Brasil e Venezuela – a Democracia em Descompasso
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Brasil e Venezuela – a Democracia em Descompasso Carlos Frederico Pereira da Silva Gama1 Publicado no SRZD em 23 de Junho de 2016 – http://www.sidneyrezende.com/noticia/264466 Em 1902, o governo do Brasil de Rodrigues Alves não se opôs à intervenção armada de Alemanha e Reino Unido na Venezuela – bloqueando cinco portos do país para a cobrança de dívidas. Nosso chanceler à época, o Barão do Rio Branco aquiesceu diante da “diplomacia das canhoneiras”. O Brasil da República Velha era uma potência de interesses limitados. Diante da ação de grandes potências europeias, reconhecia suas limitações e agia com cautela, baseando suas ações (ou omissões) em normas do direito internacional (que não vedava, à época, esse tipo de intervenção). Ligações com a Venezuela (e quase todos os vizinhos) eram distantes e precárias. O Brasil era, como eles, um país agroexportador. Concentrava atenções na obtenção de recursos externos para financiar a produção e exportação de café. O Reino Unido era nosso maior investidor desde a época da Independência. O presidente que antecedeu Alves, Campos Salles, acabara de obter um empréstimo para rolar a dívida externa brasileira (o “funding loan”) na City londrina. O Império Alemão era um investidor e mercado emergente. Ademais, antipatias entre Brasil e Venezuela vinham de longa data. O Brasil-Império boicotou o Congresso do Panamá organizado por Simón Bolívar em 1826 – uma das primeiras iniciativas de integração política no continente. Corte para 2016. Brasil e Venezuela passaram por várias mudanças, mas uma situação incômoda permanece entre os países. A interdependência entre os dois vizinhos aumentou. Ambos vivem crises econômicas e políticas prolongadas. No entanto, a crise venezuelana foi considerada de primeira magnitude pelos países da América. Já o Brasil – em crise e sob um governo provisório – é visto como parte da “solução”. Em situação pouco comum em seus quase 70 anos, a Organização dos Estados Americanos (OEA) se reúne no dia 23 de Junho para discutir a crise política na Venezuela e evitar sua piora – cenários de desastre aventados incluem guerra civil e a queda do presidente Nicolás Maduro (eleito em 2013). A “união” dos países da América busca evitar que a crise venezuelana se “espalhe” pelos vizinhos. E o Brasil se tornou peça-chave no quebra-cabeças da “união continental” para resolver a crise. 100 anos após as canhoneiras, em 2002, o presidente Fernando Henrique Cardoso repudiou o golpe civil que depôs o presidente venezuelano Hugo Chávez. Em flagrante contraste com o silêncio de 1902, a mobilização do Brasil foi decisiva para o malogro do golpe. No governo Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil encabeçou um grupo de países amigos da Venezuela que deu sustentação política ao país (não era um grupo pró-chavista chavismo: incluía os Estados Unidos de George W. Bush). A posição do Brasil mostrava solidariedade com um vizinho em crise e também era fruto de um cálculo pragmático. A economia venezuelana passava por período de grande crescimento oriundo das exportações de petróleo (a Venezuela é integrante da OPEP). Além do petróleo, Brasil e Venezuela se notabilizaram por sua oposição à integração econômica das Américas seguindo o modelo do NAFTA; foram decisivos para inviabilizar a proposta da ALCA no começo do século XXI. 1
Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT)
Adicionalmente, ao buscar reviver Bolívar, Chávez se postou como alternativa às lideranças tradicionais na região (Brasil, Argentina e México). A aproximação do Brasil com a Venezuela foi medida na economia do petróleo e consolidada pelo investimento em instituições regionais. Primeiramente, na UNASUL, fundada em 2008 como alternativa à OEA (criada durante a Guerra Fria e associada com os EUA). Em seguida, a Venezuela se tornou membro do MERCOSUL num contexto turbulento. O Brasil de Rousseff encabeçou a suspensão do Paraguai do bloco em 2012, após o impeachment-relâmpago do presidente Fernando Lugo. O Paraguai se opunha à entrada da Venezuela. A criação da UNASUL e a movimentação brasileira pela entrada da Venezuela no MERCOSUL visavam esvaziar a ALBA (Aliança Bolivariana para as Américas), criada sob a égide de Chávez em 20042. Há exatamente um ano, em Julho de 2015, a visita de uma delegação de senadores oposicionistas brasileiros a Caracas (liderada pelo candidato derrotado nas eleições de 2014, Aécio Neves) marcou o primeiro revés na política externa do segundo governo de Dilma Rousseff3. A visita aumentou a visibilidade dos presos políticos na Venezuela e foi um instrumento de pressão considerável. Durante meses, Maduro se recusou a estipular a data de eleições legislativas (temeroso de uma derrota), a despeito de inúmeros pedidos do Brasil, OEA e UNASUL. Dias após a turbulenta visita dos oposicionistas brasileiros, Maduro marcou as eleições para Dezembro de 2015. A visita também trouxe arranhões para as relações bilaterais entre os dois governos. A Venezuela recusou a participação do ex-ministro brasileiro da Defesa Nélson Jobim na comitiva que iria verificar o caráter democrático das eleições legislativas. O Itamaraty emitiu dura declaração após o resultado das eleições, na qual a oposição a Maduro obteve o controle de dois terços do Parlamento. O Brasil explicitou que a vontade dos venezuelanos manifesta nas urnas devia ser respeitada. Em 2016, a oposição venezuelana propôs um referendo revogatório do mandato de Maduro – instituto previsto na constituição criada No governo Chávez (que sobreviveu a esse recall em 2009). A existência de presos políticos (dentro os quais líderes da oposição a Maduro, como o prefeito de Caracas Antonio Ledezma e o ex-candidato presidencial Leopoldo López) põem em dúvida as credenciais democráticas do regime venezuelano. A repressão armada a opositores só aumenta as desconfianças. Essas atitudes foram amplamente criticadas pelas ONGs e instituições regionais (incluindo OEA e a comissão de chanceleres da UNASUL). Democracia e Direitos Humanos não são questões domésticas. Nesses termos, a postura da Venezuela é frágil. Não surpreende que não haja tolerância continental com violações dos Direitos Humanos e ameaças à democracia no século XXI. Em Abril de 2016, o governo interino do Brasil (através de seu chanceler José Serra) mobilizou essas duas questões para propor a mediação política na Venezuela em crise.
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Carlos Frederico Pereira da Silva Gama, “O Plano B que Satisfaz – a entrada da Bolívia no MERCOSUL”, SRZD (2015). Disponível em: http://www.sidneyrezende.com/noticia/252493 3 Carlos Frederico Pereira da Silva Gama, “Caracas bloqueia Brasília. Dilma vira refém política do PSDB. É bom desconfiar”, Carta Maior (2015). Disponível em: http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FPolitica%2FCaracas-bloqueia-Brasilia-Dilma-vira-refem-politicado-PSDB-e-bom-desconfiar%2F4%2F33785
Serra (ele próprio um senador oposicionista, cujo nome constava da lista inicial da delegação a Caracas) fez duras críticas à Venezuela em seus pronunciamentos – o que que motivou Maduro a chamar seu embaixador em Brasília para consultas. Em visita à Argentina, Serra anunciou apoio aos presos políticos e ofereceu seus préstimos para mediar um diálogo de “união nacional” na Venezuela, junto com o presidente Maurício Macri. Em seguida, recebeu no Brasil o governador oposicionista Henrique Capriles (candidato derrotado por Maduro nas eleições de 2013). Essas medidas tiveram o apoio do governo de Barack Obama (que abriu, por conta própria, canais de negociação com o governo Maduro). Os EUA são, ao mesmo tempo, o maior comprador do petróleo venezuelano e um dos principais investidores e parceiros comerciais de um Brasil em crise. O agravamento da crise econômica após a queda dos preços do petróleo forneceu a outra justificativa para uma “intervenção” na Venezuela. A desvalorização da moeda, esgotamento das reservas e endividamento crescente multiplicaram a carestia, com forte escassez de bens essenciais e, principalmente, de remédios. A degradação da qualidade de vida e a depressão econômica impactaram rapidamente o governo venezuelano. Em 2015, o país pediu ao Brasil que lhe fossem vendidos remédios a preços subsidiados. Já em 2016, a Venezuela solicitou oficialmente ao Brasil a doação de remédios como auxílio humanitário. O governo brasileiro acelerou essa doação (facilitada pela experiência pregressa de Serra no Ministério da Saúde). Em 2016, o Brasil mantém alguns traços característicos de sua política externa que remontam à época do Barão do Rio Branco. O país busca agir com cautela e sustentar suas decisões nas normas do direito internacional (algo particularmente importante no seio da OEA). As ações brasileiras são justificadas em termos de promoção da estabilidade continental. A importância dada às relações com os EUA se justifica como forma de criar oportunidades para o Brasil e diminuir desconfianças. Dentro dos recursos limitados de que dispõe, o Brasil faz investimento estratégico nas instituições. Ao reafirmar tradições, ações na Venezuela visam fazer mais legítimo o governo interino no Brasil. Demonstrações de solidariedade para com o povo venezuelano não são novidade. Porém, o efeito dessas ações varia no tempo. No contexto de 2016, o auxílio humanitário e a mediação política estão mais próximas da “diplomacia das canhoneiras” do que dos “amigos da Venezuela”. Entretanto, ao defender uma consulta popular sobre a duração do mandato de Nicolás Maduro na Venezuela, o governo interino do Brasil expõe, inadvertidamente, uma fragilidade própria da qual busca se evadir. A legitimidade do governo interno é questionada remetendo ao veredito das urnas. O Brasil experimentou esse tipo de contraste entre o discurso adotado nas relações internacionais e suas relações políticas internas em diversas ocasiões (com destaque para a ditadura Vargas em luta pelo “mundo livre” na Segunda Guerra Mundial). Cabe lembrar que essa descolagem, historicamente, teve custo alto e fôlego curto. A ditadura Vargas começou a findar com manifestos por democracia e não sobreviveu ao fim da Segunda Guerra, pelas mãos dos militares recém-chegados das montanhas italianas. A ditadura civilmilitar brasileira teve sua fachada de democracia corroída por críticas externas (inclusive do governo dos EUA) que alimentaram a luta pela redemocratização e culminaram na Anistia.
Crises políticas na Venezuela não são uma descoberta recente na política da América Latina. A participação brasileira nessas crises tampouco é obra do acaso. Mobilizar a democracia para “intervir” num país vizinho em crise é uma ação com alto risco e repleta de contradições – que não sumirão com expectativas otimistas de “união” e de um futuro próspero. Esses inconvenientes tampouco desaparecem sob o cobertor das (con)tradições da política externa. Discursos flamantes em defesa da democracia externa deixam brasas difíceis de apagar em casa.
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