Brasil S/A pensa com imagens

July 25, 2017 | Autor: Ivonete Pinto | Categoria: Cinema brasileiro
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Brasil S/A pensa com imagens Filme sem diálogos de Marcelo Pedroso, Brasil S/A tenta compreender a sociedade brasileira através do “progresso” do Recife Ivonete Pinto* Uma certa euforia se apodera do espectador nos primeiros minutos de Brasil S/A, de Marcelo Pedro (2014). Estamos diante de uma fotografia (Ivo Lopes Araújo) impactante em sua proposta estética e diante, mais uma vez, de um exemplar do cinema pernambucano que deixa qualquer cinéfilo mais animado frente a um quadro muitas vezes espinhoso, outras vezes constrangedor. A nova safra de filmes pernambucanos está sendo reconhecida por oferecer um pensamento sobre o Estado que pode ser extensivo ao País. Não só O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012), mas

principalmente ele, descortina o país a partir de um ponto de vista crítico e de uma categoria que podemos chamar de festcinema. São filmes que só acontecem em torno dos festivais, sendo majoritariamente de cunho autoral, generosamente premiados, amplamente divulgados e pouco vistos. Isto é, são vistos pelos frequentadores de festivais, que são em geral plateias iniciadas, formadoras de opinião, mas cujo poder de influência já foi maior. O festcinema, como conceito, abrigaria a produção também chamada de periférica, de bordas e de garagem1. Se o colocarmos num contexto internacional, seria integrado ao world cinema, mas de qualquer maneira continuaria atrelado à passagem pelos festivais. Os estudos de cinema costumam se debruçar sobre toda gama de filmes independentes fazendo um recorte aqui, outro ali, mas sempre o parâmetro de fundo acaba na dicotomia entre cinema comercial e cinema de arte. Assim, o festcinema não estaria em outro lugar senão o de arte, porém, no Brasil, como a produção está em franca ascensão e o público em franco declínio, até mesmo os filmes talhados para alcançar bilheterias soçobram frente à avalanche vinda dos Estados Unidos (as estatísticas indicam que o market share de 2014 fique bem abaixo dos 18,5% alcançados em 2013). E o mercado nacional que nos resta, todos sabem, é ocupado majoritariamente por comédias que não funcionam nem mesmo nas bilheterias.

Novo filme de Marcelo Pedroso é marcado por imagens irônicas

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Catarse Não é de hoje que as plateias mundiais preferem o entretenimento à reflexão e raríssimos filmes se prestam às duas funções. Certamente, se pensarmos o que faz sucesso na França hoje, só teremos as comédias, desde A Riviera Não É Aqui (Bienvenue chez les Ch’tis, Fabien Onteniente, 2008), considerado o Se Eu Fosse Você francês, até o recente Que Mal Eu Fiz a Deus? (Qu’estce qu’on a Fait au Bon Dieu?, Philippe de Chauveron, 2014), pleno de clichês sobre o racismo que tenta denunciar. Se pensarmos na Argentina, vemos o estrondoso público de Relatos Selvagens (Relatos Salvajes, Damián Szifrón, 2014), um filme simplório que só mira a catarse. Seja através do riso, seja da vingança. Aristóteles, assim, continua oferecendo a teoria que explica o gosto popular. E Brasil S/A com isso? Tudo. Marcelo Pedroso subiu vários degraus após o experimental Pacific (2009) rumo a um público mais amplo (contado às dezenas, que seja). Não abdicou, porém, de uma proposta arrojada, que o coloca a anos-luz das comédias descerebradas, investindo no aspecto da linguagem, onde um dos elementos está no fato de prescindir dos diálogos. Incorporou um Dziga Vertov e traçou um relato visual dos nossos tempos. Diferente do russo, não faz elegia aos novos tempos, faz crítica. Contudo, o fato de ser um filme sem diálogos não o torna único ou original, pois

no próprio cinema brasileiro temos outros exemplos, inclusive o há pouco lançado Sopro (2014), do mineiro Marcos Pimentel, um documentário que não se pretende narrativo, apenas – e não é pouco – quer falar poeticamente através de imagens. Mas há algo nele, em Brasil S/A, que busca a catarse também. O filme de Marcelo Pedroso procura impressionar o espectador com o choque das observações visuais e escancarar, com menos sutileza que O Som ao Redor, o choque do velho com o novo, do atraso com o progresso. A idéia de progresso, por exemplo, vem carimbar todas as sequências que envolvem o novo Brasil – dos automóveis ao balé de escavadeiras, passando pelo uso da bandeira. Enorme, tremulando ao vento e sem o círculo do Ordem e Progresso, dispensa que façamos maiores elucubrações porque a interpretação já está ali. A purificação, a lavagem da alma não se dá pelo riso, mas na operação intelectual provocada pela organização das imagens. Com a bandeira sem ordem nem progresso, Pedroso busca a catarse depois de nos apresentar sequências em que um cortador de cana de açúcar, após ser substituído por máquinas, entra para um projeto da Nasa. O engarrafamento num bairro nobre de Recife é solucionado com a sarcástica ideia de uma cegonha que é chamada por um aplicativo e que leva os carros para o trabalho com os donos dentro; em um cenário que mistura estética de comercial de margarina com Nosso Diretor busca interpretação totalizante do Brasil

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O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho ...

Lar, uma família seduzida pela bandeira é abduzida por uma nave espacial. Se uma nave, vinda do nada, tem algum valor num percurso gerador de sentido, ou é apenas uma bobagem, vai saber... Já a bandeira nacional calha de ser mais relevante. Nos faz lembrar que pode ser vista também com a mesma carga simbólica em outro momento catártico do cinema brasileiro, que é em Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro (José Padilha, 2010). A câmera faz a panorâmica por Brasília, sobrevoando a Esplanada dos Ministérios, onde nasce a corrupção que origina a violência. O plano-sequência assinado por Lula Carvalho também mostra a bandeira, que está rasgada, rendendo um misto de desconforto e ironia. Automóveis No esquema de símbolos de Brasil S/A, o automóvel reina absoluto. E o cinema pernambucano parece reiterar sua relação com o progresso por meio dos carros. Ao menos eles já pensam as transformações urbanas desde os chamados ciclos regionais. Em 1926, Hugo Falangola e J. Cambiere rodaram um institucional

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na Praia da Boa Viagem, Veneza Americana, mostrando a sociedade local num tom de ufanismo pela chegada de “novos carros” (bondes)2. Esse ícone da riqueza já estava também num curta de Pedroso, Em Trânsito (2013), questionando com plasticidade e ironia se de fato se trata de um progresso. No primeiro plano, temos um caminhão cegonha pegando carros numa fábrica. Em seguida, uma panorâmica aérea exibe o imenso pátio de automóveis novos e, à medida que a câmera vai subindo, temos ao fundo a cidade vertical, envolta numa névoa cinza, com seus edifícios cuja altura passa uma ideia de agressão sinistra. O automóvel como consequência do progresso econômico dos brasileiros aparece neste curta igualmente em palavras: “O sucesso do Brasil, é também o sucesso da indústria automobilística”. A frase é dita pela presidente Dilma Rousseff em voz over, num discurso que comemora o crescimento desta indústria. O curta é como um ensaio para Brasil S/A, um tanto mais maniqueísta, quase um Michael Moore comparado ao longa, mas de qualquer forma é uma peça que antecipa e marca as preocupações de Pedroso como cidadão.

... e São Paulo S.A., de Luiz Sérgio Person: outros retratos do país

O polêmico Pacific, longa anterior de Marcelo Pedroso

Marcelo Pedroso não está sozinho. Se olharmos para trás, vamos encontrar o automóvel como vilão no centro do debate em outras obras. Não podemos esquecer que a indústria automobilística é o epicentro em São Paulo S.A., de Luiz Sérgio Person (1965), em tom crítico e existencialista. A diferença é que havia ali um personagem condutor, que facilitava o diálogo com o público. A novidade em Brasil S/A em relação aos outros filmes dos anos 60, que tentavam pensar o país de modo crítico, é que não é mais a miséria e a fome que provocam a estética, é a violência ligada à urbanização. A seca do Nordeste como tema deu lugar ao excesso de carros. Um constructo de falso progresso, pois a miséria continua à espreita . Brasil S/A concentra-se nas consequências urbanas do chamado progresso e quando mostra uma classe que não se beneficiou tanto assim desse progresso, seu olhar irônico dá lugar a uma possível ternura a uma gente que não é miserável, mas é pobre. Pois não há como pensar de outra forma em relação à sequência na igreja pentecostal, onde acontece um culto ao som (extradiegético, claro) de The Sound of Silence, de Simon & Garfunkel. O êxtase religioso dos fiéis soma-se ao êxtase do espectador. A escolha desta música certamente oferece uma experiência diferente para cada um, mas com certeza ninguém fica alheio à proposta. Esta

sequência documental revela-se um comentário delicado do filme a este universo. Mais do que ironia, soa como um apaziguamento, pois não é ali que o filme pretende atirar pedras nem fazer ironia.3 Pernambuco S/A De uns 10 anos para cá, um grupo de realizadores pernambucanos, em que pese não ser uma turma homogênea, representa a segunda geração do cinema daquele estado e que continua a trilha de nomes como Lírio Ferreira, Cláudio Assis, Marcelo Gomes e Paulo Caldas. Num rápido levantamento de títulos importantes da filmografia pernambucana recente, não poderiam ficar de fora produções como Eles Voltam (Marcelo Lordello, 2012), Câmara Escura (curta, Marcelo Pedroso, 2012), Boa Sorte, Meu Amor (Daniel Aragão, 2013), Amor, Plástico e Barulho (Renata Pinheiro, 2013) e os já citados Pacific e O Som ao Redor. Só Gabriel Mascaro dirige quatro filmes marcantes: Um Lugar ao Sol (2009), Avenida Brasília Formosa (2010), Doméstica (2012) e Ventos de Agosto (2014). Entre documentários, híbridos e ficções, todos aparentam buscar a construção de uma matriz de pensamento que procura entender o atual estágio do estado de Pernambuco e a transformação do cenário urbano. Estágio econômico, social, antropológico,

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Em Brasil S/A, a ausência de diálogos é compensada por sequências de forte apelo simbólico

artístico. Às vezes mais, às vezes menos, é possível estender o olhar para outros estados brasileiros, mas seria forçar muito se quiséssemos levantar equivalências. Este cinema pernambucano explora uma filosofia da imagem, um sistema que explique o que está acontecendo, que demonstre alguma tese. E se há um rastro de tese possível, é que o Brasil de Pernambuco, desde a primeira eleição do presidente Lula, passa por um violento crescimento econômico (violento porque rápido, desequilibrado e injusto para quem não o atinge), sem ter resolvido questões históricas ligadas às classes sociais. Os recifenses, em particular, estariam tentando assimilar a rapidíssima transformação arquitetônica que vê erguer a cada dia um novo arranhacéu. O Sul e o Sudeste teriam passado há mais tempo pelo crescimento econômico e a verticalidade das cidades já não causa indignação ou espanto.4 Neste sentido, e agora falando apenas de Brasil S/A, é necessário frisar a ambição do filme como retrato parti-pris de um país. Talvez haja um pouco de exagero nessa ambição, pois o filme espelha a realidade, mesmo que tardia, das grandes cidades brasileiras, das grandes capitais. Existe um Brasil profundo que está mais para a Caravana Farkas do que para Marcelo Pedroso. Inegável é que os dois Brasis (ainda) coexistem e são tão paradoxais que não seria um único filme a dar conta. Há muitos outros Brasis. Apenas para falar de outro título que concorreu no último Festival de Brasília, Sem Pena (Eugenio Puppo, 2014), que poderia se chamar Brasil.org, pois é o retrato do que acontece no país dos processos judiciais. Não é “o” Brasil, é só mais um. Lamentavelmente, estamos falando de filmes que só causam em festivais e se, como diz a música de Aldir Blanc, o Brasil desconhece o Brasil, é porque não está indo ao cinema. Talvez o Brasil de Marcelo

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Pedroso seja mesmo só uma nesga do que nos tornamos nos últimos anos. Para ver o todo, precisamos de mais cineastas-pensadores e que não fiquem restritos na bolha do festcinema. T * Doutora em Cinema pela ECA/USP, professora no curso de Cinema da UFPel, vice-presidente da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema Para cinema de bordas, ver Cinema de Bordas, de Bernadette Lyra e Gelson Santana [orgs] (2006); sobre o cinema de garagem, ver Cinema de Garagem, de Marcelo Ikeda e Dellani Lima [orgs] (2014); sobre world cinema, ver World Cinema – As Novas Cartografias do Cinema Mundial, de Stephanie Dennison [org] (2013). 2 Trechos do filme Veneza Americana podem vistos no endereço http://goo.gl/a9qdVI 3 Este comentário vem para o rodapé, pois talvez não seja tão relevante quando o filme estrear: Brasil S/A, que teria custado de acordo com o diretor no debate do Festival de Brasília menos de 500 mil reais, não havia pago ainda os direitos autorais do uso de The Sound of Silence, de Simon & Garfunkel. Como esse valor pode custar bem mais do que o dobro do orçamento do filme, talvez a versão que vier a ser lançada em 2015 não tenha esta música. Conforme Pedroso, outro músico americano que é usado na trilha, John Cage, recebeu o pagamento pelos direitos. 4 Esta leitura do momento pernambucano surgiu a partir de conversa com o economista e crítico Enéas de Souza e deve ser creditada a ele. Seu artigo sobre O Som ao Redor (Teorema 21), já levanta reflexões a este respeito, ilustradas pela frase “E o Recife contemporâneo vive o surto e o susto noturno desse capital.” (p.19). 1

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