Brasileiro e europeu: a construção da nacionalidade em torno do monumento ao Cristo Redentor do Corcovado

July 7, 2017 | Autor: Emerson Giumbelli | Categoria: Monuments, Religion and the Public Sphere
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Brasileiro e europeu: a construção da nacionalidade em torno do monumento ao Cristo Redentor do Corcovado Emerson Giumbelli

Resumo O artigo analisa a construção

nativo e o estrangeiro. Dois

e de seus desdobramentos e

da brasilidade em torno do

momentos são enfocados: o

repercussões recentes.

monumento ao Cristo Reden-

período entre a concepção e

tor no Rio de Janeiro, tendo

a inauguração do monumento

Palavras-chave

como base uma abordagem

(1921–1931), e a época atual,

catolicismo, nacionalidade, Rio

que capta a relação entre o

por meio de um documentário

de Janeiro, imagem religiosa

O campo dos estudos pós-coloniais abrange uma multiplicidade de referências, disciplinas e abordagens, mais ou menos articuladas pelo desafio de refletir sobre a contemporaneidade de configurações coloniais. No contexto de um ordenamento no qual o colonialismo não existe mais como regime jurídico, o que está em foco são as assimetrias que percorrem e redimensionam esse mundo pós-colonial. Tais assimetrias se apresentam seja nos arranjos sociais, econômicos e políticos, seja nos pressupostos epistemológicos que regem a relação entre centros e margens. Isso torna os estudos pós-coloniais um campo em que a busca por alternativas epistemológicas é uma preocupação marcante.1 Trata-se, para um autor como Dipesh Chakrabarty, de “provincializar a Europa”. A expressão, feliz por sua força, precisa, porém, ser adequadamente compreendida. Ela comporta a proposta de questionar a associação entre o europeu e o universal, atribuindo outro estatuto ao

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Entre as diversas apresentações e apreciações que cobrem esse campo e aprofundam os pontos levantados, cito Ashcroft, Griffith e Tiffin (1995), Chaturvedi (2000), Costa (2006), Gandhi (1998) e Mongia (1996). 1

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que está ao seu redor; mas não implica, por outro lado, a desconsideração do papel referencial que a Europa ocupou e ocupa no ordenamento do mundo. O que está em jogo é um redimensionamento das relações entre a Europa e suas margens num sentido capaz de demonstrar as interdependências – com a produção de impactos recíprocos e de simultaneidades – entre elas. O sul asiático – sobretudo a Índia – ganhou destaque nesse campo de estudos pós-coloniais como objeto de análise e como berço de vários de seus expoentes intelectuais (a exemplo de Chakrabarty). Por outro lado, o impacto que as elaborações referidas a esse sítio vem tendo levou, desde cedo, a avaliações sobre a possibilidade de sua extensão para a abordagem de outras regiões e situações históricas. Um dos autores que se engaja nessa discussão, desde a América Latina, é Walter Mignolo, argentino radicado nos Estados Unidos. Para ele, seria preciso, de fato, efetivar alguns ajustes para trazer a construção referida ao sul asiático para as realidades latino-americanas. Assim, enquanto o debate focado no sul asiático tem como marco o século XVIII, momento em que se consolidam os empreendimentos coloniais na região, para as Américas esse marco teria de ser deslocado para o século XVI, pois desde então há integração do continente aos circuitos econômicos, políticos e culturais da Europa (Mignolo, 2004). Ora, um componente central dessa integração é a dimensão religiosa, uma vez

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que a América foi considerada terra de missão para os cristãos. Aceita essa observação, penso que, de fato, a reflexão sobre as formas, os sentidos e os impactos da implantação do cristianismo na América constitui um tema pertinente para serem levadas adiante as discussões propostas pelo campo dos estudos pós-coloniais. Mignolo cita Dussel (1973) quanto ao seu comentário sobre a situação da América Latina como “a única unidade geopolítica pós-cristã entre os países subdesenvolvidos” (Mignolo, 2004: 248). Ou seja, enquanto Mignolo aponta para os marcos originais da situação, Dussel constata a sua permanência relativa. A origem persiste mesmo nas referências que procuram marcá-la dentro de um contexto transformado. O tema deste texto propicia exatamente esse jogo entre passado e presente, ao enfocar a imagem do Cristo Redentor, localizada no alto do morro do Corcovado, na cidade do Rio de Janeiro. Ela evoca, por muitos caminhos, a questão da relação da cidade, mas também do país com o cristianismo. E veremos como, no momento da construção do monumento, a lembrança sobre as origens cristãs da nação fez parte dos discursos que o saudaram. O interessante é que, se nos detemos sobre esse momento original, nos deparamos com uma elaboração sobre o Oriente, uma vez que as Américas também foram vistas assim por aqueles que se dedicaram a refletir sobre as descobertas. É o que nos fala Marilena Chauí, ao retomar

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um debate já percorrido por Sérgio Buarque de Hollanda: “Oriente significa, por um lado, o Japão, a China e a Índia, portanto impérios constituídos com os quais se pretende tanto a relação econômica como a diplomática, mas sobretudo, se possível, uma dominação militar e política pelo Ocidente. Mas Oriente é também o símbolo do Jardim do Éden” (Chauí, 2000: 61), ao qual as Américas estarão identificadas. Tal comentário traz à tona, em primeiro lugar, uma dimensão muitas vezes esquecida quando se discutem as especificidades da situação americana: suas muitas diferenças em relação ao Oriente não devem desconsiderar que ela também foi objeto de um orientalismo2 e isso redimensiona e facilita as passagens entre a Ásia e a América. Em segundo lugar, e talvez em direção oposta à observação anterior, a presença de Sérgio Buarque é invocada para insinuar, aos interessados em trazer os estudos pós-culturais para as redondezas, as possibilidades de um diálogo com autores de nosso universo intelectual que nada têm a ver com esse campo. Por fim, trata-se de marcar a importância das imagens religiosas na constituição do continente americano – algo que reaparece, por exemplo, em leitura de padre Vieira, que encontra no Velho Testamento profecias que falam da evangelização dos indígenas (Chauí, 2000). A visão do paraíso, como seria o mundo antes do pecado, não impediu, portanto, o projeto de cristianização de seus habitantes, feito em meio à ins-

tauração de um regime escravocrata que envolveu ainda os africanos. Como lembra Laura de Mello e Souza (1986), tudo isso fez com que as descrições sobre o novo mundo oscilassem entre o paraíso, o inferno e o purgatório. Mesmo assim, são ainda religiosas as imagens, como o é a associação divina entre o Cruzeiro do Sul, que protege e orienta, e a cruz da primeira missa, que consagra a natureza gentil. E seria também sob o signo da cruz que a estátua do Cristo se ergueria séculos depois. O texto está dividido em duas partes. A primeira acompanha alguns aspectos da concepção e da construção do monumento ao Cristo Redentor, especialmente os relacionados ao projeto que associava catolicismo e nacionalidade, e propunha uma leitura da história que remetia, como marco fundador, aos descobrimentos – da América e do Brasil. Pretendo mostrar como se constrói discursivamente essa articulação entre catolicismo e nacionalidade em duas ocasiões: em torno de 1922 – centenário da Independência e data originalmente concebida para a finalização do monumento – e em torno de 1931 – ano em que o Cristo Redentor foi efetivamente inaugurado. Veremos como a idéia de um Brasil católico, longe de dispensar, se produz com a contribuição de elementos europeus. Na segunda parte, a noção de brasilidade é retomada para se refletir sobre o presente, considerando-se agora o documentário Christo Redemptor, finalizado em 2005, e alguns de seus desdobramentos e co-

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Sobre o orientalismo e seu impacto sobre a imaginação antropológica no Brasil, ver Velho (2006). 2

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nexões. Estes ocorrem no contexto da comemoração dos 75 anos de inauguração do monumento e em meio a uma controvérsia jurídica – que envolve questões sobre propriedade e autoria – acerca dos direitos de uso de sua imagem. Embora essas produções e discussões recentes sobre o Cristo Redentor não deixem de dialogar com o europeu, o documentário e, sobretudo, a sua repercussão engendram uma construção de brasilidade que pretende contrapôla ao estrangeiro.

Você acha correto que o Rio de Janeiro homenageie um estrangeiro com uma estátua no topo da cidade? Há versões diversas, mais ou menos díspares, sobre a definição do formato final da estátua. Não me proponho a analisar essa controvérsia neste texto. A apresentação que elaborei está baseada nos aspectos concordantes de comentaristas e analistas (Grinberg, 1999; Machado, 1997; Semenovitch, 1997; Rubinstein, 1999; Dias 1996; Menezes, 2001; Arquidiocese 2006). 3

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Embora haja referências mais antigas, a construção do monumento que hoje vemos no alto do morro do Corcovado na cidade do Rio de Janeiro deve-se diretamente a uma mobilização que toma corpo em 1921. A proposta de uma estátua de Jesus Cristo parte de uma associação de leigos religiosos, que contava com a participação de intelectuais e pessoas da elite social: o Círculo Católico do Rio de Janeiro. A idéia é logo encampada pela hierarquia, que mais tarde constitui a Comissão Arquidiocesana do Monumento ao Cristo Redentor, na qual esteve ativamente envolvido dom Sebastião Leme. Ainda em 1921, em reuniões do Círculo Católico, foi discutida a localização do monumento e foram

apresentadas três propostas para o seu formato. O projeto escolhido foi o do engenheiro Heitor da Silva Costa: um Cristo Redentor que segurava em uma das mãos um globo, enquanto a outra servia de apoio para uma grande cruz latina [Figura 1]. Entre o final de 1922 e 1923, o projeto passa por reformulações significativas e seu formato final só se define na Europa, para onde Silva Costa viaja em 1924 ,a fim de cuidar da realização do monumento. A sua construção inicia-se em 1926, estendendo-se até 1931, mas mesmo antes da viagem à Europa a imagem toma a estrutura com que a conhecemos hoje.3 Manteve-se a presença da cruz e do globo, porém, nas palavras de Silva Costa, “o simbolismo substituiu o realismo”. Explica ele: “A cruz foi armada [...] pelo tronco ereto e braços horizontais; o mundo tem-no a Imagem, a seus pés, na cidade e no oceano imenso a se perder de vista” (Costa, 1931a:14). Se esse “mundo” aí representado não chegava talvez a abarcar todo o orbi terrestre, certamente pretendia ser bem mais do que a urbe carioca, pois o país era uma referência essencial. Feita essa observação, a “cruz” revela outro aspecto de seu significado, já que ela também poderia remeter a mesma referência, desde que consideremos certos discursos católicos sobre a nacionalidade. Vejemos esse trecho da Pastoral Coletiva que divulgou o episcopado brasileiro em 1922, por ocasião do primeiro Congresso Eucarístico na cidade do Rio de Janeiro:

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Apenas descoberta nossa querida pátria, sobre ela desceram a 26 de abril e no dia 1º de maio de 1500 as bênçãos de Deus pela oblação do corpo e sangue de Jesus nas aras improvisadas pelo zeloso frei Henrique de Coimbra ante o gentio estupefato. Qual pavilhão protetor no solo ainda virgem do Brasil ergueuse a mandado de Pedro Alvarez Cabral, em Porto Seguro, majestosa cruz, feita de madeira das soberbas florestas de nossa terra! Hei-lo o descobridor do Brasil, levantando para a perpétua memória de posse divina o glorioso padrão, que há vinte séculos marca as conquistas do Filho de Deus. A Ele, pois, pertence desde a sua origem a Terra de Santa Cruz (citado por Isaia, 2003b: 65–6).

Figura 1 Maquete do projeto vencedor no concurso do Círculo Católico, 1921, de autoria de Heitor da Silva Costa. Fonte: Rubinstein (1999, p. 36)

Desde 1890 e ao longo de toda a primeira metade do século XX (Isaia, 2003a), formulações semelhantes são recorrentes nos pronunciamentos de altos hierarcas e destacados intelectuais católicos. No trecho transcrito, fica clara a centralidade da cruz como símbolo da associação entre cristianismo e nacionalidade. Associação levada em várias ocasiões ao seu paroxismo, pois se tratava de bradar a essência católica da nação. Na construção que sintetiza esse argumento e orienta os esforços da Igreja Católica nas primeiras décadas do século em reação à perda desde 1890

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Jackson de Figueiredo, destacado intelectual católico, discordava publicamente da idéia já em 1921 (Grinberg, 1999). Há registros de protestos pela imprensa vindos de lideranças protestantes e houve resistências nas esferas estatais (Machado, 1997; Semenovitch, 1997; Rubinstein, 1999). Esse aspecto das reações contrárias merecerá maior estudo com a ajuda de fontes mais adequadas. 4

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de seu estatuto de religião oficial: se o Estado prefere ser laico, a nação sempre foi e deve continuar cristã. Nesse projeto de futuro, o passado do descobrimento ocupa lugar fundamental, momento de batismo da Terra de Santa Cruz. Sendo assim, o marco distintivo da brasilidade é também o elo que o articula ao empreendimento português e, mais geralmente, à expansão européia. Eis aí um ponto a que devemos dar a devida atenção, uma vez que ilumina o jogo de relações entre Brasil e Europa. Por ora, basta registrar que o dia escolhido para a inauguração do monumento ao Cristo Redentor, por decisão da Comissão Promotora dos Festejos, foi 12 de outubro, data atribuída ao descobrimento da América (Machado, 1997: 87). Outra data importante associada a essa construção discursiva, inclusive na sua difusão, é 1922. Quando se comemora o centenário da Independência brasileira, a Igreja Católica faz questão de marcar presença, juntando-se aos festejos e ao mesmo tempo procurando imprimir neles a sua passagem. Setembro de 1922, quando se celebrou oficialmente a efeméride com uma grande exposição na capital do país, era, aliás, a data em que se planejara inaugurar o monumento retratando Jesus Cristo. Isso não ocorreu. O ritmo dos preparativos foi desacelerado por questões internas à organização dos envolvidos, mas também em razão de resistências, dentro e fora dos círculos católicos.4 O projeto conseguiu vencê-las, conquistando inclusive o apoio governamen-

tal. Em meio aos festejos oficiais, uma flâmula com os dizeres “Salve, Redentor” foi deixada no alto do Corcovado (Arquidiocese, 2006). Logo depois, de 26 de setembro a 1º de outubro, realizou-se no Rio de Janeiro o Congresso Eucarístico, encerrado com grandiosa procissão. Em seguida, no dia quatro, foi lançada a pedra fundamental da construção do monumento ao Cristo Redentor, que – como lembrado durante o Congresso – deveria, nas alturas do Corcovado, ecoar uma presença igual “na elevação moral da consciência católica de cada brasileiro” (citado por Dias, 1996: 116). Em setembro de 1923, com d. Leme à frente, ocorre a Semana do Monumento ao Cristo Redentor, a fim de estimular doações de recursos para a sua construção. A campanha atingiu muitos pontos no país, apoiando-se na rede de paróquias católicas. Divulgaram-se doações vindas até mesmo de povos indígenas. A amplitude dos resultados era valorizada em sua dinâmica infinitesimal: o ideal era que cada brasileiro desse uma pequena contribuição. “Cada um sendo responsável pelo feito, deixa de ser uma obra da Igreja, para ser uma obra da nação” (Grinberg, 1999: 61). Imagem semelhante já tinha sido sugerida. Em 1922, circulava uma proposta de medalha comemorativa ao projeto da estátua. Nela, a baía de Guanabara aparecia iluminada pela constelação do Cruzeiro do Sul; figuravam três datas – 1500, 1822 e 1922 – e a inscrição “Deus, Pátria e Família” (De los

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Rios, 1922). Nesse caso, a cruz celeste evocava a cruz terrena da primeira missa, tudo a envolver a paisagem da capital nacional. A medalha em sua versão final, distribuída na inauguração em 1931, foi simplificada, mas manteve entre suas inscrições a expressão “Em comemoração do 1º Centenário da Independência do Brasil. 1822/1922” (Machado, 1997: 92). O Congresso Eucarístico foi claramente uma das ocasiões em que o discurso católico procurou consolidar a associação entre cristianismo e nacionalidade. A procissão final, que tentava rivalizar com os festejos oficiais do mês anterior, foi anunciada por d. Leme como “o maior plebiscito já conhecido em nossa história, para o triunfo de Cristo” (citado por Dias, 1996: 117). Ela seria “um ato de fé e de nacionalidade, um momento para os fiéis entoarem o hino da liberdade religiosa, vencendo o hiperlaicismo da vida pública, e passagem da independência política para a independência religiosa, que seria proclamada pela multidão dos católicos” (Dias, 1996: 117). Essa multidão, celebrada por seu suposto clamor uníssono, representação e prova da “unidade e coesão da nação”, era contraposta ao Estado oficialmente laico, mas também chamada a testemunhar a antevisão de um futuro inevitável, em que nação e Estado se reconciliariam com as bênçãos da Igreja católica. O “artificialismo” de “inspiração exógena” – como seriam o liberalismo e o agnosticismo – deveria ceder lugar à adequação plena

das instituições nacionais ao “caráter” do povo brasileiro (Isaia, 2003b: 67). Nessa chave, não podia deixar de ser promissora a figura do presidente da República assistindo de joelhos à procissão que passava diante do palácio do Catete (Dias, 1996:´118). Em 31 de maio de 1931, ocorre na cidade do Rio de Janeiro a consagração da nação a Nossa Senhora Aparecida, que em 1930 havia sido proclamada, pelo papa Pio XI, a padroeira do Brasil. A pequena estátua foi trazida de seu santuário, no interior do estado de São Paulo, e saudada por mais uma grandiosa procissão. Em 1904, houvera a coroação da imagem, diante de todo o episcopado e de uma multidão apresentada, pelo historiador oficial do santuário, como “a maior concentração religiosa do povo acontecida no Brasil após a proclamação da República” (citado por Fernandes, 1994: 107). Em 1931, era o novo governo, liderado por Getúlio Vargas, que sentia a força da demonstração: “Autoridades civis e militares assistiram aos bispos dedicarem a nação à boneca ricamente vestida, com o apoio de cânticos e orações de um milhão de fiéis reunidos na Esplanada do Castelo” (Fernandes, 1994:107). Eis como a revista católica A Ordem se referiu ao fato religioso naquele momento politicamente dramático: “Valeu ainda como vibrante afirmação de que o Brasil, nas suas forças morais, está ainda vivo, está de pé e autoriza a confiança que temos em seu destino” (citado por Dias, 1996: 130). Tendo sua pequena

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capela dedicada a Nossa Senhora Aparecida, o monumento do Cristo Redentor de certa forma dá continuidade a essa mobilização. Fernandes, no texto já citado, registra a pluralidade de datas que, ao longo dos séculos XIX e XX, foram fixadas pela Igreja Católica para a devoção à Aparecida. Note-se que todas elas remetem a alguma associação entre o religioso e político. Oito de dezembro, dedicado a Nossa Senhora da Conceição (com que se identificava a imagem de Aparecida), tivera estatuto oficial no Brasil por causa de sua condição de padroeira de Portugal e de seus domínios desde 1646. Oito de setembro foi celebrado por ser a data católica da natividade de Maria, provocando uma associação com a comemoração da independência política (a ponto de, em 1939, a Igreja deslocar o dia de Aparecida para o sete de setembro). Maio, mês de Maria por decisão do Vaticano, também foi apontado para a devoção à Aparecida, e vimos que foi nessa data que se realizou a proclamação em 1931. Já o 12 de outubro só foi escolhido em 1955 pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e oficializado por decreto como feriado nacional em 1980, pelo mesmo motivo que determinou a data da inauguração do Cristo Redentor em 1931. Portanto, a associação entre a devoção religiosa e a descoberta da América foi instituída primeiramente pela imagem de Jesus. Na ocasião da inauguração do monumento ao Cristo Redentor, é intensa a aproximação entre símbolos polí-

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ticos e religiosos. O programa festivo (cf. Machado, 1997; Rubinstein, 1999) cobriu, na verdade, nove dias, com missas em muitas igrejas, mobilizações de grupos de leigos, sessões “de estudo”. Concomitantemente, realizou-se um Congresso Nacional Católico, que faria reivindicações ao governo. No dia 10 de outubro, sábado, ocorreu uma missa pontifical reunindo o episcopado e seiscentos “representantes do clero de todo o país”. Na tarde do dia seguinte, teve lugar numa igreja no centro da cidade a “Hora Santa pelo Brasil”, presidida pelo cardeal Leme. Na manhã do mesmo dia, houve outra missa, dessa vez aberta ao público, no Campo de São Cristóvão, “pela paz e prosperidade do Brasil”. No dia 12, no alto do Corcovado, aos pés da estátua de trinta metros, a inauguração é celebrada com missa, bênção e consagração do monumento ao Coração de Jesus. Quarenta e cinco bispos acompanhavam o cardeal Leme e o núncio apostólico. Estava lá a comitiva oficial do governo brasileiro, liderada pelo presidente da República e formada por ministros civis, chefes e oficiais militares, além do interventor do Distrito Federal. Bandeiras nacionais de grandes dimensões (que já estiveram na igreja da Candelária) ajudavam a decorar a inauguração e faziam companhia aos membros do governo, que, em 3 de outubro, um dia antes de começarem as festividades do Cristo Redentor, haviam comemorado o primeiro aniversário da “Revolução” [Figura 2].

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Figura 2 Foto da inauguração do monumento ao Cristo Redentor, 12 de outubro de 1931. Fonte: Rubinstein (1999, p. 61)

Por limitações de acesso e de espaço, não havia muita gente no alto do Corcovado, mas a comissão promotora pediu aos patrões que dispensassem seus empregados e sugeriu que a população e os estabelecimentos comerciais embandeirassem suas fachadas. A imprensa contribuiu para mobilizar a cidade: “Os jornais estamparam séries de fotografias e artigos sobre o projeto, sua construção e inauguração. Fon-Fon, O Malho e Cruzeiro publicaram números especiais comemorativos em outubro de 1931” (Grinberg, 1999: 68). A população poderia acorrer à missa campal no estádio do Fluminense Futebol Clube, celebrada no início da manhã do dia 12. No final da tarde, o ponto

de concentração era a praia de Botafogo, de onde se assistiria a iluminação da estátua, comandada da Europa por G. Marconi, por meio de sua invenção, o telégrafo sem fio. Junto com o concreto armado, a luz elétrica aparecia como demonstração da possibilidade de aliança entre a antiga religião e a tecnologia mais moderna. Enfim, não era preciso subir ao Corcovado para sentir a presença do Cristo Redentor. Um dos componentes cruciais de sua idealização fora a visibilidade: um lugar acessível ao olhar de quase toda a cidade da época e um formato que não perdesse definição mesmo à enorme distância. Com seu discreto coração incrustado no concreto, o grande Cristo subira ao monte para redimir a cidade e o país. Coração e redenção, aliás, são símbolos que remetem para aspectos diferenciados da imagem do Cristo, em relação aos quais, sugiro, o monumento representa certa solução. Na apresentação do projeto vencedor original, diziase que a “estátua [...] representa Cristo Redentor vindo ao mundo para salválo” (citado por Machado, 1997: 61). No formato final, manteve-se a referência ao Cristo ressuscitado, que em sua glória pode garantir bênção e proteção ao que está sob seus pés. Por outro lado, a imagem está consagrada ao Coração de Jesus, que remete, por sua vez, ao mistério da Paixão e Morte de Cristo. Embora seja uma devoção propagada no Brasil após o século XIX, o Coração de Jesus compartilha com a imagem precedente do Bom Jesus, dominante

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Sem indicar claramente a fonte, Dias afirma que, “já com a obra adiantada, em 1929, d. Leme solicitou que fosse esculpido um coração no peito do Cristo, como marca registrada da Igreja Católica” (1996: 128). Nenhuma outra referência que consultei menciona isso. Porém, a julgar pela maquete que figura no anúncio da programação de inauguração (o que nos dá a razão de supor que seja a definitiva), de fato o coração não existia no projeto final. Por outro lado, ganhou distinção ao ser a única parte da estátua que recebeu revestimento interno. Outra elaboração: em artigo de 1936, um intelectual católico sugeriu uma derivação em latim a partir do nome do morro onde está a estátua: cor quo vado – o coração para onde vou (Cf. Winter, 2004: 7). 5

O temário das sessões de estudos realizadas durante a semana da inauguração era repleto da expressão “reinado de Jesus Cristo” (Machado, 1997: 99–102). Grinberg nota como também nas publicações da imprensa que acompanham a inauguração da estátua “as metáforas próprias aos reis multiplicamse” (1999: 68). 6

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no período colonial, a marca do sofrimento. Grinberg apóia-se nos estudos de R. Azzi para afirmar: “A devoção ao Coração de Jesus também está ligada à Paixão de Cristo, cujo coração foi transpassado por uma lança na hora da sua crucificação” (1999: 64). A referência ao sofrimento, portanto, não é abandonada e remete à interpretação, presente no discurso católico, de uma religião hostilizada pelo Estado. Mas ao se fazer em chave moderna e em formato discreto, subsume-se aos atributos da redenção.5 A cruz que forma sua estrutura é menos o lugar do sofrimento e mais o trono de glória, o marco da passagem para a vida em ressurreição. Mas as referências que compõem a imagem não ficariam minimamente descritas sem uma menção ao Cristo Rei. O pedestal do monumento, na maquete final, que chega a ser reproduzida na programação das festividades de inauguração, trazia a inscrição “Christus vincit regnat imperat”. A inscrição foi omitida na execução, mas o sentido que a anima está presente em vários pronunciamentos associados ao Cristo Redentor. A idéia da realeza de Cristo sobre o Brasil, segundo Isaia, teve lugar destacado nas concentrações católicas: com ela, “a hierarquia tentava passar a imagem de um país, cujo povo, muito antes de professar unânime acatamento à elite dirigente, admitia-se como súdito de Cristo Rei” (2003b: 68). Já por ocasião da procissão do Congresso Eucarístico de 1922, uma publicação (vinculada, aliás, à devoção do Sagrado

Coração) relatava: “E ao chegar o carro com o Ssmo. na Praça Mauá [ouviu-se]: ‘Viva o Rei e Senhor dos Exércitos! Viva o Rei e Senhor do Brasil’” (citado por Isaia, 2003b: 71). O Congresso Eucarístico seguinte, realizado em Salvador em 1933, foi saudado pelo cardeal Leme como “triunfo de Cristo Rei, oração nacional pela Pátria” (citado por Isaia, 2003b: 68). No ínterim, em 1925, o papa Pio XI instituíra a festa de Cristo Rei. E foi sob a glória de um Cristo Rei, na sua fusão de referências religiosas e políticas, que o monumento no Corcovado foi inaugurado.6 D. João Becker, arcebispo de Porto Alegre, sintetizou as expectativas do evento durante a cerimônia: “Seja, principalmente no presente momento histórico, a nossa divisa: Cristo e Pátria. Pois tu, ó Cristo, és a nossa esperança, és a nossa salvação” (citado por Machado, 1997: 87). O ato da consagração da imagem ao Coração de Jesus reforçava: “Oh Reinai Senhor Jesus, reinai sobre a nossa Pátria! Queremos que o Brasil viva e prospere sob vossos olhares; queremos que o nosso povo seja sempre iluminado pela verdade de vosso evangelho. Reinai, ó CristoRei, reinai ó Cristo Redentor! Ser brasileiro seja crer em Jesus Cristo, amar a Jesus Cristo!” (citado por Machado, 1997: 89). Durante a missa, um bispo exclamou: “Senhor! Salvai o Brasil! Salvai o Brasil! Salvai o Brasil!” (citado por Machado, 1997: 86). E a bênção que batizou o monumento, pronunciada por d. Leme, conferia ritualidade às pala-

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vras que seriam repetidas pelo legado pontifício Eugenio Pacelli (futuro papa Pio XII) na sua passagem pelo Rio de Janeiro em 1934, as mesmas que foram omitidas no pedestal: “Cristo vence, Cristo reina, Cristo impera, Cristo proteja de todo o mal o seu Brasil” (citado por Machado, 1997: 86). Como representante de Cristo Rei, a Igreja Católica sentia-se na posição de alertar o governo sobre o descompasso entre as diretrizes do Estado – orientadas por “uma sociologia inimiga de Deus” e por “uma política agnóstica”, nas palavras de d. Becker (citado pod Soares, 1934:86) – e a fé do povo. Nesse espírito, o Congresso Nacional Católico que se realizou concomitantemente ao programa da inauguração teve seu encerramento marcado por uma moção dirigida a Getúlio Vargas, na qual se reivindicavam “providências de caráter legislativo”. A pauta incluía ensino religioso em escolas públicas, direitos políticos do clero, isenção do serviço militar por motivos religiosos e proibição do divórcio. Pontos como esses fizeram parte da agenda levantada pela Liga Eleitoral Católica, criada para atuar na Constituinte de 1934. A inauguração do Cristo Redentor foi uma das primeiras ocasiões para a mobilização proposta por essa Liga. Voltando ao texto da moção de 1931, encontraremos, para fundamentar as providências legislativas, um discurso que retoma elaborações já comentadas. Elas teriam por fim: “assegurar à Pátria Brasileira a fidelidade de seu passado cristão; [...]

recompor a união indissolúvel entre as leis dos códigos e os fatos da realidade nacional, reintegrando o Estado Brasileiro nas forças vivas da Nação, a maior das quais é, sem dúvida alguma, o seu catolicismo orgânico e tradicional, a sua fé religiosa congênita e o seu amor inquebrantável a Jesus Cristo” (citado pod Machado, 1997: 106-7). Cristo Rei, glorioso em sua monumentalidade, ali estava para salvar o Brasil. No entanto, essa imagem de um país necessitado de redenção alternava-se, nos pronunciamentos católicos, com outra, a de um país eleito para servir de exemplo ao mundo. D. Becker, que constatava que “no centro do país, sobre o altar da Pátria, [...] Cristo deverá ser o Redentor da nação”, profetizava algo ainda mais grandioso: “Ofereça o Brasil oficial, o Brasil representado pelo seu povo e pelos seus Governos, ao mundo inteiro, um brilhante exemplo de fé religiosa e de fidelidade absoluta ao Cristo Redentor. E quando, porventura, um dia, nos outros países, convulsionados por torturantes males, se amontoarem escombros sobre escombros, a nossa Pátria será então o guia das nações” (citado por Soares, 1934: 96). Podemos recorrer ainda ao padre jesuíta Natuzzi, envolvido desde o início no projeto do monumento. Ele se refere ao Cristo como rei que conquista um trono para defender a “unidade da Pátria” e, ao mesmo tempo, celebra “o decreto de toda uma eternidade” – predestinador, portanto – que promulga “a eleição do Brasil, escrita nas brancas

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dobras do majestoso manto do Cristo Redentor” e “lhe aponta o caminho refulgente da verdadeira civilização, ao lume do evangelho” (Natuzzi, 1932: 9–12). Percebe-se como a associação entre religião e nacionalidade comporta, em torno do Cristo Redentor, várias facetas. O catolicismo era saudado por sua igreja como a “verdadeira alma nacional nos quatro séculos da existência do Brasil”, segundo o Mensageiro do Sagrado Coração de Jesus em edição de 1922 (citado por Isaia, 2003b: 67). Isso não impedia que se constatasse uma cisão nessa nação católica, uma vez que o Estado republicano teria repelido essa herança e arriscava-se, nas palavras do cardeal Leme em 1931, a ficar “desamparado de todo espírito de ordem, respeito e disciplina” (citado por Isaia, 2003b: 68). O Brasil, portanto, ainda precisava ser salvo e ao mesmo tempo já se candidatava para ser exemplo de futuro. O monumento ao Cristo Redentor havia sido construído para promover essa passagem. Ele unia o território americano às paragens mais santas: “A Serra do Mar passa a ser, agora, uma continuação das montanhas da Judéia”, como sugerido pelo padre Assis Memória (citado por Grinberg, 1999: 71). Ele anunciava uma glória política, a crer em d. Becker: o Brasil como “o mentor das democracias pela legítima interpretação do lema republicano de liberdade, igualdade e fraternidade” (citado por Soares, 1934: 96). Para tornar ainda mais complexo o quadro dessa associação entre religião e brasilidade, temos de acrescentar que a

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Europa mantém-se como uma referência fundamental em vários aspectos da concepção e da construção do monumento ao Cristo Redentor. Podemos introduzir essa dimensão por meio de um manuscrito de Adolfo Morales de los Rios, importante arquiteto com diversas obras na cidade do Rio de Janeiro, e que participou das discussões iniciais sobre o lugar e o formato da imagem de Jesus Cristo. Solicitado a dar um parecer sobre um projeto de medalha comemorativa ao monumento, De los Rios conta a sua versão da história, com argumentos que nos parecerão interessantes. Em relação ao local, bate-se contra a opção, aventada, do Pão de Açúcar, por considerar que, fosse assim, a estátua estaria voltada apenas para os estrangeiros que chegavam à cidade pela baía da Guanabara. Em oposição também a outras opções, o Corcovado, que já oferecia acesso pela estrada férrea, permitia que a estátua fosse avistada de toda a cidade e que, por isso, fizesse de fato parte dela. Quanto ao formato, De los Rios propôs ele mesmo um projeto, criticando o ganhador por sua falta de originalidade. Vale citar seu argumento: “Não se diga, no entanto, que se essa imagem quiser relembrar a nossa independência política, ela não recomendará a nossa independência artística” (De los Rios, 1922: 10). De los Rios apontara a excessiva semelhança entre o projeto de Silva Costa e um monumento que havia sido inaugurado em 1904, na fronteira entre Argentina e Chile, conhecido como

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o Cristo Redentor dos Andes. Trata-se de uma estátua de oito metros de altura em bronze, em que Cristo aparece segurando uma cruz com um dos braços e elevando o outro em direção ao céu. De los Rios afirma que Silva Costa reconhecera a inspiração, mas os argumentos do arquiteto não foram suficientes para evitar a aprovação do projeto do engenheiro. Já o próprio Silva Costa vai confessar a influência, sobre seu projeto, da “estátua de S. Carlos Borromeo, que vira e examinara detalhadamente em Arona em 1912, por ocasião de uma viagem de estudos que realizava à Itália” (Costa, 1931a: 15). A estátua mede pouco mais de 23 metros e foi erigida em 1624. Além da escala de grandeza, algo na posição dos braços lembra o projeto de Silva Costa, planejado para se elevar a 35 metros de altura. Mas as semelhanças parecem ser maiores com o Cristo dos Andes. Seja como for, o que importa notar aqui é que estátuas estrangeiras serviram de modelo ou de inspiração para o Cristo brasileiro do projeto vencedor. Mesmo o projeto alternativo de De los Rios não reivindicava e nem parecia expressar nenhuma brasilidade intrínseca: ser original significava apenas apelar para outras referências arquitetônicas estrangeiras. Se nós passamos às referências religiosas, a conclusão não é diferente. Quase todas as narrativas históricas sobre o monumento religioso no Corcovado reconhecem que a idéia original teria partido do padre lazarista Pierre Marie Boss, que chegou a sugerir a obra

para a princesa Isabel. Em um poema publicado em 1903, o padre registra a sua proposta. Boss, que se radicou no Rio de Janeiro como capelão de um colégio católico, teve a idéia logo depois de chegar da França, onde nasceu. Da França veio também a devoção a que foi consagrada a imagem do Cristo Redentor. Embora referências ao Coração de Jesus possam ser encontradas em vários momentos da cristandade, a devoção se institui como tal apenas no século XVII, tendo como marco as visões de Marguerite Marie Alacoque, que seria canonizada em 1920. As visões ocorreram muma cidade interiorana, Paray-le-Monial, onde se ergueu a primeira capela dedicada ao Coração de Jesus, consagrada no dia 7 de setembro de 1688. A partir do século seguinte, a devoção recebe apoio pontifício, culminando com medidas que se dão entre 1856 e 1920. Mesmo assim, Paray-leMonial manteve-se como a referência central da devoção – inclusive para os protagonistas do projeto do Cristo Redentor, como mostra a foto de 1927 em que aparecem d. Leme e Silva Costa ao lado de um pavilhão do Sagrado Coração de Jesus (Rubinstein, 1999: 26). A passagem de Silva Costa pela França, sob os auspícios da Comissão do Monumento, é parte importante do projeto. É com essa passagem que a imagem adquire o inconfundível estilo art déco que define sua aparência final: simetria, linhas retas, feições simplificadas. Essas características não apareciam no projeto original, nem nos

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A imagem, com a informação que reproduzo aqui, faz da parte da exposição Christo Redemptor, que será comentada na segunda parte deste texto. 7

O Cristo também figura de braços abertos no projeto preterido de Morales de los Rios. Note-se que Silva Costa insistiria em outro formato na representação de Cristo Redentor, como mostra o projeto que concebeu e executou em São João Del Rei, em que uma mão segura uma cruz e a outra faz um gesto de bênção (cf. Rubinstein, 1999). 8

9 Segundo Machado, Silva Costa, a propósito da execução do monumento, “indicou a Bélgica e informou que já se relacionara com a firma que construiu a estátua da Liberdade e outras” (1997, p. 57).

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desenhos que resultaram da decisão de modificá-lo. Foi produto dos trabalhos conjuntos desenvolvidos na França, exatamente no momento em que a art déco se consolida e se apresenta como estilo próprio (considerando o marco da Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas, ocorrida em 1925 em Paris). Quanto ao formato – a cruz formada pelos braços abertos –, ainda que vários fatores possam ter contribuído para a solução, chamo a atenção para o diálogo que ela realiza com outras representações do Sagrado Coração de Jesus. Silva Costa teria em sua própria casa uma imagem, associada a essa devoção, em que Cristo está de braços abertos.7 Uma fonte (Arquidiocese, 2006) menciona uma tentativa anterior de construção de uma estátua do Sagrado Coração de Jesus no mesmo morro do Corcovado, abortada por causa da mudança de regime. A iniciativa era patrocinada pela princesa Isabel e chegou-se a encomendar uma imagem em bronze de 15m. A encomenda foi feita em Paris e o Cristo aparecia de braços abertos.8 Por fim, e para permanecermos em Paris, notemos que o enorme mosaico que decora a Basílica do Sagrado Coração localizada naquela cidade no bairro turístico de Montmartre, montado entre 1900 e 1922, figura um Cristo também de braços abertos. A relação com a França poderia até ter sido maior. Grinberg (1999:62) teve acesso a documentos diplomáticos que mostram como, “para os entusiastas da construção do monumento ao Cristo, a

Liberdade de Nova York [...] era o modelo”. Como se sabe, a estátua da Liberdade (“iluminando o mundo”), concluída em 1886, foi um presente do governo francês para os americanos. Entre o final de 1922 e o começo de 1923, houve consultas oficiais a autoridades francesas, encetadas pelo embaixador brasileiro na França, acerca de detalhes técnicos e condições de transporte de uma estátua “análoga” à da Liberdade. Essa proximidade se impôs ao próprio Silva Costa em suas negociações.9 Posteriormente, o mesmo Silva Costa voltaria a fazer referência à estátua da Liberdade num de seus escritos (Costa, 1931b). Dessa vez, enfatiza os contrastes: mesmo sendo de mais difícil execução, o Cristo Redentor foi feito mais rapidamente e com menos custos que a estátua da Liberdade. E se esta havia resultado do “concurso financeiro de duas poderosas nacionalidades”, a imagem do Cristo “foi financiada com o óbolo generoso do Brasil e, particularmente, com os donativos espontâneos da população carioca” (Costa, 1931b: 22). Percebe-se como a analogia e a inspiração cedem lugar a uma rivalidade que releva um heroísmo brasileiro. Nos discursos que cercam o monumento ao Cristo Redentor, predominam, no entanto, as indicações de alguma espécie de saudável colaboração por parte do estrangeiro. Assim foi para o projeto como um todo, concebido no Brasil e na Europa. Assim foi também para uma parte dele, o revestimento, constituído de milhares de pastilhas

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triangulares. Silva Costa confessa que teve a idéia de um revestimento em mosaico ao observar uma fonte parisiense.10 Por outro lado, Lisboa chama a atenção da substituição da cerâmica pela pedra-sabão, o mesmo material empregado por Aleijadinho em suas obras, “uma solução tão feliz quanto original e verdadeiramente nacional” (1931: 23). E outro comentarista encontra na pedra-sabão “um belo símbolo do Cristianismo”, “uma doutrina de candura e amor” (Reis, 1931: 26). Outra associação ocorre no mesmo texto: “São os tacos que lembram a fonte de que foi feita a estátua: pedra junto a pedra, óbolo sobre óbolo, do humilde do pobre do obscuro, o ‘nada isolado’ dando [...] o ‘tudo grandioso” (Reis, 1931: 26). Percebe-se como, no revestimento da estátua, articulam-se o nacional e o estrangeiro, o material e o espiritual, de um modo que aos protagonistas não parece algo problemático. A conexão entre o nacional e o estrangeiro, passando pela religião, reaparece no episódio da iluminação inaugural do monumento. Ela teve lugar destacado nas festividades e sempre recebeu a atenção dos observadores. Desde a fase de discussão dos projetos, a iluminação era uma dimensão merecedora de cuidados. Como se disse, o acionamento dos comandos coube a G. Marconi, que o fez da Europa. No texto que enviou ao embaixador italiano, ele mesmo refaz o nó que definiu a data da inauguração do monumento: sua participação “traz à Itália, centro

da cristandade, a lembrança da descoberta da América” (citado por Soares, 1934: 108). Segundo diversas fontes, o sinal enviado da Europa chegou muito fraco ao Brasil e teve que ser amplificado localmente para estar capacitado a acionar os dispositivos. Vislumbrase aqui uma metáfora sugestiva. A luz que emana do “centro da cristandade”, sintetizando um ideal de religião e de civilização, só pôde brilhar no Brasil com uma intervenção local, intervenção que, tratando-se do monumento como um todo, foi capaz de produzir um “tudo grandioso” sem equivalentes, na sua escala, em solos europeus. É essa relação entre nacional e estrangeiro que se reconfigura em elaborações mais recentes.

Cf. documentário e exposição Christo Redemptor. 10

E se o governo brasileiro resolvesse presentear Israel com esta escultura, já que é a terra natal do homenageado? Em 2005, foi finalizado o documentário Christo Redemptor, de quase meiahora, concebido e produzido por Bel Noronha.11 Costurado por vários narradores, tem seu foco no período entre 1922 e 1931, cobrindo a elaboração do projeto e a construção do monumento. Traz muitas imagens dos anos 1920 e 1930, fotos e filmagens, mas começa e conclui com referências ao presente. Intertítulos marcam as divisões do documentário. “O autor do projeto” apresenta Heitor da Silva Costa e as

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O documentário ainda não tem distribuição comercial. O material passa no momento por uma nova edição. para que se produza uma versão maior. Agradeço a Bel Noronha a oportunidade que me ofereceu de assistir ao seu filme, o primeiro de sua carreira de cineasta. 11

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Cf. http://www.arquidiocese.org.br/paginas/ curtacristoredentor.htm. Acesso em 2 de agosto de 2006.

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reformulações de seu modelo original. “O cardeal e as doações” aborda d. Leme e a campanha de recursos. “Heitor na Europa (1924–1927)” trata do encontro com Paul Landowski e da escolha dos materiais do monumento. “A construção (1926–1931)” acompanha a ereção da estátua, acentuando as dificuldades vencidas. “A inauguração” dedica-se às festividades do dia 12 de outubro, incluindo comentários sobre a iluminação do monumento. Voltarei a tecer observações sobre o filme, mas prefiro apontar primeiro algumas dimensões da sua repercussão. O documentário foi lançado no dia 12 de outubro de 2005, em evento promovido pela Arquidiocese da Cidade do Rio de Janeiro aos pés do monumento ao Cristo Redentor. O boletim da Arquidiocese12 anunciou esse evento como o início das comemorações do 75º aniversário de inauguração da imagem. Antes disso, porém, havia sido exibido em Paris, em circunstâncias que merecerão um comentário específico adiante. Desde então, no Brasil, participou de alguns festivais de cinema; no Rio de Janeiro, foi apresentado e debatido em bibliotecas públicas. Motivou ainda algumas reportagens em jornais e revistas de grande circulação. Por fim, deu origem a uma exposição multimídia, igualmente intitulada Christo Redemptor, com curadoria e coordenação da mesma Bel Noronha, montada no centro cultural mantido pelo SESC Rio de Janeiro, no bairro carioca do Flamengo. O próprio documentário pode

ser assistido pelos visitantes da exposição, que ainda têm à disposição textos e fotos sobre o projeto e a construção do monumento, bem como referências mais recentes sobre o Cristo Redentor. A exposição foi aberta em setembro de 2006 e prosseguiu até janeiro de 2007, acompanhando, pois, a data que marca o 75º aniversário da inauguração da estátua. Uma das questões que vem pontuando a repercussão do documentário de Bel Noronha envolve a autoria intelectual do monumento ao Cristo Redentor. A discussão é anterior (cf. Folha de S. Paulo, de 19 de setembro de 2004), mas parece ter se acirrado em razão do filme e de seus desdobramentos. A tese defendida por Bel Noronha em seu filme aponta como autor do monumento Heitor da Silva Costa, de quem ela, aliás, é bisneta. As colaborações de C. Oswald, nos desenhos, de A. Caquot, nos cálculos estruturais, e de P. Landowski, para as maquetes e esculturas da cabeça e das mãos, são reconhecidas, mas sem abalar o papel de Silva Costa. L. Landucci, italiano que aparece como protagonista na narrativa de Grinberg (1999: 65), a título de assistente de Landowski, não é mencionado. No documentário, o estatuto autoral do bisavô da diretora se traduz na sua função de narrador principal: em vários momentos, escutamos uma voz que simula Silva Costa falando em primeira pessoa. O argumento adotado pelo filme encerra a definição do formato da estátua em sua primeira seção, situando

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a intervenção de Landowski apenas na terceira seção, quando se estabelece a aparência do monumento. Uma das matérias que cobriu o lançamento brasileiro do documentário sugere uma reparação histórica: “Justiça será feita com o maior símbolo do Rio de Janeiro. Ao contrário do que a maioria pensa, os 38 metros do Cristo Redentor, o maior monumento arquitetônico do país, não foram um presente do governo francês, mas a obra-prima da vida do arquiteto-engenheiro carioca Heitor da Silva Costa” (Jornal do Brasil, 11 de outubro de 2005). Na exposição, Silva Costa volta a ter papel destacado. A começar por seu anúncio, reproduzido em cartazes e folders: Christo Redemptor – exposição – Projeto e Construção: Heitor da Silva Costa. Na sala dedicada a narrar o projeto do monumento, o brasileiro ganha uma posição literalmente central, pois as informações a seu respeito estão impressas numa espécie de totem no meio do ambiente. Há uma parte da exposição dirigida ao entretenimento do público infantil, em que há um monitor com perguntas sobre o monumento; o usuário é informado sobre a resposta correta entre outras duas alternativas. Uma das questões é: “Quem fez o Cristo?”, cuja resposta correta aponta para Silva Costa.13 Não é o que pensam os herdeiros de Landowski, que vêm tomando providências legais para receber o que lhes seria devido no caso de uso comercial da imagem. Isso supõe a tese de que Landowski é o verdadeiro autor intelec-

tual do monumento e de que não teria cedido seus direitos a qualquer pessoa ou entidade. O caso envolve ainda a Arquidiocese da Cidade do Rio de Janeiro, que por sua vez se diz proprietária do monumento e se mostra zelosa dos usos a que se destina a sua imagem. Uma das reportagens que enfocam a controvérsia aposta: “Principal cartãopostal do país, o Cristo Redentor deve se tornar também o palco de uma das maiores disputas por direitos autorais do País” (Gazeta Mercantil, 2 de maio de 2006).14 Contento-me, neste texto, em apenas apontar a controvérsia. Um tratamento à altura demandaria tanto uma discussão consistente sobre a própria noção de “autoria” quanto um mapeamento preciso das várias versões difundidas sobre a concepção e a construção do monumento. O assunto entrou na pauta porque revela e integra um aspecto mais geral que cerca a repercussão de Christo Redemptor, o documentário. Veremos como nela se constrói uma imagem de brasilidade associada ao Cristo Redentor, o monumento. Tratase de uma construção e de uma imagem distintas daquelas que acompanhamos por ocasião de sua concepção e inauguração. Naquele momento, erigia-se a imagem que, ao mesmo tempo, impunha-se como símbolo de uma nação religiosa, e o Brasil aparecia, a um só tempo, como ameaçado e glorioso, frágil e eleito. Agora, é um Brasil sólido, mas nem por isso glorioso, irredutível à unidade com que outrora foi conce-

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Outra perguntaresposta atribui a Landowski a escultura da cabeça e mãos da estátua. 13

Ver ainda Folha de S. Paulo, 19 de setembro de 2004; O Globo, 12 de outubro de 2005; Isto É, 22 de fevereiro de 2006. 14

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Ver ainda Isto É, 22 de fevereiro de 2006: “Muitos acreditam que o Cristo é presente da França. Outro equívoco”. 15

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bido, que se impõe à imagem religiosa e a comissiona para representá-lo. Nessa tarefa de representação, a imagem, mesmo que não se pretenda tirá-la do lugar onde está, é provocada a se deslocar e a se metamorfosear. Enquanto no passado o monumento estava atrelado ao projeto de um “Brasil cristão”, agora a estátua parece sugerir – para usar os termos do painel que recebe os visitantes da exposição no SESC – “um Cristo brasileiro”. Uma das reportagens que comenta a exposição se inicia assim: “Cada vez que ouve alguém repetir a lenda de que o Cristo Redentor é de autoria de um escultor francês, e a estátua foi um presente do país de Charles de Gaulle ao Brasil, Bel Noronha tem vontade de pedir licença e esclarecer as coisas” (O Globo, 3 de setembro de 2006). Em seguida, refere-se a “Heitor da Silva Costa — o brasileiríssimo autor do projeto, executado também com dinheiro nosso”. A propósito do documentário, o informativo da Arquidiocese, já citado, atribui à bisneta de Silva Costa declarações que seguem na mesma direção: “Após assistir ao curta, os espectadores perceberão que o Cristo Redentor não foi um presente do governo francês para a cidade, como diz a ‘lenda’, e irão se sentir ainda mais orgulhosos ao constatar que é uma obra totalmente brasileira com um auxílio francês” (grifo adicionado). Percebe-se, nesses excertos, assim como em outro destacado anteriormente (Jornal do Brasil, 11 de outubro de 2005), que a reivindicação de autoria para Silva Costa junta-se

à recusa da versão que considera a estátua um presente estrangeiro.15 Concepção, construção e custeio: tudo isso seria brasileiro. Tal preocupação tem impacto significativo na exposição. Antes de passar ao material que narra a concepção do monumento, o visitante se depara com um vídeo em que são projetadas animações sobre um fundo sonoro com depoimentos não identificados. Neles, sucedem-se dúvidas e versões sobre a concepção do projeto, a sua autoria, a responsabilidade por seus custos, os procedimentos e os passos da construção da estátua. Depois de passar por essa montagem, o visitante tem a oportunidade de desfazer tais dúvidas e de se informar corretamente por intermédio do material apresentado ao longo da exposição. Se for ao monitor da seção infantil, poderá testar seus conhecimentos ao ser interpelado pela pergunta “Quem pagou pela construção do Cristo Redentor?”: nem o “governo francês”, nem “empresas privadas”, mas “o povo brasileiro”. No filme de 2005, algo semelhante acontece com as imagens iniciais, quando se escuta, em off, alguém fazer referência à versão do presente francês. É algo discreto, se comparado com o que vemos na exposição, mas que justifica a ênfase dada, na segunda seção do documentário, à campanha de doação de recursos, apresentada como tendo mobilizado toda a cidade e chegado a obter colaborações vindas de recantos do país.

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O documentário, por sua vez, também não repercutiu apenas na cidade. Em Brasília, o senador Arthur Virgílio, então líder de um dos mais influentes partidos políticos brasileiros, solicitou em 19 de outubro de 2005 um “voto de aplauso ao povo do Rio de Janeiro”. Vale transcrever parte de sua justificativa, pois ela, com expressões eloqüentes, reforça em pleno Senado Federal a versão que aqui acompanhamos, bem como reitera a brasilidade do monumento: Cartão postal carioca mais difundido no mundo e já considerado, com justeza, como um dos símbolos do Brasil, o Cristo Redentor completou 74 anos no dia 12 de outubro de 2005 e, como parte das comemorações, constou a exibição do documentário de Bel Noronha, intitulado Christo Redemptor. O filme, como observa sua diretora, desfaz o mito de que o monumento é obra e presente da França. Não é, assegura. Seu autor é brasileiro, o engenheiro Heitor da Costa Silva (sic), avô (sic) da cineasta. A homenagem está publicada no Diário do Senado.16 Voltemos nossos olhos, então, para o Rio de Janeiro, aplaudido da Capital Federal, pois vemos operar nos discursos uma associação, tão recusada em outras ocasiões, entre a cidade e o país, tecendo entre eles uma relação de contigüidade. No documentário de Bel No-

ronha, além de seu bisavô, a outra personagem central é exatamente a cidade. É ela que aparece como a contemplar o Corcovado e o Cristo nas primeiras imagens; é ela que, depois de se mostrar enfeitada para as comemorações do primeiro centenário em 1922, representa o povo que colabora com doações e comparece às festividades de inauguração; é ela, enfim, que recebe hoje os visitantes que são filmados junto ao monumento na conclusão do filme. Na exposição, o protagonismo da cidade se manifesta logo na primeira sala, um ambiente circular em cujas paredes foram instaladas imagens que reproduzem a visão panorâmica que se tem do lugar onde o monumento está. Mais adiante, esgotado o material propriamente histórico, o público tem oportunidade de assistir a colagens visuais em que a estátua aparece como parte da cidade e fonte de inspiração artística. Uma seção da exposição – significativamente batizada de “infinitos objetos” – apresenta uma variedade desconcertante de souvenirs relacionados ao monumento e de objetos mais ou menos utilitários inspirados na imagem do Cristo Redentor. Retornemos agora ao painel que apresenta a exposição. Abaixo do título “Um Cristo Brasileiro”, inicia-se o texto: “O Cristo Redentor, ‘com seus braços abertos sobre a Guanabara’ como cantou o célebre compositor e poeta, ao completar 75 anos de existência, continua sendo um signo de reconhecimento do Rio de Janeiro, de sua gente e do espírito carioca em todo o

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O registro do voto pode ser consultado em http://www.senado. gov.br/web/cegraf/ pdf/19102005/35434. pdf 16

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17 O texto da apresentação consta do folder da exposição, de onde o transcrevi.

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país e no cenário internacional”. Assim como o material da própria exposição, essa apresentação reconhece o papel da Igreja Católica, mas não registra seu discurso veemente de cristianização da nação. Em seu lugar, lê-se: “o Redentor faz parte do universo afetivo de todos os cidadãos, transcende religiões e ideologias; é um dos mais famosos ícones da Cidade Maravilhosa, a ponto de um cronista afirmar que possui alma carioca todo aquele que, debruçandose a uma janela, em qualquer local da cidade, busca avistá-lo como um ponto crucial de referência”.17 Nessas palavras, o Cristo deixa de aparecer como o “altar da Pátria”, para se tornar o lugar onde se projeta a “alma carioca”; não é mais marco da essencialidade católica da nação, e agora “transcende religiões e ideologias”. Nesse novo lugar, o Cristo parece condenado a suportar o peso da caótica diversidade de imagens e de referências de que a exposição multimídia oferece diminuta, mas sugestiva amostra. Ao citar “um cronista”, esse texto remete, com muita probabilidade, ao artigo de Arthur Dapieve, originalmente publicado em sua coluna no jornal O Globo de 22 de dezembro de 2000, e reproduzido no livro Da janela vê-se o Redentor (Linhares, 2001). Trata-se de um livro de fotografias que enquadram a estátua do Cristo Redentor, cada uma delas tirada de um ponto diferente da cidade. Em seu artigo, Dapieve elucubra sobre uma frase que viu aparecer na peça publicitária de um shopping cen-

ter: “Ser carioca é... procurar em cada janela se há vista para o Cristo”. Tal forma de se referir aos habitantes da cidade do Rio de Janeiro lhe parece, em comparação com os estereótipos aplicados a parisienses e nova-iorquinos, “lindamente poética”. Há, segundo ele, algo de pureza, gentileza, esperança nessa imagem. Mas isso não o impede de reconhecer que, na mesma hora que um carioca procura o Cristo em uma janela, pode ser vítima de uma bala perdida ou testemunha de uma cena de barbárie no trânsito. Assim como as fotos em que o Cristo aparece visto de um clube de tênis ou da laje de um barraco de favela, o texto não promete redenções. A ironia persiste até a última frase: “Não importa a que horas, a estátua estará flutuando, a iluminar nossa cidade. Desde, claro, que não estejamos no meio de um apagão” (citado por Linhares, 2001: 9–10). Outro livro a propósito do Corcovado e em que a cidade surge como a principal personagem, cuja menção parecerá por enquanto arbitrária ao leitor, é o de Agnès Winter (2004). Nesse caso, ainda mais claramente, uma vez que fotos do Corcovado com seu Cristo ou tiradas de lá dividem espaço com fotos de outros lugares da cidade e de seus habitantes (praia, favela, carnaval e futebol incluídos). O livro contém também alguns textos curtos. Um deles é uma cronologia que vai da expedição organizada por d. Pedro I até a instalação de escadas rolantes em 2003, passando pela concepção e a construção do monumento ao

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Cristo. Outro, assinado por Luiz Paulo Horta, fala das mudanças da cidade – “a violência cresceu; as favelas foram ocupando cada vez mais as encostas; o trânsito quase enlouqueceu” – sobre a qual, no entanto, “o Cristo Redentor continua a abrir seus braços” (citado por Winter, 2004: 40). Outro ainda, de Jorge de Souza Hue, contrasta o passado da “cidade generosa, amena, alegre e cortês, consciente também do privilégio de sua beleza” com o presente de muito “desengano e descompasso, tanto no tecido físico como no social” (citado por Winter, 2004: 70). A parte final do livro, chamada “Brasil, Terra de Esperança”, é ocupada por obras artísticas da própria Winter, em materiais diversos, em que a silhueta do Cristo Redentor do Corcovado ganha, em várias metamorfoses, muitos contornos e preenchimentos. Uma leitura possível dessas intervenções, compreendidas como exemplos das múltiplas e virtualmente infinitas apropriações que o monumento e o lugar vêm acumulando, levaria a aproximá-las de algo que aparece em outra parte do livro de Winter. Ela transcreve os depoimentos de alguns visitantes do Corcovado. Há o baiano octogenário que encontra, emocionado, o Cristo pela primeira vez; há a carioca que foi comemorar seu aniversário junto à imagem, sem saber quem a construiu. A filipina que diz: “não sou católica, mas acho que a estátua representa a alma brasileira” dialoga com outro carioca, que opina: “mesmo para aqueles que não são católicos, a estátua é um

símbolo religioso bem forte” (2004: 44–5). A pergunta que provoca a última resposta é significativa também pela pluralidade de perspectivas que oferece para examinar a imagem: “O Cristo Redentor aparece mais como um símbolo sociológico, turístico ou religioso para você?” Algo interessante, o documentário de Bel Noronha igualmente termina com imagens de turistas junto ao monumento, alguns visivelmente maravilhados, outros descontraidamente tirando e posando para fotos. Em off, vozes, presumivelmente de alguns daqueles visitantes, misturam referências religiosas e elogios à cidade. Nas suas primeiras páginas, o livro de Winter esclarece que deriva de uma exposição realizada em outubro de 2003 numa galeria carioca e de um projeto chamado “Cor quo vado, uma homenagem européia”. Winter é uma artista francesa que viveu alguns anos no Brasil. Uma das suas intervenções sobre a silhueta do Cristo tem como título “French dream” (em inglês, na página 107 do original) e utiliza as cores da bandeira francesa entre linhas que lembram o traçado geométrico de Mondrian. Na mesma parte do livro, há o registro de uma intervenção diferente das demais, pois se deu sobre a própria estátua, que aparece banhada em azul, graças a filtros colocados sobre os refletores que fazem a iluminação do monumento. O livro traz algumas fotos e a explicação: “Nas noites de 18 e 19 de outubro de 2003, o Cristo Redentor do Corcovado foi iluminado em azul

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18 Cf. texto em http:// www.agneswinterprojects.com/frameset2. htm. Acesso em 15 de setembro de 2006.

19 Ver a apresentação do Ministério da Cultura brasileiro em http://www.cultura.gov. br/projetos_especiais/ ano_do_brasil_na_franca/index.html

Esse fato é lembrado por uma legenda que está numa das salas da exposição Christo Redemptor.

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21 Cf. matéria em http://www.cultura. gov.br/noticias/noticias_do_minc/index. php?p=13129&more =1&c=1&tb=1&pb= 1. Acesso em 15 de setembro de 2006.

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pela artista, em prol da Paz no mundo” (Winter, 2004: 116). Em seu sítio na internet, a artista comenta o projeto: “Impressionada pelo apego dos cariocas quando da realização de uma centena de entrevistas com brasileiros e turistas ao que representa, para eles, o monumento nos planos espiritual, turístico e social, veio-lhe a idéia no momento em que se anuncia a perspectiva da guerra no Iraque”.18 O espetáculo se repetiu em março de 2005, por ocasião da comemoração dos 440 anos da cidade. Dois mil e cinco foi também o “Ano do Brasil na França”, que movimentou uma programação organizada em conjunto pelos governos dos dois países.19 É aqui que o leitor perceberá o sentido da menção ao trabalho de Winter, pois como parte dessa programação, na noite de 1º de outubro de 2005, houve a projeção da imagem do Cristo Redentor iluminada de azul sobre a fachada da igreja de Notre Dame de Paris [Figura 3]. A projeção, na qual Winter esteve de novo diretamente envolvida, foi precedida por uma missa rezada em francês e em português, por um concerto de “música barroca brasileira” e pela exibição do documentário de Bel Noronha.20 Alguns dias depois, a mesma imagem passou a ornar as paredes de um espaço cultural em Boulogne-Billancourt, nos arredores de Paris. Nesse caso, a atração permaneceu até o final do ano. Também aí houve a exibição do filme de Bel Noronha, no dia 8 de dezembro. Boulogne-Billancourt é o lugar onde o escultor Paul Landowski manteve seu

Figura 3 Foto da projeção da imagem do Cristo Redentor sobre a fachada da Notre Dame de Paris, noite de 1º. de outubro de 2005. Fonte: Site da Radio France Press (http://www.rfi.fr)

ateliê de trabalho, e que hoje abriga um museu e um espaço cultural. Duas maquetes originais da estátua do Cristo Redentor seriam expostas como parte da programação, e o evento visava dar uma oportunidade para o “público francês” descobrir “a cidade do Rio de Janeiro, a cultura e a arte brasileira”.21 A ida do Cristo Redentor à França se fez em situações e foi acompanhada de discursos que articulam diversas dimensões e significados. Pode-se, para começar, especular sobre a escolha da igreja de Notre Dame como pano de fundo para a projeção em Paris. Preservou-se, com isso, uma referência reli-

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giosa, mas não tão fortemente quanto, se a escolha tivesse recaído sobre a basílica do Sagrado Coração. Consagrada à mesma devoção que o monumento do Cristo Redentor, tal basílica é lugar que remete, pela história de sua construção, a um projeto de catolicização da França. Já Notre Dame, pelo que passou (atingida pela Revolução, reapropriada nos escritos de Victor Hugo e parcialmente secularizada para abrigar eventos nacionais, como os funerais do presidente Mitterand), evoca sentidos que extrapolam o religioso e, como o Cristo Redentor, participa dos ícones da nacionalidade. Mesmo assim, a responsável pelo projeto enfatizou sua conotação religiosa.22 Outro ponto que reaparece a propósito do Cristo na França é a questão da autoria. Ao contrário do que predominou na repercussão do documentário de Bel Noronha no Brasil, mesmo uma notícia do Comissariado brasileiro sobre a programação em Boulogne-Billancourt menciona que a estátua “foi construída pelo escultor Paul Landowski em parceria com o engenheiro Heitor da Silva Costa”. E uma notícia no site em português da Radio France International, ligada ao governo francês, chega a atribuir a autoria apenas ao “escultor francês”.23 O Cristo, portanto, parece ter chegado à França mais religioso do que ao sair do Brasil, além de suportar uma autoria compartilhada. Mas isso não parece ter comprometido sua brasilidade. Como vimos, o trabalho de Winter sobre o Cristo se faz na esteira de apropriações que sintonizam a imagem

com as múltiplas e dilemáticas identidades da cidade e de seus habitantes, e por extensão do país. Suas declarações também destacam a brasilidade da imagem. Aquela em que dá conotação religiosa ao evento em Paris continua assim: “Esta projeção está ligada às minhas raízes cristãs e também à grande espiritualidade do Brasil”. Lembremos que o sentido do projeto original no Rio de Janeiro estava associado à paz mundial, o que não é estritamente religioso. Transposta para Paris, a imagem seria, para Winter, uma maneira de “falar da generosidade e da alegria de viver dos brasileiros”.24 Considerando-se isso, sugiro uma continuidade entre o Cristo que é projetado na França e o Cristo que sobressai dos projetos de Bel Noronha, sendo essa talvez a razão que permite afirmar que, apesar das discordâncias sobre sua autoria, eles tenham sido conjugados nos mesmos eventos. Trata-se do “Cristo brasileiro”. É assim que ele aparece sobre a silhueta do Corcovado, brancos, projetando sua sombra sobre uma Paris difusa, no cartaz que divulga os eventos de Boulogne-Billancourt.

Cf. entrevista disponível em http://www. rfi.fr/actubr/articles/070/emission_156. asp. Acesso em 15 de setembro de 2006. 22

Respectivamente, http://www.cultura. gov.br/noticias/noticias_do_minc/index. php?p=13129&more =1&c=1&tb=1&pb=1 e http://www.rfi.fr/actubr/articles/070/emission_156.asp. Acessos em 15 de setembro de 2006. 23

Cf. entrevista disponível em http://www. rfi.fr/actubr/articles/070/emission_156. asp. Acesso em 15 de setembro de 2006. 24

Então você não subscreveria um abaixo assinado pedindo a remoção do Cristo Redentor do Corcovado? Ao analisar a constituição simultânea e implicada dos nacionalismos britânico e indiano no século XIX, Peter Van der Veer fornece uma pista interessante

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25 Esse sentido religioso, como procurei apontar, está presente nos comentários de Agnès Winter e na própria associação que se produziu entre o Cristo Redentor e a igreja de Notre Dame.

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para as reflexões finais deste texto. Seu trabalho procura mostrar como, em ambos os casos, religião, raça, ciência, gênero e questões lingüísticas são cruciais para entendermos as mobilizações nacionalistas. Ele nega que existam “diferenças culturais irredutíveis entre Índia e Europa” e propõe que “a Índia moderna e a Grã Bretanha moderna são produtos de uma experiência colonial compartilhada. Conceitos chave da modernidade, como secularidade, liberdade e igualdade, são criados e recriados na interação entre colônia e metrópole” (2001: 7). Ao anunciar uma perspectiva histórica “interacional”, pretende superar as limitações tanto de uma história imperial (feita a partir do Ocidente) quanto de uma história nacional (e sua essencialização do nativo). Enquanto a recusa de uma história imperial pode remeter à proposta de “provincialização da Europa” de Chakrabarty, a recusa de uma história nacional está em consonância com as reflexões de outro historiador associado ao campo dos estudos pós-coloniais, Gyan Prakash. O principal problema das histórias nacionais, segundo Prakash (1992), é que se constituem sem abalar os fundamentos de uma história imperial, invertendo apenas a valoração conferida ao nativo. Não conseguem, portanto, desestabilizar as fronteiras entre “nós” e “eles”, entre “Ocidente” e “Oriente”. A idéia de uma desestabilização de fronteiras foi exatamente o que guiou a análise que apresentei acerca do monumento ao Cristo Redentor: nesse caso,

entre “brasileiro” e “europeu”, “nativo” e “estrangeiro”. O desafio consiste em produzir uma análise não nacional da construção da nacionalidade. Em função da natureza da maior parte do material a que tive acesso, só acompanhei a história da imagem do lado brasileiro, mas é possível vislumbrar algo do que surgiria do lado europeu. Tratar-se-ia, então, de mostrar como a história da “civilização européia” passa pelo Brasil, tendo como foco a dimensão religiosa. Tomada essa perspectiva, o fato de que a idéia de uma estátua do demiurgo no alto do morro do Corcovado tenha sido o “sonho [de um] francês” deixa de evocar uma banalidade para se tornar algo significativo. Afinal, devemos lembrar que o Brasil tornou-se o destino de muitos religiosos europeus desde a segunda metade do século XIX. Realizado mais tarde, esse sonho transformou-se na gigantesca estátua de concreto, que passou, por sua vez, por uma conversão que passível de ser captada pelos termos empregados em texto de Sansi (2003): de “imagem religiosa” a “ícone cultural”. De fato, o monumento conseguiu se tornar símbolo de uma cidade e de um país, o que, por exemplo, o credenciou para representar o Brasil na França. Curiosamente, de uma forma que não descarta o sentido religioso;25ao contrário, é mantido para corroborar uma visão corrente na França sobre as diferenças que constituem os brasileiros, percebidos ao mesmo tempo como mais cristãos e mais pagãos do que os franceses. A terra de missão, assim, se

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teria tornado mais religiosa do que a terra dos missionários. Mas é claro que procurei trabalhar sobre o outro lado da desestabilização das fronteiras, ou seja, como a construção nativa da brasilidade atrelada ao monumento do Cristo Redentor se articula com elementos, referências e perspectivas estrangeiras. Embora o sentido dessa brasilidade mude bastante quando consideramos os dois momentos aqui enfocados, a presença do estrangeiro se mantém. Na época da sua concepção e inauguração, a imagem do Cristo Redentor expressava uma visão que insiste em situar a Europa no centro da cristandade e da modernidade, e o que está em jogo é a inserção do Brasil nesse espaço. Eis por que a idéia de um “Brasil cristão” permite e mesmo estimula as inspirações, as colaborações e as referências estrangeiras, nutrindose as esperanças de que a América pudesse realizar melhor um ideal que já dera sinais de fracasso na Europa. No momento atual, captado pela análise do documentário de Bel Noronha, seus desdobramentos e repercussões, a ênfase está posta numa brasilidade a ser contraposta ao estrangeiro e sintetizada na imagem de um “Cristo brasileiro”, capaz de juntar interpretações sobre o passado (da concepção e construção do monumento) e sobre o presente (a constatação da estátua como ícone cultural da nacionalidade). O estrangeiro, no entanto, não desaparece; desloca-se, sendo um dos elementos constituintes do olhar que produz esse ícone cul-

tural. Afinal, se o Cristo Redentor do Corcovado foi capaz de produzir tantas emulações pelo país,26 é principalmente ao estrangeiro que faz seu convite de visita como atração carioca. A função que a estátua desempenha como representante do país no exterior só faz sentido quando percebemos o papel constituinte que o estrangeiro tem hoje em sua configuração. Viajar sem deixar o seu lugar: essa façanha está associada a um dos atributos que parece colado ao monumento, a perenidade. Pouco mais de dois anos antes da sua inauguração, o padre Manuel de Macedo, que esteve envolvido nos esforços de construção, assim se pronunciou sobre a estrutura que já anunciava a sua presença: “Ali [...] repousará para sempre a suave imagem do Cristo, Rei Universal – milagre da fé, prodígio da técnica – servindo de coroa à realeza da obra de Deus” e qualificando-se como “um anúncio perene do Evangelho a todas as gentes” (citado por Soares, 1934: 48). O texto dialoga com vários temas que vimos aparecer no momento da concepção e da apresentação do monumento. O destaque dado à perenidade da estátua encontraria eco numa das elaborações da idéia da essência cristã da nação, tal como vemos nas seguintes palavras do ato da consagração da imagem no dia da sua inauguração, dirigidas a Jesus: “vós que esculpistes no céu brasileiro a vossa cruz, de onde jamais poderá ser apagada” (citado por Carvalho, 1997: 89). Já quando assistimos ao documentário de

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Segundo levantamento realizado para apoiar uma exposição em 1996, promovida pela Estrada de Ferro do Corcovado, haveria 185 estátuas pelo Brasil inspiradas na original carioca. Cf. texto em http://www.overmundo.com.br/overblog/ crescei-vos-e-multiplicai-vos. Acesso em 10 de outubro de 2006. 26

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27 Cf. o folder da exposição Christo Redemptor.

28 O vídeo pode ser assistido através do site Porta Curtas, que disponibiliza informações sobre sua produção e autoria: http://www. portacurtas.com.br/Filme.asp?Cod=3351.

29 A eleição foi promovida por uma fundação com sede na Suíça. Partiu de uma lista inicial de 77 candidatos para chegar a 21 finalistas. Sites brasileiros associados ao Cristo Redentor, como o da Estrada de Ferro do Corcovado, mantiveram links para o site da votação (http://www. new7wonders.com).

Bel Noronha, logo de início, entre imagens recentes do Corcovado e outras bem antigas, anteriores ao século XX, é a voz de Chico Buarque que ouvimos dizer: “parece um absurdo não existir o Cristo ali”. O texto de apresentação à exposição atual é quase um comentário às palavras do compositor: “Quando se observam imagens antigas do morro do Corcovado, anteriores à construção do monumento, prevalece um sentimento de vazio, de orfandade, causado pela ausência de um símbolo que hoje nos parece eterno e em harmonia com seu entorno, decorando a bela paisagem”.27 É interessante que o mesmo Chico Buarque, em seu último álbum (Carioca), tenha incluído a estátua numa de suas músicas, “Subúrbio”. Sua letra capta os fardos e os limites da associação que se faz entre a imagem e a cidade, e obriga a contrabalançar a perenidade com as transformações que atingem os significantes e os significados. Eis o trecho em que o Cristo é mencionado: Lá não tem moças douradas Expostas, andam nus Pelas quebradas teus exus Não tem turistas Não sai foto nas revistas Lá tem Jesus E está de costas O jogo entre permanência e fluidez reaparece em Pedra nua, registro em vídeo realizado em 2005 que também enfoca o Cristo Redentor. Seus produto-

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res, os integrantes do Cactos Intactos, “grupo de guerrilha cultural”, acompanham os turistas que encontram dentro do trem e no alto do Corcovado junto ao monumento. Os diálogos são, na maior parte, resultados de perguntas-provocações feitas pelo grupo, das quais três serviram para compor os subtítulos deste texto. As duas primeiras exploram, em formulação desconcertante, os paradoxos da relação entre nacional e estrangeiro. Já a última se comunica com a proposta central do vídeo, de acordo com a sua apresentação: “executar a demolição performática da estátua do Cristo Redentor no topo do Corcovado”. Em resposta, um dos participantes discorda: “Se fosse na época da pré-construção, pré-inauguração... mas ela já virou um ícone conhecido no mundo inteiro. É um dos grandes símbolos do Brasil e muito mais do Rio de Janeiro”.28 Essa deve ter sido a opinião também das milhares de pessoas que, pela internet, participaram da consulta que visou eleger as novas sete maravilhas do mundo. Entre os candidatos finalistas, o monumento ao Cristo Redentor foi o único sítio localizado no Brasil.29 A mobilização e o debate que ocorreram por causa da votação mereceriam um texto próprio. De todo modo, a sua vitória parece representar um desafio aos iconoclastas naturais e humanos, reiterando a provocação que nos dá a oportunidade de enfrentar os enigmas da fluidez da permanência e da instabilidade das fronteiras.

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Abstract The article analyzes the cons-

and the foreigner. It takes in

about the monument is showed.

truction of Brazilian nationa-

consideration two moments:

lity considering the monu-

the conception and inau-

ment of Christ the Redeemer,

guration of the monument

Key words

in Rio de Janeiro, and its

(1921–1931) and the recent

Catholicism, nationality, Rio de

relationship with the native

times, when a documentary

Janeiro, religious image

Recebido em novembro de 2006 Aprovado em dezembro de 2007

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