Brasileiros entre a música e a literatura: escritores músicos, músicos escritores

June 3, 2017 | Autor: L. Queriquelli | Categoria: Languages and Linguistics, Identity (Culture), Language and Identity
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BRASILEIROS ENTRE A MÚSICA E A LITERATURA: ESCRITORES MÚSICOS, MÚSICOS ESCRITORES Luiz Henrique Queriquelli Ensaio apresentado no seminário de pesquisa “Discurso Literomusical Brasileiro”, organizado pelo Grupo de Estudos de Retórica e Argumentação da FFLCH-USP, ocorrido em 6 de setembro de 2014 na mesma faculdade.

A história da música popular brasileira e a história da nossa literatura têm personagens em comum. Uma breve revista comparada de ambas as histórias revelará não poucos homens que adquiriram notoriedade tanto pelos trabalhos que desempenharam na área da música popular quanto por suas criações literárias. Um olhar atento para as realizações desses artistas multifacetados pode tornar viável a consideração das prováveis influências que teriam ocorrido reciprocamente entre a música e a literatura brasileira. Não são poucos, porém, os estudiosos com autoridade que alertam para a complexidade do caso da canção brasileira, um fenômeno histórico e peculiar, que sinaliza características essenciais da cultura deste país. De fato, a natureza complicada da cultura brasileira talvez tenha no fenômeno de sua canção uma expressão das mais significativas. Por isso, mesmo se quisermos empreender a mais tímida análise que seja de casos de artistas brasileiros que figuraram tanto como escritores quanto como músicos no cenário nacional, não podemos nos atrever a distinguir, separar e olhar isoladamente para a obra escrita e para a obra cantada deles. Não é por menos que José Luiz Herencia, em estudo de pretensões semelhantes à nossa, faz a seguinte ressalva: Mais do que tentativas de distinguir ou aproximar poesia escrita e letra de músicas, em geral motivadas por uma série de preconceitos estéticos e diluições, o que nos interessa é o mecanismo de interpenetração entre essas duas modalidades de criação artística, e, especialmente, sua gênese no Brasil. (Herencia, 2007)

Embora consideremos que muitos importantes compositores brasileiros têm projetos de arte e vida, bem como obras perfeitamente comparáveis à de um grande poeta ou romancista, intentamos aqui considerar especificamente alguns daqueles que oscilaram entre o livro e o palco musical, alguns daqueles que talvez teriam dedicado sua vida aos livros se não tivessem nascido no Brasil. Pretendemos, enfim, considerar, a partir de uma escolha aleatória e arbitrária, apenas os artistas Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Arnaldo Antunes e Paulo Leminski – músicos escritores, escritores músicos. Antes, contudo, urge-nos debruçar um pouco mais sobre a questão da canção brasileira, pois que ela nos oferecerá subsídios imprescindíveis para entender tais artistas.

A canção brasileira: um encontro genuíno entre a música e a literatura Como bem se sabe, a canção é um híbrido de poesia e música. No Brasil, ao longo das décadas de 30, 40 e 50, ela veio um ganhando reconhecimento como manifestação artística de grande qualidade e importância que se consumou com a Bossa Nova. Atenuou-se então a distinção entre a música culta, elevada, e a música popular de entretenimento. Este processo, porém só veio a intrincar ainda mais questões sócio-culturais que vinham se confundindo há séculos. Herencia, a propósito, reconhece que o “ciclo formativo da canção brasileira” – “daquela forma de expressão musical em que se projetam especificidades literárias de composição” – já se iniciara no século XVII, quando o poeta Gregório de Mattos Guerra, por exemplo, perambulava “carregando a tiracolo uma viola” (Herencia, 2007). No começo do último século, como Luciana Mendonça afirma em relação à literatura e à música: O surgimento da imprensa e a consolidação do livro como forma de fixação e transmissão da criação literária em geral e política em particular veio aprofundar a tendência de um processo de separação entre as atividades de leitura, fala e canto, que acompanha o processo, específico da Modernidade, de construção de distinções mais rígidas entre poesia e canção, situando-as em campos artísticos específicos: o da literatura e o da música. O ato de recitar torna-se cada vez mais circunscrito, enquanto a canção, sobretudo no que concerne à música popular, ganha terreno no cotidiano de forma acelerada pelas novas tecnologias que se popularizam, destacando-se o rádio e o fonógrafo. (Mendonça, 2007: 2)

Na contra-mão deste processo de separação, de construção de distinções rígidas entre a poesia e a canção, Vinicius de Moraes, que era desde a década de 30 “um poeta do livro”, contribuiu decisivamente para a constituição de uma tradição de poesia cantada a que José Miguel Wisnik chama de “gaia ciência”, uma expressão que os trovadores usavam para designar a grande tradição da poesia cantada, e que significa um saber alegre. “Nietzsche tomou a expressão como título de um livro de filosofia, desejou para a filosofia essa capacidade de pensamento que conciliasse profundidade e leveza.” (Wisnik, 2004: 215). A música popular brasileira adquiriu então essa capacidade e acabou por atrair certos talentos que em outros contextos teriam se dedicado estritamente à poesia do livro, ou ao cinema, ou a outras linguagens. Mas, como observa Wisnik (2004: 216), “que o sujeito se dedique à literatura e à música, que é ao mesmo tempo de entretenimento e séria, isso é uma loucura brasileira, mas também uma das riquezas da cultura do país”. Por tudo isso, gerou-se uma tal mistura de proveniência artística e estética, de níveis de informação, que facilmente poderia dar lugar ao ecletismo e à pura confusão. No entanto, é possível sustentar que vieram se forjando dentro dessa tradição critérios que a tornaram capaz de trabalhar com a simultaneidade e a diferença de um modo inerente à enunciação da poesia

cantada, com delicado e obstinado rigor, mesmo sob o efeito consideravelmente homogeneizador ou pulverizador das pressões de mercado. (Herencia, 2007)

Herencia e Wisnik parecem compartilhar um mesmo pensamento, o de que está implícito na canção brasileira um modo de sinalizar a cultura do país, um modo que não é somente uma forma de expressão, mas um modo de pensar mesmo, um forma de reflexão genuinamente brasileira. A própria natureza da canção permite isso. Como Luiz Tatit indica, quando a canção é abordada em sua integridade, isto é, quando “a letra, a melodia e todo o acabamento musical que compõem a canção” são tomados em conjunto, “algo ocorre em imanência que nos faz apreender a integração e a compatibilidade entre elementos verbais e não-verbais como se todos concorressem à mesma zona de sentido” (Tatit, 1999: 45). No entanto, mesmo reconhecendo características semióticas universais da canção é inegável que, no Brasil, a canção tomou um significado e ganhou uma potência culturalmente manifesta antes inéditos. Vinícius de Moraes Otto Lara Resende, em seu ensaio “O Caminho para o Soneto”, faz uma observação que define Vinícius de Moraes de um modo tão sintético quanto poeticamente apropriado: Pela voz do poeta, cantam os que não têm voz, o próprio morro tem vez. Vinícius abandona a tentação de um refinamento a seu alcance e dissolve-se no sentimento geral. Assim como em versos de quem conhece os segredos da técnica mais apurada cabe uma receita de feijoada, assim também, no balanço e na cadência de um samba, cabe um hino de amor à vida. O poeta altíssimo está finamente, na boca das multidões. Agora, sim, olha o céu, mas sobretudo pisa a terra. (Resende, 1987: 721)

Reiterando, Vinícius de Moraes teve um papel decisivo na constituição da tradição da canção brasileira. Ele foi pioneiro ao migrar particularmente da poesia erudita de livro para uma bossa nova de apelo popular e depois para um afro-samba ainda mais comovente ao povo. Como Chico Buarque disse num documentário que leva o mesmo nome do poeta, Vinícius criava uma onda, mas quando estava no alto de sua crista, ele a abandonava. Era um semeador inquieto. Como afirmam Alberto Pucheu e Caio Meira, “qualquer que seja a análise feita da obra de Vinícius de Moraes, não se pode escapar das palavras mudança, evolução, transição” (Pucheu & Meira, 2002: 369). Sua poesia encarnava o movimento e a transição, e tinha a busca como motor principal: uma busca pelo divino, pelo ordinário, pelo homem concreto, pelo homem social, pelo homem banal, pelo amante e pela mulher. E sua busca pela mulher, por várias mulheres que compõem uma única mulher, ao passo que expressava a mudança, a evolução e a transição de que falam Pucheu e Meira,

representava um sentimento tipicamente brasileiro, um sentimento que contém o apolíneo e o dionisíaco em si, harmonicamente. Chico Buarque Pucheu e Meira também bem observam que “é comum pensar-se que entre o letrista de música e o poeta há a mesma distância que entre o tecladista de uma banda musical e um pianista clássico”, mas que “tal consideração”, por tudo o que já foi dito aqui, “reflete uma maneira estanque de se pensar a arte, isto, é, a partir de categorias imutáveis e bem definidas”. Assim, “a resistência em atribuir valor poético à obra de Chico Buarque é um grande exemplo dessa obtusidade crítica” (Pucheu & Meira, 2002: 107). Como lembra Wisnik, Chico Buarque nasceu numa casa freqüentada por Vinícius, e o pai, Sérgio Buarque de Holanda, foi um dos maiores historiadores e ensaístas do país. Esteve, pois, muito ligado, desde muito cedo, à literatura. Se, como o próprio Wisnik considera, a peculiaridade do fenômeno da canção brasileira faz com que cancionistas de alto nível persigam uma realização tal qual um romancista, Chico Buarque, como cancionista e também romancista, inclui os dois gêneros artísticos numa mesma meta, num mesmo projeto de vida e de arte. E este projeto o Brasil invade de todas as formas. O que seria do Brasil sem ele? Não se trata do país de carne e osso, de injustiças fáceis e de esforços vãos em que vivemos. E sim do outro, o país da canção popular, onde todo brasileiro tem direito a exílio quando a vida real fica árida demais. O que seria desse Brasil da nossa segunda cidadania, o país sonoro e multirracial, sem potestades e sem excluídos, se não existisse Chico Buarque de Holanda? (Kehl, 2002: 60)

Nascido em 44, no país certinho dos anos 60, Chico renovou a fina ironia do samba. Na época da ditadura, no Brasil onde só se permitia ufanismo, a malandragem de Julinho da Adelaide (heterônimo de Chico) sobressaiu. À lembrança de Kehl (2002), “na caretice dos anos 80, Chico reabilitou o lirismo”. Sua evolução como cancionista se deu junto de seu desenvolvimento como literato. Em 75, por exemplo, toda a ousadia e sarcasmo de suas canções reverberavam no romance “Fazenda Modelo”. Na década de 90 e atualmente, toda a maturidade e o estilo impecável de seus últimos romances, “Estorvo”, “Benjamin” e “Budapeste”, vêm reverberando nas canções de seus últimos discos. Arnaldo Antunes e Paulo Leminski

Talvez nem todos saibam que Arnaldo Antunes é um grande escritor e que Paulo Leminski foi também músico. Estes dois foram, de fato, muito mais que somente escritores músicos ou músicos escritores. Em suas obras encontramos música, vídeo, performances, shows, grafismos, intervenções, ensaios críticos, história em quadrinho e poesia; poesia papel, poesia falada, poesia visual, poesia totem (escultura), poesia cantada. Eles são verdadeiros representantes da mistureba refinada que constitui a produção cultural brasileira. Ambos estiveram entre os fundadores do movimento concretista, do qual também fez parte Augusto de Campos, movimento que valorizou a visualidade do poema e tomou a linguagem como personagem principal de sua poética. Isto, entretanto, não significa que o fazer poético de Antunes e Leminski se enclausurou no concretismo. Como afirmam Pucheu e Meira a respeito de Leminski: (...) não significa que se trate de uma poética enclausurada por um manifesto ou cristalizada por algum princípio teórico; muito ao contrário, sua escrita traz grande descompressão formal para os rigores concretistas e abre diversos caminhos que ainda hoje, mais de uma década depois de sua morte, são revisitados por poetas e críticos. (Pucheu & Meira: 333)

E são revisitados por músicos também. Além das parcerias musicais que Leminski teve em vida, como Caetano Veloso, Paulinho Boca de Cantor, Zeca Baleiro, Moraes Moreira e o próprio Arnaldo Antunes, são muitos os músicos que até hoje vêm aproveitando seus poemas e canções. Arnaldo Antunes, por sua vez, também não teve poucos parceiros na música. Para citar alguns, Arrigo Bernabé, Arto Lindsay, Carlinhos Brown, Cazuza, Davi Moraes, Edgard Scandurra, Frejat, Gilberto Gil, João Donato, Jorge Bem Jor, Lenine, Marina Lima, Marisa Monte, Péricles Cavalcanti, Roberto de Carvalho, o próprio Leminski e, desde sempre, os Titãs. Para encerrar deixemos uma consideração de Alice Ruiz, ex-mulher de Leminski, a respeito de Arnaldo Antunes: Quase todos os ritmos brasileiros e ainda o rock saem de suas mãos, talvez porque, como ele mesmo diz em 40 Escritos (2000), “o pé que dança decodifica melhor o recado”. Sempre dizendo muito, de forma simples e, ao mesmo tempo, surpreendente: “O imprevisto é a prova mais linda da ordem natural das coisas” (40 Escritos). Arnaldo vive, cria, atua em busca de novas descobertas/possibilidades em tudo que toca. Por tudo isso, é exemplo de inovação, tocando a todos com o mesmo desejo de criar – embora, às vezes, pareça impossível ir além do que ele já inventou. Ainda assim, ele cria. E, em Palavra Desordem (2002), anuncia: “O impossível é um dever de todos.”

Considerações finais Vale, mesmo que somente agora, explicar porque apenas esses quatro artistas foram comentados. De fato, como já foi dito, a escolha se deu de modo aleatório e arbitrário, mas também porque a princípio a pretensão era abordar poetas e escritores “do livro” e também da canção. Ainda que os

quatro aqui comentados não sejam os únicos brasileiros que se encontram nesta delimitação, encontrou-se mais material sobre eles do que sobre outros. No entanto, a despeito da brevidade deste trabalho, e considerando que, em se tratando de Brasil, não há sentido em diferenciar poesia de livro de letra de canção de modo tão estanque – sobretudo hoje, algumas décadas depois das primeiras intervenções de Vinícius no campo da canção –, poderiam constar nele comentários sobre Caetano Veloso, Gilberto Gil, Cacaso, Jorge Mautner, Antônio Cícero, Antônio Risério, Waly Salomão, Aldir Blanc, Fernando Brant, Paulo César Pinheiro e muitos outros. Deixemo-los, entretanto, para outra ocasião.

Referências bibliográficas KEHL, Maria Rita. “Chico Buarque”. In: Arthur Nestrovski (Org.). Música Popular Brasileira Hoje. São Paulo: Publifolha, 2002. pp. 60-62. PUCHEU, Alberto & MEIRA, Caio. Guia Conciso de Autores Brasileiros. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional & Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. 409 p. RESENDE, Otto Lara. “O Caminho para o Soneto.” In: COUTINHO, Afrânio, org. Vinicius de Moraes: Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987. p. 716−722. RUIZ, Alice. “Arnaldo Antunes”. In: Arthur Nestrovski (Org.). Música Popular Brasileira Hoje. São Paulo: Publifolha, 2002. pp. 36-37. TATIT, Luiz. Semiótica da canção. São Paulo: Editora Escuta, 2ª edição, 1999. WISNIK, José Miguel. “A gaia ciência: literatura e música popular no Brasil”. In: Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004. Textos obtidos na Internet HERENCIA, José Luiz. “As origens da canção brasileira”. Rio de Janeiro: IMS - Instituto Moreira Sales, 2007. Disponível em http://acervos.ims.uol.com.br/php/level.php?lang=pt&component=38&item=29, em 01/07/2007, às 16:00h. MENDONÇA, Luciana Ferreira Moura. “Literatura e oralidade: da canção poética à canção popular.” Campinas: IFCH/UNICAMP, 2007. 17 p. Disponível em http://intercom.org.br/papers/xxici/gt04/GT0409.PDF, em 09/07/2007, às 14:30h.

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