas artísticas ao seu dispor, não para lutar contra todas as manifestações do statu quo, como preconizava Julia Kristeva47 mas para afirmar a sua voz diferenciada no panorama intelectual português48. Em abono desta                                                                                                                         45

“O acto de leitura só é possível – e, por conseguinte, o processo da comunicação literária só se consuma – quando o policódigo do emissor, tal como se manifesta no texto sob leitura, e o policódigo do receptor, tal como se configura no decurso de um mesmo acto de leitura, se intersectam mutuamente» (Aguiar e Silva: 314). 46  Recorde-se a este propósito a afirmação de Micaela Moreira: “Como transparece da leitura de Reino de Babilónia, se é certo que a literatura didáctico-recreativa de intenção moralizante toma como propósito apontar os caminhos da virtude e repreender as condutas que se afastem das rectas intenções sancionadas pela moral dominante, há que reconhecer a importância assumida pela imagem enquanto mecanismo ao serviço destes desideratos. Perante a necessidade de fazer chegar a mensagem a um público cada vez mais vasto e não necessariamente homogéneo em termos de capital cultural, a associação entre doutrina e plasticidade de que se nutrem os livros de emblemas representou um achado inestimável, profusamente aproveitado por uma cultura animada por um espírito de propaganda como foi a dos séculos XVII e XVIII.” (Moreira, 2007: 67). 47 “If women have a role to play … it is only in assuming a negative function: reject everything finite, definite, structured, loaded with meaning, in the existing state of society” (apud Jones: 163). 48 Não deixa de ser significativo que, na composição iconográfica que precede o primeiro capítulo, possamos encontrar mais uma prova da hesitação da autora entre o dever da modéstia e a desejo de glória, uma vez que representa uma mulher, coroada de louro e ladeada por uma âncora e um espelho, com os olhos postos numa figura angelical que sobrevoa com a filactera Fama volat. Parece que esta figuração, entre um símbolo da sua ligação à terra e outro que remete para a dimensão espiritual da alma e da poesia, pretende ilustrar o seu

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interpretação, retomamos a pergunta retórica do Qualificador do Santo Ofício, no seu texto de apreciação inicial. Pergunta então o representante da Igreja a propósito da autora: “Que importa que a sua humildade a pertenda esconder nos apertos de uma clausura, se as virtudes, em que resplandece, a fazem luzir fora dos limites da melhor esperança?” Foi efectivamente através do engenho que soltou os “Brados do desengano”, libertadores da reclusão em que vivia, o que nos leva a concluir que, seja na perspectiva literária, seja no domínio ascéticomístico, a verdade é que o caso de Leonarda Gil da Gama pode bem demonstrar o que significa ter por prisão o infinito. BIBLIOGRAFIA 8

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