Brasil, fronteira de Portugal. Negócio, emigração e mobilidade (séculos XVII e XVIII)

May 22, 2017 | Autor: Jorge Pedreira | Categoria: Migration, Brazil, Merchant networks, Merchants and Merchant Colonies, Empires In Western Europe
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ANAIS U E. 8-9, 1998-1999: 41'12

BRASIL, FRONTEIRA DE PORTUGAL. NEGÓCIO, EMIGRAÇÃO E MOBILIDADE SOCIAL (SECULOS XVII E XVIID Jorge M. Pedreira Instituto de Sociologia Histórica Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa

Introdução: fronteiras e sociedades de fronteira Em 1893, o historiador nofie-americano Frederick Jackson Turner avançava uma tese que viria a revelar-se uma das mais fecundas e controversas interpreI tações da história dos Estados Unidos da América ( ). No âmago dessa tese, estava a ideia de que o permanente alargamento do território, a existência de uma fronteira

em constante recuo, marcou profundamente a sociedade americana, de tal forma que poderia constituir explicação suficiente para alguns dos traços distintivos d"tru sociedade e do povo americano. A longa conquista do Oeste, além de ter legado o material histórico para a construção de uma das mitologias com maior poO". de fascinação e de vinculação social, estaria na origem de características êssenciais da civilização americana. A cultura dos pioneiros forjava-se no confronto com a natureza em estado bruto e na amálgama das suas diversas origens culturais. O individualismo, o materialismo, a tendência para a auto-regulação social, o frequente recurso à violência, a forte mobilidade geográ,fica e social, a crença na democracia, elementos matriciais da civilização americana, explicar-se-iam afinal pelo processo de expansão para Oeste. Nos confins de um território em contínuo alàrgamento, onde a autoridade do Estado não chegava ou chegava muito diluída, as comunidades tomavam sobre si a sua própria organizaçáo, segundo

Tevron, «The significance of the Íiontier in American history» [ 1893], in Frontier and Sectiott. SelecteclEssay.r. Englewood CliÍls, NJ: Prentice Hall, 1961, pp.31-62. Veja-se também Rise ol the New West 18t9-1529 il9061. Gloucester, Mass: Smith, 1961. (|

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regras adaptadas às circunstâncias em que viviam. Ao mesmo tempo, a existêncta

de recursos disponíveis proporcionava novas oportunidades, cuja apropriação (forçosamente desigual) gerava conflitos e tensões. Neste contexto, o individualismo, a energia, a capacidade de iniciativa, a própria turbulência dos pioneiros pareciam ser recompensados, convertendo-se em valores encarecidos pelo povo americano. Aplaudida e largamente aceite durante as primeiras décadas do século XX, a tese que acabamos de expor de forma abreviada haveria de suscitar uma viva controvérsia. Turner, postumamente acusado de ter apresentado uma perspectiva monocausal e de ter desprezado aspectos fundamentais da história do Oeste (entre os quais a corrida ao ouro), passou de herói a inimigo público da historiografia americana. Apesar do acerto de algumas das críticas que lhe foram dirigidas, nem por isso a interpretação que Turner apresentou há mais de um século deixou de constituir uma referência impreterível. Se a vitalidade da sociedade americana e o seu êxito económico não podem ser elucidados apenas pelo longo processo de dilatação do território, a verdade é que foi Turner quem primeiro chamou a atenção para o facto de que a fronteira e a sua deslocação perrnanente (com a correspondente incorporação de novos recursos, no caso. de terra livre) criaram as condições para o desenvolvimento económico e para a construção de uma sociedade com uma fisionomia própria. Alóm disso, o conceito de fronteira, tal como Turner o desenhou, demonstrou importantes virtualidades heuísticas (2). Em especial desde que foi renovado pelo contributo da Antropologia (particularmente atenta às trocas culturais e aos fenómenos de aculturação, não apenas entre pioneiros de diferentes origens mas entre estes e os povos indígenas). esse conceito foi usado para conduzir a análise de sociedades ou comunidades que se encontravam na frente dos processos de expansão e colonização (principalmente quando está em causa a fronteira entre civilizações) e em que se reconhecem, por esse facto, características específicas. Deste modo, forjou-se a noção de comunidades ou sociedades de frónteira, designação que foi muitas vezes usada para designar as formações sociais do continente americano, não apenas da América do Norte, mas também da

América espanhola. Com efeito, antes da conquista do Oeste, em certas regiões, nos extremos do Império Espanhol na América, a mesma situação, embora com alguns cambiantes, havia ocorrido. Mas a colonização do Brasil oferece um paralelo porventura ainda

(2) Menln Cunrt, «The section

and the Íiontier in American history: the methodological concepts in Methods in Social Science: a Case Book, University of Chicago Press, 193 I , Turner>> Jackson of Frederick pp. 353-367.

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mais próximo. A epopeia dos bandeirantes é naturalmente a primeira que nos acode à memória. Os paulistas formaram verdadeiras comunidades de fronteira, com traços semelhantes aos que são apontados como característicos das colectividades norte-americanas. O permanente avanço sobre o território de tribos índias e a correspondente anexação de novos recursos, o império da força e o triunfo dos aventureiros, o ténue controlo pelo Estado e a auto-regulação das comunidades, tudo evoca a experiência norte-americana. Haverá certamente diferenças, pois a miscigenação, tanto biológica como cultural, com os povos nativos, foi muitíssimo mais longe no Brasil, em especial durante a primeira fase da colonrzaçáo. Outra distinção, e muito significativa, residia na instituição da escravatura (dos próprios indígenas), que tão ponderosas implicações tinha para a organizaçáo social na fronteira no Brasil (3). Apesar de'tais dissemelhanças, o paralelo traçado justifica amplamente o uso do conceito de fronteira, tal como foi cunhado por F. J. Turner, para descrever a expansão territorial no Brasil e as suas implicações económicas e sociais. Mesmo no caso de outras frentes da colonização, onde são manifestamente menores as afinidades com a situação do Oeste americano, como as que avançavam por acção dos fazendeiros do sertão da Baía, dos lavradores de cana de Pernambuco ou dos jesuístas do Pará e do Maranhão, esse mesmo conceito poderá descrever aspectos fundamentais da vida social. O Brasil pode portanto ser visto como uma sociedade de fronteira durante um largo período da sua história. Contudo, é necessário tornar mais preciso o alcance desta asserção. De facto, tratar-se-á apenas de um agregado de comunidades de fronteira, isoladas umas das outras, ou será que as várias frentes de expansão territorial e de aquisição de novos recursos contribuíam para configurar não apenas as áreas mais próximas mas a sociedade colonial brasileira no seu conjunto? Segundo Russell-Wood, a fixação dos portugueses no Brasil, concentrando-se na zona mais próxima do litoral, e avançando a partir de um pequeno conjunto de regiões (aYárzea de Pernambuco, o Recôncavo da Baía e a Baixada Fluminense) não merece a designação de fronteira em movimento: , ob' cit', p'l l8 (I

1ri)

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Para os números da emigração, veja-se

(na agricultura, nos ofícios, nos serviços) e proporcionavam novas oportunidades de negócio. Eram estas oportunidades, as efectivas e as imaginadas, que levavam uma torrente de gente do reino para o Brasil. Quem eram estes reinóis que desembarcavam nos portos brasileiros? Não eram já apenas, como vimos, os jovens solteiros, mais temerários, ainda que para as Minas fossem sobretudo estes. Iam também famílias, casais e clérigos, numerosos clérigos, tantos que por VeZeS viam recusados os passaportes que pediam e seguiam mesmo assim como capelães nos navios mercantes(t3).E continuava a ir gente para se estabelecer no Rio de Janeiro, em Pernambuco ou naBaía, como os artífices (especialmente na construção e na metalurgia), que se fixavam em Salvador ( t o). Na versão de Antonil (pseudónimo do jesuíta italiano Andreoni), era esta a variedade da gente que todos os anos chegava a terras brasileiras: >, Análise SociaL, vol. xxxr ( I 36- I 37), 1996, pp. 355-379. (se) Nrnnu CnvelceNrr, «Passaportes dos viajantes ...», ob. cit, tabela III.

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condição essencial para que vários jovens obscuros, naturais de freguesias rurais do Minho e desprovidos de recursos económicos, pudessem encetar um percurso de mobilidade ascendente que os haveria de elevar à condição de negociantes de grosso trato, provavelmente a mais alta posição na ordem social , qrã podiam r azo av elmente aspirar. Que as relações com o Brasil eram fundamentais paru acomunidade mercantil de Lisboa e constituíam o esteio da sua actividade económica (com que só os contratos de exploração de monopólios públicos e de cobrança de impostos podiam tivalizat), é já, uma trivialidade que não carece de demonstrações adicionais. Neste ensaio não se.trata, por conseguinte, de documentar uma vez mais esse lugarcomum' O que aqui se pretende sublinhar é que os laços com o Brasil cumpriam uma função não menos importante para a estruturação dessa comunidad e, para a configuração propriamente social. E que essa funçãose fica a dever em parte a um efeito de fronteira. As oportunidades que se ofereciam aos emigrantes portugueses no Brasil para desenvolverem uma carreira comercial constituíam uma das Londições fundamentais para a reprodução do corpo mercantil, tal como se processava. porque eram mais acessíveis do que as que se apresentavam em Lisboa, arargavam o campo de recrutamento dos homens de negócio aos que possuíam *"nã, meios e menos possibilidades de mobilizar patrocínios. Ora àssas oportunidades procediam, em grande parte, directa ou indirectamente, do et-eito de fronteira na economia e na sociedade brasileira. o avanço das frentes de expansão territorial e a exploração de novos recursos disponíveis criavam a ocasião para o desenvolvi*.rto do comércio a longa distância, da exportação para a metrópore, mas também para o arargamento do comércio interno, que tanta importância teve nas fases iniciais das carreiras comerciais dos mercadores residentes no Brasil, facultando a alguns deles a acumulaÇão de cabedais e de conhecimentos que rhes permitiam estabe]ecer ,..;;l;jü; mesmo negociantes de grosso trato. Deste ponto de vista, a expansão na região de Minas, revelando uma impressionante capacidade de atracção demográfica, suscitou um intenso movimento comercial para abastecer a população e paru fornecer utensílios e mão-de-obra às explorações mineiras. As oportunidades de negócio que se forjaram com essa expansão tiveram repercussões em quase todas as regiões do Brasil e certamente nas principais cidades do litoral, demonstrando que, embora não numa existisse uma única fronteira em movimento, o avanço de uma única frente, ainda que geograficamente afastada de outras, podia ter consequências significativas para a sociedade colonial brasileira no seu conjunto e de forma indirecta também para a sociedade portuguesa. 70

O efeito de fronteira fez-se sentir indirectamente ainda de outro modo. A mobilidade da sociedade brasileira, que tinha a ver com a expansão territorial e a respectiva incorporação de novos recursos, possibilitava uma permanente abertura de lugares na comunidade mercantil, à medida que alguns regressavam a Lisboa, mas também à medida que os grandes mercadores de sobrado adquiriam terras e engenhos, de que se tornavam senhores, e que os seus filhos encetavam outras carreiras. A permeabilidade das estruturas sociais brasileiras, mesmo nas cidades do litoral onde havia uma hierarquia mais pronunciada, abria os corpos comerciais a uma renovação permanente e portanto à entrada dos emigrantes bem sucedidos. Neste sentido, o efeito de fronteira na colónia, que criava as condições para uma forte mobilidade social, acabava por se transmitir à metrópole, por via da ampliação das oportunidades para a emigração de carácter mercantil. Deste modo, para além dos benefícios puramente económicos que o reino, em geral, e os homens de negócio, em particular, retiravam da expansão territorial no Brasil e da consequente exploração de novos recursos, convém sublinhar que, de um ponto de vista social, esses recursos e as oportunidades que directa ou indirectamente thes estavam associadas precipitavam a mobilidade social não só no Brasil, como em Poftugal. Ora, na antiga sociedade portuguesa, o comércio ou, mais genericamente, os negócios formavam um dos mais importantes canais de mobilidade. A posição do mercador poderia mesmo tonar-se uma condição provisória, um estado transitório, na busca da ascensão social (60). Depois, a partir do momento em que, pelo menos no plano simbólico e legal, os homens de negócio conseguiram diferenciar-se dos mercadores de retalho (processo que só se concretiza plenamente na segunda metade do século XVIII), o estatuto do negociante de grosso trato foi dignificado, tornando-se não só economicamente compensador, mas também socialmente vantajoso. Reforçou-se assim o papel da carreira mercantil como via de promoção social. Para tanto, contribuíam também, como vimos, as reverberações do efeito de fronteira. Como é óbvio, tais reverberações não atingiam apenas o mundo mercantil. Os servidores da coroa, desde os oficiais régios aos letrados, e em especialmente os governadores coloniais também acabavam por aproveitar do recuo da fronteira e da distância relativamente ao poder central. Contudo, ao fazermos incidir a nossa

(60) Joe,eurrra RoMERo MacalHÃes, «A Sociedade», in No Alvorecer da Modernidttde, vol. III de História de PortugaL (dir. José Mattoso), Lisboa, 1993, p. 507. Veja-se também, Joncs M. Pponetne, «Mercadores e tbrmas de comercialização», in O Tempo de Vasco da Gama, direcção de Diogo Ramada Curto. Lisboa, Difel, 1998, p.l76eOs Homens de Negócio..., ob. cit., p. 18.

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atenção sobre os meios dos negócios, cremos ter escolhido uma das vias pelas quais se pode melhor elucidar como o Brasil funcionava,

de facto, como fronteira de

E a estrutura da sociedade portuguesa, tal como se configurava nos séculos XVII e xvlll, em especial no que aos padrões de mobilidade dlz respeito, foi em parte modelada por essa reração, qr" nem a secessão do Brasil intenompeu Portugal.

completamente.

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