Brasis imaginados: a experiência do cinema brasileiro contemporâneo (1990-2007)

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

PEDRO VINICIUS ASTERITO LAPERA

BRASIS IMAGINADOS: A EXPERIÊNCIA DO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO (1990-2007)

Niterói 2007

PEDRO VINICIUS ASTERITO LAPERA

BRASIS IMAGINADOS: A EXPERIÊNCIA DO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO (1990-2007)

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação, sob a orientação do Prof. Dr. João Luiz Vieira.

APROVADA em maio de 2007.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________ Prof. Dr. João Luiz Vieira – Orientador PPGCOM/UFF

_____________________________________________________________ Profa. Dra. Ana Lúcia Enne PPGCOM/UFF

_____________________________________________________________ Prof. Dr. André Pereira Botelho PPGSA/IFCS/UFRJ

Niterói 2007 2

A meus pais, que sempre me mostraram o belo em viver.

A Hilda Machado e Latuf Isaías Mucci, meus “pais” acadêmicos, a quem o “filho adotivo, porém desgarrado” presta seu reconhecimento.

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AGRADECIMENTOS Ao professor João Luiz Vieira, pelas horas de atenção, diálogo e pela dedicação à árdua tarefa de ser meu orientador.

Aos diretores Eliane Caffé, Sérgio Bianchi e Lúcia Murat que, além de realizarem filmes que certamente orgulham o cinema brasileiro, muito me ajudaram nessa empreitada com suas colaborações.

A todos os professores que participaram de minha trajetória acadêmica, em especial: Ana Lúcia Enne, André Botelho, Tunico Amâncio, Hilda Machado, Dênis de Moraes, José Reginaldo Gonçalves, Hernani Heffner e Celeste Zenha.

Aos funcionários dos acervos do MAM-Rio, Cinemateca Brasileira, Biblioteca da FUNARTE-Rio e Museu Lasar Segall que colaboraram com esta pesquisa, em especial: Maurício e Adriano (MAM-Rio); Márcia Cláudia, Janaína, Paulo e “Mosquito” (FUNARTE-Rio); Gláucia, Ana Paula e Liège (Cinemateca Brasileira).

A todos os amigos que fiz na pós em Comunicação ao longo desses dois anos, sendo impossível mencionar os nomes de todos aqui.

Ao meu anfitrião em São Paulo e amigo Carlos Garrido, por ter me proporcionado uma hospedagem acolhedora que me deu bastante tranqüilidade para realizar a pesquisa nesta cidade.

Aos funcionários do IACS-2, em especial à Silvinha, Eduardo e Elson, cujas prestezas foram fundamentais para atenuar o cotidiano corrido de um mestrado.

Aos alunos que assistiram a meus cursos na graduação e tiveram bastante paciência em lidar com um inquieto, sarcástico e inexperiente professor.

Ao CNPq, pelo apoio financeiro.

Por último, mas não por isso menos importante, a todos os meus amigos que, nas minhas horas de crises, dúvidas e alegrias compartilharam comigo suas melhores maneiras de ver a vida.

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Sumário

Algumas notas preliminares............................................................................................. 8

Capítulo 1 - Cinema Brasileiro contemporâneo versus Retomada: os embates políticos na patrimonialização do cinema pós-EMBRAFILME (1990-2007).................................................................................. 15 I

Uma pequena “revisão” da História do Cinema brasileiro? Por uma “introdução” ao Cinema Brasileiro Contemporâneo.................................................................................. 20

II

O Cinema Brasileiro Contemporâneo lançado à “Retomada”........................................................................................ 27

III

Eliane Caffé, Lúcia Murat, Sérgio Bianchi: status e capital no campo cinematográfico...................................................................... 43

IV

Cinema Brasileiro Contemporâneo versus “Retomada”: Uma questão de nomenclatura?......................................................................... 65

Capítulo 2 - Imagens, representação do passado e políticas identitárias no cinema brasileiro contemporâneo........................................................... 76 I

Usos do tempo nas narrativas da nação............................................................. 84

II

Entre o cotidiano e a política: representações da nação e de suas fissuras no cinema brasileiro contemporâneo....................................117

Capítulo 3 - Por uma Pasárgada moderna ou, pós-moderna?Algumas notas sobre imagens de Brasil..........................................................................................................154 I

O urbano: do cosmo ao caos..............................................................................155

II

O interior encenado: notas sobre um território dessacralizado.................................................................................... 169

Conclusão..................................................................................................................... 176

Referências Bibliográficas............................................................................................ 178

Anexo............................................................................................................................ 191 5

Resumo

Este trabalho possui como objetivo a análise de três filmes do cinema brasileiro contemporâneo: Quanto vale ou é por quilo? (Sérgio Bianchi, 2005), Narradores de Javé (Eliane Caffé, 2004) e Quase Dois Irmãos (Lúcia Murat, 2005). Tendo como eixo central a análise fílmica para compreender de que modo as imagens de Brasil estão presentes nas ficções, realizam-se uma pequena revisão de algumas teorias da cultura e da comunicação e uma análise do campo do cinema brasileiro contemporâneo. Assim, infere-se sobre como as condições de produção, as representações e as apropriações pela recepção articulam as diversas práticas discursivas e sociais ligadas à representação da nação ou de outras categorias identitárias como “raça”, religião, classe, gênero, geração, dentre outras.

Palavras-chave: cinema brasileiro; identidade; nação

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Abstract

This work focuses on three contemporary Brazilian films: Quanto vale ou é por quilo? (Sérgio Bianchi, 2005), Narradores de Javé (Eliane Caffé, 2004) and Quase Dois Irmãos (Lúcia Murat, 2005). By means of a close analysis, it reviews some cultural and communication theories that help us understand how their conditions of production, representations and reception articulate discursive and social practices related to the representation of the nation and other identity codes such as "race", religion, class, gender, generation, among other categories .

Key words: Brazilian cinema; identity; nation

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ALGUMAS NOTAS PRELIMINARES “Nunca chegamos aos pensamentos. São eles que vêm”. Essa reflexão de Heidegger, em A Experiência do Pensamento, não poderia ilustrar melhor a vivência a ser aqui narrada. Contando com um trabalho de pesquisa e de leituras, sem esquecer a intuição, Brasis imaginados: a experiência do cinema brasileiro contemporâneo (19902007) fundamenta-se na análise fílmica para tentar inferir sobre algumas condições de produção e de circulação dos produtos audiovisuais e sobre a possibilidade de teorizar a experiência cinematográfica e as representações veiculadas nos filmes. Antes de iniciar qualquer exposição sobre o presente trabalho, gostaria de relatar seu breve “histórico” - palavra fria, porém bastante adequada neste momento. Depois de ter realizado uma monografia sobre a obra de Sergei Eisenstein e a reconstrução da história e da memória popular, deparei-me com a necessidade de continuar minha trajetória dentro da academia, uma vez que o desejo de tentar entender o cinema como fenômeno estético e cultural começou a me perseguir. Pelo fato de viver uma condição paradoxal e conhecer relativamente pouco da cultura brasileira, percebi que não poderia dar um passo importante na minha vida acadêmica continuando a ignorá-la. Aliando minha inquietude à grande paixão que sempre nutri pelo cinema, decidi fazer um projeto sobre cinema brasileiro, sem saber em que programa de pós-graduação o mesmo seria acolhido. Por onde começar? Que período abordar? Que questões trabalhar a partir dele? Que filmes ou diretores escolher? Aparentemente normais e simples dentro do campo escolhido (no caso, os estudos de cinema ou teoria de cinema, dependendo da filiação anglo-saxônica ou francesa), cada uma destas indagações se revelou alvo de uma escolha de ordem política. Isso significa que cada direção a ser tomada refletir-se-ia não apenas no resultado em si, como também na forma de apropriação das idéias a serem defendidas dentro de um possível debate sobre o cinema nacional. O paradigma da identidade nacional sempre me pareceu, desde a graduação, como uma referência dentro do campo intelectual e cultural brasileiro. Mesmo sem saber apontar exatamente em que momento de nossa história a busca por essa identidade passou a se mostrar importante, resolvi iniciar minhas indagações a partir das noções de identidade e de nação. Simultaneamente, pertenço à geração que cresceu ouvindo nas aulas de História do Ensino Médio que o período (ou mudança de fase do sistema 8

capitalista) conhecido como Globalização colocou em xeque o papel dos Estados nacionais, expondo suas fragilidades e os submetendo aos arbítrios do mercado internacionalizado. Desse modo, não pude esquivar-me de trabalhar o cinema brasileiro atual, pois nele tinha achado um campo no qual seria extremamente interessante explorar a seguinte contradição: como um cinema realizado após o impacto da Globalização ainda retratava (e muito!) o seu próprio país?1 E mais: por que o cinema brasileiro atual resistia a “se internacionalizar” e a mostrar dramas supostamente “universais”? De onde vinha a necessidade e/ou a exigência de o cinema brasileiro retratar o Brasil? Tendo em vista esse panorama inicial do projeto, vi vários filmes até encontrar alguns que poderiam configurar o corpus da minha pesquisa. Cheguei a Cronicamente Inviável (2000), de Sérgio Bianchi, através de um debate promovido pelo professor João Luiz Vieira no Centro Cultural Banco do Brasil, em janeiro de 2003. Sendo um filme que expõe nossa condição econômica, social e cultural insustentável, encantei-me com o mesmo e percebi nele a possibilidade de se avaliar como o cinema brasileiro “imagina” o Brasil. Quanto a Baile Perfumado (1996), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, foi-me recomendado pela professora Hilda Machado no curso de História do Cinema Brasileiro, ministrado na graduação durante o primeiro semestre de 2003. Outros aspectos do trabalho revelaram-se nessa escolha: a relação identidade-alteridade, isto é, em relação a quem a nação brasileira se afirma; a tensão entre nacional e regional (no caso, o nordestino); a metalinguagem (ou seja, como o cinema avalia sua própria história, na medida em que o filme narra a experiência de Benjamin Abraão, mascate libanês que queria realizar um documentário sobre Lampião). Originou-se, então, o projeto A identidade nacional fragmentada no cinema brasileiro contemporâneo, apresentado e aprovado na seleção do mestrado do PPGCOM/UFF em fins de 2004. Possuindo como referências o debate sobre pósmodernidade empreendido por Stuart Hall e Fredric Jameson, é preciso lembrar a hipótese principal em que o projeto se sustentava: a “nação” construída diegeticamente pelos filmes é contraditória, fragmentada, inconciliável e incomunicável, sendo que, em Cronicamente Inviável, a contradição se manifestaria no discurso interno dos 1

O que lhe vale algumas críticas, tais como as do Diretor do Festival de Veneza e da comissão de seleção do mesmo, que classificou os filmes nacionais como “brasileiros demais” (Cf: http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2005/08/050809_veneza.shtml. Consultado em 17/01/2007 às 18:56h), referindo-se diretamente a filmes como os de Sérgio Bianchi.

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personagens, a fragmentação seria percebida pela instabilidade dos pontos de vista, a inconciliação se instauraria com o choque de universos e argumentos entre as diferentes trajetórias individuais dos personagens e a incomunicabilidade assumiriam a posição geradora da tragédia nacional. Por sua vez, em Baile Perfumado, a contradição e a inconciliação se manifestariam externamente aos personagens, além de a fragmentação ser explicitada na ação das personagens, na dicotomia entre regional (bando de Lampião, Tenente Rosa, etc) e estrangeiro (Benjamim Abraão e sua família) e na instabilidade dos pontos de vista. Muito presa aos filmes e fatalista ao extremo, essa hipótese, com as mudanças posteriores no trabalho, perdeu muito da sua força inicial. Vejamos o que dela podemos aproveitar: a) a relativização da narrativa nacional, vista a partir da perspectiva dos personagens; b) a relação nacional-regional; e c) a fragmentação da narrativa, visto que, em uma fase anterior (leia-se, modernidade), exaltava-se justamente a unidade da nação. Dois anos, muitos livros, fotocópias e algumas crises depois, várias modificações alteraram os rumos empreendidos na pesquisa, de forma que esta se encontra um tanto distante de sua ambição original. Mesmo enfatizando a pósmodernidade como paradigma, o projeto original atrelava-se excessivamente às reflexões dos diretores e perdia de vista o cinema brasileiro atual enquanto cinematografia, isto é, o cinema como escrita visual coletiva e que se realiza tão somente na esfera pública e nos processos de comunicação. Por conseguinte, correríamos o risco de enveredarmos em discussões excessivamente “autorais” e deixarmos de lado um aspecto fundamental do trabalho a ser aqui desenvolvido: tentar compreender como os filmes escolhidos para serem submetidos à análise fílmica mobilizam diversos jogos de representações e, portanto, são capazes de, através de seus processos de produção e difusão e também pelas suas escolhas estéticas, revelar as contradições vivenciadas atualmente pelo campo cinematográfico. É preciso recordar, ainda, que o projeto original explorava as intersecções entre a Comunicação e a Antropologia, o que explicita a ênfase do mesmo nas categorias de representação mobilizadas ao longo dos filmes. Sem abandonar essa perspectiva original, faz-se importante esclarecer que algumas questões ligadas à economia política do cinema serão sinalizadas por ocasião da análise dos discursos dos filmes, sobre os filmes e sobre o cinema brasileiro atual. Porém, lembramos que o presente trabalho não se coloca, no entanto, como uma análise da economia política da comunicação; este apenas ressalta que não se pode avaliar como um filme se coloca na posição de 10

representar certas realidades sem levar em consideração as bases materiais nas quais o fenômeno-cinema se realiza. Ademais, a análise fílmica a ser empreendida não se esquecerá de se situar em relação à História (seja a história do cinema brasileiro, seja a história como discurso). Em primeiro lugar, é necessário apresentar os filmes selecionados para este trabalho e as condições em que eles foram escolhidos, uma vez que tanto Cronicamente Inviável quanto Baile Perfumado foram abandonados no curso das transformações do projeto original. Em junho de 2005, assisti a Quanto vale ou é por quilo? (2005), filme mais recente do diretor Sérgio Bianchi, na Maratona Odeon2. De imediato, ao considerar o conteúdo e a linguagem do filme e ao perceber a reação do público, resolvi trazê-lo à minha pesquisa. Com uma narrativa e uma estética semelhante a Cronicamente..., este filme, mais maduro e com um humor ainda mais ácido, revela um Brasil subjugado por uma elite corrupta e por um povo manipulado e incapaz de reagir aos desmandos daquela. Já Narradores de Javé (2004), de Eliane Caffé e Quase Dois Irmãos (2005), de Lúcia Murat, foram vistos em condições muito parecidas, isto é, dentro de uma sala pequena no cinema Estação Botafogo, ao lado de cerca de vinte pessoas que conseguiram sobreviver ao ar condicionado que já me rendeu alguns resfriados. Narradores de Javé – o segundo longa de Caffé - retrata a vida de uma pequena comunidade no interior da Bahia (cujo nome ‘real’ é Gameleira da Lapa) e de sua destruição por uma usina hidrelétrica, expondo os dramas oriundos de uma tradição política autoritária que, em nome do progresso, quantifica e desumaniza as populações mais pobres. Já Quase Dois Irmãos traz a marca autobiográfica de Murat, visto que ela própria foi prisioneira política do sistema representado no filme (a ditadura militar pós1964). O filme expõe a relação entre dois presos da Ilha Grande - sendo um deles preso político e outro um preso comum – para retratar a suposta origem da criminalidade contemporânea (já que nele se narra a formação da Falange Vermelha, que depois se transformou no Comando Vermelho).

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Evento realizado pelo Grupo Estação toda primeira sexta-feira do mês e ponto de encontro de cinéfilos. Aliás, é preciso dizer que os acontecimentos ligados à área cinematográfica e ao cinema brasileiro em particular (cineclubes, sessões extras realizadas em cinemas, centros comunitários, festas, etc) seriam um excelente campo para a realização de um estudo etnográfico que vise compreender a formação da espectatorialidade contemporânea, o que não é, evidentemente, o objetivo deste trabalho.

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A

escolha

de

apenas

três

filmes

dentro

de

uma

cinematografia

consideravelmente ampla justifica-se pela possibilidade de um levantamento de dados coerente com o prazo de produção da pesquisa, sendo que a busca por estes dados incluiu a ida a várias instituições que guardam acervos sobre cinema brasileiro (Cinemateca do MAM-Rio, Museu Lasar Segall, Cinemateca Brasileira, Biblioteca Nacional etc). Além disso, escolhemos especificamente Quanto vale ou é por quilo?, Quase Dois Irmãos e Narradores de Javé como base para esta pesquisa pelo fato de estes filmes terem provocado, em sua recepção, um debate sobre representações de Brasil (a questão que nos interessa aqui), além de ser possível comparar as diferentes trajetórias de seus diretores no campo cinematográfico, o que será analisado no primeiro capítulo deste trabalho. Ainda, é necessário atentar que, em termos metodológicos, transitamos entre duas escalas que, embora sejam capazes de produzir diferentes formas de conhecimento (como nos recorda Jacques Revel em seu estudo sobre a micro-história3), precisam ser relacionadas: de um lado, a abordagem sobre o campo cinematográfico brasileiro atual e, de outro, a análise fílmica das obras citadas. Ressaltamos que esta divisão de escalas é apenas metodológica, uma vez que os filmes não podem ser totalmente separados das práticas e do campo que os produziram. Ao apresentar os três filmes a serem utilizados na análise das representações veiculadas pelo cinema brasileiro atual, devemos também relatar algumas concepções que irão nortear este trabalho, além das experiências prévias que marcaram seu resultado. Propositadamente escolhidos pelo fato de terem estilos, narrativas e temáticas díspares entre si, os filmes desempenharão aqui uma função “dupla”: suas representações serão submetidas à análise de representações veiculadas por outros filmes pertencentes à categoria “cinema brasileiro contemporâneo” e dos problemas que envolvem a produção cinematográfica do período atual. Partindo disso, sublinhamos, de início, a concepção de jogos de representação, que assinala a co-existência de representações complementares e/ou opostas, uma vez que é evidente que os filmes não difundem representações “mônadas”. Sendo assim, a ênfase nos filmes acima mencionados certamente não excluirá a presença de outros filmes brasileiros atuais e de outros produtos audiovisuais (telejornais, telenovelas, etc), visto que as representações são construídas relacionalmente.

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Cf: REVEL, Jacques. Jogos de Escala. Rio de Janeiro: FGV, 1998.

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Como justificar a escolha de três filmes de ficção em um trabalho que se pretende “relacional”? Existem alguns pensamentos pouco esclarecedores a respeito da ficção que a colocam no plano da mentira, da ilusão. Retoma-se aqui o sentido da palavra fictio - invenção, criação – para enfatizar que a ficção também pode ser objeto do conhecimento, como bem nos recorda Paul Ricoeur (1984). Antes de prosseguir e enumerar a estrutura inicialmente pensada para esta dissertação, devo relatar a breve (porém muito relevante) experiência de docência que tive junto ao Instituto de Arte e de Comunicação Social (IACS/UFF) ao longo de 2006. Tendo oferecido a cadeira de cinema brasileiro contemporâneo, esta se pautou por um panorama dos filmes brasileiros atuais a partir de tópicos como “representação do passado”, “cinema documentário”, “cinema e discursos raciais” e “cinema e literatura”. A discussão com os alunos dos filmes e da nossa realidade atual foi-me de muita valia na avaliação do meu objeto de pesquisa – tanto os filmes já apresentados quanto o cinema brasileiro atual. Passando à estrutura que o trabalho pretende assumir, pelo fato de este se situar entre a análise fílmica e os estudos de uma cinematografia, o mesmo será dividido em três capítulos. Em Cinema Brasileiro contemporâneo versus Retomada: os embates políticos

na

patrimonialização

do

cinema

pós-EMBRAFILME

(1990-2007),

pretendemos discutir como se articulam os discursos críticos sobre o cinema brasileiro atual e como a categoria “cinema brasileiro contemporâneo” é pensada pelo meio acadêmico e pela crítica de cinema; além disso, verifica como este se configura enquanto um campo dotado de disputas inerentes a ele. Já em Imagens, representação do passado e políticas identitárias no cinema brasileiro contemporâneo, por sua vez, avaliaremos de que formas as práticas discursivas em torno da “raça”, religião, geração, região, gênero, território, classe, etc, serão trazidas e encenadas pela diegese dos filmes, contestando a centralidade das narrativas nacionais modernas. Ademais, existe a questão da representação do passado, na qual o nacional é legitimado ou contestado, sendo necessário inferir que, no intuito de avaliar com maior clareza o plano da representação, utilizaremos tanto teóricos de cinema (Aumont, Vanoye, Burgoyne) quanto historiadores (Bann, Rosenstone) que tratam do assunto. Finalmente, em Por uma Pasárgada moderna ou pós-moderna? Algumas notas sobre imagens de Brasil, sublinharemos a discussão acerca da construção de imagens sobre o Brasil, mais precisamente sobre que espaços, personagens, temáticas, símbolos, 13

etc, são alçados ao plano da representação do nacional. Aqui, não poderemos esquecer que os filmes se inserem em um panorama maior, o audiovisual; portanto, deveremos efetuar comparações com representações veiculadas por outras mídias e outros filmes brasileiros atuais. No tocante à pesquisa, é preciso mencionar que a mesma se pautou prioritariamente pelo material recolhido em arquivos do MAM-Rio, da FUNARTE-Rio, da Cinemateca Brasileira e do Museu Lasar Segall, sendo que este é composto por material de imprensa sobre cinema brasileiro e algumas análises veiculadas sobre os filmes e os diretores. A possibilidade de se averiguar a recepção imediata, pelo impacto de mídia e pelos debates produzidos durante a exibição comercial ou não dos filmes, configura uma contrapartida à quase inexistência e à pouca circulação de estudos específicos – monográficos – sobre os diretores e os filmes aqui analisados. Antes de encerrarmos esta breve introdução, gostaríamos de enumerar as questões centrais à nossa pesquisa: a) como o cinema brasileiro configura-se como um campo que transita entre o intelectual e o industrial/comunicação massiva? E, a partir da primeira questão, b) como as imagens de Brasil veiculadas pelos filmes revelam práticas que incidem sobre as disputas dentro do campo cinematográfico e, ainda, valem-se de categorias ligadas à “raça”, gênero, religião etc? Para tanto, desenvolvemos algumas hipóteses que irão nos auxiliar neste caminho: a) a narrativa nacional, mesmo tendo sido ‘deslocada’ pela pós-modernidade, não teve suas forças totalmente dissipadas; ou seja, esta ainda é uma instância de legitimação ou de contestação, sendo que tanto as representações fílmicas quanto as lutas de representação (Chartier, 2000) articuladas dentro do campo cinematográfico seriam indícios do grau de autoridade ainda ocupado pelas narrativas nacionais; b) o cinema brasileiro contemporâneo, em sintonia com as críticas feitas às narrativas nacionais modernas, constrói micro-narrativas que contestam o lugar tradicionalmente reservado à nação (inclusive pelo próprio cinema brasileiro ao longo de sua história); c) as práticas discursivas ligadas a classe, gênero, “raça”, religião, geração, região, foram trazidas ao centro das narrativas contemporâneas, lembrando aos espectadores dos jogos de identidades a serem inseridos na arena política contemporânea.

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Capítulo 1

CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO VERSUS “RETOMADA”: OS EMBATES POLÍTICOS NA “PATRIMONIALIZAÇÃO” DO CINEMA PÓS-EMBRAFILME (1990-2007)

A entrada na década de 1990 representou, no caso brasileiro, a vitória das concepções neoliberais na gestão dos bens e das políticas públicas. Com a vitória de Fernando Collor de Mello nas eleições de 1989 e a implementação de sua plataforma política ancorada na tese do “Estado Mínimo”, várias medidas que afrouxavam o controle governamental em alguns campos foram levadas a cabo. As políticas econômicas da era Collor podem ser apontadas como um dos principais fatores de seu mandato impopular: confisco das poupanças, reforma no sistema bancário e fechamento de várias empresas estatais, o que acarretou em demissões em massa e na elevação do índice de desemprego. Em paralelo, o cinema brasileiro assistia ao desenlace das inúmeras crises políticas que atingiram sua principal instituição na década anterior. Desgastada em sua imagem pública através das polêmicas reproduzidas nos periódicos, a EMBRAFILME foi extinta pela Lei 8029/90, junto com vários outros órgãos considerados “atrasados” pela concepção neoliberal do governo Collor4 e, portanto, incapazes em se autosustentar e em assumir novas demandas sociais. Após um período de estagnação em toda a cadeia produtiva cinematográfica e diante do insucesso da lei Rouanet em abarcar a produção audiovisual brasileira, o governo de Itamar Franco lançou a lei 8685/93 (chamada de “lei do audiovisual”), que visava a conciliar a visão neoliberal de não-interferência direta em um setor da economia e a necessidade reconhecida de amparar a produção cinematográfica (o texto original da lei também previa mecanismos de apoio à exibição, mas o foco da mesma era a produção). Todavia, essa suposta “conciliação” foi marcada por diversas tensões que, dentre outros, culminaram com a criação da ANCINE (Agência Nacional do Cinema) em 2001.

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Cf: AMANCIO, Tunico. Artes e manhas da EMBRAFILME: cinema estatal brasileiro em sua época de ouro. Niterói, Ed. UFF, 2000.

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Tentar mapear os termos através dos quais essas tensões na relação entre Estado e atividade cinematográfica – cuja mediação é feita por vários agentes ligados a ambos – é, pois, o objetivo deste capítulo. Desse modo, dissertaremos aqui sobre a configuração do cinema brasileiro contemporâneo como um campo, na acepção de Bourdieu. Para tanto, será necessário evidenciar as questões a serem aqui enfrentadas: como os agentes do campo cinematográfico brasileiro disputam o capital dentro dele e em relação a outros campos? Além disso, de que estratégias retóricas estes agentes se valem para conquistar ou preservar seus capitais econômicos e simbólicos? Lembramos que, para compreender como as imagens de Brasil são mobilizadas pelos filmes e pelos agentes na disputa pelo poder de nomear (uma das questões principais de nossa pesquisa, já enumerada na introdução), é fundamental debruçar-nos sobre as práticas e as representações de que estes agentes se valem na (re)produção do campo cinematográfico. Em primeiro lugar, é preciso remeter-nos ao debate empreendido por Bourdieu em O Poder Simbólico. Ao criticar o reducionismo da teoria marxista ao campo econômico, o que conduziria, dentre outros, a ignorar as lutas em torno das representações sociais, o autor assim define o campo social: “Um espaço multidimensional de posições tal que qualquer posição actual pode ser definida em função de um sistema multidimensional de coordenadas cujos valores correspondem aos valores das diferentes variáveis pertinentes: os agentes distribuem-se assim nele, na primeira dimensão, segundo o volume global do capital que possuem e, na segunda dimensão, segundo a composição do seu capital – quer dizer, segundo o peso relativo das diferentes espécies no conjunto de suas posses [lembrando que Bourdieu subdivide o capital em quatro categorias: econômico, social, cultural e simbólico – observação nossa]” (1995, p. 135).

De acordo com essa teoria, o campo social se subdividiria em sub-campos, nos quais os agentes sociais teriam suas posições definidas (dentro de um campo e em relação a outros campos). Trazendo essa reflexão para o cinema brasileiro contemporâneo, em vários momentos da pesquisa ficou clara a disputa pela nomeação de um ou mais campos referentes a ele. Seja através das leituras de autores de cinema brasileiro ou de críticos, seja através do acompanhamento de debates travados em listas, simpósios, congressos, a disputa pelo poder de nomear mostrou-se evidente e muitas vezes contraditória. 16

Recordamos ainda três pressupostos na análise empreendida por Bourdieu: ao contrário do estruturalismo clássico, os campos na teoria proposta por ele são considerados móveis, isto é, são imersos nas relações históricas, podendo ampliar ou diminuir seu raio de atuação ou mesmo deixar de existir sob determinadas condições. Ademais, o fator estruturante da disposição dos campos (e, portanto, da posição dos agentes nestes) é a disputa por capital em suas diferentes espécies (econômico, cultural, social e simbólico)5. Finalmente, sublinhamos que esta disputa por capital não ocorre de forma desordenada, mas sim orientada pelos habitus dos agentes6. No caso do campo do cinema brasileiro contemporâneo, partimos do pressuposto de que o capital a ser disputado é o poder de produzir, difundir e interpretar imagens. Faz-se preciso – em um trabalho cuja análise fílmica se propõe a analisar as representações do Brasil e de identidades postuláveis em relação a essas representações – compreender como essas imagens são produzidas e como o habitus foi sendo historicamente construído dentro deste campo, porém não sem antes deixar de evidenciar o status dos respectivos diretores e como esse status resulta de uma dinâmica entre “acúmulos” e “perdas” em relação ao próprio campo. Aqui, consideramos os vestígios deste habitus as estratégias retóricas adotadas pelos agentes no sentido de preservar e ampliar seu lugar de autoridade perante o campo – patrimonialização e monumentalização – e a relação destas com os dois grandes projetos articuladores dos/articulados pelos agentes – projeto industrial e projeto “autoral” ou de pesquisa de linguagem, que serão abordados a seguir. Retornando ao título do capítulo, este faz referência à palavra patrimônio. Vejamos as possibilidades de utilizar esta categoria na área de estudos cinematográficos. Dentre os vários significados da palavra enumerados por José Reginaldo Gonçalves, dois são interessantes de serem aqui retomados: patrimônio cultural e patrimônio imaterial, sobretudo o último.

Dentro [do patrimônio imaterial] estão: lugares, festas, religiões, formas de medicina popular, musica, dança, culinária, técnicas, etc. Como sugere o próprio termo, a ênfase recai menos nos aspectos materiais e mais nos 5

Op. Cit. Segundo Bourdieu, podemos considerar habitus a incorporação mental das estruturas pelos agentes e sua ação em torno destas, o que acarreta no fato de que as condutas destes agentes podem ser consideradas como estruturadas e estruturantes (enquanto o termo “estruturadas” destaca que estas condutas sempre são delimitadas pelas condições temporais e espaciais da ação, “estruturantes” chama a atenção para a possibilidade de mudança na dinâmica de um campo e, em última instância, de transformação social), o que nos permite pensar a ação social na tensão entre mudança e permanência. 6

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aspectos ideais e valorativos dessas formas de vida. Diferentemente das concepções tradicionais, não se propõe “tombar” os bens listados nesse patrimônio. A proposta é no sentido de se “registrar” essas práticas e representações e de se fazer um acompanhamento para verificar sua permanência e transformações (Gonçalves, 2002).

O desenvolvimento deste discurso, de certo modo, também encontra seus efeitos na área dos Cinema Studies, o que pode ser constatado, em princípio, na relevância das histórias dos cinemas nacionais, na preocupação de se ligar o processo de produção, exibição e recepção cinematográfica às realidades sócio-econômicas de cada país/região. Outra palavra muito utilizada no debate historiográfico sobre patrimônio: o monumento. O historiador Stephen Bann, em As invenções da história, ao retomar o pensamento de Nietzche, indaga a respeito dos usos do discurso historiográfico. A partir de uma citação do filósofo, segundo a qual seria possível haver três tipos de tratamento por parte deste, Bann ressalta o papel do mesmo na disputa pela legitimidade e pelo poder. Vejamos as passagens do filósofo retomadas pelo historiador:

A história é necessária para o homem atual por três motivos: em relação à sua ação e luta, em relação a seu conservadorismo e respeito, e em relação a seu sofrimento e seu desejo de redenção. Estas três relações respondem aos três tipos de história – até onde eles podem ser distinguidos – a monumental, a antiquária e a crítica. (...) Se o homem que vai produzir algo importante tem necessidade do passado, ele faz de si mesmo senhor por meio da história monumental; o homem que pode se contentar com o tradicional e o venerável usa o passado como um “historiador antiquário”; apenas aquele cujo coração está oprimido por uma necessidade imediata e que irá se aliviar do peso a qualquer preço sente a ânsia da “história crítica”, a história que julga e condena (1994, p. 131).

Ao presente trabalho, interessa o conceito de monumento que pode se extrair da leitura de Nietzsche realizada por Bann. Sendo uma estratégia retórica do discurso historiográfico, o monumental situa-se no plano da legitimidade, para tanto se relacionando com outras estratégias como a teleologia e a canonização. Após a apresentação a respeito dos usos das categorias discursivas patrimônio e monumento, será preciso, para continuarmos nossa breve análise, limitarmos e definirmos os usos de duas noções: “patrimonialização” e “monumentalização”. Ambos podem ser concebidos como estratégias discursivas utilizadas pelos agentes situados no campo cinematográfico para legitimar sua posição política. Entendemos por patrimonialização toda tentativa de incorporar algum personagem, temática ou estilo de filmar a uma meta-narrativa - o cinema brasileiro contemporâneo - seja pela via da 18

retórica (recepção crítica e acadêmica de um filme; discussões políticas do campo e em relação a outros campos) ou da preservação stricto sensu (incorporação de filmes, livros, artigos de jornais e outras fontes ao acervo de cinematecas ou instituições ligadas ao cinema)7. A patrimonialização obedece à lógica da incorporação e, no caso do cinema brasileiro atual, um signo da mesma é o apelo, em termos políticos, à “diversidade”. Por sua vez, a monumentalização pode ser compreendida como um retorno às estratégias retóricas de afirmação do moderno apontadas por Fredrick Jameson (2004) teleologia, canonização, idéia de progresso, diferenciação - cujas implicações podem variar desde o ostracismo de vastos períodos históricos e de outros realizadores não canonizados até a obliteração da dimensão política da disputa pelo capital no campo. Resumidamente, poderíamos afirmar que a patrimonialização torna explícita a disputa por autoridade/capital, ao passo que a monumentalização a obscurece. Richard Handler (1988) define os três aspectos de significação do patrimônio: a) antiguidade; b) propriedade; e c) coletividade. Sendo o cinema brasileiro contemporâneo, como seu nome já diz, algo que vivenciamos no quotidiano e, portanto, difícil de ser isolado temporal e espacialmente, assumimos a dificuldade de enumerar todas as possibilidades de patrimonialização contidas no mesmo. Visando à superação desta dificuldade, é preciso afirmar que podemos somente tentar encontrar vestígios desse processo, não sendo possível afirmar categoricamente que filmes irão de fato fazer parte do “panteão” do cinema brasileiro pós-EMBRAFILME, lembrando que os processos de revisão historiográfica são marcadamente fluidos e se mostram necessários de acordo com interesses os mais diversos possíveis. A lógica do patrimônio também encontra ecos na reflexão de Gopal Balakrishnan (2000) a respeito da imaginação nacional. Ao relatar que a nação é constituída através de uma tensão entre secularidade e perpetuidade, a elaboração de um patrimônio passa a ser um processo político no qual as influências da primeira terão desdobramentos na segunda. E, para que a dimensão de continuidade – contida pela perpetuidade – possa ser avaliada em relação ao cinema brasileiro contemporâneo, faremos um breve relato sobre a história do cinema brasileiro.

7

É interessante recordar que Gonçalves, em seu texto já citado, ao se referir ao processo de constituição de patrimônio como algo muito anterior à modernidade, assume a tese de que existe um impulso de ordem universal a eleger bens materiais ou imateriais à categoria de patrimônio.

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I UMA PEQUENA “REVISÃO” DA HISTÓRIA DO CINEMA BRASILEIRO? POR UMA “INTRODUÇÃO” AO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO “Nada nos é estrangeiro, pois tudo o é”. A já clássica asserção de Paulo Emílio Salles Gomes a respeito da nossa condição cultural pode funcionar como uma ótima introdução ao estudo do cinema pós-EMBRAFILME, na medida em que ela reflete a busca constante realizada ao longo de toda a história do cinema brasileiro depois dos embates dos anos 50 e 60: a afirmação da nação brasileira e de seu povo enquanto fonte temática, em contraposição clara a uma economia política dominada em escala global pelas produções de Hollywood. Historicamente, os agentes do campo do cinema adotaram um discurso cindido quanto ao seu papel de arte e de indústria. Enquanto nos EUA, onde o cinema se afirmou muito cedo como indústria, as cinematografias dos Estados que tardiamente perceberam a função social do cinema perante as massas foram relegadas, em sua maioria, a um plano marginal dentro do seu próprio mercado exibidor interno (processo muito bem conhecido no Brasil). Devemos expor, nesse momento, um breve resumo dos debates sobre cinema brasileiro empreendidos ao longo das décadas mencionadas. Em primeiro lugar, faz-se necessária a pergunta: por que voltar a esses tempos em um trabalho sobre cinema brasileiro contemporâneo? A resposta é quase imediata: foi neles que se traçou boa parte das discussões ora empreendidas na arena crítica, acadêmica e institucional. A urgência de se definir o que é um filme “brasileiro”; que temáticas o caracterizam; qual o papel das instituições relacionadas a este; que modelo econômico poderia viabilizá-lo; que movimentos seriam capazes de projetá-lo para platéias nacionais e internacionais (a velha questão do “público”), cujo debate teve início na década de 20 (mais precisamente na Revista Cinearte e na figura dos jornalistas Pedro Lima e Adhemar Gonzaga), ganhou força nos congressos de cinema realizados, em sua maioria, em São Paulo e no Rio de Janeiro, ao longo da década de 50, seguindo uma orientação ideológica à esquerda. O primeiro grande esforço metodológico de patrimonializar e historicizar o cinema brasileiro partiu de Alex Viany, em seu livro Introdução ao Cinema Brasileiro. Fruto de um desejo de uma “visão de conjunto”8, sintomática de sua atividade de 8

Expressão do próprio autor analisada por Arthur Autran em Alex Viany: crítico e historiador (2003).

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jornalista e de seus embates com críticos como Moniz Viana, Almeida Salles, Rubem Biáfora e J.D. Duarte, contrapunha-se ao paradigma hollywoodiano, alinhando-se aos que pregavam a necessidade de o filme brasileiro representar a realidade nacional. Lembrando que o livro foi lançado em uma época em que o cinema ainda não havia alcançado sua legitimação cultural9, é importante frisar que a construção de uma tradição na filmografia nacional era condição retórica sine qua non da inserção do cinema no panorama artístico nacional e, portanto, digno das atenções do Estado e dos acadêmicos. No segundo caso, os estudos cinematográficos, no Brasil, ganham força em fins da década de 60, ao mesmo tempo em que se criam cursos de comunicação nas universidades públicas10. E que tradição constituída é esta? Nas palavras de Arthur Autran:

Além do nacionalismo, entra em cena a cultura popular, tendo no samba um de seus representantes máximos. (...) Alex Viany, na constituição da sua narrativa histórica, inspirado por Georges Sadoul, utilizou-se de dois eixos principais: um que historiciza a falta de industrialização do cinema brasileiro e outro no qual indica a formação de um cânone artístico (2003, p. 200)

Assim, dotado de uma visão “essencialista” da identidade brasileira, Viany enumera o que deveria ser considerado ou não um filme brasileiro de acordo com critérios objetivos e definidos a priori: diretor brasileiro ou há muito residente no Brasil; falta da influência de gêneros do cinema norte-americano; temática ligada à realidade nacional; atores brasileiros; dentre outros, elegendo para cânone obras como Barro Humano (Humberto Mauro) e Limite (Mário Peixoto), postura sintomática do discurso nacional-popular que iria dominar os debates cinematográficos na década de 6011. Com o advento do Cinema Novo, radicalizaram-se as tendências já anunciadas na formação de uma historiografia do cinema brasileiro, sendo esse movimento sintetizado na publicação, em 1963, da Revisão Crítica do Cinema Brasileiro empreendida por Glauber Rocha. Eis o início da monumentalização da figura de 9

Visto que, em meados da década de 50, ainda havia a discussão do status de arte do cinema nas páginas de revistas como Cahiers du cinéma, Positif, na França, sendo que isso será conduzido no Brasil através de figuras como o próprio Viany, P.E. Salles Gomes, Salvyano Cavalcanti de Paiva, Alinor Azevedo, Nelson Pereira dos Santos, etc. 10 Faz-se preciso o estudo do vínculo acadêmico entre Cinema e Comunicação no Brasil, uma vez que a tradição anglo-saxônica delega ao cinema um posto nos departamentos de Literatura e a tradição européia o liga a áreas como História e Antropologia. 11 Para uma análise mais específica sobre estes critérios elegidos por Viany e sobre o debate no meio cinematográfico brasileiro dos anos 1950, conferir o livro já citado de Arthur Autran.

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Humberto Mauro, alçado à figura de “Pai” do cinema brasileiro e a tentativa de ostracismo de figuras como Anselmo Duarte, Walter Hugo Khouri e Alberto Cavalcanti, simbolizando projetos incompatíveis com a retórica cinemanovista de um cinema “genuinamente” brasileiro, imerso no imaginário popular e tecnicamente “imperfeito” (aliás, fato já elogiado por Viany e aqui levado aos extremos por Glauber). Nem mesmo Mário Peixoto saiu ileso, visto que sua postura “artista na torre de marfim” não atraía a simpatia do autor e sua relutância ante o trabalho de restauração de Limite era identificada a um artista pedante e “alienado”. Por que falar em monumentalização aqui? Sem querer diminuir a importância do personagem ora citado, devemos lembrar que a atividade cinematográfica contou com uma série de figuras, que iam de comerciantes (os irmãos Segreto, Francisco Serrador, Severiano Ribeiro) a jornalistas (Pedro Lima, Adhemar Gonzaga), passando por realizadores em vários estados (E. C. Kerrigan em São Paulo, Jota Soares e Benjamin Abraão em Pernambuco; Mário Peixoto, Carmen Santos, Gilda de Abreu, Alinor Azevedo, Watson Macedo, José Carlos Burle e Carlos Manga no Rio, dentre muitos outros) que desempenharam funções essenciais à atividade cinematográfica; no entanto, alguns destes não se encaixavam tão bem no modelo “nacional” tal como estabelecido, em uma fase anterior, pela crítica dos anos 50 e levada a cabo pelo ciclo cinemanovista. Apesar de conhecidos, suas atividades foram muito menos alvos de pesquisas do que as “realizações” de Mauro que, dentre outros, rendeu a célebre tese de Paulo Emilio Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. Se existem trabalhos de pesquisa desses outros autores da fase muda e início do cinema falado, estes se restringem a teses com circulação bastante restrita no meio acadêmico, ao contrário do quarteto Humberto Mauro-Paulo Emilio Salles Gomes-Glauber Rocha-Alex Viany, referências obrigatórias em quase todos os cursos de história do cinema brasileiro ministrados em universidades ou em instituições de cinema. O cinema brasileiro contemporâneo, formado a partir desse habitus, irá retomar o embate entre arte e indústria no cinema a partir de várias linhas, que podem ser resumidas, para melhor categorizá-las analiticamente, em duas: projeto industrial (cuja ênfase recai na cadeia produtiva cinematográfica e na questão do público) e projeto “autoral” ou de pesquisa de linguagem (cuja ênfase se situa nos filmes ou na qualidade

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destes)12. Lembrando que esses projetos nunca são defendidos em seu estado puro, estes devem ser compreendidos dialeticamente em relação ao campo, isto é, em que medida a disputa pelo capital dentro do campo e em relação a outros campos mobiliza esses projetos. É bastante corrente a análise errônea a partir de uma perspectiva dual, na qual supostamente se alinhariam os adeptos de um neoliberalismo que dominou os debates sobre economia política após a eleição de Fernando Collor à Presidência da República, de um lado, e os investigadores e divulgadores de uma identidade nacional ou regional que apóiam um cinema de cunho autoral e de “pesquisa de linguagem”, de outro. Podese inferir, a contrario sensu, que os diversos agentes situados no campo se valem tanto de premissas ligadas ao projeto “autoral” quanto ao industrial para se afirmarem politicamente. As diferenças devem ser procuradas nos diversos status ocupados por esses agentes e do habitus construído e invocado pelos mesmos, na medida em que pode se constatar uma disputa em torno dos significados de termos como “arte”, “indústria”, “nacional” e “popular”. Devemos ressaltar que o campo do cinema brasileiro contemporâneo foi formado a partir de uma grande ruptura: o fim da EMBRAFILME em 1990. Portanto, o critério temporal aqui adotado obedece à dinâmica da política do campo cinematográfico e não a um critério de ordem estética que costuma associar a produção de filmes atual ao paradigma do pós-moderno. Certamente, isso não implica a negligência dos fatores estéticos sobre os quais o cinema se apóia, o que será considerado principalmente na análise dos filmes, apenas queremos destacar que, por conta da análise do campo cinematográfico brasileiro, precisamos adotar um critério que considere sua historicidade. Assim, configurando uma alteração profunda no mercado cinematográfico brasileiro, tanto nos esquemas de produção13 quanto nos de distribuição14 e de exibição15, a extinção da EMBRAFILME pode ser considerada o marco da nova relação entre Estado e cinema no Brasil. Ademais, a própria existência

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A historiografia do cinema brasileiro (Autran, Bernardet, Xavier) também atribui a certos agentes como Vera Cruz, Atlântida e EMBRAFILME o papel de tentar transformar o cinema em indústria no Brasil; em paralelo a essa discussão, o debate já aqui apresentado e empreendido por críticos durante as décadas de 50 e 60 também transformaram o autor em categoria a partir da qual os filmes deveriam ser avaliados e, ainda, defendidos ou atacados. 13 Cuja proteção estatal se viu extinta “da noite para o dia”, na percepção dos agentes da classe cinematográfica. 14 Enfatizamos que a empresa também era distribuidora do cinema brasileiro, chegando a conquistar mais de 40% do público brasileiro em determinada época – gestão de Roberto Farias. 15 Diversas salas foram sendo fechadas a partir de meados da década de 80.

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do campo foi ameaçada a partir de sua economia16 e contestada por outros campos, notadamente o jornalismo e a política empreendida por Fernando Collor. Justamente, este “quase desaparecimento” que foi veiculado pela imprensa após o fim da EMBRAFILME ocupará a centralidade das narrativas dos agentes do campo na tentativa de recuperar o capital simbólico deste. E é a ligação entre este processo e as imagens de Brasil articuladas no campo e presentes nos filmes que nos interessa aqui. Em meio a uma crise vivida pela EMBRAFILME nos fins da década de 80, o Jornal da Tela publicou uma edição especial, em 1989, com a matéria EMBRAFILME: 20 anos. Por que a presença do Estado?, com depoimentos dos vários presidentes da empresa. É interessante notar como o habitus na relação entre cinema e Estado é aqui explicitado: “A necessidade do envolvimento do Estado na atividade cinematográfica não é, de resto, um problema brasileiro. Em todos os países desenvolvidos, como a França, a Inglaterra, a Itália e muitos outros, essa participação é fundamental na própria produção de cinema, seja através de leis protetoras e/ou da associação direta na própria produção. Até mesmo nos Estados Unidos, o paraíso da iniciativa privada, existe uma relação estreita da produção cinematográfica com o estado”

Essa necessidade de o Estado intervir na atividade cinematográfica, levantada desde a década de 20, passando pelo nacional-popular das décadas de 50 e 60, é uma narrativa constantemente ativada a partir de valores como “periférico”, “resistência”, “hegemonia”, “dominação”, “similaridade com cinematografias nacionais” presentes em paralelo com a presença dos produtos e dos distribuidores norte-americanos. A matéria destacava, dentre outros, o aumento gradativo do investimento em coproduções, a efetividade da “cota de tela” (que obrigava os exibidores a ocupar suas salas por um número de dias com filmes brasileiros), a obrigatoriedade de exibição de curtas nacionais antes dos longas, a relativa autonomia para com o governo militar (cuja censura atuava notadamente a posteriori, isto é, antes de os filmes serem exibidos), aumento do controle da remessa de lucros das empresas estrangeiras (que serviriam para financiar a produção nacional), a busca por critérios objetivos na concessão de verbas

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Uma análise interessante sobre estas alterações a partir do ponto de vista da distribuição cinematográfica no Brasil pode ser lida em GATTI, André Piero. Distribuição e exibição na indústria cinematográfica brasileira (1993-2003). Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, Programa de Pós-graduação em Multimeios, 2004.

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para a produção de filmes (que eliminariam, ao menos em tese, os “subjetivismos” na apreciação dos projetos e os favorecimentos políticos). Entretanto, os escândalos, a relação da empresa com o regime militar em sua origem

e a incapacidade em

acompanhar

as

transformações

do mercado

cinematográfico, segundo a imagem construída pela imprensa da época, além da plataforma política vencedora das eleições de 1989, fizeram tavola rasa dessas conquistas. Isso foi expresso na Lei 8.029/90, que extinguiu a empresa junto com outras na reforma administrativa contida na proposta de Collor17. A crise que se seguiu nos cinco anos seguintes ao fim da empresa fez surgir um trauma coletivo oriundo de uma alteração brusca na cadeia produtiva cinematográfica, que deu origem a novos circuitos de exibição e formas de produção e distribuição. O campo cinematográfico, durante esse tempo, teve de repensar suas relações com os campos político, econômico e jornalístico. Ocupando prioritariamente os cadernos de cultura (ao invés do noticiário econômico e político), a crise do cinema nacional foi abordada de vários ângulos, desde propostas de se repensar o conteúdo e a narrativa dos filmes nacionais no intuito de se conquistar o público18 até a contestação da possibilidade de o cinema brasileiro se afirmar exclusivamente no campo comercial19 sem os subsídios estatais. Na reportagem Primeiro verão sem Trapalhões, são apresentados os seguintes dados: enquanto o filme dos Trapalhões de 1989 (Os Trapalhões na Terra dos monstros) fez 3.200.000 espectadores, o de 1990 (Os Trapalhões e a árvore da juventude) conseguiu levar ao cinema 1.200.000, quase um terço do público do ano anterior, o que indica que a crise se deu em toda a cadeia produtiva cinematográfica. Outras abordagens devem ser aqui retomadas: a contestação da existência material do cinema brasileiro, que se traduziu em reportagens veiculadas em jornais de grande circulação regional e nacional, tais como Os descamisados do cinema20 e 17

A extinção da EMBRAFILME, na época, foi percebida também como uma retaliação política pelo fato de a maioria do campo cinematográfico, nas eleições do ano anterior, ter apoiado a candidatura de Luis Inácio “Lula” da Silva à presidência. No entanto, este fato foi contestado pela pesquisa de Antônio Carlos Amâncio, ao relatar que nesta Lei outros órgãos como Instituto Brasileiro do Café (IBC), Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), EBTU, PORTOBRAS também foram extintas por não se encaixarem no novo “perfil” a ser assumido pelo Estado Brasileiro. 18 LUNARDELLI, Fatimarlei. Cinema: a crise do nacional. In: Porto Vírgula número 1. Porto Alegre, março-abril 1991. 19 ORSINI, Elizabeth. Primeiro verão sem Trapalhões: crise do cinema nacional atinge até os campeões de bilheteria do Brasil. In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 10/08/1991. 20 SCHILD, Susana. Os descamisados do cinema. In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 19/12/1991, pág.1.

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Cinema brasileiro muda de emprego21, de um lado, e a reafirmação dessa existência mesmo que precária - por meio de outras como Cinema brasileiro: agonia sem morte22 e O cinema de 91 mostra um Brasil que não deu certo e busca a saída23, além daquelas que explicitamente pleiteavam a retomada da produção cinematográfica, tais como Ciclo de curtas de 91 traz retomada do documental24, A longa batalha do curtametragem25 e XVIII Jornada de Cinema da Bahia: a retomada do filme brasileiro26. Na medida em que o próprio ato social de ir ao cinema passou a ser preterido, o campo do cinema brasileiro contemporâneo teve, a partir de então, de enfrentar a seguinte questão: como assegurar a legitimidade do cinema enquanto fenômeno social perante os campos político e econômico? Recordemos que 1992 foi o ano em que a atividade caiu drasticamente em todos os segmentos: apenas 9 longas produzidos27, com taxa de público de 0,05% para o cinema brasileiro, além de o próprio mercado exibidor brasileiro ter despencado para apenas 34 milhões de ingressos vendidos e inúmeras salas fechadas, cujo número reduziu-se a menos de 1000 – em 1980, eram 2.300 salas e foram vendidos 164 milhões de ingressos28. Trazendo as colocações de Bourdieu, segundo as quais o campo configura-se, dentre outros, por seu passado relembrado no presente pelo habitus, é possível dizer que o campo do cinema brasileiro contemporâneo se constitui na tensão entre a memória deste trauma do fim da EMBRAFILME (e da crise que se seguiu) e do legado do controle estatal deixado por ela, sendo essa tensão pautada pela vulnerabilidade constante sofrida pelo próprio campo no tocante a mudanças bruscas em sua cadeia produtiva29. Desse modo, podemos interpretar a busca de legitimidade empreendida

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GIRON, Luiz Antônio. Cinema brasileiro muda de emprego. In: Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 5/5/1991, páginas 1 e 6. 22 PEREIRA, Edmar. Cinema Brasileiro: agonia sem morte. In: São Paulo, Jornal da Tarde, 28/6/1991, pág. 19. 23 SÁ, Nelson de. O cinema de 91 mostra um Brasil que não deu certo e busca a saída. In: Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 31/12/1991, pág. 1. 24 LABAKI, Amir. Ciclo de curtas nacionais de 91 traz retomada do documental. In: Segundo Caderno, Folha de São Paulo. São Paulo, 17/10/1991, pág 7. 25 ORICCHIO, Luiz Zanin. A longa batalha do curta-metragem. In: Caderno 2, O Estado de São Paulo. São Paulo, 27/7/1991, pág. 2. 26 JOSÉ, Ângela. XVIII Jornada de Cinema da Bahia: a retomada do filme brasileiro. In: Revista Cinemin, nov. 1991, pág. 24-25. 27 Cf: Catálogo da mostra Cinema Brasileiro Anos 90: 9 Questões, pág. 111. 28 Cf: SOUZA, Ana Paula. Mercado exibidor em expansão. In: Revista de Cinema. São Paulo, Krahô, março de 2003, pág. 54. 29 Na década de 80, a expansão do mercado do vídeo-cassete, responsável pela queda na venda de ingressos e o desgaste do mecanismo legal da cota de tela (alvo de ações judiciais por parte de exibidores descontentes). Cf: MEWES, Luis. A Justiça e o Governo Federal contra a reserva de mercado para o filme brasileiro. In: A verdade sobre o cinema brasileiro. São Paulo, João Scortecci Editora, 1992.

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pelo campo cinematográfico em relação a outros campos a partir da necessidade de sua própria existência material e daquela dos diversos agentes vinculados a ele.

II

O

CINEMA

BRASILEIRO

CONTEMPORÂNEO

LANÇADO

À

“RETOMADA”...

Em meio à grave crise do cinema nacional do início da década de 90 e percebendo que o campo dever-se-ia, de certo modo, “adequar” à tese do Estado Mínimo, visto que foi afirmada a importância da tutela estatal à atividade cinematográfica, os diversos agentes saíram à procura de meios para que as diversas esferas públicas adotassem uma nova política para o campo cinematográfico. Do ponto de vista político e econômico, as transformações mais relevantes foram as criações de leis de incentivo à cultura no âmbito federal, em um primeiro momento, sendo seguidas por diversas leis estaduais e municipais. É preciso sublinhar que a Lei Rouanet foi promulgada no final de 1991, tendo o campo político percebido que o cinema brasileiro não conseguiria se firmar sem a tutela estatal e, ainda, a busca daquele campo por legitimidade uma vez que já se anunciava a crise política que viria a retirar Collor da Presidência da República (não gratuitamente, o campo político negocia com campos cujo capital simbólico seria uma contrapartida, dentre eles o cinematográfico). A Lei do Audiovisual (de 1993), por sua vez, pode ser interpretada como uma conquista do campo cinematográfico em relação ao campo político durante a gestão Itamar Franco, tendo pleiteado, dentre outros, a possível

consolidação de uma indústria

cinematográfica e audiovisual no Brasil. Entretanto, já situamos de antemão que não existe nenhuma linearidade na negociação entre os campos cinematográfico e político. Ao contrário, a instabilidade pauta a relação entre os dois campos: além da própria ruptura com o fim da EMBRAFILME, essa tensão foi revivida em diversos momentos, tais como a criação da ANCINE e da possibilidade de o marco se estender ao audiovisual (a serem analisadas nesse ponto), além dos momentos de formulação dos editais para os concursos públicos

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direcionados ao campo30 e de outros em que o governo ameaçava sobretaxar alguns setores31. Passando ao âmbito da produção, este fato imprimiu, ao longo da década, uma nova dinâmica econômica a área: na medida em que o dinheiro para as produções não viria mais diretamente do Estado e sim das empresas patrocinadoras, os filmes passaram a ter de disputar a preferência das políticas de patrocínio de cada empresa individualmente. Isso originou uma série de fatores que alteraram a configuração do campo: a) os produtores enquanto grupo de status32 em ascensão no campo (sendo isso comprovado, inclusive, pela “descoberta” efetuada pela imprensa desta função e de seus agentes) 33, uma vez que a este seria atribuída a racionalização/burocratização do fazer cinematográfico, além do destaque da atuação de empresas produtoras dentro do mercado cinematográfico, responsáveis perante as empresas financiadoras pelos filmes; b) a demora que as empresas tiveram em se adequar ao novo esquema de patrocínio e dos agentes do campo cinematográfico em lidar com os dispositivos legais conduziu, dentre outros, à necessidade de figuras intermediárias entre patrocinador e patrocinado – os captadores de recursos, que muitas vezes ganhavam cerca de 20% ou mais do valor total do projeto34 (o que era um desvio de verba significativo e que poderia ser usada em benefício do próprio campo, seja na produção ou na difusão), formando uma elite burocrática dentro do próprio campo35 e, por conseguinte, resistente à alteração das formas de patrocínio delegadas pelo Estado à iniciativa privada; c) a lacuna presente nas leis originou distorções na sua aplicabilidade (tais como a lei do Audiovisual, em que muitas empresas descontavam um percentual maior do que o investido efetivamente, até 30

Um exemplo foi o edital publicado pela Prefeitura do Rio de Janeiro no início de 2006, que previa um concurso para propostas de filmes cuja temática deveria ser centrada na comemoração dos 200 anos da chegada de Dom João VI, o que gerou vários protestos no campo e se chegou a acusar a política de ‘dirigismo cultural’. 31 O constante atrito entre produtores e exibidores é uma narrativa presente no campo, uma vez que os últimos se percebem sobrecarregados de obrigações – cumprimento da cota de tela e pagamento de impostos, além da possibilidade da criação de novas e a reativação de antigas, tais como a lei do curta (cujo debate movimentou o campo em 2006). 32 Conceito de Weber apropriado por Bourdieu. Cf: BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 2005. 33 A título de exemplo, citemos as matérias As superpoderosas damas do cinema, de André Luiz Barros (veiculada no Caderno B do Jornal do Brasil em 22/4/1996) e O salto ambicioso do clã Barreto, de Roberta Jansen (veiculada pelo Jornal da Tarde em 26/10/1996). 34 “Com a Lei do Audiovisual, apareceu o cafetão de produção [referindo-se ao captador], que pede 30% para levantar a grana”. Declaração de Tata Amaral durante um debate organizado pela Folha de São Paulo com vários diretores e publicado no jornal em 25/4/1997 (no caderno Ilustrada). 35 Cultura descobre o poder do terno e gravata (referência a autoria limitada à sigla ECB). In: Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 2/1/1996, pág. 7.

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a modificação da redação do dispositivo legal) e alguns escândalos explorados pela imprensa que desgastaram a imagem do campo cinematográfico perante seu público (e.g., casos Guilherme Fontes e Norma Benguell); d) a segmentação do campo cinematográfico em “nichos de mercado”, que variam desde filmes baixo orçamento até alto orçamento e são produzidos para públicos diferentes, além de as estratégias de inserção dos filmes serem também repensadas. No tocante à existência do campo cinematográfico, podemos afirmar que duas narrativas dominaram o mesmo: a afirmação da precariedade de sua cadeia produtiva versus a monumentalização da retomada da produção e das medidas nas áreas de distribuição e exibição, configurando o “ciclo” como habitus presente no campo. Ou seja, além de o “ciclo” já ser uma forma narrativa privilegiada pela historiografia do cinema brasileiro, apreende-se o termo “retomada” em sua dimensão cíclica que, como tal, se vê constantemente ameaçada. Se, por um lado, ressaltava-se o alto custo de produzir filmes no Brasil36, a desorganização do mercado cinematográfico37, a falta de possibilidade de se cumprir a imensa carga tributária38 ou mesmo equiparar cachês do cinema aos pagos pela publicidade e televisão39, por outro se colocava em evidência a constante necessidade de o campo reafirmar sua legitimidade material e simbólica. Para tanto, rebatiam-se acusações como “corporativismo” e ineficiência40 e se defendia a escassa tutela estatal pós-Collor e a possibilidade de se regular o mercado cinematográfico para garantir a presença do filme brasileiro perante o estrangeiro (por exemplo, reativando a cota de tela, na prática abolida nos primeiros anos da década de 90)41.

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RYFF, Luiz Antônio. O Custo Brasil. In: Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 30/01/1997. DECIA, Patrícia. Desorganização domina mercado nacional. In: Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 6/2/1997, pág. 10; JUNIOR, Gonçalo. A Via-crúcis da distribuição: sem salas de exibição, quase duas centenas de filmes brasileiros esperam na fila para entrar em cartaz. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 10/9/1998. 38 Lei Trabalhista é ficção no cinema nacional. In: Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 26/01/1996, pág. 1 (autoria expressa pela abreviatura E.C.B.); LOPES, Denise. Um cinema à procura de acabamento. In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 8/8/1999, pág. 2. Na última reportagem, citam-se a imensa carga tributária que incide sobre a importação de equipamentos cinematográficos, a falta de garantias na continuidade da produção e o gasto de aproximadamente 25% dos orçamentos dos filmes em efeitos especiais e sonorização realizados no exterior. 39 BARROS, André Luiz. O que é isso, companheiro? In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 26/01/1996. 40 FRESNOT, Alain. A corporação e o cinema. In: Caderno Mais, Folha de São Paulo. São Paulo, 7/7/1996, p. 3. 41 BUTCHER, Pedro. “Cinemas viraram motéis de filmes”: Barreto protesta contra alta rotatividade que barra volta de ‘Companheiro’. In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 20/2/1998, p. 5. 37

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Muito se contestou a existência de uma indústria cinematográfica ativa no Brasil, dentro e fora do campo, tal como expõe o crítico Carlos Alberto Mattos:

a retomada do cinema brasileiro não é feita apenas de bons filmes e expressivo sucesso dentro e fora do país. Ela já produz alguns mitos(...). Um deles é o mito da proficiência da família Barreto, de resto comprovado na prática nos últimos 20 anos, desde a explosão de Dona Flor e seus dois maridos. Outro mito corrente é o de que basta produzir para chegar ao público – este ainda longe de corresponder à realidade caso a retomada não se verifique também na estrutura e no poder de cacife de distribuição e na garantia de espaços para exibição42.

Entretanto, essa contestação é muitas vezes contraposta a outras narrativas que sublinham a possibilidade de o cinema brasileiro tornar-se uma indústria. Ao acompanhar a escalada do número de espectadores e de filmes produzidos43 e, ainda, o apelo à qualidade estética dos filmes atuais, enfatiza-se o interesse das multinacionais pelo mercado brasileiro e a importância dos patrocínios. A título de exemplo, recordemos o debate ocorrido durante o Fórum Audiovisual do PT, realizado em 24/07/2006 na casa do Grupo Tá na Rua, no Rio de Janeiro, por acreditarmos que muitas características e contradições do campo terem sido ali expostas. Seria interessante iniciarmos a descrição do mesmo por meio de seu aspecto físico: realizado em uma sala no andar superior da casa, havia um palco com quatro cadeiras, e a disposição da platéia era, no mínimo, curiosa. Estando acomodada em um espaço estreito e longo, na parte da frente sentaram-se homens com trajes mais formais, enquanto o meio e o fundo da platéia estavam vestidos de modo mais informal. Tendo chegado cerca de quinze minutos atrasado, logo que vi uma cadeira, na parte da frente, sentei-me, o que gerou alguns olhares de censura dos que estavam à minha volta. Aos poucos, fui identificando alguns dos senhores à frente: Roberto Farias (ex-presidente da EMBRAFILME), Gustavo Dahl (presidente da ANCINE) Luiz Carlos Barreto (produtor de cinema), Joatan Vilela Berbel (relator do resumo aqui analisado e ocupante de altos cargos burocráticos no Ministério da Cultura), André Klotzel (cineasta). Do meio em diante, vários estudantes e representantes de associações como ABDeC, cineclubes locais etc. 42

Retomada da produção nacional é mitificada. In: Caderno 2, O Estado de São Paulo. São Paulo, 16/05/1996, pág. D7. 43 Público dos filmes nacionais cresce 37% (GUERINI, Elaine. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 12/1/1999), Cinema brasileiro ganha as salas da cidade (In: Jornal da Tarde. São Paulo, 6/6/1997, pág. 5C - autoria desconhecida), A indústria do cinema a todo vapor (LÓPEZ, Nayse. In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31/3/1996, pág.2)

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Faremos uma breve comparação entre o depoimento de Joatan Berbel 44 e minhas anotações sobre este mesmo evento. Um dado interessante a ser ressaltado: a motivação da escrita do resumo de Berbel é ser uma resposta a um artigo do jornal O Globo em que se menciona o “bate-boca” na reunião (uma imagem bastante difundida na mídia sobre o ambiente cinematográfico reside justamente em suas diversas polêmicas) e o resume a questões de bilheteria45.A isso, o depoimento de Berbel contrapõe ressaltando a conciliação e a diferenciação (quem está falando o quê) como valores preponderantes no referido debate. A disputa pelo capital no campo do cinema brasileiro atual é bastante atenuada no depoimento de Berbel (o que revela a posição ocupada por ele no campo, marcada pela preocupação de legitimar de uma política estatal). Eis alguns exemplos: “Paulo Thiago, fechadas,

quando estava

falou se

da

necessidade

referindo

ao

de

constante

se

fazer

clima

de

reuniões

a

desavença

portas que

é

retratado pela mídia”. Ligando a sua motivação à exposição de Paulo Thiago (cineasta e Presidente do Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica), o mesmo não levou em consideração o significado de “portas fechadas” no contexto do debate, que, na verdade, soou aos ouvidos de muitos presentes como uma tentativa de preservação do capital simbólico de alguns agentes do campo cinematográfico em detrimento da investida de novos agentes (isso fica claro em outro momento, por ocasião da crítica de Luiz Carlos Barreto e Paulo Thiago à política de editais. No palco, Paulo Thiago fala para a platéia: “em 4 anos de governo Lula, Roberto Farias [aponta-o de forma muito incisiva] não ganhou um edital sequer. É um absurdo um homem desse porte não ganhar nenhum edital!”, sendo que isso foi seguido de protestos46 e ensaios de vaias por boa parte da platéia do meio e do fundo e gerou um grande mal-estar nos presentes). É possível interpretar a fala de Paulo Thiago e a reação da platéia como a explicitação da disputa do capital tal como se referem Bourdieu e Canclini, uma vez que a política dos editais é percebida de modo dúbio: ora como um elemento “democratizador” da atividade cinematográfica, ora como algo que “desprofissionaliza” 44

Agradeço ao meu orientador prof. João Luiz Vieira por ter me enviado o resumo do debate feito por Joatan Vilela Berbel, que constará nos anexos desta dissertação. 45 Aliás, a carência de público também faz parte da imagem construída nos meios de comunicação ao longo da História do Cinema Brasileiro; recordamos os exemplos desde Cinearte até Veja, passando por figuras como Moniz Vianna, Fred Lee, dentre outros que, fazendo usos políticos bastante distintos desse ponto, mostram uma preocupação com o uso retórico do termo “público” - quantitativamente - de cinema brasileiro. 46 É curioso relembrar o tom dos protestos, que iam desde “eu tenho diploma de cinema, por que eu sou menos “profissional” que ele ou você?” até a ênfase da elitização da atividade cinematográfica.

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a mesma (posição implicitamente adotada por Berbel: “a crítica aos editais, apresentada pelo Paulo Thiago e pelo Barreto, é justa mas peca por analisar os resultados como problema e não a fórmula edital como "o problema"”; em outro momento, defende a manutenção do capital nas mãos dos atuais detentores, valendo-se de um recurso metonímico: “o Gustavo Dahl que cumpre o seu mandato ainda este ano, deixa um feito memorável que o inscreve no panteão dos grandes nomes do cinema como Paulo Emilio Salles Gomes, Almeida Prado, Cosme Alves Neto, Glauber e os demais. Não será exagero defender sua continuidade na liderança desse time”). Todavia, é interessante notar a presença de um discurso “multiculturalista” na fala de Berbel (sem, no entanto, perder de vista como a distribuição de poder é relatada e

legitimada

por

este):

“A

justa

bronca

dos

Cineclubistas

quando

reclamam a sua inclusão como agentes da difusão cultural que podem ampliar em muito o contato do povo brasileiro com os filmes e videos é também um ponto forte e mostra como a democracia é produtiva. A atuação dos grupos de produção Nós do

Morro,

Cufa

e

outros

deve

ser

entendida

como

um

avanço

no

desenvolvimento do audiovisual brasileiro, são novos atores que já estão aí e que podem trazer novos pontos de vista, inovações e um novo olhar”. Aliando este discurso à manutenção do lugar de autoridade de agentes já consolidados no mercado cinematográfico, eis um exemplo de apropriação conservadora do ponto de vista multicultural e do potencial de uso da mesma na manutenção de uma esfera pública dominada por uma elite burocrática (não necessariamente elite intelectual). Em resumo, o debate descrito aponta para a disputa por capital econômico no campo cinematográfico, cujos termos alteraram significativamente a partir do fim da EMBRAFILME. Aliada à conquista de patrocínios, a necessidade de demonstrar a legitimidade do campo cinematográfico brasileiro perante a imprensa, o Estado e o “público”, fez com que o mesmo repensasse a sua cadeia produtiva. Dentre as diversas práticas em que isso ocorreu, analisemos algumas. A primeira a ser citada é a monumentalização da “Retomada”, alçada a período da história do cinema brasileiro, a partir do sucesso de público representado pelo filme Carlota Joaquina, a princeza do Brasil, de Carla Camurati (primeiro filme brasileiro da década a ter mais de um milhão de espectadores). Muitos consideram o ano de 1995 (por conta do lançamento desse filme) um “marco” na transição do campo do cinema brasileiro, dentre os quais

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jornalistas, críticos e acadêmicos47, em vez de notarem que, nesse ano, foi consolidado o ajuste de grande parte do campo cinematográfico às diretrizes do campo político, com a efetividade dos patrocínios (leia-se, a chegada dos filmes “incentivados” ao mercado exibidor). A consagração na imprensa do sucesso obtido pelos filmes brasileiros em festivais e premiações no exterior também deve ser mencionada, principalmente se levarmos em conta as “batalhas pelo Oscar” noticiadas quase palmo a palmo por ocasião das indicações de O Quatrilho, O que é isso, companheiro? e Central do Brasil, que oscilou entre a patrimonialização (a incorporação destes filmes à discussão estética sobre cinema brasileiro) e a monumentalização (a interpretação da conquista de um Oscar de forma teleológica, ou seja, a chancela internacional como uma solução para os dilemas da cinematografia nacional e um marco na escalada para a consolidação industrial deste cinema). Além disso, existe uma disputa pela indicação do filme brasileiro a ser levado à apreciação da Academia das Artes e das Ciências Cinematográficas em Los Angeles, EUA que, via de regra, se situa na escolha do “modelo de filme” a ser apresentado: filmes com apoio de firmas estrangeiras como Miramax versus filmes tidos como “autorais”, sendo que estas estratégias revelaram-se inócuas desde 1999 (a última indicação de um filme brasileiro ao Oscar de melhor filme estrangeiro). Cabe ao Ministério da Cultura, por meio de uma comissão mista (com membros do campo cinematográfico - diretores, produtores, exibidores etc - e do próprio Ministério), escolher o filme todos os anos. Reiteramos que o reconhecimento internacional do cinema nacional é percebido há muito como fator determinante na delimitação do campo pelos agentes do cinema brasileiro e pela imprensa: “Como reconhecer o valor de um filme brasileiro, se o valor de qualquer obra é determinado pela metrópole? (...) Diante de um filme brasileiro, a decisão ainda não está tomada; caberia a esta elite reconhecer se para ela (ou, na perspectiva dela: para a sociedade brasileira), tal ou tal filme é ou não de seu interesse. Para isso ela precisaria ter uma autonomia de decisão e se afirmar numa perspectiva histórica. E não é o caso, a tal ponto que para se situar diante de sua própria produção cinematográfica, ela tem que aguardar que esta passe pela metrópole e receba a 47

Cf: NAGIB, Lúcia. O Cinema da retomada: depoimento de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo, Editora 34, 2002; ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada. São Paulo, Estação Liberdade, 2003.

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chancela. O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962), só virou grande depois da Palma de Ouro em Cannes. O Cinema Novo só virou importante depois de receber não sei quantos prêmios em festivais internacionais, artigos e entrevistas em revistas estrangeiras de prestígio cultural” (Bernardet, 1994, p. 17-18) A título de exemplo, recuperamos a entrevista da produtora Assunção Hernandez, na qual esta narra a trajetória comercial de O Homem que virou suco: “O Homem que virou suco foi difícil de produzir. Tivemos que filmar em 16mm, mas depois não tínhamos dinheiro para ampliar para 35mm. O filme foi exibido em poucos cinemas, ninguém queria saber da história. Foi um fracasso. A seguir, ganhou o prêmio de melhor filme no Festival de Moscou e foi notícia em todos os jornais. No dia seguinte, a situação se inverteu. Todos os exibidores queriam ter o filme e fizemos grande sucesso de público”48. Além da “busca do Oscar”, os agentes do campo do cinema brasileiro adotaram outras estratégias na tentativa de se inserirem na cadeia produtiva cinematográfica em escala internacional. Houve, nesse período, o aumento no número de co-produções entre o Brasil e outros países, além de colaborações internacionais (presença de atores 49 e técnicos na realização dos filmes brasileiros e de brasileiros em produções estrangeiras50) para os filmes brasileiros; a premiação de filmes brasileiros ocorreu além dos festivais, sendo vários diretores convidados a participar de laboratórios de roteiro e direção51 ou tendo recebido verba para a produção do filme52; a tentativa de se inserir o cinema brasileiro no mercado audiovisual internacional por meio de vendas para os circuitos cinematográficos e de televisão53 ou mesmo de festivais dedicados ao cinema nacional54. Passemos aos filmes produzidos: mesmo com a retórica da “diversidade”, destaquemos o apoio, por parte das empresas patrocinadoras, a versões e biografias da História “oficial”55 e a adaptações literárias e teatrais, o que originou um fenômeno 48

In: Revista de cinema no. 30. São Paulo, Krahô, outubro 2002, pág.18. Oriundi, em que Anthony Queen estava no elenco; O Xangô de Baker Street (Joaquim de Almeida). 50 Walter Salles dirigindo na série de esquetes Paris, Je t’aime (Cf: Revista de Cinema no. 22. São Paulo, Krahô, fevereiro 22, pág. 8; Rodrigo Santoro atuando no segundo filme da série As Panteras. 51 Lúcia Murat participou das oficinas de roteiro do Festival Sundance, com os filmes Brava Gente Brasileira e Quase Dois Irmãos. 52 Luiz Alberto Pereira e Sérgio Bianchi receberam R$ 100 mil para a finalização dos filmes Hans Staden e Cronicamente Inviável, respectivamente; Eliane Caffé recebeu verba do programa francês Fond Sud para finalizar Narradores de Javé (cuja mixagem foi feita em um estúdio na França). 53 Cf: O mercado internacional para o cinema brasileiro. In: Revista de Cinema. São Paulo, Krahô, julho 200, pág. 32-33. 54 Tais como o Festival de Cinema Brasileiro de Miami. 55 Cf: GUERINI, Elaine. Biografias dão novo fôlego ao cinema nacional. In: SP Variedades, Jornal da Tarde. São Paulo, 25/7/1999. 49

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detectado por João Luiz Vieira (2005): o crescimento no número de “filmes históricos” como forma de legitimar culturalmente o campo do cinema brasileiro. Além disso, poderíamos inferir que muitos desses filmes se pautam pela monumentalização da História oficial (Guerra de Canudos; O que é isso, Companheiro?; For All: o trampolim da vitória), de alguns personagens caracterizados pelos filmes como centrais na história política e cultural brasileira (Cazuza:o tempo não pára; Lamarca; Zuzu Angel) ou de alguns autores literários e teatrais (Memórias Póstumas de Brás Cubas), na medida em que se assiste nos mesmos uma tentativa ou uma reiteração de “canonização” e de narrativa teleológica. Entretanto, podemos argumentar que a própria noção de história foi disputada no campo, principalmente se observarmos outros filmes que buscam patrimonializar imagens pouco conhecidas pelo público brasileiro (Corisco e Dadá, que mostra uma Dadá pouco satisfeita com a vida do cangaço; Brava Gente Brasileira, que constrói uma imagem pouco divulgada dos índios – vitoriosos em uma guerra “cultural”; Baile Perfumado, que revela um personagem – Benjamin Abraão desconhecido pelo público e relevante na própria história do cinema brasileiro e uma fase do cangaço pouco estudada – o seu término; Madame Satã, cuja narrativa se situa em sua fase “pré-mítica”) ou que tentam construir uma narrativa “total” ou particular sobre o Brasil (Cronicamente Inviável; Quanto vale ou é por quilo?; Doces Poderes; Um céu de estrelas; O ano em que meus pais saíram de férias). A política neoliberal de patrocínios também confirmou sua preferência por autores com status já consolidados dentro do campo e os que se adaptaram mais facilmente aos esquemas de patrocínio (mesmo reconhecendo os dados de que houve mais de 100 diretores estreantes desde 1990, é preciso contrapor a esse fato a trajetória de boa parte deles, que se afirmaram no campo da publicidade ou da televisão para depois transitarem pelo cinema, tais como: Carla Camurati; Beto Brant; Fernando Meirelles; Mara Mourão; Kátia Lund; Mauro Lima; Tata Amaral etc). A progressiva tentativa de regionalização da produção cinematográfica com a entrada dos estados e dos municípios na atividade cultural através das leis de incentivo e da formulação de políticas públicas também teve seu impacto na cadeia produtiva - a partir de experiências como a Casa de Cinema de Porto Alegre56 e o Pólo de Cinema do 56

Isabella Goulart, aluna de uma das disciplinas ministradas por mim na graduação da UFF, empreendeu uma pesquisa intitulada “O imaginário gaúcho tem casa!”: a Casa de Cinema de Porto Alegre. Nela, a autora defende que o projeto da Casa era prioritariamente de produção para o mercado cinematográfico (a

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Ceará - e na abordagem teórica sobre o cinema nacional. Houve esforços no sentido de desconcentrar a atividade do eixo Rio-São Paulo57: no caso do Rio Grande do Sul, existe a atuação também da FUNDACINE, cujos prêmios de produção almejam a viabilizar a formação de um mercado regional58. Outro movimento regional que alcançou repercussão nacional e passou a integrar o campo do cinema brasileiro contemporâneo é o mangue beat. Oriundo de Pernambuco e tendo no “árido movie” sua atuação cinematográfica, a polêmica com o então secretário de cultura Ariano Suassuna - por conta de sua visão “nacionalista” que via com bastante desagrado as apropriações do grupo mangue beat – noticiada em jornais de grande circulação não somente foi incorporada a filmes59 como ajudou a projetar nacionalmente o movimento. Alguns longas como Baile Perfumado, Amarelo Manga, Cinema, Aspirinas e Urubus e Árido Movie e curtas como Maracatu Maracatus, That’s a Lero Lero, que obtiveram premiações em diversos festivais nacionais e internacionais60, trouxeram para o campo uma tensão entre representações regionais e nacionais, revisitando paisagens já consagradas na cinematografia brasileira (notadamente o sertão) e inserindo nelas a modernidade. Essas iniciativas trouxeram ao circuito exibidor filmes de diretores como Jorge Furtado, Werner Schünemann, Rosemberg Cariri, Paulo Caldas, Carlos Gerbase, Lírio Ferreira, Cláudio Assis etc, além de estimular diretores e produtores do eixo Rio-São Paulo a realizarem seus filmes em outras regiões (custo de produção mais barato) e a dialogarem com representações veiculadas por outros filmes realizados no âmbito do eixo Rio-São Paulo61 e inserir vários estados no circuito dos festivais de cinema criados na década de 90.

ponto de diretores descontentes com a proposta inicial terem-na abandonado para abrir produtoras de publicidade), para tanto conciliando diversidade temática e unidade política. 57 Cf: MATTOS, Carlos Alberto. Fundação sustenta nova retomada gaúcha. In: Caderno 2, O Estado de São Paulo. São Paulo, 23/12/1999. 58 Na reportagem de Carlos Alberto Mattos, há a referência a um prêmio de R$ 1,1 milhão recebido por Tolerância, de Carlos Gerbase (que chegou ao circuito nacional, sendo exibido inclusive na televisão aberta – no programa Festival Nacional da Rede Globo) e à filmagem de O Homem que copiava, de Jorge Furtado (que, posteriormente, fez mais de 300 mil espectadores no primeiro mês de exibição nacional, segundo o site da Casa de Porto Alegre. Fonte: http://www.casacinepoa.com.br/port/noticias/03-0711.htm - consultado no dia 2/2/2007 às 19:48). 59 O curta Resgate cultural, o filme, da produtora Telephone Colorido, que ironizava o próprio Ariano Suassuna e seu ideal de “cultura nordestina”, circulou por vários festivais brasileiros. 60 Cf: ORICCHIO, Luiz Zanin. Pernambucanos inventam o ‘árido movie’. In: Caderno 2, O Estado de São Paulo. São Paulo, 1/4/1997, pág. D12. 61 Recordemos que Eliane Caffé atribui a seus filmes um “espírito expedicionário”, no sentido de “descobrir” (ou encontrar, para utilizar uma palavra menos etnocêntrica) regiões pouco retratadas, tais como o Vale do Jequitinhonha de Kenoma ou o interior da Bahia de Narradores de Javé; ainda há filmes

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Na reportagem O Cinema fora do eixo62, a jornalista e pesquisadora Maria do Rosário Caetano faz um mapeamento da produção cinematográfica empreendida fora do eixo Rio-São Paulo. Cobrindo desde estados com produção constante até os com pouca tradição no campo (Mato Grosso, Piauí e Pará, e.g.), a autora aponta para as possibilidades surgidas com as novas leis de incentivo estaduais e municipais e para a “diversidade” temática e estética dos filmes. Devemos fazer uma rápida reflexão de que essa “diversidade”, na verdade, se deu partindo da apropriação de temas regionais e de estéticas como as da televisão, do vídeo-clipe, da publicidade, do super 8 etc; no entanto, a tensão entre regional e nacional não deixa de se fazer presente nesses filmes, reiterando o campo do cinema brasileiro contemporâneo enquanto lugar de articulação de diversas narrativas que, de alguma forma, colocam em evidência representações de Brasil. Entretanto, uma iniciativa empreendida local e somente no Rio de Janeiro, a criação da Riofilme em 1993 - empresa pública distribuidora de filmes nacionais – deve ser considerada dentro desse panorama, uma vez que a mesma é percebida pelo próprio campo como uma das principais articuladoras do mercado exibidor de filmes brasileiros (inclusive das produções levadas no âmbito de outras regiões). Para tanto, a empresa atende prioritariamente os mercados do Rio e de São Paulo63, dada as limitações orçamentárias de uma empresa pública municipal. Já que mencionamos a RioFilme, é interessante notar que o habitus constituído no campo remete-se constantemente a problemas enfrentados em dois pontos da cadeia cinematográfica: distribuição e exibição. No caso da empresa carioca, esta auxiliou na recuperação de um segmento do mercado de arte para o cinema brasileiro64, formado pela atividade cineclubista durante as décadas de 70 e 80 e presente nas áreas nobres do Rio e de São Paulo, fazendo parte de um panorama no qual se inclui, dentre outros, o crescimento do Grupo Estação (iniciativa de Adhemar Oliveira em 1985), a reativação dos cineclubes e a criação de diversos festivais regionais e temáticos no Brasil durante a década de 90. Aliás, é interessante notar que a maioria dos festivais existentes hoje têm como Abril Despedaçado (Walter Salles), Eu, tu, eles, Casa de Areia (Andrucha Waddington), O Quatrilho (Fábio Barreto); For All (Luiz Carlos Lacerda e Buza Ferraz). 62 Cf: Revista de Cinema no. 21. São Paulo, Krahô, janeiro 2002, pág. 30-35. 63 As tentativas de se criar uma empresa distribuidora de filmes em São Paulo malograram e, até o presente momento, o município não a possui. 64 Cf: VERÍSSIMO, Fernando. Cinema de Arte. In: Filme B – Edição especial Festival do Rio. Rio de Janeiro, setembro 2006, pág. 10-13. Nesta, há o número de salas consideradas “de arte”, sendo 143 ao todo no Brasil (7% do mercado exibidor nacional), a maioria nas cidades de São Paulo (32), Rio de Janeiro (29) e Brasília (23).

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um surgimento recente, visto que muitos se pautaram como uma “alternativa” ao mercado exibidor concentrado65. Sobre a exibição dos filmes brasileiros, devemos ressaltar que o fator mais debatido e percebido pelos agentes do campo cinematográfico como crucial à sobrevivência deste foi a possível ligação com a televisão, visto como primordial para atingir o “grande público” e assegurar sua existência econômica. A partir da constatação de que o mercado exibidor alterou-se e está muito concentrada, principalmente com a falência dos cinemas de rua das grandes cidades (sobretudo nos subúrbios) e das cidades de interior economicamente representativas e com a posterior entrada, em 1997, dos cinemas multiplex neste mercado, o campo cinematográfico deparou-se com um dilema: como alavancar uma indústria de cinema no Brasil se não conseguimos mais do que 10% do público no nosso próprio mercado? Além disso, a partir dos altos preços praticados nas novas formas de exibição66, o público freqüentador de cinemas passou a ser prioritariamente as classes média e alta, já que as salas localizadas em áreas ‘populares’ se transformaram em templos religiosos ou simplesmente fecharam. Para atingir esse público popular alijado dos cinemas, o campo teve de iniciar um diálogo com a televisão e se perceber enquanto parte de um campo maior: o audiovisual. No intuito de melhor compreender a disputa que se deu em relação à televisão, precisamos analisar a presença do campo político no cinema e as negociações entre eles. Em 2001, a ANCINE (Agência Nacional do Cinema) foi implementada através da Medida Provisória 2228. Devemos relatar o processo pelo qual a mesma foi gerada. Em 2000, o GEDIC (Grupo Executivo para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica), chefiado por Gustavo Dahl, circulou por vários festivais e congressos discutindo os marcos regulatórios estatais para o campo. Dentre os diversos encontros, o que ocorreu no III CBC (Congresso Brasileiro de Cinema) é muito relevante, na medida em que expõe a tentativa de formulação do consenso dentro do campo e a disputa deste para com outros67.

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Algumas alternativas ao mercado exibidor tradicional foram experimentadas ao longo da década e configuradoras do campo: o projeto Cinema BR em movimento (que visa o público universitário e de comunidades carentes); Festivais como Tiradentes, Varginha, Vitória, o Festival do Rio (junção de dois festivais mais antigos), Paraty, Búzios, Rio das Ostras, Cuiabá, Catarina Festival de Documentário, FEMINA, FICA (Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental – Goiânia), Florianópolis Audiovisual Mercosul, É Tudo Verdade, Cine Ceará etc, ao lado dos tradicionais Festivais de Gramado e Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. 66 O preço do ingresso de cinema triplicou nos últimos dez anos, no Brasil. 67 Como fonte, utilizaremos o relatório final do congresso, disponível em http://www.cinemabrasil.org.br/congresso/ (consultado em 30/04/2006 às 3:43h).

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A narrativa em torno da vulnerabilidade do campo é mais uma vez sublinhada: “a comunidade cinematográfica brasileira, reunida no III Congresso Brasileiro de Cinema, numa posição de unidade nacional, manifesta sua preocupação com a grave situação da atividade cinematográfica, que afeta todos os setores e que ameaça mais uma vez a continuidade e a existência de nosso cinema” [grifo nosso]. A “identidade nacional” também se faz aqui presente, sendo possível inferir que, tanto nos filmes como no discurso crítico sobre o cinema realizado no Brasil, a nação é uma prática discursiva percebida como uma aliada à sobrevivência do campo68 e não somente como um conjunto de imagens pertencentes a sua memória. Partindo disso, poderíamos, ainda, referir-nos a essa prática discursiva enquanto uma forma de controle na hierarquia estabelecida dentro do próprio campo e um capital lançado por este no embate com outros campos (sobretudo o político e a televisão) e em sua projeção internacional. Ademais, as contestações à economia neoliberal feitas dentro do próprio campo são substituídas pelo consenso expresso no documento:

O Cinema Brasileiro existe, está implantado em sua forma industrial e já demonstrou sua capacidade de produção e criatividade, como uma forma indispensável de expressão nacional. Por outro lado, medidas como a Lei do Audiovisual, antiga reivindicação da classe, mostram como a ação governamental justa, feita em consonância com a opinião do setor, gera resultados extremamente positivos como foi o chamado renascimento do cinema brasileiro, saudado em todo o mundo [grifo nosso].

Ao contrário das partes grifadas, os mecanismos legais de incentivo não são consenso dentro do campo, sendo alvo de críticas de vários agentes69 e muitas vezes contestados publicamente, através das polêmicas travadas em editoriais e reportagens de jornais de grande circulação. A própria acepção de “renascimento do cinema brasileiro”

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Um trabalho que se propõe a fazer uma análise de filmes a partir das representações de Brasil não pode ignorar a disputa que se dá em torno delas dentro do campo, seja pela estética presente nos filmes, seja pela retórica política que define “nação” em relação a outros termos como “popular” e “identidade nacional”, sendo que ambas operam por meio da patrimonialização de novas imagens às representações de Brasil ou por meio da monumentalização da nação brasileira (ou de elementos relacionados a ela). 69 No ensaio 1995-2005: Histórico de uma década, Daniel Caetano, Eduardo Valente, Luiz Alberto Rocha Mello e Luiz Carlos Oliveira Jr. fazem uma crítica contundente ao “princípio do incentivo”, revelando fenômenos adversos ocorridos a partir dele: a) o teto dos orçamentos de produção levou a filmes dispendiosos e a custos de produção inflacionados; b) a ênfase na produção em detrimento da difusão; c) o princípio da “auto-sustentabilidade” presente na formulação das leis de incentivo que, na prática, seria dificilmente concretizado, uma vez que 90% do mercado exibidor é dominado pelo filme estrangeiro, não havendo, portanto, garantia na continuidade da produção; d) a adequação entre os filmes e as políticas de marketing empreendidas pelas empresas constituiria uma “privatização” da elaboração das políticas públicas para o campo do audiovisual. Cf: CAETANO, Daniel (org.). Cinema Brasileiro 1995-2005: ensaios sobre uma década. Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2005, pág. 11-47.

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também transita entre o reconhecimento da ameaça que constantemente paira sobre o campo e o louvor aos mecanismos legais que confluíram para a ‘retomada’. Retornando à televisão, eis como o relatório do CBC se manifesta em relação a ela:

Mais do que uma reivindicação do setor, a participação da televisão no processo de consolidar a indústria audiovisual brasileira é uma questão de equilíbrio para a economia do país. O modelo histórico da televisão brasileira concentra num único agente a produção e a difusão dos programas. (...) As redes importam do exterior ou produzem elas próprias os produtos audiovisuais que veiculam. Dessa forma, mantêm cativo o mercado consumidor, sem abertura para realizações independentes. (...) As novas tecnologias podem constituir-se em excelente oportunidade de novos negócios, dando escoamento à produção brasileira já existente e abrindo espaço para novos produtos. No entanto, a velocidade de transformação das tecnologias contemporâneas exige extremo cuidado e atenção constante, para que estas não se tornem novas ameaças de ocupação do mercado nacional por empresas e produtos estrangeiros.

Entre a concentração do mercado exibidor tanto no campo cinematográfico quanto no televisivo e a velocidade com que produtos audiovisuais estrangeiros chegam ao nosso mercado via televisão, relembra-se a narrativa da ‘ameaça’, além de conter uma crítica velada à presença monopolista da Rede Globo. Algumas das reivindicações feitas durante o congresso foram implementadas pela criação da ANCINE, órgão responsável pela regulação da atividade cinematográfica no Brasil em seus âmbitos financeiro, formulador de políticas públicas e fiscalizador. No entanto, a possibilidade de se regular o mercado audiovisual para se obter um equilíbrio na oferta e na demanda dos produtos do campo cinematográfico 70, vontade expressa do documento do CBC, não obteve vitória no campo político (o texto original de criação da ANCINE reservava um capítulo somente para a televisão, sendo o mesmo retirado do projeto final, em virtude de pressões efetuadas pelo campo televisivo perante o político). Devemos sublinhar algumas especificidades do projeto da ANCINE, em virtude dos ganhos políticos do campo. Ao contrário do modelo de agências reguladoras, implementado dentro da concepção de Estado neoliberal que restringe a atuação desses órgãos a um papel meramente fiscalizador, a ANCINE, recuperando parte do habitus relacionado à antiga EMBRAFILME, também possui um aspecto de fomento da atividade cinematográfica, por meio de ações como: editais para produção de curta e 70

Sendo os filmes tidos como “produtos independentes”, nomenclatura utilizada pelo documento do CBC.

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longa metragem; editais de co-produção com outros países e de distribuição de filmes nacionais e estrangeiros no Brasil; fortalecimento de acordos internacionais e de instituições multilaterais que atuam no mercado audiovisual, como a RECAM – Reunión Especializada de Autoridades Cinematográficas y Audiovisuales del Mercosur y Estados Asociados), inclusive recuperando algumas medidas da antiga empresa e reivindicadas dentro do campo, tais como o prêmio adicional de bilheteria e o retorno ao cumprimento da lei do curta. Todavia, o reconhecimento da necessidade de parceria com a televisão para a exibição dos filmes se conjuga com um habitus de resistência cultural à televisão e à cultura de massa de um modo geral – e muitas vezes não percebendo o cinema como parte dessa cultura – construído historicamente no campo, dois tipos de relação com esta dominaram os debates: negociação versus conflito. Em vários episódios, a tensão entre cinema e televisão foi transposta para o campo político, sendo o momento mais evidente desta a famosa “batalha da ANCINAV” (Noilton Nunes, 2003). No documentário realizado por Noilton Nunes a partir da possibilidade de se criar uma agência reguladora englobando todo campo do audiovisual, diversos agentes do campo cinematográfico manifestam sua postura política de embate ou conciliação com a televisão. Dentro da última postura, alinham-se diretores como Carlos Diegues (que, na época da divulgação do projeto da ANCINAV, condenou o mesmo em jornais de grande circulação), Zelito Viana e Roberto Farias (ex-diretor da EMBRAFILME e funcionário da Rede Globo), contrariando as diretrizes do CBC71. A divisão interna do campo cinematográfico aliada à campanha de detração do projeto da ANCINAV, tachado como ‘stalinista’, ‘autoritário’, ‘retorno da censura’, ‘dirigismo estatal’ em publicações de circulação nacional como Veja, Isto é e Folha de São Paulo, além da pressão exercida pelos campos jornalístico e televisivo perante o campo político ocasionaram o arquivamento do projeto. Em outras situações de embate com o campo televisivo, o campo cinematográfico também tem sido derrotado72.

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Em outro momento, por ocasião da entrada tardia da televisão no mercado de distribuição cinematográfica, com a Globo Filmes, também foi alvo de apreensões sobre o impacto desta no mercado para o filme brasileiro Cf: BUTCHER, Pedro. A Dona da História: origens da Globo Filmes e seu impacto no audiovisual brasileiro. Dissertação apresentada à ECO-UFRJ. 72 Vide a questão da tevê digital ao longo de 2006, cujo padrão japonês – defendido pelas tevês abertas – foi aprovado, em detrimento do padrão europeu ou mesmo brasileiro – uma vez que houve pesquisas em universidades públicas financiadas com verbas do CNPq para a implantação de um padrão brasileiro de tevê digital, deslocando desse modo, a discussão sobre transmissão de conteúdo para questões meramente técnicas; a gestão de Hélio Costa, ex-funcionário da Rede Globo, tem sido alvo de descontentamento por parte de muitos agentes do campo.

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No entanto, existem alguns pontos em que estes campos confluem. Um deles é a legitimação cultural de atores que transitam entre os dois campos (como exemplo, poderíamos citar Rodrigo Santoro em Bicho de Sete Cabeças; Simone Spoladore em Lavoura Arcaica e Desmundo; Lázaro Ramos em Madame Satã e O Homem que Copiava; Hermila Guedes em O Céu de Suely; Matheus Nachtergaele em O Auto da Compadecida e Cidade de Deus). Outro é a presença do Rio de Janeiro como paradigma do mercado audiovisual nacional (o local de sede das Organizações Globo e da Riofilme, a principal rede de televisão e a distribuidora de filmes nacionais, respectivamente; o escritório central da ANCINE, todos se encontram na cidade), ao lado de São Paulo. Para encerrarmos provisoriamente essa descrição do campo cinematográfico, é preciso mencionar as instâncias em que a discussão estética sobre cinema brasileiro vem ocorrendo. Reconhecemos a institucionalização acadêmica do campo, uma vez que, para a afirmação da legitimidade do mesmo, seja pelo debate acadêmico, seja pela formação de novos profissionais, é fundamental a presença de colaboradores brasileiros e estrangeiros em atividade. Dentre as diversas iniciativas do meio acadêmico, podemos citar: a realização do encontro anual da SOCINE – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e do Audiovisual desde 1996, com a participação de vários pesquisadores do campo, além do aumento do número de cursos de graduação ou técnicos em cinema e audiovisual no Brasil a partir de meados da década de 9073, do número de publicações da área cinematográfica presentes no mercado editorial nacional e da pesquisa efetuada em programas de pós-graduação (sobretudo na área de Comunicação); o aumento no número de palestras oferecidas ao público freqüentador de centros culturais por ocasião de festivais e mostras. Do crescimento do intercâmbio internacional, podem ser destacados: a realização de um curso de cinematografia brasileira em 2000 na Universidade de Oxford (Inglaterra), com a presença de vários pesquisadores brasileiros e estrangeiros; a participação de pesquisadores brasileiros em congressos internacionais como Visible Evidence (sobre documentário); a presença dos brasilianistas e pesquisadores de cinema Randal Johnson e Robert Stam no meio acadêmico norte-

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Em universidades públicas (UFSC, Ufscar etc) e privadas (Estácio, Anhembi-Morumbi etc); Escola Darcy Ribeiro e FAETEC (ensino técnico, ambas no Rio de Janeiro).

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americano, sendo importante citar que ambos atuam na divulgação do cinema brasileiro no exterior74 e na formação da intelectualidade brasileira do campo cinematográfico. Além do meio acadêmico, podemos reconhecer a atuação de uma crítica especializada, de modo difuso nos cadernos de cultura de jornais e revistas e em sites na internet75 (que serviu enquanto fontes para a realização da pesquisa apresentada), na cobertura de festivais, do circuito de filmes e de polêmicas do campo76 e a presença de entidades como a ABD, a CUFA, ONGs como “Nós do morro” etc, cujas abrangências não podem, infelizmente, ser alvo de uma análise mais detida. Finalmente, a inserção acadêmica no campo nos remete a outra questão: a preservação dos filmes, a necessidade de se guardar acervos para pesquisas atuais e futuras, além da óbvia possibilidade de os mesmos circularem em mostras, festivais ou exibições especiais. A grave crise que se instaurou no setor, a partir da gestão 2000/2001 do Museu de Arte Moderna e do progressivo desmantelamento do acervo de matrizes da Cinemateca do MAM, alvo de protestos dentro do campo e noticiados na imprensa carioca, inaugurou uma nova disputa entre os campos cinematográfico e político para que se obtivessem recursos na guarda dos acervos audiovisuais e a preservação da memória da ‘cultura nacional’. Dentre as diversas medidas, é possível destacar a realização de um censo cinematográfico77 e as recentes reformas da Cinemateca Brasileira - em São Paulo - e da Cinemateca do MAM, no Rio.

III

ELIANE CAFFÉ, LÚCIA MURAT, SÉRGIO BIANCHI: STATUS E

CAPITAL NO CAMPO CINEMATOGRÁFICO

Aos diretores dos filmes - que normalmente são colocados nos créditos a partir das referências “um filme de” ou “dirigido por” - é ligada a noção de “autoria” que, além de mobilizar o debate crítico, transformou-se em conceito teórico para avaliar as representações veiculadas audiovisualmente. Sobre este processo, Jean-Claude Bernardet em O autor no cinema: a política dos autores: França, Brasil, anos 50 e 60, 74

Tais como a realização, no Museu de Arte de Nova York, da mostra Cinema Novo and Beyond, cuja curadoria ficou a cargo de Jytte Jensen, José Carlos Avellar e Ismail Xavier, sendo que o livro-catálogo foi produzido sob a responsabilidade editorial de João Luiz Vieira. 75 Cf: Revista Contracampo (www.contracampo.com.br) e Revista Cinética (www.revistacinetica.com.br). 76 Além do surgimento de publicações especializadas como Revista de Cinema e Paisà. 77 Cf: PINTO, Fabrício. Brasil pode ter mais filmes restaurados a partir do Censo Cinematográfico. In: Revista de Cinema no. 23. São Paulo, Krahô, março 2002, pág. 50-51.

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observando que esta noção migra para a crítica cinematográfica a partir da literatura, relata que o mesmo ocorre na França dos anos 50, em paralelo com a legitimação do cinema como arte e, poderíamos aqui acrescentar, como campo dotado de uma relativa autonomia e constituído através de algumas questões – notadamente estéticas. Para este trabalho, perceberemos os diretores enquanto um grupo de status atuante no campo cinematográfico e em relação a outros grupos (produtores, técnicos e burocratas), não sem antes dissociá-los de funções. Compreendemos “função”, aqui, como uma atribuição dentro da cadeia produtiva cinematográfica (diretor de fotografia, continuísta, produtor executivo, e.g.), ao passo que grupos de status

constituem unidades nominais que podem restituir a realidade, de modo mais ou menos completo segundo o tipo de sociedade, mas que são sempre o resultado da opção de acentuar o aspecto econômico ou o aspecto simbólico, aspectos que sempre coexistem na realidade (em proporções diferentes conforme as sociedades e as classes sociais de uma mesma sociedade), uma vez que as distinções simbólicas são sempre secundárias em relação às diferenças econômicas que as primeiras exprimem, transfigurando-as (BOURDIEU, 2005, p. 15).

Reinterpretando Weber, Bourdieu se apropria desta noção para compreender como a ordem simbólica se afirma e se transforma por meio das marcas de distinção proferidas por seus diversos agentes situados em diferentes classes e grupos. Mesmo com o intuito de desautorizar a “autoria” como categoria analítica dos filmes, não podemos deixar de reconhecer que a noção de “autor” configura um capital simbólico acumulável dentro do campo cinematográfico e em relação aos campos político e econômico (e, desse modo, enquanto produtora de marcas de distinção). Na medida em que a crítica, o meio acadêmico, o público etc ‘constróem’ e ‘reconhecem’ um “autor”, o capital simbólico acumulado por este é potencializado em termos de intervenção política (por exemplo, nos debates sobre o cinema brasileiro) e econômica (a possibilidade de realizar futuros filmes). Por outro lado, ao se deslocar a “autoria” da análise fílmica, retiramos dessa última discussões indesejáveis como “originalidade”, “genialidade”, “traços biográficos na obra” ou “sentido do texto”. Sendo assim, ao inserirmos as trajetórias dos diretores dentro do campo cinematográfico, enfatizaremos as práticas discursivas presentes e disputadas nas representações de seus filmes, sobretudo as representações de Brasil, objeto maior do nosso estudo.

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Entretanto, se quisermos compreender seus respectivos lugares de autoridade, não basta apenas afirmar que Caffé, Bianchi e Murat fazem parte de um mesmo grupo de status ou são “autores”. Precisamos, antes disso, analisar como os diretores enquanto grupo de status historicamente situado no campo - disputam com outros grupos os capitais econômicos e simbólicos, além dos processos em que esses diretores em questão acumularam seus próprios capitais simbólicos (e em que instâncias a “genialidade”, “originalidade” etc, ao serem reconhecidas, atuam nesse jogo). Vejamos o caso de Sérgio Bianchi: estreou na produção de longas com Maldita Coincidência, exibido comercialmente em 1981. Noticiado na imprensa três anos antes78, o filme era ligado à inicial carreira do diretor, à decadência ressaltada no filme e ao início da construção de uma imagem do diretor perante o campo: “Mas foi o aspecto de suntuosidade em decomposição que despertou o interesse de Sérgio Bianchi para seu filme. Depois de dois curtas-metragens: “Ônibus” e “A Segunda Besta” (exibido recentemente no MASP), ele começou a filmar “Casa de Deus” [que posteriormente seria intitulado Maldita Coincidência – observação nossa], em outubro, com um roteiro seu. No final de novembro, com mais da metade pronta, foi obrigado a parar por falta de recursos. Depois de quase um mês de viagens constantes ao Rio, conseguiu com a Embrafilme parte do capital necessário para continuar o projeto. “Foi uma longa romaria de entregar requerimento, receber protocolo, negativas, esperas, novas promessas. Eu acredito que São Paulo tem condições, tanto humanas quanto técnicas, de fazer um cinema realmente expressivo. É necessário somente que a Embrafilmes (principalmente o escritório paulista) dê um pouco de mais agilidade às suas engrenagens”79.

Começam a transparecer as críticas à burocracia estatal80, vista como inoperante e cruel e as condições precárias de produção enfrentadas pelo cinema brasileiro (e sendo localizada na trajetória do diretor). É interessante notar que, nas reportagens, as referências ao filme giram em torno do diretor (e a ênfase na ligação entre roteiro e direção). Há aparições ocasionais ao nome dos atores e às condições de produção do filme (sem menção a nome de nenhum técnico ou produtor), porém a partir do ponto de vista do discurso do diretor. Desse modo, podemos inferir que o diretor se encontra em posição privilegiada de iniciar sua trajetória de acúmulo de capital simbólico, em um 78

Encontramos matérias veiculadas pela Folha de São Paulo e pela Última Hora, ambas de 1978 (2/5/1978 e 29/4/1978, respectivamente), cobrindo a produção do filme e seus problemas com a censura e com a EMBRAFILME. 79 Cf: A “Casa de Deus” em SP. In: Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 2/5/1978 (referência à autoria: sigla C.M.). 80 Em outra reportagem, Bianchi afirma que os “cineastas-burocratas” são o grande empecilho ao desenvolvimento do campo. Cf: Agora, um longa-metragem marginal. In: Última Hora, 29/4/1978 (sem referência à autoria).

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campo no qual se atribuía ao grupo de status dos diretores a responsabilidade pelo sucesso/fracasso do fazer cinematográfico. A polêmica censura ao filme, que impôs corte de 8 minutos, foi interpretada dentro do campo como uma ameaça ao cinema brasileiro, sendo que a APACI (Associação Paulista de Cineastas) manifestou-se publicamente por meio de notas, reproduzidas na íntegra ou em reportagens sobre o corte imposto ao filme e contribuiu para a imagem de Bianchi como cineasta censurado, perseguido (seja pelo Estado, seja pela crítica)81, sendo a mesma reiterada ao longo de sua carreira. A reportagem e a crítica feitas por Miguel Pereira, por ocasião do lançamento do filme82, fazem menção à palavra “autor”: “parte desse atraso [do lançamento do filme] deve-se à Censura que inicialmente criou problemas com uma cena em que um personagem ensina e mostra como se faz um coquetel molotov. Porém, no filme isso não tem nada de político ou mesmo de incitamento. Ao contrário, essa cena é feita com ironia, segundo a intenção declarada de seu autor” [grifo nosso]. Impõe-se o autor como instância interpretativa do filme (“intenção”) e como responsável pelas características do mesmo (“feita com ironia”), sublinhando, inclusive, a que tipo de público esse filme deveria atingir: “esse sentimento de liberdade criativa que o filme parece buscar é um forte apelo para o público universitário” e deduz que “não é, pois, um filme que o grande público gosta de ver” (revelando a crítica enquanto estrutura estruturante (Bourdieu, 2005), ou seja, capaz de formular uma produção de sentido para os filmes, e estrutura estruturada, na medida em que esta seria pautada pelo diálogo com o público, deduzindo - mesmo que com limites - seus gostos). Em outra crítica, fica evidente o processo em que se dá a construção de um autor: “tendo demorado tanto para ser exibido, Maldita Coincidência, com todos os seus maneirismos datados, soa bem ultrapassado. No entanto, mesmo sem ter nada de estritamente original em seu pensamento ou em sua forma de estruturar o filme, Sérgio Bianchi dá mostras de sua disposição em fazer um cinema sério e não convencional”83 [grifo nosso]. Além da busca por “traços” ou “características”, há uma predisposição em relacionar o diretor a um cinema “experimental” e culturalmente legítimo, o que aumentaria seu capital simbólico dentro do campo. 81

Cf: O protesto dos cineastas. In: Jornal da Tarde. São Paulo, 18/12/1980 (sem referência a autoria); Censura volta a cortar filme. 16/12/1980 (pasta 1980-7/747 da Cinemateca Brasileira); Cineasta reclama de corte. 12/12/1980 (pasta 1980-7/746 da Cinemateca Brasileira). 82 PEREIRA, Miguel. ‘Maldita coincidência’, os anos 70 do novo cinema paulista. In: Jornal da Tarde, Rio de Janeiro, 16/6/1981. 83 COELHO, Lauro Machado. Uma colcha de maneirismos datados. In: Jornal da Tarde, 4/11/1981.

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O filme seguinte do diretor - Mato eles? - teve uma trajetória bastante parecida com o do anterior. Além das dificuldades de produção (devido à demora no repasse de verbas do governo do Paraná, financiador do filme), o filme foi censurado às vésperas de sua exibição pública, sendo esta censura acompanhada pelos jornais de grande circulação84. Retratando as dificuldades e o genocídio dos índios dentro de uma reserva indígena da FUNAI mediante uma linguagem documental paródica (isto é, que questiona os próprios procedimentos do gênero documentário) e uma ironia cujo alvo era o discurso oficial85, Mato eles? foi proibido um dia antes da comemoração oficial do dia do índio, pois poderia “provocar incitamento contra o regime vigente, à ordem pública, às autoridades constituídas ou aos seus agentes ou ferir por qualquer forma a dignidade ou o interesse nacional”86, lembrando que o filme ficou proibido por cerca de vinte dias87. A disputa em torno do filme se acirrou e, dentre as conseqüências, poderíamos inferir a maior projeção dele e de seu diretor, sendo que o diretor já havia sido premiado como melhor diretor de curta-metragem no Festival de Gramado do ano anterior88 e que o filme foi paulatinamente legitimado cultural e academicamente (haja em vista a participação em um debate, promovido pela Folha de São Paulo, de acadêmicos e de representantes de instituições culturais como Manuela Carneiro da Cunha, Jacó Picoli etc89, além das exibições do filme até hoje promovidas por universidades, cineclubes e instituições de pesquisa). Além disso, o filme foi lançado em uma época em que a “questão indígena” estava muito em evidência, com as constantes crises da FUNAI (e a revelação de uma série de irregularidades em torno dela). Inserindo-se nessa esfera pública, Bianchi 84

Foram encontradas 9 reportagens em jornais sobre a censura ao filme. Cf: PEREIRA, Edmar. O documentário sobre os índios, interditado pela censura. In: Jornal da Tarde, 20/4/1983; Outra Proibição. In: Painel da Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 20/4/1983; Censura Federal proíbe o filme “Mato Eles?” In: O Estado de São Paulo. 21/4/1983; Censura aumenta arrocho e proíbe “Mato eles” In: O Dia. Rio de Janeiro, 21/4/1983; Diretora da Censura proíbe “Mato Eles” In: Correio do Povo. Porto Alegre, 21/4/1983; Censura proíbe filme Mato Eles. In: Última Hora, Rio de Janeiro, 21/4/1983; “Mato Eles?” proibido, surpresa para Bianchi. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 22/4/1983; Anacronismo. In: Painel da Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 26/4/1983; A subversão indígena. In: Isto é, 27/4/1983. 85 Mais uma vez tenta-se procurar “marcas” do autor no filme: “Uma denúncia contundente, feita com humor, criatividade, autocrítica e originalidade: essas qualidades garantiram ao média-metragem Mato Eles?, de Sérgio Bianchi, o prêmio de melhor direção no último Festival de Gramado”. PEREIRA, Edmar. O documentário sobre os índios, interditado pela censura. In: Jornal da Tarde, 20/4/1983. 86 Cf: Em defesa da moral. In: Jornal de Brasília. Brasília, 22/4/1983 (sem referência à autoria). 87 Em 13/5/1983, há notas que revelam a liberação do filme pela censura. 88 O prêmio mais importante até então do campo cinematográfico, que possibilitava o reconhecimento do diretor e a abertura do mercado para o filme premiado. 89 Cf: Índios são tema de debate na “Folha”. In: Folha de São Paulo, 17/4/1983 e Dois filmes contra o genocídio indígena. In: Folha de São Paulo, 19/4/1983.

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lançava, através dos jornais, inúmeras questões: “1) Quem assina debaixo deste genocídio cultural; ele é justificado como extração de produtos; pra onde vai o dinheiro arrecadado?; 2) O não reconhecimento dos índios como uma cultura diferenciada e com alguns elementos de profunda inteligência não supõe uma profunda burrice de vossas senhorias?”90, participando dessa construção de sua imagem como agente contestador do status quo. Em outros momentos, essa atuação será retomada, no sentido de intervenção política dentro do campo e em relação a ele. Após a realização e exibição comercial do filme Romance (em 1988), no qual o roteiro retrata as conseqüências do assassinato de um intelectual de esquerda (intrigas políticas, investigações frustradas etc), ocorre o fechamento da EMBRAFILME. Na crítica Sobre crise, cinema e algumas omissões91, o diretor publica na Folha de São Paulo uma série de contestações à abordagem da crise do cinema brasileiro, por parte da imprensa e do Estado92. “A imprensa brasileira veiculou nos últimos tempos uma imagem de que os cineastas brasileiros desvirtuaram verbas do Estado e fizeram filmes que, por não terem qualidades, não alcançaram o público. (...). Na área de produção, a imprensa se incomoda em saber o quanto tem sido investido pela Secretaria do Estado de São Paulo para a produção de longas e curtas metragens. Estes filmes ficaram prontos? Onde estão? Quantos milhões de dólares existem hoje em razão do decreto 862, que taxa os lucros do cinema estrangeiro? (...) E o processo de liquidação da EMBRAFILME como está?”93

Essa intervenção aliada à produção de A Causa Secreta, com problemas semelhantes aos filmes anteriores do diretor, colaborou para o reconhecimento de Bianchi como um “autor” ainda atuante no cinema nacional, sendo este fato ressaltado em diversas reportagens94. Em 1993, há duas retrospectivas de sua obra, promovidas pelo MASP e pelo Museu Lasar Segall, ambos em São Paulo e, no ano seguinte, finalmente A Causa Secreta participa de festivais.

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Cf: PEREIRA, Edmar. Op. cit. Cf: Folha de São Paulo, 14/6/1991. 92 Além de uma resposta pública à reportagem veiculada pela Folha de São Paulo em 5/5/1991 (Cinema brasileiro muda de emprego, já mencionada). 93 Op. cit. 94 Cf: PEREIRA, Edmar. Nasce um filme nacional, resistindo à morte decretada. In: Artes e Espetáculos, Jornal da Tarde, 2/4/1991; PEREIRA, Edmar. Cinema Brasileiro: agonia sem morte. In: Artes e Espetáculos, Jornal da Tarde, 28/6/1991; SÁ, Nelson de. O cinema de 91 mostra um Brasil que não deu certo e busca a saída. In: Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 31/12/1991, pág. 1. 91

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Qualificado nos jornais como “um dos mais raivosos e malditos diretores do cinema brasileiro”95 (algo rejeitado pelo próprio diretor), outras polêmicas marcariam a exibição no Festival de Gramado de 1994. Além da “polêmica do rato” (há uma cena em que há a dissecação de um rato), a saída do cineasta italiano Michelangelo Antonioni da sessão em que o filme era exibido foi algo bastante explorado pela imprensa. Ressaltando as falhas técnicas do filme (planos mal iluminados, seqüências mal filmadas), parte da crítica reconhece, todavia, que o filme “rompeu o bom-mocismo reinante no evento”96, “numa adaptação de rara modernidade”97 que, numa combinação de “ira cívica e desconforto existencial, torna “A Causa Secreta” um filme importante e de rara oportunidade, para além de suas evidentes imperfeições”98. É preciso notar que, além das controvérsias que possibilitam o diretor acumular um capital simbólico ligado à contestação, as representações de Brasil desempenham um papel importante nesse processo, uma vez que nas críticas sobre os quatro filmes já apresentados são feitas diversas menções ao fato de os mesmos contradizerem representações oficiais ou comumente veiculadas pelo próprio cinema ou em outros meios. Reconhece-se, portanto, o papel deste “autor” na formulação de contra-narrativas à nação, sintetizado no título de uma reportagem sobre este último filme: ‘A Causa Secreta’ disseca o horror do Brasil.99 Em Cronicamente Inviável, filme seguinte do diretor, lançado em 2000, esse aspecto é ainda mais ressaltado. Com ampla repercussão nacional e internacional, o filme foi apontado como uma “recusa de endossar os projetos interpretativos que a cultura brasileira vem fabricando para si própria desde o século XIX” 100 e com uma representação de Brasil que “não é apenas Copacabana ou esplêndidas baianas que, por alguns flashes, vemos em Cronicamente Inviável, mas um país exterminado, dividido em norte e sul, entre miséria e riqueza, entre violência e resignação, entre belas paisagens e “luxuosos” barracos”101.

95

MERTEN, Luiz Carlos. O Brasil que os brasileiros se recusam a ver. In: Caderno 2, O Estado de São Paulo. São Paulo, 28/9/1991. 96 LABAKI, Amir. Antonioni deixa sessão de “A Causa Secreta”. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 12/8/1994. 97 Op. cit. 98 Op. cit. 99 COELHO, Marcelo. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 24/8/1994. 100 COLI, Jorge. Ponto de Fuga. In: Caderno Mais, Folha de São Paulo. São paulo, 30/7/2000. 101 MATTEI, Gianluca. Brasile: il “paradiso infernale” di Bianchi. In : Spettacoli, La Prealpina, 11/8/2000. Artigo veiculado em italiano por ocasião do Festival de Locarno (trecho traduzido do italiano pelo autor).

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Tendo sido alvo de um intenso debate veiculado durante alguns meses de 2000 na imprensa, o filme certamente contribuiu para a legitimação de Bianchi como um “autor” pela crítica e pelo meio acadêmico, visto que há a ambição, no filme, de uma representação “total” do Brasil, reconhecida pelo público e pelas reportagens. Com títulos variando entre Os motivos pelos quais “Cronicamente Inviável” é o filme da década102 e Dando adeus ao país do futuro103, estas ressaltavam que “Bianchi não livra a cara de ninguém e distribui a culpa igualmente entre ricos e pobres”104, “desmonta, com ironia corrosiva, os clichês já estabelecidos sobre nossa pretensa “civilização” (o Carnaval, a “cordialidade”, a “democracia racial”) e desenha uma seqüência de absurdos (plausíveis!) que inferem a total insanidade de nossa nação”105. Desse modo, Bianchi não apenas entra na disputa pelo capital – o poder de representar a nação – como também é, paulatinamente, dotado de um lugar de autoridade106,reforçado pelo discurso acadêmico sobre o cinema brasileiro (tal como a entrevista de Ismail Xavier à Folha de São Paulo)107 e pela comparação implícita ou expressa com outros “autores” (e.g., a comparação do cinema de Bianchi ao teatro da crueldade de Artaud)108. Além disso, vários críticos, ao compararem o filme com outros produzidos na década de 90, o patrimonializaram, no sentido de colocá-lo em confronto com o “cinema asséptico” produzido hoje no país: “tenta explicar a corrosão do país através da luta de classes, recorte ignorado (ou abandonado) pelo cinema brasileiro contemporâneo”109; “em sua inadequação à “cena cultural” expõe os limites autistas de classe do cinema brasileiro atual”110 ou “pela ambição e coragem em fazer um grande retrato do Brasil, escapando da aversão e medo a tratar do presente do país, diferente da maioria do cinema contemporâneo”111.

102

BAPTISTA, Mauro, MANEVY, Alfredo e SARAIVA, Leandro. Olhar Crítico. In: Folha de São Paulo (sem referência a data). 103 BARBOSA, Marco Antônio. In: Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 12/8/2000. 104 Op. cit. 105 Op. cit. 106 Visto que o processo do acúmulo de capital simbólico enquanto “autor”, iniciado com os outros filmes, volta-se diretamente para o saber acadêmico, tanto no plano das teorias interpretativas do Brasil quanto no dos gêneros cinematográficos, uma vez que a ficção base do filme alcançou um “efeito de verdade” superior a muitos documentários, gênero privilegiado na discussão sobre cinema brasileiro contemporâneo. 107 Cf: CONTI, Mário Sérgio. Encontros inesperados. In: Caderno Mais, Folha de São Paulo. São Paulo, 3/12/2000. 108 Cf: COUTO, José Geraldo. Filme retrata país fraturado e insano. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 5/5/2000. 109 MANEVY, Alfredo. Op. cit. 110 SARAIVA, Leandro. Op. cit. 111 BAPTISTA, Mauro. Op. cit.

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A coincidência do lançamento comercial de Cronicamente... com a comemoração oficial dos 500 anos do “Descobrimento” também atuaram nessa disputa pela legitimidade das representações de Brasil presentes no mesmo, sendo percebida como parte da estratégia comercial do filme112 e, ao mesmo tempo, uma reação sarcástica à imagem oficial veiculada por essas comemoração113. Apesar de o filme ter sido produzido ao longo de quatro anos, isso não impede que o mesmo tenha aproveitado o momento político de seu lançamento para se apropriar de um discurso oficial e ironizá-lo, principalmente no decorrer do debate que se travou nos jornais à época. A cobertura e a participação do filme em festivais internacionais o situaram numa posição de revelar uma nova imagem do Brasil perante os estrangeiros. “É um país que não pode ser percorrido sem pagar a viagem moral e fisicamente – descobre Alfredo [personagem de Umberto Magnani], escritor de meia idade que é o fio condutor no mosaico que o filme compõe”114 ou, ainda, “era preciso visitar o Brasil com o provocador Bianchi. Seu filme retrata um país estigmatizado como Cronicamente Inviável por sua burguesia, realizada por se livrar de toda tentativa de melhorar a vida pública e a dos pobres em particular”115 são duas das representações valorizadas pelos espectadores e pela imprensa internacional que, com o filme, descobrem um país marcado pelo signo da violência (real e simbólica), inserindo o mesmo num processo de reformulação da imagem dominante do Brasil no exterior116 (lembrando que a projeção de Cidade de Deus, no ano seguinte, também foi fundamental para isso). Aliada a esta cobertura, várias reportagens são veiculadas na imprensa brasileira sobre a participação do filme nos festivais no exterior: como exemplo, eis ‘Cronicamente Inviável’ vai ao Festival de NY117, na qual se sublinha que o filme representará o cinema nacional em um festival que há quatro anos não selecionava filme brasileiro.

112

Cf: CHAGAS, Luiz. Graça na desgraça. In: Isto é 1600, 31/5/2000. Cf: NAGIB, Lúcia. Bianchi ridiculariza realidade brasileira. In: Sessão Cinema, Guia da Folha, Folha de São Paulo. São Paulo, 5 a 11/5/2000, pág. 11. 114 BRUSAPORCO, Ugo. Una voce chiede rispetto. In: La Regione, 12/8/2000. Reportagem veiculada por ocasião do Festival de Locarno (traduzido do italiano pelo autor). 115 RICHON, Nadine. Vedettes du palmarès de l’édition 2000, la Chine et l’Allemagne se taillent la part du léopard. In : Le Temps, Genebra, 14/8/2000. Reportagem veiculada por ocasião do Festival de Locarno. 116 Cf: STRAUMANN, Patrick. Brésil, pays de l’avenir? In : Le Quotidien du Festival, Pardo News, 11/8/2000 ; MITCHELL, Elvis. Undercutting the notion of Brazil as sex symbol. Film Festival Review, 7/10/2000 (Festival de Nova York). 117 BERNARDES, Marcelo. In: Caderno 2, O Estado de São Paulo. São Paulo, 16/8/2000. 113

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Finalmente, em 2005, Quanto vale ou é por quilo? foi lançado comercialmente e exibido em vários festivais. Reiterando sua posição enquanto agente formulador de contranarrativas às representações de Brasil, Bianchi se insere na disputa pelo capital simbólico através de mais uma ficção recorrente à ironia e ao trágico. No entanto, dessa vez o debate crítico reforçará a ligação estabelecida na diegese entre passado e presente118 e a crítica ao papel das ONGs. Comparado a cineastas tidos no meio acadêmico e na crítica especializada como “autores” (Buñuel, Eisenstein etc)119 e com uma montagem qualificada como “dialética”120, o diretor contesta uma imagem construída na imprensa pela ação das ONGs121,objeto até então ausente na cinematografia brasileira122. Ainda, o filme é apropriado pelas pautas de mídia impressa, uma vez que a atuação de ONGs corruptas passou a ser alvo destas: “Mas, exatamente por este dinheiro, que muitas vezes vem de fora, é que muita coisa acaba desvirtuada. Só um exemplo: no centro, uma famosa ONG que cuida de crianças de rua foi flagrada, dia desses, ensinando golpes baixos para a garotada se livrar da polícia, quando esta quer leválos para hospitais ou abrigos. Sem as crianças na rua, a ONG pára de receber verbas... Nos anos 90, ONG queria dizer esperança. Precisamos tomar muito cuidado para que não vire um palavrão”123.

Com títulos apelativos em alguns casos124, várias reportagens sobre o filme construíram um dualismo entre Bianchi e as entidades assistencialistas, destacando pontos como privatização do Estado, discursos de raça e classe e conseqüências da escravatura para tentar avaliar a reação do público, tal como o faz o próprio diretor: “as pessoas se perguntam “para onde a gente vai?”, caem em depressão ou começam a rir, o 118

A relação entre escravidão e o assistencialismo contemporâneo foi associada, em algumas críticas, ao discurso do movimento negro. Cf: WERNECK, Alexandre. Cronicamente Iluminista. In: Programa, Jornal do Brasil, 27/5 a 2/6/2005. Divulgou-se que um título pensado para o filme foi Maravilhas da Escravatura, abandonado pelo diretor por considerá-lo ofensivo. 119 Cf: LEAL, Hermes. Entrevista com Sérgio Bianchi. In: www.2uol.com.br/revistadecinema/fechado/entrevista/edicao26/entrevista_01.html (consultado em 8/6/2005). 120 Cf: LIMA, Paulo Santos. “Quanto vale ou é por quilo?” dispara torpedos na moral brasileira. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 20/5/2005 121 Na verdade, isso já foi iniciado em Cronicamente... ao ironizar a ONG Viva Rio e o uso de entidades assistencialistas para obliterar o tráfico de bebês e de órgãos. 122 O que poderia ser interpretado como uma patrimonialização, na medida em que esta imagem se incorpora ao panorama do cinema brasileiro atual. 123 In: Nuances do bem. O Estado de São Paulo. São Paulo, 19/5/2005, pág. D4. Matéria sobre a préestréia do filme (sem referência a autoria). 124 Cf: SIMÕES, Eduardo. Sérgio Bianchi versus o assistencialismo. In: O Globo. Rio de Janeiro,23/5/2005; TINOCO, Bianca. O choque de Bianchi. In: Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 29 e 30/5/2005.

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que não gosto muito, porque elas vêem senso de humor nesse caos”125. É curioso que foi divulgado que o filme teria um terceiro final, mais “otimista” (não foi rodado por falta de verba), em que os personagens da trama ascenderiam a cargos estatais relevantes (um seria inclusive Ministro do bem-estar social), sendo o mesmo pontuado por canções nacionalistas. Sem perder de vista a sua intervenção política dentro do campo, Bianchi assim se manifesta: “o lado bom da grande produção brasileira é que há espaço tanto para a comedinha da Globo quanto para filmes de reflexão. Quero mais é que a diversidade do cinema brasileiro cresça. Só assim vamos acabar com essa invasão de 80% dos filmes americanos em nossas telas, sem pagar as taxas devidas”126. Desse modo, evidencia-se o debate sobre as representações de Brasil e a nação como uma trajetória considerada legítima no acúmulo de capital simbólico dentro do campo cinematográfico e como um diferencial do diretor (agente) dentro de seu grupo de status, em conformidade com o habitus de o cinema brasileiro estar situado dentro das discussões sobre representações do nacional perante outros campos, como a televisão, o rádio etc e fazer disso um capital na afirmação da legitimidade de sua própria existência. A segunda diretora a ter sua trajetória analisada é Lúcia Murat. Lembramos que Murat iniciou sua carreira cinematográfica sem recorrer às narrativas da nação brasileira e, aproveitando sua experiência jornalística (trabalhou mais de quatro anos na Rede Manchete em telejornais), fez um documentário sobre a queda de Somoza na Nicarágua - O Pequeno Exército Louco127 - o que, segundo uma reportagem do Jornal do Brasil128, criou uma situação inédita: uma produção nacional feita no exterior e a EMBRAFILME, órgão então responsável pela atividade cinematográfica no Brasil, não tinha legislação para o caso (o que explicita ainda mais o habitus no tocante às representações de Brasil). No entanto, a preocupação reside na construção do ponto de vista em que os acontecimentos devem ser expostos: “nossa ótica é diferente – diz Paulo Adário – procuramos mostrar a América Latina como brasileiros e do mesmo continente, sem passar pela Europa ou Estados Unidos. Não focalizamos somente os tiros, a guerra, mas 125

Op. cit. Op. cit. 127 O filme é dado como desaparecido. 128 Cf: ROUCHOU, Joëlle. A “guerra” do documentário: um espaço para exibição. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 23/10/1979. 126

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procuramos também falar com a população, fomos a cidades abandonadas, queríamos saber a opinião do povo nicaragüense”129 [grifo nosso]. Em outro trecho, Murat afirma: “as imagens lembram muito o Nordeste”130. Outras notas sublinhavam o aspecto inédito das imagens captadas por Adário e Murat: “o mais precioso, completo e impressionante documento sobre a queda de Somoza deve ser certamente o material cinematográfico conseguido por um cineasta brasileiro que acompanhou durante meses, filmando-a antes, durante e depois, a luta dos sandinistas para derrubar a ditadura”131 [grifo nosso]. A exibição do filme (em 1984, seis anos depois do início de sua produção), por sua vez, é avaliada pela imprensa como ocupando um espaço à margem, junto com outros documentários brasileiros (não é gratuito o título da matéria de Rouchou usar dubiamente o termo “guerra”, referindo-se tanto ao conteúdo do filme quanto à luta por sua exibição): “O Programa de Média-metragem foi, provavelmente, a mais conturbada competição oficial ao longo de todo o Festival do Rio. No início, os cineastas inscritos reivindicaram maior divulgação de seus trabalhos, afirmando que estavam prejudicados e reclusos num “gueto” (a sala de projeção da Faculdade Cândido Mendes), longe, portanto, das “badalações” do Hotel Nacional. Para piorar a já delicada situação, dois filmes – PCB, de Luiz Fernando Taranto e Acredito que o mundo será melhor, de Jussara Queiroz – foram proibidos de exibição no Festival pela Censura, reduzindo para 15 o número de participantes. Em resposta, um veemente manifesto assinado por diretores e profissionais de Cinema e TV foi preparando repudiando o arbítrio (“...uma afronta aos direitos constitucionais”) do órgão federal” 132.

É preciso recordar que a legitimidade do gênero documentário, mesmo que presente na crítica acadêmica e jornalística, só seria afirmada perante um público de cinema (principalmente universitário ou “cinéfilo”) ao longo da década de 90 (por ocasião do surgimento de vários festivais, prêmios etc já abordados na parte anterior). Dentre as características formais do filme mencionadas nas reportagens e críticas, eis a narrativa fragmentada, quebrando a cronologia e a linearidade, além da ligação entre as políticas nicaragüense e brasileira (marcadas pela ditadura) e entre o filme e seus diretores: “reflete ainda a volta por cima dos realizadores. Lúcia foi

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Op. cit. Op. cit. 131 Coluna do Zózimo. In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 8/9/1979, pág.3. 132 LARGMAN, Ricardo. Entre os médias, a força da Nicarágua. In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 27/11/1984, pág.6. 130

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torturada nos anos duros da repressão iniciada no Brasil em 1964”133, tendo início o acúmulo de capital simbólico em relação à “autoria” e à construção de um lugar de autoridade dentro do campo. Esse processo será ainda mais explícito no filme seguinte da diretora, Que bom te ver viva, seu primeiro longa-metragem. No folheto de divulgação do filme, Murat o apresenta partindo do que “não consta no seu curriculum como jornalista de cineasta”: “Minha história não foi diferente das entrevistadas: presa em 1971, passei dois meses sendo torturada no Doi-Codi e três anos e meio na cadeia”. Em paralelo, várias matérias fizeram referência à experiência vivenciada pela diretora durante a repressão como fonte de autoridade para o filme: “Lúcia Murat foi presa em 1971 por pertencer a uma organização da esquerda armada. Barbaramente torturada, saiu da cadeia em 1974”134; “a obra é extremamente autobiográfica. O tema principal do filme – explica Lúcia – se centra no significado da sobrevivência à tortura”135. Ademais, há a intervenção política do filme nos debates sobre os efeitos da ditadura na política e no cotidiano brasileiros, além de o mesmo ser caracterizado como uma contranarrativa: “a história brasileira possui muitos discursos. Entre a história oficial e a realidade, existe um grande hiato que vai aos poucos sendo revelado. “Que bom te ver viva”, da jornalista e cineasta Lúcia Murat, em cartaz no Cine Pathé, resgata de forma contundente um momento importante da nossa história, ao realizar um documentário contendo depoimento de mulheres que foram presas e torturadas durante a repressão do regime militar brasileiro. Anos que não podem ser esquecidos, mas que também não devem ser lembrados à exaustão, com o risco de serem apenas trauma” 136.

O filme foi construído como uma ruptura do “pacto de silêncio” sobre o período do regime militar no cotidiano (e na imprensa) e a ausência de revisões históricas sobre o mesmo137. Em uma crítica publicada durante o Festival de Pesaro de 1990, há a seguinte análise do filme: “mais que invocar o período da prisão e das torturas, as 133

Cf: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 27/11/1984 (sem referência a autoria). SALEM, Helena. Um mergulho corajoso. In: Última Hora. Rio de Janeiro, 15/6/1989. 135 BRAGA, Suzana. Mais do que a história oficial. In: Última Hora Revista. Rio de Janeiro, 19/10/1989. 136 CUNHA, Alécio. ‘Que bom te ver viva’: um painel contundente de momento esquecido. In: Cinemas, Hoje em Dia. Belo Horizonte, 20/12/1989. 137 Essa narrativa também se faz presente no folheto de divulgação do filme, em depoimentos como o da atriz Giulia Gam e o da psicanalista Helena Besserman Viana. Essa última assim se manifesta: “o ser humano esquece. E mais: esquece que esquece. Esse filme consegue fazer lembrar a necessidade da denúncia constante desses crimes, como o antídoto e prevenção contra a conivência ou omissão, instrumentos diletos do poder atrabiliário, da tortura, dos assassinos da memória”. A psicanalista foi a responsável pela denúncia do psiquiatra Amílcar Lobo, que participava, como médico, das torturas no DoiCodi (capital simbólico mobilizado pelo folheto do filme). 134

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entrevistas testemunham a dificuldade de retomar a própria vida em uma sociedade que quer apenas esquecer”138. Além de ser apontada como central na narrativa fílmica, a dialética entre memória e esquecimento migrou para o debate político realizado durante sua exibição comercial e em festivais, contribuindo para o reconhecimento da diretora dentro do próprio campo cinematográfico (atestado pelo depoimento de dos cineastas Geraldo Sarno, Eduardo Escorel, Carlos Diegues, Eduardo Coutinho e Murilo Salles a respeito da importância de Que bom te ver viva como documento para o cinema brasileiro139 e por diversos prêmios obtidos em festivais140). O filme foi posteriormente apropriado por teorias cinematográficas que dialogam com as teorias do feminismo, porém não sem algumas críticas, tal como expressas, em uma apreciação bastante posterior a sua exibição comercial, por David Foster:

A necessidade em atingir um nível de eloquência discursiva talvez explica o porquê de as mulheres de classe média serem escolhidas, sem referência ou inclusão de mulheres da classe operária, e também manifesta um terceiro grau de marginalização: a de classe social. Além disso, como as mulheres entrevistadas são de áreas urbanas, um quarto elemento de marginalização a relação entre metrópoles e províncias – também está ausente. Essa sobredeterminação dos status sociais das mulheres como esposas e mães também limta consideravelmente o escopo de Que bom te ver viva. De fato, é possível que o espectador estivesse interessado no destino de mulheres sem marcas ou negativamente marcadas pelo privilégio heterosexista e reprodutivo – freiras e lésbicas – nas mãos dos agentes da repressão (1999, p.99).

A falta de referência, por parte do autor, a respeito da produção e da recepção do filme o conduziu a algumas reflexões precipitadas. Não se leva em consideração a dificuldade da diretora em conseguir os depoimentos - enfrentando desde o problema em achar essas mulheres (dispersas em diferentes cidades, muitas com nomes diferentes em conseqüência de casamentos ou mesmo pelo intuito de se esconderem) até a resistência de muitas em conceder uma entrevista para relatar justamente o período da 138

PRUZZO, Piero. Il buio oltre la “Storia ufficiale” (sem referência de publicação; traduzido do italiano pelo autor). Conferir também GRELIER, Robert. Un cinéma qui refuse l’amnésie. In: La vie ouvrière n o. 2369, 22/1/1990. 139 Cf: Folheto de Divulgação do filme. 140 Melhor filme (júri popular, júri oficial e crítica), melhor montagem e melhor atriz no Festival de Brasília (1989); Menção Margarida de Prata da CNBB (1989); Prêmio Coral, melhor filme da OCIC e melhor filme da Ass. Atores – Festival de Havana (1989); Prêmio especial do júri e Prêmio Samburá no Festival Internacional do Rio (1989) etc. Participou de festivais internacionais como Festival de Mujeres (Buenos Aires, 1990), Festival of festivals (Toronto, 1989), San Francisco Film Festival (1989), Muestra Internacional del Nuevo Cine (Pesaro, 1990), Human Rights Festival (Nova York, 1991) etc.

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tortura (sendo que isso foi exposto no filme por meio do depoimento em que registra apenas a voz de uma ex-prisioneira que vivia em um mosteiro, sendo que a imagem que acompanha seu depoimento é a de uma vela acesa) - nem a importância do debate sobre a tortura, na política nacional, do qual o filme fez parte. Já que falamos em política nacional, o longa-metragem de Murat Doces Poderes, exibido comercialmente em 1996, revisita a ruptura que marca o campo do cinema brasileiro: as eleições de 89, na qual a vitória de Collor imprimiu uma radical transformação na cadeia produtiva do cinema no Brasil, com o fechamento da EMBRAFILME. Logo após sua primeira experiência de produção pós-Collor, um esquete do longa Oswaldianas141, a diretora, ao retornar ao longa-metragem, o faz apoiada em um recurso formal já desenvolvido em Que bom te ver viva: a junção entre os registros documental e ficcional142. Isso é reconhecido em sua recepção, além de seu lugar de autoridade: “jornalista e cineasta, Lúcia Murat usa, assim como em “Que bom te ver viva”, muito da sua experiência pessoal como profissional da chamada mídia. E, fiel a si mesma, continua misturando ficção e documentário”143 ou “Doces Poderes mantém a linha do filme anterior, ao alimentar-se fartamente dos fatos da realidade”144, explicitando a verossimilhança e o efeito de verdade como elementos da produção de sentido almejada pelo filme (sobre o lugar de autoridade construído pela diretora, uma pequena crônica autobiográfica intitulada A última revolucionária145 relaciona as atividades de esquerda e do cinema empreendidas por ela). A retórica da patrimonialização também é mobilizada em torno do filme, uma vez que o mesmo retrataria algo nunca visto no cinema brasileiro: “outro assunto do filme é a pressão que a mídia exerce na política. È impressionante que nenhum filme brasileiro tenha falado disso até hoje” [depoimento da diretora]146. Faz-se menção à 141

Projeto da Secretaria de Cultura de São Paulo para homenagear o centenário de Oswald de Andrade, no qual Lúcia Murat participou com o esquete O perfeito cozinheiro das almas deste mundo (que retrata o caso de Oswald com a normalista Daisy, uma jovem qualificada como “à frente de seu tempo”). Cf: TINOCO, Pedro. As fantasias de um modernista. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 19/2/1991 e GUZIK, Alberto. Um filme na gaveta da cultura (sem referência de publicação; acervo MAM-Rio). 142 No primeiro filme, há trechos em que a atriz Irene Ravache encena os traumas da tortura, sendo os mesmos intercalados com os depoimentos de 8 mulheres torturadas durante a ditadura. 143 SUKMAN, Hugo. A cor da ficção invade a realidade do processo eleitoral. In: O Globo. Rio de Janeiro, 29/9/1996. 144 SALEM, Helena. ‘Doces Poderes’ é um retrato do Brasil. In: O Estado de São Paulo. São Paulo, 4/10/1996. 145 Cf: MURAT, Lúcia. A última revolucionária. In: Auto-retrato, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 19/10/1996. 146 Op. cit.

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disputa pelo poder entre os campos do cinema e da televisão de produzir imagens e de intervir na política. Nesse caso, de acordo com as críticas, as representações de Brasil (e de Brasília) se situam em um lugar de contestação, havendo explicitamente uma prática discursiva ligada à “intervenção na realidade, [fazendo] uma reflexão sobre ética no Brasil”147: “Os subterrâneos da política, os corredores dos pequenos conchavos, os bares, as festas, a promiscuidade, a corrupção de uma cidade que vive em torno e para o poder – talvez seja pela primeira vez que Brasília apareça nessa sua face perversa, nada monumental”148 [grifo nosso]. Partindo de algumas curiosidades a respeito da recepção do filme, é preciso esclarecer que as imagens de Brasil mais uma vez operam como fonte de legitimidade do campo do cinema brasileiro perante o público. Doces Poderes foi percebido por este com base na associação de alguns personagens à disputa eleitoral no Rio, o que a diretora nega, porém não sem antes constatar que “essa associação é até um bom sinal, mostra que os arquétipos funcionam, que as pessoas estão se sentindo representadas pelo filme. O público reconhece a realidade brasileira na tela”149 [grifo nosso]. Além disso, auxiliam no processo de acúmulo de capital simbólico pela diretora, visto que o habitus do campo e da apreciação do público é construído, em grande parte, pela capacidade de intervenção política do filme e da validade das representações veiculadas (lembrando que essa “validade” é negociada desde a produção – já que há um roteiro aprovado e patrocinado – até a recepção – o julgamento do público, da crítica e dos acadêmicos sobre o filme). É interessante notar, ainda, que alguns se referiram a este filme como um “thriller político” (algo negado pela diretora), o que inseriria o mesmo dentro de um cinema de gênero e, portanto, como parte do projeto industrial do cinema brasileiro (mesmo que, para isso, a presença da “autora” também esteja marcada, dentre outros, pelo “tom delicadamente feminino da narrativa”150). Doces Poderes também foi alçado ao debate da “retomada”, evidenciando-se neste “a seriedade e o empenho dos diretores em produzir bons filmes”151 e que “mostra que não é uma versão atualizada do Cinema Novo. Ao contrário, é um novo cinema onde os personagens são conhecidos de todos,

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Op. cit. Op. cit. 149 Declaração de Murat. In: BUTCHER, Pedro. Cinema como uma necessidade. Jornal do Brasil, 9/10/1996. 150 Op. cit. 151 PUGA, Antônio. A ética no telão. In: O Fluminense. Niterói, 9/11/1996. 148

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as jogadas de bastidores não deixam de ser ficção, não são cangaceiros, ao contrário, é gente de idéias, assim como o próprio produto oferecido pela diretora”152. A mobilização das representações de Brasil na disputa pelo capital dentro e em relação ao campo seria continuada no projeto seguinte da diretora, Brava gente brasileira que, ao resgatar uma vitória militar dos índios perante os brancos, ressalta a dimensão conflituosa na constituição da nacionalidade brasileira a partir da violência dos contatos interétnicos. Considerando vários argumentos, a patrimonialização também se fez presente tanto no discurso que legitimou sua produção quanto em sua recepção: “para o produtor Bruno Stroppiana, esta será uma oportunidade de se explorar dois elementos pouco vistos no cinema nacional: o índio e o Pantanal. (...) O clímax de Brava gente brasileira será marcado por um episódio que foge às regras da história do país: a rara vitória dos índios sobre os brancos”153. O mal-estar no tocante ao cinema de gênero (no caso, épico) aparece em uma opinião da diretora: “não só por encarecer a produção, mas porque esta não é a tradição de nosso cinema. Em geral, fica ridículo”154, para tanto fazendo referência a um habitus do campo cinematográfico brasileiro, reafirmando-o. Do conflito étnico, a diretora migra para o choque de classes (pautado também por categorias raciais) em Quase Dois Irmãos. Retratando três épocas do Brasil a partir da vida de dois personagens centrais, o filme foi ligado à experiência de Murat como militante (visto que uma das épocas era os “anos de chumbo”) e cineasta: “como em “Que bom te ver viva”, no qual refletia sobre a tortura que sofreu como militante presa pelo regime militar, “Quase Dois Irmãos”, que estréia amanhã, parte de vivências pessoais de Lúcia Murat”155, sendo que a diretora ressalta que considera este filme o mais autobiográfico (inclusive, afirma que seu pai “era um médico progressista, que atendia nos morros e me levava”156, um paralelo com os personagens Miguel – pai e filho), novamente remetendo à sua própria vivência como fonte de legitimidade para o filme157.

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Op. cit. BUTCHER, Pedro. Brava gente da floresta. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17/6/1997. 154 Op. cit. 155 SUKMAN, Hugo. Amor e dor entre morro e asfalto. In: Segundo Caderno, O Globo. Rio de Janeiro, 31/5/2005, pág.4. 156 In: SIMÕES, Eduardo. Favela versus classe média na tela. O Globo, Rio de Janeiro, 31/03/2003. 157 Em entrevista concedida a essa pesquisa, a diretora afirmou que muitas perguntas em debates sobre o filme referiam-se à sua vida pessoal enquanto militante e cineasta. 153

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Devemos destacar que, com o lançamento do filme, surgiram várias reportagens na imprensa sobre romances de jovens da classe média com criminosos moradores de favelas cariocas (uma das questões abordadas no filme). Em uma delas, Amores bandidos na vida de 20 jovens cariocas158, faz-se um levantamento desses vários casos, alguns com desfecho trágico, a respeito das novas sociabilidades entre “morro” e “asfalto” (cujo enfoque é a menoridade das jovens e os bailes funks enquanto lugares de cooptação dessas jovens). Em uma parte da mesma, intitulada Assim nas telas como na vida real, opera-se uma dupla tentativa de legitimação: a presença dessa prática discursiva no filme Quase Dois Irmãos coadunando a reportagem e, de outro lado, o efeito de verdade buscado pelo filme legitimado pela prática discursiva mobilizada socialmente (tal como o revela o jornal), sendo isso confirmado pelo depoimento de Murat: “a idéia veio quando, há cerca de oito anos, algumas adolescentes, filhas de amigos, que eu conhecia desde pequenas, começaram a subir o morro, primeiro para bailes funks. Depois algumas se relacionaram com jovens do tráfico. Neste momento, em que me deparei com o outro lado da história, ou seja, querendo defender as meninas e trazê-las de novo para o mundo da classe média, me veio a idéia do filme, que trata do ciclo vicioso do apartheid entre os dois mundos”159. A segregação social presente no filme também entra no jogo das representações e das práticas discursivas. Em várias matérias, expõe-se a continuidade na produção da segregação entre as classes média e baixa, algumas vezes referindo-se à dimensão racial do problema160 e aos modos em que esses conflitos ocorrem e são resolvidos. Há o destaque para a suposta origem da “nova criminalidade”, simbolizada pelo surgimento da Falange Vermelha (que posteriormente chamar-se-ia Comando Vermelho), mais uma fonte de legitimidade para o filme (embora essa informação seja contestada por historiadores, tais como Cátia Faria que, em reportagem publicada no Jornal O Globo, afirma que a convivência entre prisioneiros políticos e comuns ocorreu em outras épocas anteriores – sem o surgimento de organizações criminosas – e que os assaltos a bancos já eram efetuados por criminosos comuns antes da resistência armada; Daniel Aarão, que foi preso político na Ilha Grande e contesta a representação fílmica ao

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ANTUNES, Laura. O Globo. Rio de Janeiro, 24/4/2005, pág. 21. In: ANTUNES, Laura. O Globo. Rio de Janeiro, 24/4/2005, pág. 21. 160 Amizade entre branco e negro é o ponto de partida. In: In: SIMÕES, Eduardo. Favela versus classe média na tela. O Globo, Rio de Janeiro, 31/03/2003. 159

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revelar que houve interpenetração entre os grupos, isto é, prisioneiros comuns que passaram à luta política e vice-versa161). Desse modo, a aquisição de capital simbólico explicita os modos nos quais opera: a) a imprensa atuando neste processo, legitimando e sendo legitimada pelo campo do cinema brasileiro; b) o cinema brasileiro disputando com outros campos o capital de produzir e difundir imagens sobre a “realidade social”162 (recordemos que essas matérias foram veiculadas na época em que o filme foi exibido comercialmente; mesmo que o filme não tenha obtido um público considerável, este foi incorporado ao panorama de práticas discursivas – via jornalismo impresso e tevê a cabo163); c) as representações de Brasil como fonte de acúmulo de capital simbólico aliado à noção de “autor” (os filmes seguintes de Lúcia Murat, Olhar estrangeiro, documentário sobre como os estrangeiros constroem estereótipos em torno do Brasil e dos brasileiros164, além de um musical produzido na Favela da Maré, assim o confirmam); d) a necessidade de conciliação do projeto industrial com o autoral, presente no discurso de Murat (“quando sento na sala de edição, penso sempre numa comunicação com o público. Sem abrir mão, é claro, de que seja um projeto de autor”165); e) a “obra” enquanto um sistema de interpretação estética de um “autor” e de significação cultural (relacionando a esta sua recepção), fonte de sua legitimidade perante o campo. Finalmente, analisemos a trajetória de Eliane Caffé. A diretora começa a realizar filmes quase no período em que há a paralisação gradual da atividade cinematográfica, estreando com o curta O Nariz (1988), que passou quase despercebido pela crítica e pelo campo. Com Arabesco (1990), também curta, a diretora iniciou sua projeção na imprensa, na qual algumas matérias elogiavam sua iniciativa. O momento político em que o fez também foi levado em consideração: “São apenas 15 minutos a provar que ainda há algum pulso no moribundo cinema brasileiro. (...) Arabesco é a confirmação de que o curta continua a corda no ar para salvar o cinema brasileiro da arapuca em que se meteu. Quem sabe uma saída... alguém consegue ver onde está a saída?”166, sendo a

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GUEDES, Ciça. Convivência forçada na Ilha Grande. In: Comportamento, Megazine, O Globo (sem referência a data, porém foi veiculada durante a exibição comercial do filme – haja em vista o dado revelado “em cartaz na cidade, o ótimo “Quase Dois Irmãos””). 162 Cf: BEZERRA, Júlio. Baseado em fatos reais. In: Revista de Cinema. São Paulo, Krahô, março 2005. 163 O filme foi exibido várias vezes no canal Brasil e na HBO (canais pagos). 164 Já exibido em alguns festivais em 2006. 165 Cf: BEZERRA, Júlio. Lúcia Murat: o cinema militante. In: Revista de Cinema. São Paulo, Krahô, março 2005. 166 PRADO, Luís André do. Ladrões capturados pela armadilha da dúvida. In: O Estado de São Paulo (sem referência a data; porém deduz-se, a partir de dados contidos em outra reportagem, que a época é

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última frase uma referência irônica tanto ao curta (já que a história se passa pela entrada de dois ladrões em uma biblioteca, gerando um problema: não conseguem achar a saída) quanto à situação do cinema brasileiro em 1990. Já outra reportagem invocava o passado cinematográfico de São Bernardo para validar a experiência de Caffé167: “O curta Arabesco, que a V Mostra de Curtas Inéditos reapresenta até domingo no Museu da Imagem e do Som – MIS, a partir das 19h, pode ser um sinal de que São Bernardo não esquece fácil a herança cinematográfica da Vera Cruz”168. Outro dado aponta para o início do acúmulo de capital simbólico da diretora enquanto agente atuante no campo: a legitimidade cultural da seleção do curta para festivais internacionais (“o curta, que conta com Jonas Bloch no elenco, acaba de ser selecionado para o Festival de Nova York, marcado para maio”169), sublinhando, inclusive, que isto configurou a motivação para a realização da matéria (o que pode ser confirmado pelo título). Os primeiros signos da “autoria” também são formulados no debate (lembrando que o roteiro também é assinado por ela): “esses elementos estranhos incorporados ao aparentemente banal parecem ser a marca que Eliane pretende manter em seus trabalhos, uma câmera subjetiva com alguma herança surreal”170. Após ter passado dois anos na Espanha, em virtude de uma bolsa de estudos, Caffé realiza seu primeiro longa Kenoma171, sendo o mesmo exibido em 1998 (o que faz dela uma das cineastas estreantes em longas durante a década de 90). Sobre o filme, algumas reportagens foram feitas em 1997 – ano de sua produção – abordando o impacto da presença da equipe de filmagem na pequena cidade de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha (MG). Aliás, houve a associação entre o lugar construído diegeticamente - Kenoma, vilarejo “perdido no tempo”, imerso em uma temporalidade pré-moderna – e Itira, o cenário do filme e a 19 km de Araçuaí, onde ficava a base da produção. Os capitais econômicos e sociais presentes no processo (emprego da população local, participação da população no filme – como atores também172) contribuíram para o capital simbólico do filme e, por conseguinte, da diretora. A esse processo acrescentouabril de 1990 – Luís Prado faz referência à exibição do filme em uma mostra no MIS/São Paulo, sendo a mesma aludida também na matéria de Nei Bonfim publicada em 13/4/1990). 167 O Departamento de Cultura da cidade pagou parte da produção do filme. 168 BONFIM, Nei. Arabesco vai a Festival nos EUA. In: Cultura e Lazer, Diário do Grande ABC. Santo André, 13/4/1990. 169 Op. Cit. 170 Op. cit. 171 Não sem antes realizar o curta Caligrama em 1995. 172 A ponto de ser chamada de “a cópia mineira de Hollywood” (mesmo que hiperbólica, a comparação remete à profissionalização imposta pelo filme à cidade). Cf: FILHO, Tim. KENOMA: Cidade torna real cenário de um filme. In: O Estado de Minas. Belo Horizonte, 16/3/1997.

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se uma coincidência: ao retratar a história do moto-perpétuo (que remonta a Idade Média, sendo que sua impossibilidade foi provada por Leonardo da Vinci), a equipe de produção deparou-se com um moto-perpetuísta, Sr. Turíbio173, que trabalhava há 50 anos na invenção174 (que auxiliou José Dumont na concepção da personagem Lineu, o “inventor” no filme). Tendo em vista a perspectiva universalista em que se constrói a história, poderíamos inferir que, em um primeiro momento, isso foi percebido como um choque em relação às representações de Brasil. Em entrevista concedida ao Jornal da Tarde, Caffé foi cobrada no sentido de impor uma marca nacional a seu filme ou de “fazer algo pela cultura brasileira”: “seus filmes enfocam os assuntos de uma maneira muito diferente do resto, pela narrativa ou qualquer outra coisa. Acha que há neles também um elemento que os identifique como um produto brasileiro?”175, ao que responde afirmando uma materialidade da “brasilidade”: “essa brasilidade está nas pessoas, nas músicas e nas cores dos lugares para onde a gente vai. Está nas praças, no Vale do Jequitinhonha e outros lugares pelos quais passei”176. A intervenção do filme na cidade também se deu por conta de sua recepção. Sem cinema há mais de 25 anos, a exibição no Mercado Municipal (numa tela de 7m x 12m), com a presença de cerca de 7.000 pessoas, fez parte de um grande espetáculo público, que incluiu show com músicas típicas (recuperando, em parte, a tradição do cinema como espetáculo de rua)177. Ademais, a narrativa mítica presente no filme dialogou com as práticas discursivas míticas dispersas pela região, tal como o atesta a própria fundação de Araçuaí (por algumas prostitutas expulsas de Itira, que viu a outra cidade desenvolver-se à medida que decaía economicamente); além de personagens locais como Maria “Cheirosa”, prostituta mais famosa da região que, com 70 anos, desfila nas comemorações de aniversário da cidade178. O filme, que narra a saga do moto perpétuo e dos que tentaram concretizar sua invenção, foi recebido pela crítica como um resgate das utopias (interessante notar o contraste com Lúcia Murat, cujos filmes são apontados a partir do fim das utopias): “a 173

Op, cit. Segundo Eliane Caffé, houve uma reportagem feita pela televisão com ele, o que contribuiu também para divulgar o filme, que se encontrava em fase de filmagem. 175 GIANNINI, Alessandro. Eliane Caffé filma fábula com toques de realidade. In: Jornal da Tarde. São Paulo, 10/1/1998. 176 Op. cit. 177 Cf: MARON, Alexandre. ‘Kenoma’ faz caminho de volta do sertão de Minas à cidade grande. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 31/8/1998. 178 Op. cit. 174

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tensão do filme baseia-se nesse confronto entre o pólo da utopia e o pólo do pragmatismo. Nada mais atual, num país em que, hoje mais que nunca, é proibido sonhar, e cujo próprio cinema – arte da imaginação – parece constrangido a se mover por mesquinhas razões de mercado”179. Além disso, ainda se sublinha o valor positivo das utopias, uma vez que a diretora, em sua pesquisa, deparou-se com o fato de que a atividade dos moto-perpetuístas auxiliou na descoberta das leis da termodinâmica (que foram aplicadas em outras máquinas)180. Destaca-se o filme dentro do panorama do cinema brasileiro, o que aumenta seu capital e valida perante o mesmo a “autoria” de Caffé. Esse destaque é reforçado pelo fato de nenhum filme brasileiro ter abordado o tema antes, o que configuraria uma patrimonialização reconhecida pela crítica: “a máquina do movimento perpétuo vira assunto de filme brasileiro, provavelmente pela primeira vez”181, além da premiação obtida no festival de Biarritz (Sol de Ouro de melhor longa-metragem, concedido pelo Júri do Festival de Cinema e Cultura da América Latina em Biarritz)182. O segundo longa de Caffé, Narradores de Javé, ao explorar as narrativas orais dos contadores de história (cujo roteiro foi inspirado na pesquisa O artesão da memória no Vale do Jequitinhonha, de Vera Lúcia Pereira), foi recebido pela crítica como um “inventário do passado” a partir da tradição oral, para tanto realçando as versões fantasiosas dos moradores de Javé a respeito de sua fundação. Sendo equiparado às “raízes literárias” em Guimarães Rosa e em Ariano Suassuna ou “filosóficas” em Benjamin183, o filme alcança uma legitimidade cultural dentro do campo, imprimindo ao processo de aquisição de capital simbólico por sua diretora uma base que dialoga com o meio acadêmico. Além disso, a ampla participação do filme em festivais nacionais e internacionais (o filme acumulou mais de 20 prêmios concedidos em festivais e por associações do campo cinematográfico e das artes, tendo participado de mais de 20

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COUTO, José Geraldo. Longa de estréia de Caffé é ode à força das utopias. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 31/8/1998. 180 Cf: ORICCHIO, Luiz Zanin. Eliane Caffé reinventa o mito do moto-contínuo. In: O Estado de São Paulo. São Paulo, 13/7/1998. 181 Op. cit. 182 Cf: ‘Kenoma’, de Eliane Caffé, vence o festival de Biarritz. In: Diário do Grande ABC. Santo André, 5/10/1998. 183 Cf: Voz do povo: tradição oral é o tema de Narradores de Javé. In: Isto é no. 1789, 21/1/2004 (autoria marcada pela sigla I.C.); FONSECA, Rodrigo. Consciência com risadas. In: revista Programa. Jornal do Brasil, 23 a 29/1/2004.

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festivais nacionais e 30 internacionais) estabeleceu um circuito de exibição à margem da comercial (que rendeu pouco mais de 60.000 espectadores). Para resumirmos esta parte, alguns fatores construídos pelo habitus presente no campo e pela atuação dos diretores devem ser explicitados: a) a valorização da intervenção política dentro do campo; b) o acúmulo de capital simbólico sendo levado em consideração principalmente em relação ao número de longas realizados pelos diretores e o tempo de atuação do diretor; c) a cobrança das representações de Brasil pelo cinema brasileiro; d) a construção da imagem do diretor, muitas vezes remetendo a experiência cinematográfica a um plano autobiográfico visando sublinhar sua “autoria”; e) a projeção obtida pelos filmes na imprensa e no público (presença em artigos, críticas; exibições e prêmios em festivais; disputas com a burocracia estatal e das empresas etc).

IV

CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO VERSUS RETOMADA:

UMA QUESTÃO DE NOMENCLATURA? As pressões exercidas pelo campo cinematográfico diante do campo político, para além dos efeitos legais e práticos que foram conquistados ao longo da década de 1990, deixou sua marca discursiva através do termo “Retomada”. Embora não seja preciso o momento em que se começou a usá-lo, sua consagração ocorreu à época do lançamento de Carlota Joaquina, princesa do Brasil, de Carla Camurati, quando era comum referir-se ao mesmo enquanto a retomada da produção do cinema brasileiro. Em virtude do trauma provocado na classe cinematográfica pela extinção de instituições que já vinham enfrentando crises internas desde meados da década de 80, tende-se a relegar os cinco anos “tenebrosos” (1990-1994) às notas de rodapé ou a pequenas observações, sendo a fala de Hernandez bastante sintomática: “Mais de uma década se passou desde o desastre “collorido” que se abateu sobre o cinema brasileiro, desmantelando toda a organização existente, as relações ainda incipientes duramente construídas no exterior e a capacidade desenvolvida de administrar, controlar e fiscalizar uma atividade que movimenta milhões de reais. O setor cinematográfico, durante todos esses anos, foi alimentando seu difícil renascimento, graças às leis de incentivo criadas e ao esforço que o

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Ministério da Cultura fez para suprir a falta dos organismos vitais de controle da atividade”.184

Mesmo assim, a produtora deixa supor que existiu atividade cinematográfica nesses anos, algo confirmado pelo catálogo da mostra Cinema brasileiro anos 90: 9 questões (no qual estão enumerados os filmes produzidos entre 1990 e 2000). Entretanto, a historiografia do cinema brasileiro contemporâneo costuma referirse a esse período como “Retomada”, periodizando a partir de 1994 ou 1995 (ano de lançamento de Carlota Joaquina, pelo fato de o mesmo ter sido o primeiro filme brasileiro da década a ter mais de um milhão de espectadores) como o início da nova fase do cinema brasileiro. Dois pesquisadores que explicitamente aderem ao termo são Lúcia Nagib e Luiz Zanin Oricchio, fazendo menção a ele no título de seus respectivos livros. Em O cinema da Retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, Nagib adota sem reticências o novo “período” do cinema brasileiro, para tanto o utilizando como critério de seleção para as entrevistas dos diretores os filmes terem sido lançados entre 1994 e 1998 (quando supostamente a “retomada” teria sido encerrada; porém Nagib não justifica a razão desse “término”)185. Já Oricchio, mesmo destacando o termo, incorpora em sua análise filmes produzidos entre 1990 e 1994 (e.g., Rádio Auriverde, de Sylvio Back e Bananas is my business, de Helena Solberg), não sem antes destacá-los, na introdução, do restante do panorama dos filmes produzidos até 2003 (ano de lançamento do livro) e, ainda, tentar fazer de Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) o marco do fim do período da “Retomada”. A partir de 90 entrevistas, Nagib tentou conferir ao período uma análise partindo de temas como políticas públicas para o cinema, trajetória pessoal e profissional dos diretores, carreira dos filmes etc. O perfil panorâmico construído pela pesquisadora se valeu de uma metodologia de pesquisa que merece ser avaliada, no intuito de vermos como um pensamento de cunho historiográfico é constituído para o campo cinematográfico. As entrevistas foram realizadas partindo de um questionário único, contendo 12 perguntas a serem endereçadas aos entrevistados, o que já implica o problema de que se 184

HERNANDEZ, Assunção. E mais de dez anos se passaram. In: Revista de Cinema. São Paulo, Krahô, outubro de 2001, pág. 50. 185 O pesquisador Ismail Xavier, que assina o prefácio do livro, qualificou a seleção de Nagib como “medida cautelar a garantir a viabilidade da pesquisa dentro de um prazo compatível com a intervenção desejada”, o que foi possível graças à equipe composta por 14 pesquisadores da PUC-SP.

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pressupõe que todos os mesmos devem atendem a uma mesma rede de expectativas, isto é, devem possuir os mesmos assuntos como interesse (crítica semelhante foi feita por Bourdieu sobre as pesquisas de opinião pública em A opinião pública não existe, ressaltando o aspecto arbitrário das mesmas e que elas visam mais conferir legitimidade a propostas políticas a priori que de fato conhecer os impasses políticos). Além disso, as perguntas formuladas conduziram a respostas de cunho “autorais” (tal como o propósito do livro) que ora pouco interessavam ao cinema brasileiro (as “curiosidades” da vida de um determinado diretor), ora reduziam questões políticas às “impressões” dos entrevistados. Vejamos como foi o questionário enviado aos diretores:

1) Formação: a história de vida que o(a) levou ao cinema. 2) Influências: filmes, livros e peças que formaram a base cultural. 3) Fatos que marcaram a carreira. 4) Relações com outros cineastas e outras fases do cinema brasileiro. Como se relaciona, por exemplo: com os pioneiros, a chanchada, a Vera Cruz, o Cinema Novo, o Cinema da Boca, o Cinema Marginal etc. 5) Como se relaciona com cinematografias estrangeiras (o Neo-Realismo, a Nouvelle Vague, os novos cinemas do mundo, o cinema mainstream e filmes internacionais recentes). 6) Relações e opções políticas: alguma influência no ato de filmar? 7) Como a evolução econômica e política do Brasil pesou na carreira. 8) Histórico da produção dos filmes lançados entre 1994 e 1998. 9) Carreira desses filmes (público, imprensa, festivais e prêmios). 10) Como avalia a política atual de incentivo ao cinema. O que deveria permanecer ou mudar. 11) Projetos futuros. 12) Quais os rumos que o cinema brasileiro está tomando e quais deveria tomar (NAGIB, 2002, p. 22).

As perguntas 1,2 e 6, ao empreenderem uma visão teleológica e remeterem o consumo cultural à passividade, esquecem o caráter aleatório da memória afetiva e consideram o autor como um dado a priori e não como uma prática discursiva articulada, dentre outros, no campo cinematográfico, obliterando o acúmulo de capital simbólico como um processo não-linear, não-teleológico e que se liga ao habitus do próprio campo (tal como este foi exposto nas partes II e III do presente capítulo). As perguntas 4 e 5, por sua vez, ignoram que as relações entre cineastas e movimentos ou épocas devem ser feitas na análise fílmica e na recepção e, mesmo que o diretor reconheça a filiação ou o diálogo com algum movimento, isso não necessariamente se traduz na estética de seus filmes (do contrário, reconheceríamos que a produção de cinema seria ligada a um padrão de “intenção-resposta”, no qual a intenção de um diretor encontrar-se-ia expressa no filme, crença não partilhada por este trabalho). 67

A pergunta 10 nivela todos os diretores ao partir do pressuposto de que eles ocupam o mesmo lugar no campo cinematográfico. Mesmo considerando as diferenças de ordem política nas respostas, que oscilam entre as críticas severas ao modelo neoliberal e o reconhecimento do fato de que uma indústria de cinema deve ser um objetivo a ser alcançado pelo campo, devemos recordar que os diretores possuem diferentes lugares de autoridade, o que se faz presente, por exemplo, nos editoriais e reportagens de jornais sobre cinema brasileiro, nas revistas de circulação dentro do campo, na presença de determinados diretores em cargos de comando de associações, na contemplação de alguns diretores via editais em detrimento de outros, na concessão de patrocínios das empresas etc. A pergunta 12 superestima a capacidade de muitos diretores em analisar a situação do cinema no Brasil (o que gerou resultados decepcionantes e óbvios na maioria dos casos), além de conferir a estes um poder normativo que não condiz com sua prática (diretores não são, via de regra, formuladores de políticas públicas - muito embora devam ser ouvidos no processo de elaboração das mesmas – tendo de possuir outro tipo de conhecimento que não somente o mobilizado no campo para empreender esta tarefa)186. O esforço de documentação do trabalho encontra-se concentrado nas perguntas 8 e 9, na medida em que, ao coletar as narrativas em torno das experiências de produção e da recepção dos filmes, pode ser incorporado a pesquisas futuras sobre o cinema brasileiro atual, com a ressalva de que a entrevista deve subsidiar uma pesquisa mais ampla, a partir de vestígios desses processos (recortes de jornais e revistas, referências a debates sobre os filmes etc). Pode-se contestar também a escolha de entrevistar somente diretores, uma vez que, ao privilegiar esse grupo de status dentro do campo cinematográfico, Nagib desconsiderou outros grupos de status (produtores e técnicos) que não apenas tiveram sua participação alçada após o fechamento da EMBRAFILME como também passaram, em menor medida, a disputar o capital simbólico da “autoria” (alguns diretores de fotografia, montadores, músicos especialistas em trilhas sonoras, roteiristas etc construíram uma carreira e foram aos poucos sendo considerados “autores” dentro de suas funções187). 186

Uma exceção seria Gustavo Dahl que, após dirigir, presidiu por 5 anos a ANCINE, para tanto articulando seu conhecimento cinematográfico à economia política. 187 É preciso, mais uma vez, distinguir função de grupo de status. Citemos o caso dos roteiristas: mesmo que sejam uma função (pois se fazem presentes na cadeia produtiva cinematográfica), não configuram ainda um grupo de status, isto é, não restituem à realidade seu aspecto material ou simbólico de forma

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Sobre o cinema brasileiro contemporâneo, vejamos o prefácio de Ismail Xavier do livro de Luis Zanin Oricchio: “Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada se articula em torno de uma convicção: o momento é de transição, ou melhor, do desafio de se terminar uma transição”188. Perspectiva que alinha os defensores da “Retomada” – a de transição – esta não pode ser, entretanto, defendida ao se ter em mente uma teoria que percebe as categorias sempre em movimento – e não apenas quando estão “em transição”, já que este termo pressupõe que havia um momento consolidado, depois alguma turbação e, finalmente, um novo assentamento. Afinal, a História sempre faz questão de nos provar o contrário189. Todavia, na entrevista concedida à Revista Praga, O cinema brasileiro dos anos 90, Xavier assume uma perspectiva mais interessante para esta pesquisa. Assumindo como recorte a interrupção da produção empreendida durante o governo Collor, o pesquisador percebe nele a reviravolta na relação entre os campos cinematográfico e político que iria configurar o habitus presente no primeiro e, mais, a produção de toda a década de 90 ligada a essa ruptura (o nome “Retomada” é citado raramente na entrevista). A disputa pelas representações de Brasil é citada por Xavier:

Conhecemos os rumos da cultura e da política nos últimos anos, que resultaram, para o cineasta brasileiro, nesse sentimento de perda do mandato, de fim da utopia do cinema brasileiro. Como decorrência, há um deslocamento da própria auto-imagem do cineasta que vive ainda a política da identidade nacional, da necessidade de um cinema brasileiro, mas não traduz em seus filmes, com raras exceções, a mesma convicção de ser um porta-voz da coletividade, terreno esse muito mais incorporado, hoje , à retórica da Rede Globo, com sua versão industrializada e mercadológica do nacional-popular, bem estampada nas novelas e mini-séries (Op. cit., p. 99).

autônoma (não são capazes, enquanto grupo, de arregimentar debates teóricos ou políticos, não se fazem presentes por meio de associações independentes e com atuação política relevante, ou seja, não estão instituídos no poder de nomear tal como os diretores e, em menor medida, os produtores). É importante frisar que essa consideração se limita ao campo cinematográfico brasileiro, uma vez que os roteiristas podem ser um grupo de status em outros campos (a título de exemplo, lembremos o histórico embate entre Truffaut e os roteiristas na França da década de 50 em torno da adaptação literária, no qual os mesmos exerceram seus poderes de coerção e de nomear – ou de restituir – uma realidade dentro do campo cinematográfico francês). 188 XAVIER, Ismail. In: ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada. São Paulo, Estação Liberdade, 2003, pág. 11. 189 É interessante retomarmos o debate empreendido por Norbert Elias em O Processo Civilizador no tocante aos processos sociais, no qual o autor rechaçou a perspectiva de que é possível encontrarmos um “equilíbrio social”, filiando-se à corrente hegeliana da história de que o conflito é o motor da realidade; desse modo, não há como se falar em períodos “áureos”, de pleno equilíbrio, dado o aspecto agonístico das arenas políticas.

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Contrapondo o “mandato” como instrumento de retórica dos cineastas dos anos 60 e 70 (o “cinema moderno brasileiro”), Xavier salienta a televisão como instância na produção de imagens de Brasil, fato incorporado à estética de alguns filmes brasileiros contemporâneos (Lamarca; O que é isso companheiro?; Guerra de Canudos; Cidade de Deus) e contestado por outros (Amélia; Cinema, aspirinas e urubus; Quanto vale ou é por quilo?)190. No entanto, devemos afirmar que o cinema brasileiro assumiu outras estratégias de legitimação, inclusive o “autor” (que era anteriormente ligado ao mandato) como capital simbólico referente ao campo e a apreciação (positiva ou negativa), por parte da crítica, das imagens de Brasil veiculadas pelos filmes brasileiros atuais. Com relação ao paradigma da identidade nacional, este surge, sobretudo, nos momentos de crise. Além do período compreendido entre 1990 e 1994 (já visto na parte II), a “identidade nacional” foi mencionada na luta pela afirmação do campo do cinema brasileiro, sendo apropriada pela crítica na avaliação dos filmes, muitas vezes pela negação (tal como Lunardelli, que explica categoricamente: “diante de uma crise tão aguda, não cabem discussões acadêmicas sobre identidade. É preciso descobrir o público, cativa-lo com uma boa história”191). Em uma crítica publicada em 1991192 destacando a produção nacional em cartaz, Amir Labaki compara os filmes Rádio Auriverde, de Sylvio Back e O Filme de Minha Vida, da estreante Alvarina Souza Silva. Para tanto, contrasta o tom documental assumido pela ficção de Alvarina em retratar a experiência cinematográfica no Brasil e o tom de blafêmia do documentário de Back sobre o episódio dos pracinhas na Segunda Guerra Mundial (afirmando que o segundo “manipula explicitamente um deslumbrante e inédito material de arquivo só para zombar da campanha da FEB”193 e, desse modo, reiterando a identidade nacional como prática de coerção/constrangimento à contranarrativa proposta pelo diretor)194.

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Ressaltamos que contestação não é a negação da estética publicitária e televisiva, uma vez que muitos filmes se apropriam delas justamente para revelá-las enquanto códigos e práticas discursivas socialmente ligadas aos campos político e econômico. 191 In: LUNARDELLI, Fatimarlei. Cinema: a crise do nacional. In: Porto Vírgula n o. 1. Porto Alegre, marabr. 1991. 192 Cf: LABAKI, Amir. Mostra promove volta do cinema nacional às telas. In: Segundo Caderno, Folha de São Paulo. São Paulo, 18/10/1991, pág.6. 193 Op. cit. 194 O nome do prêmio conferido pela Secretaria de Cultura de São Paulo no subsídio ao cinema nacional, Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro, também faz menção a essa identidade nacional.

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A identidade nacional como estratégia política encontra-se claramente expressa na reportagem Direito de imagem é fundamental e democrático, de Luiz Zanin Oricchio uma reação a uma matéria veiculada pela revista Veja (já mencionada aqui): “mas, se o cinema ajuda a divulgar um país, um ideário político, uma visão de mundo, contribui principalmente para dar certa consistência interna a uma nação. As pessoas se reconhecem nas imagens que vêem nas telas. Isso as ajuda a sentir-se parte de uma mesma comunidade lingüística e cultural”195. Em alguns casos, a retórica nacional é alçada a estratégia de resistência às narrativas “universais” ou “globais”: “acredito que o papel do cinema brasileiro e o de todas as outras cinematografias, principalmente do Terceiro Mundo, seja existir. Enquanto estivermos vivos, a batalha geopolítica mundial não estará terminada”196. Xavier detecta, ainda, a recorrência ao movimento do Cinema Novo presente no cinema brasileiro contemporâneo - algo confirmado em muitas entrevistas de Nagib e no título do livro de Oricchio - porém não sem antes destacar as diferenças da nação diegeticamente construída pelos filmes deste em relação ao cinema brasileiro atual (as teses sócio-econômicas do primeiro versus a ênfase nos sujeitos e nas descrições). A isso, opomos que existe, em diversos filmes, mais uma conciliação entre o objetivo e o subjetivo que a ênfase em subjetividades per si (ou seja, algo que ultrapassa a “psicologia das personagens”, atuando em novas práticas discursivas relacionadas ao Brasil). Retenhamos a ligação entre a referência ao Cinema Novo e a identidade nacional realizada pelo pesquisador. Em suas palavras:

Há, inclusive, uma política de identidade, de redefinição dos tipos, de concepção do “brasileiro”, embora não haja programa comum. Esse cinema do entre-lugar, na maior parte dos casos, promove inclusive um retorno de figuras e espaços sociais típicos do Cinema Novo. (...) A partir desse patamar, tivemos uma safra de filmes que retomaram a questão nacional dentro de novos parâmetros, empenhados num trabalho de revisão histórica que passa por certos gêneros, como o filme de cangaço, a superprodução, a adaptação literária que retoma uma personagem emblemática (Policarpo Quaresma, o herói do Brasil, Paulo Thiago, 98), o filme de violência urbana centrado na favela, o painel das migrações que agora se torna mais diversificado. Em verdade, a identidade nacional foi, de certa forma, o traço maior dos filmes de mercado, seja o espetáculo mais caro (Canudos, Tieta, Mauá, Orfeu ou Villa-Lobos) seja o filme barato de enorme sucesso como a

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Cf: ORICCHIO, Luiz Zanin. Direito de imagem é fundamental e democrático. In: Caderno 2, O Estado de São Paulo. São Paulo, 1/7/1999. 196 NETO, A.S. Cecílio. Reflexões sobre o cinema brasileiro. In: Revista USP no. 19. São Paulo, set-nov. 1993, pág. 75.

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comédia de Carla Camurati, Carlos Joaquina, a princesa do Brasil (1995) (Op. cit., p. 104-106).

Embora reconhecendo esse “retorno” de figuras e espaços do Cinema Novo, não poderíamos concordar que a “revisão” ocorreu de modo tão passivo conforme implicitamente está colocado. Muitos filmes atuais de fato retomam as imagens de Brasil construídas por esse movimento, porém atualizando-as - às vezes, sendo “punidos” pela crítica por isso197. Sendo parte da estratégia de legitimação do campo cinematográfico, a monumentalização em torno do Cinema Novo (um movimento cinematográfico, não um período do cinema brasileiro198) foi sublinhada em alguns debates críticos, tais como durante o lançamento comercial do filme Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), no qual a pesquisadora Ivana Bentes, tida como a principal detratora do filme, qualificou sua estética como “cosmética da fome” (assumindo explicitamente o movimento enquanto cânone, na medida em que parodia a expressão estética da fome, de Glauber Rocha) e em algumas reportagens em defesa do cinema nacional que ressaltam a “influência” deste no cinema atual199. Recordemos, todavia, que as releituras promovidas pelo cinema atual de épocas passadas se dão pela via da legitimação e não pela contestação (algo comum no Cinema Novo, principalmente a partir de uma visão teleológica da história, tal como em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro). A teleologia, o cânone e o ideal de progresso são estratégias de apropriação da história menos recorrentes no cinema atual que no referido movimento – embora ainda presentes nos debates críticos e acadêmicos – sendo em parte substituídas pela paródia, pela relação com imagens produzidas em outros campos (notadamente a televisão) etc e o entre-lugar (Bhabha, 2004) encenado nos filmes se situa no embate entre os discursos da pedagogia (que relembra os passados nacional e do campo cinematográfico) e do performativo (que contesta o lugar de autoridade conferido ao primeiro, revelando aspectos pouco conhecidos do passado obliterado pela pedagogia e do presente que não sejam interessantes a essa autoridade).

197

A entrevista concedida pelos diretores de Baile Perfumado Paulo Caldas e Lírio Ferreira à Revista Cinemais pauta-se pela preocupação dos diretores em inferir que a modernidade expressa na linguagem do filme também é algo incorporado à paisagem do sertão e às figuras de Lampião e de Benjamin Abraão. 198 A produção brasileira da década de 60 não se resume a diretores como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Nelson Pereira dos Santos etc e, mesmo dentro do Cinema Novo, houve ‘rachas’ já documentados pela historiografia do cinema brasileiro. 199 Cf: CALIL, Ricardo. Brasil, um imenso sertão. In: Jornal da Tarde. São Paulo, 15/8/1996, pág. 1C.

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O livro já citado de Oricchio sobre o período atual do cinema brasileiro funciona, por sua vez, como um “resumo” das imagens construídas pelo cinema a respeito do Brasil, sendo esta a preocupação principal do livro. Pelos títulos dos capítulos – “A representação da História”; “Eu e o Outro”; “A esfera privada”; “A esfera pública”; “O sertão e a favela”; “Classes em choque”; “A arte da violência”; e “A crítica e o cinema puro” – percebe-se que o autor pretendeu mapear as discussões críticas a respeito do nosso cinema e dialogar com elas, inclusive incorporando questões pouco afeitas ao campo do cinema como classe e relação nacional e estrangeiro 200. É bastante significativa a escolha por analisar filmes de ficção, filiando-se a uma metodologia de Sadoul e de outros que se aventuraram a condensar a história do cinema mundial, sendo que a mesma possui três grandes problemas: o privilégio do papel da produção (característico dos defensores da “Retomada”); a obliteração do intercâmbio entre documentário e ficção (além do ostracismo do primeiro numa tentativa de história do cinema); e, finalmente, a dimensão apolítica do estudo face às instituições oficiais. Focalizemos o esforço de periodização do autor. Reafirmando o filme Carlota Joaquina enquanto o início da “Retomada”, Oricchio avaliou que a polêmica produzida em torno do filme Cidade de Deus ilustrou as posições binariamente impostas: seguir os cânones artísticos de parte da intelectualidade acadêmica ou adaptar o cinema nacional a fórmulas comerciais que supostamente dialoguem com um público cada vez mais “massificado”? A primeira corrente percebeu o filme como uma “estetização” da pobreza, da violência e um desvirtuamento perante a tradição cinematográfica nacional, atacando o filme em jornais de grande circulação, lançando manifestos e fomentando o debate acadêmico. Já seus defensores, respaldados no sucesso comercial do filme (mais de três milhões de espectadores, a então maior bilheteria do cinema brasileiro pósEMBRAFILME), viam nele uma possibilidade de concretizar a tão sonhada “industrialização”, sendo que Oricchio, ao afirmar que o mesmo foi um “divisor de águas”, parece partilhar dessa visão. Possivelmente Cidade de Deus foi tornado patrimônio, figurando no cinema brasileiro contemporâneo como objeto de cisão entre as duas correntes (e poucos conseguiram fazê-lo de modo tão contundente), mas se pode dizer que ele próprio seria um “marco” do fim da Retomada, como defende o autor? Parece-nos, à primeira vista, 200

Ismail Xavier, na entrevista analisada, também faz referência à presença de personagens estrangeiros nas narrativas fílmicas e brasileiros ocupando um outro espaço que não o nacional (tal como em Terra Estrangeira e Dois Perdidos numa noite suja).

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uma estratégia de monumentalização. Vejamos os argumentos enumerados por Oricchio (e amparados por boa parte da crítica): qualidade técnica do filme; a “circularidade” da narrativa (leia-se: o filme é estruturado a partir de um grande flashback); “articula por completo a linguagem contemporânea do cinema e da sociedade”201; financiamento em ínfima parte pelas leis de incentivo fiscal; o sucesso de bilheteria, mesmo sendo um filme com temática social; presença de atores negros desconhecidos do grande público e ausência de atores “globais”. Já foi dito que a qualidade técnica é algo inerente ao discurso neoliberal atinente ao cinema nacional, logo, outros filmes anteriores a ele também empreenderam essa busca202; filmes estruturados a partir de um grande flashback não são propriamente novidades; a relação entre cinema e linguagens de comunicação contemporânea também não foi inaugurada pelo filme; o fato de não ter sido financiado por mecanismos fiscais não o libera das engrenagens neoliberais; o recrutamento dos atores (oriundos, em sua maioria, das favelas e comunidades pobres do Rio) seguiu padrões quase hollywoodianos, cujo realismo era baseado na experiência social dos atores. Qual a dimensão política dessa escolha de alçar Cidade de Deus a marco cronológico? Ao estetizarmos a história do cinema, perdemos de vista fatos como os mecanismos de economia política que gerem a atividade e a inserção do cinema no panorama da cultura e da realidade brasileira contemporâneas, além do fato de o filme construir uma imagem de Brasil totalizadora, que não questiona os conflitos entre classes, interétnicos, religiosos, sendo uma visão marcadamente classe média a respeito dos pobres (algo que não é nem um pouco novidade por aqui). Ou seja, antes de tentarmos ver nos filmes os momentos de ruptura, poderíamos incorporar a essa análise a relação entre os campos cinematográfico e político. Entretanto, é preciso dizer que a escolha de um dado filme como marco de uma estética ou período não é somente algo corriqueiro, como também parece ser o que estrutura as grandes narrativas sobre a história do cinema mundial. Além disso, o termo “Retomada” estabelece um problema de periodização do cinema brasileiro: como a EMBRAFILME foi extinta em 1990 e este termo só engloba filmes realizados a partir de 1995, como enquadrar os filmes produzidos entre 1990 e 1995? Corre-se o sério risco de um “ostracismo fílmico” ao se adotar essa 201

Op. cit., pág. 160. Podemos listar alguns títulos anteriores ao filme - A Partilha; Bossa Nova; O que é isso companheiro?; O Quatrilho – enquanto utilizadores de recursos técnicos e de linguagem ligados à publicidade. 202

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nomenclatura, sendo importante lembrar que Oricchio enumera quais foram os filmes produzidos nesse período, com base em um catálogo da mostra Cinema brasileiro. anos 90: 9 questões, realizada no Centro Cultural Banco do Brasil – Rio (op. cit., p. 26). Uma abordagem historiográfica não pode simplesmente ignorar cinco anos de atividade cinematográfica. Portanto, podemos considerar o recorte de 1990 até hoje enquanto o cinema brasileiro contemporâneo, uma vez que as bases para o novo habitus do campo cinematográfico foram configuradas a partir do fechamento da EMBRAFILME (e a disputa pelos esquemas de percepção nesse novo habitus – sobretudo os referentes à lógica do patrocínio privado e da privatização das políticas para o cinema), não tendo sido até então alterados significativamente. Ao contrário: o processo da investida neoliberal no cinema, na área cultural e na economia política, muito longe de ter sido interrompido, parece estar sendo consolidado seja pelo discurso “industrial” de alguns setores da classe cinematográfica, seja pela importação do modelo norte-americano de agências reguladoras203.

203

A ruptura com essa lógica política neoliberal poderia imprimir uma nova dinâmica entre os campos cinematográfico e político, o que não se deu com a criação da ANCINE, visto que a mesma é uma agência reguladora cuja lógica se remete ao mercado cinematográfico e ao subsídio privado da atividade, sendo ela própria sustentada pela renda advinda desse mercado.

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Capítulo 2 IMAGENS, REPRESENTAÇÃO DO PASSADO E POLÍTICAS IDENTITÁRIAS NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Além da configuração do cinema brasileiro contemporâneo como um campo, isto é, uma divisão do espaço social na qual um conjunto de práticas e representações são articuladas visando a disputa por capital (econômico, cultural, social e simbólico), precisamos reduzir a escala da pesquisa para nos debruçarmos sobre os filmes e suas representações de Brasil. Entretanto, faz-se necessário sublinhar algumas reflexões sobre identidade antes de

passarmos

à

análise

fílmica.

Uma

perspectiva

interessante

sobre

a

contemporaneidade reside no pensamento de Manuel Castells, mais precisamente como ele avalia a sociedade em rede204 e a formulação de políticas identitárias nesta. Concebendo a identidade como “o processo de construção de significados com base em um atributo cultural, ou ainda em um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado” (CASTELLS, 2001, p. 22), o autor estabelece três categorias de identidade que são utilizadas, em sua teoria, como categorias analíticas e não enquanto identidades a serem procuradas – em estado 204

Segundo o autor, a nova sociedade advinda da reestruturação do capitalismo e da revolução da tecnologia da informação.

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bruto – nos meios sociais: a) identidade legitimadora; b) identidade de resistência e; c) identidade de projeto (2001, p. 24). Partindo da hipótese segundo a qual o conteúdo de uma identidade atrela-se a quem a formula, ou seja, o conteúdo simbólico de uma identidade é diretamente determinado pelas necessidades daqueles que lhe deram origem, Castells infere que as identidades legitimadoras respaldam a sociedade civil (nomenclatura de Gramsci); as identidades de resistência, por sua vez, originam comunidades; por fim, as identidades de projetos são articuladas a partir de sujeitos, isto é, “o ator social coletivo pelo qual os indivíduos atingem o significado holístico em sua experiência” (2001, p. 26). O cinema brasileiro contemporâneo, ao fazer parte da sociedade civil, uma vez que depende do Estado para se manter economicamente, também é constituído por filmes que contestam o lugar da nação e por uma classe que se pauta, em parte, pela resistência à forma como os meios massivos de comunicação conduzem a economia política do audiovisual no país. A título de exemplo, os debates sobre a criação da ANCINAV o demonstraram claramente, ao opor setores do campo cinematográfico brasileiro às majors norte-americanas e às redes de televisão. Mesmo que alguns membros desta apoiassem a negociação com estas, a lógica principal que conduziu os debates foi a do confronto. Além de o conceito de sociedade em rede priorizar a continuidade com o fenômeno moderno (ao contrário da ruptura pós-moderna), a teoria de Castells possui a vantagem de não converter suas categorias ideais em instrumentos fechados de análise, uma vez que o próprio autor ressalta que dificilmente encontraremos, nos jogos das identidades, identidades legitimadoras ou de resistência ou de projeto isoladas, sendo que uma pode se converter em outra à medida que o jogo de poder e a retórica assim o determinarem. Um exemplo disso é o tratamento concedido às ONGs pela diegese de Quanto vale..., uma vez que estas, inicialmente identificadas a uma resistência às atrocidades empreendidas no interior do aparato estatal (vide atuação de organismos como Anistia Internacional, Greenpeace, dentre outros), foram incorporadas à sociedade civil e reproduzem seus mecanismos arbitrários de poder, tornando-os ainda mais perversos, o que será oportunamente analisado. Com a preocupação de estudar a formação das esferas públicas diaspóricas constituídas nas práticas culturais cotidianas, Arjun Appadurai concede à imaginação um papel fundamental na constituição da subjetividade moderna. Na tentativa de compreender como o mundo moderno se transforma na “modernidade total” (modernity 77

at large), o autor formula o conceito de agência (agency) para relatar o aspecto coletivo da imaginação e que formas esta assume no contexto contemporâneo. Appadurai lembra que a retórica nacional de desenvolvimento sócio-econômico, militarismo, educação, etc ainda se faz presente no cotidiano das massas; entretanto, as ditas micro-narrativas (por exemplo, os filmes) permitem à modernidade se reinscrever na arena transnacional, isto é, as massas têm sua imaginação ativada a partir da internet, de filmes e da televisão. Estas micro-narrativas recordam a elas a existência de comunidades transnacionais e de pertencimentos que ultrapassam a esfera nacional. Ou seja, a imaginação é ativada e as agências são constituídas prioritariamente no campo da diferença205. Homi Bhabha também utiliza a noção de agência no âmbito das teorias do póscolonial, indagando-se: “é possível conceber-se a agência histórica naquele momento disjuntivo, indeterminado, do discurso fora da sentença [leia-se, espaços fora da temporalidade da linguagem do Ocidente]?” (2004, p. 255). É preciso, em primeiro lugar, vislumbrar o panorama de preocupações teóricas de Bhabha. Indo ao encontro das teorias pós-coloniais, o autor inicia O Local da Cultura sublinhando que a vivência contemporânea é marcada pela sobrevivência e pela “fronteira do presente”. Por meio das ficções científicas, das reconstituições históricas, dos melodramas televisivos, dentre outros, a comunicação audiovisual salienta que existe espaços para outras temporalidades que não o presente. O que poderia ser argumentado é que essas narrativas audiovisuais formariam uma espécie de “presentificação do vivido”, isto é, que elas configurariam o esmaecimento das fronteiras entre passado, presente e futuro nas práticas do consumo cultural (fronteiras nas quais se estabeleceram as narrativas modernas). Após esta breve observação, vejamos o que Bhabha nos esclarece a respeito das novas fontes de pertencimento. Este contesta o lugar concedido às categorias de classe enquanto base de articulação de projetos e resistências na pós-modernidade. Concordamos, porém é necessário ir além. O conceito de classe não apenas deixou de ser o principal articulador de pertencimento como também se tornou tão problemático no cenário atual que muitas políticas simplesmente o ignoram (embora os resultados quase sempre sejam inócuos ao se dissociar, por exemplo, raça e classe ou gênero e classe). 205

Recordando que o próprio conceito de cultura para Appadurai se constitui na tensão entre similaridade e diferença.

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O que a contemporaneidade fez em relação ao conceito de classe foi colocá-lo como apenas mais um na lista da arena política, ao lado de “raça”, religião, gênero, região, geração, etc; isto é, a classe não necessariamente é capaz de articular conflitos oriundos de choque de gerações, de etnias ou, ainda, de religiões (as tensões crescentes entre católicos e evangélicos de algumas linhas no Brasil, como no caso de um pastor que chutou a imagem de uma santa em um programa de uma emissora ligada a grupos evangélicos). Na tentativa de compreender a articulação dos discursos pós-coloniais, Bhabha menciona a formação de “entre-lugares”. Os entre-lugares da teoria de Bhabha seriam o campo de disputa das identidades na atualidade:

O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos na colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de sociedade (2004, p. 20)

O autor explicita que as supostas “culturas nacionais homogêneas” sofrem cada vez mais uma redefinição em seus papéis, inclusive como base para trabalhos comparados no âmbito das Ciências Humanas. Entretanto, como “redefinição” não significa abolição, é possível constatar que vários estudos no campo cinematográfico continuam sendo realizados a partir dessa escala nacional, incluindo aqui esta pesquisa. Apesar de as teorias do “pós” nos darem uma pista de que os filmes são incapazes de formular uma “unidade na cinematografia nacional” - comprovado pelo fato de a crítica cinematográfica brasileira, atônita diante de tantas propostas estéticas, aclamar a “diversidade” como característica da produção cinematográfica atual - isto não nos impede de tentar encontrar uma “unidade” (como categoria analítica) para o cinema produzido no país atualmente. Essa “unidade” poderia ser forjada no âmbito das instituições e dos mecanismos de financiamento aos quais os realizadores estão submetidos (ANCINE, leis de incentivo, empresas financiadoras da atividade cinematográfica, Ministério da Cultura), daí o recorte em torno da categoria cinema brasileiro contemporâneo ser marcadamente de ordem política. É preciso atentar para o fato de que uma cinematografia não se realiza apenas nos filmes, devendo esta contar com um corpo burocrático e abranger outras instituições extra-fílmicas (corpo de críticos de cinema, empresas produtoras, distribuidoras e exibidoras, etc). 79

Retornando a Bhabha, vejamos como articula a questão da agência com outras preocupações. A agência explicita que a nação dispõe de uma temporalidade da cultura constituída por meio da diferença (outro ponto de contato entre Bhabha e Appadurai). Desse modo, esta diferença se articularia por meio da linguagem (nos dias atuais, principalmente na linguagem audiovisual). Tendo em vista o referencial do autor, que resgata alguns conceitos do pósestruturalismo – textualidade, discurso, enunciação, escrita – para avaliar as estratégias narrativas da nação, vista como um sistema de significação cultural206, vejamos como este aparato é capaz de nos permitir formular questões aos filmes. De que modo a enunciação em Quase Dois Irmãos, Quanto vale... e Narradores de Javé permite afirmar que estes recuperam ‘ficções de fundação’ (Sommer, 2006) em relação ao momento político atual? Bhabha menciona o fato de que a nação é constituída entre a vida cotidiana (que reforça os laços em comum) e os fatos extraordinários (ritos, grandes acontecimentos elevados à categoria de fato histórico, tragédias), ambos capazes de recordar reiteradamente as instâncias políticas em comum. Ademais, as narrativas em torno da nação transitam entre o pedagógico e o performático:

Na produção da nação como narração ocorre uma cisão entre a temporalidade continuísta, cumulativa, do pedagógico e a estratégia repetitiva, recorrente, do performativo. É através deste processo de cisão que a ambivalência conceitual da sociedade moderna se torna o lugar de escrever a nação (op. cit., p. 207).

Essa tensão entre o pedagógico e o performativo também faz parte do cinema enquanto fenômeno estético e cultural, na medida em que nele sempre se configuram disputas entre uma tradição – que se preocuparia em perpetuar os cânones e os realizadores já ativos na área (pedagogia) – e grupos que tentam subvertê-la – estudantes universitários, jovens realizadores – sendo que estes últimos se inscrevem no cenário cinematográfico, muitas vezes, a partir da blasfêmia dos cânones tradicionais. Entretanto, o cinema enquanto fenômeno moderno e prática coletiva desempenhou ao longo de sua história um papel muito mais ligado à pedagogia que à performatividade, uma vez que essa atividade se encontra atrelada a um aparato estatal ou a uma grande

206

E não como uma “comunidade política imaginada” (Anderson). Aliás, Bhabha tem a preocupação de dissociar os conceitos de nação e comunidade, afirmando que a última geralmente é formada em escala intra ou transnacional.

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indústria. O primeiro demanda a produção de imagens que retratem a ‘grandeza nacional’ e a ‘comunhão coletiva’, ao passo que a última se pauta por critérios que priorizam o lucro; em ambos os casos, o risco da performance tende a ser atenuado ao mínimo – no máximo apresentando uma ou duas novas ‘invenções’, visto que o público cinematográfico avalia um filme também pelo quesito ‘criatividade’. Um desdobramento dessa reflexão de Bhabha é a noção de que o tempo da origem nacional não é o tempo da memória, e sim o do esquecimento. Para ele, a nação se constitui no esquecimento, na subtração. Esse ‘esquecimento’ está explícito, por exemplo, na ação de Narradores de Javé, uma vez que a necessidade de se escrever a história do vilarejo (surgida no fato de este se encontrar ameaçado pela construção de uma barragem) reside principalmente na ausência de uma catalogação ou de uma sistematização dos supostos fatos importantes da cidade (marcada pela ausência de um documento, um escrito, que justifique o tombamento da cidade). Da mesma forma, Quanto vale... traz à tona em sua diegese essa marca de ‘subtração’, ao resgatar de casos guardados há muito no Arquivo Nacional as contradições sobre as quais se construiriam a futura nação brasileira. Não é gratuita a escolha do diretor no foco de casos ligados à escravidão, algo capaz de evidenciar a nossa conturbada origem nacional, mergulhada na violência exacerbada de tensões étnicas e sociais. A partir de uma revisão do conceito de polifonia de Bakhtin, o autor encerra O Local da Cultura refletindo sobre a constituição do direito de significar na arena política pós-colonial, sendo que este questiona o ponto de vista branco e masculino do colonizador. De que modo os personagens dos três filmes objetos dessa pesquisa encenam seu direito de significar? Aqui, é preciso fazer menção à politização do signo empreendida por Bakhtin em Marxismo e Filosofia da Linguagem, no qual defende a idéia de que o signo configura uma marca da ideologia e, desse modo, é apropriado no pensamento de Bhabha: a localidade da cultura e de uma determinada narrativa tem relação direta com o sujeito enunciador, afinal, quem postula o direito de significar, o faz dentro de um contexto (ou campo, se quisermos retomar Bourdieu) em relação a um outro material ou simbolicamente presente. Em relação ao cinema brasileiro contemporâneo, alguns dos filmes produzidos a partir de 1990 podem ser percebidos como veiculadores de práticas discursivas contestadoras do lugar da nação. Aqui, a localidade da cultura passa a ser vista a partir de categorias ligadas à raça, ao gênero e à classe, principalmente. A sociedade brasileira assistiu, na última década, à politização dessas diversas práticas discursivas. 81

Acompanhando a trajetória de agentes como o movimento negro, cujas vitórias no campo político – cotas nas universidades para estudantes negros e pobres, comemorações cívicas ligadas à cultura negra alçadas à categoria de feriados regionais207, aplicação do texto constitucional que prevê o racismo como crime inafiançável e imprescritível - reinscreveram principalmente a raça como categoria discursiva e identitária, os meios de comunicação não sairiam incólumes dessa discussão208. Debates televisionados, artigos na imprensa escrita, ações na justiça em decorrência do comportamento de certos meios de comunicação, discussões acaloradas em listas e em sites na internet, desenvolvimento de segmentos na área editorial209, dentre outros, revelaram a nova tônica concedida à questão racial. Há, ainda, a maior presença de atores negros no cinema e na televisão, em virtude do trabalho de ONGs como Nós do morro e Nós do Cinema210. O meio acadêmico também se viu imerso em grupos de estudos sobre a revisão do papel do negro e do índio na sociedade brasileira, o que conduziu a pesquisas nas áreas Humanas, notadamente História e Ciências Sociais. Isso ajuda a revelar que a historiografia do cinema brasileiro necessita de estudos que avaliem como as categorias raciais mobilizadas no pensamento social e no cotidiano das massas fizeram-se presentes nas representações fílmicas211 e, além disso, em quais códigos sociais essas representações eram inseridas e como elas atualizavam as práticas sociais ligadas à raça212. Afinal, a seqüência de Thesouro Perdido (1927), de Humberto Mauro, em que

207

No Rio de Janeiro, há os feriados de São Jorge e Zumbi dos Palmares. Questões ligadas ao gênero e, em menor medida, à classe, também tiveram presença na retórica política, acadêmica e midiática, tais como a violência doméstica contra as mulheres, a criminalização da pobreza etc. Além disso, a revisão da política indigenista, na década de 80, a partir de críticas a instituições como a FUNAI e à própria representação política dos índios (caso do Deputado Mário Juruna), configura um dos pontos de virada na questão racial. 209 Podemos mencionar a revista Raça, voltada prioritariamente a um público de classe média negra em ascensão e alguns livros sobre o debate racial produzidos para um público supostamente “leigo”, tais como Não somos racistas (Ali Kamel). 210 Recordemos que Lázaro Ramos e Flávio Bauraqui, dois atores negros incorporados ao star system, tiveram suas trajetórias artísticas consolidadas em filmes como Madame Satã, O Homem que copiava e Quase Dois Irmãos, além do fato de que Fernando Meirelles e Kátia Lund, diretores de Cidade de Deus, realizaram uma série de oficinas visando a formação de jovens atores negros, o que revela o papel do cinema brasileiro contemporâneo como uma instância cultural legitimadora das conquistas do movimento negro. 211 Um dos raros estudos é O Negro e o cinema brasileiro, do antropólogo João Carlos Rodrigues. 212 Lembremos que, nos EUA, houve a vigência de vários códigos de representação – sendo o mais famoso o Código Hays – que mencionavam explicitamente como as “raças” deveriam ser retratadas nos filmes. No Brasil, em virtude da insipiência da realização de filmes e da fluidez das categorias raciais, os códigos em torno das representações se tornavam implícitos, quando não “autorais”, adotando inclusive 208

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se alternam planos de um sapo e uma criança negra - ambos com um cigarro na boca - o filme A Dupla do Barulho (1953), de Carlos Manga, que reúne dois cômicos alternando representações de branquidade e negritude (Oscarito e Grande Othelo), a ficção Iracema, uma transa amazônica, de Jorge Bodansky (1974), que se vale de um diálogo com a estética documental para ironizar a situação política do país por meio da reencenação do mito de fundação racial Iracema213, e o documentário Mato eles? (1982), de Sérgio Bianchi, sobre uma reserva de índios invadida por uma madeireira, são apenas alguns exemplos retirados de um gigantesco panorama de representações raciais veiculadas audiovisualmente. Desse modo, justificamos o privilégio do recorte em torno da questão racial, uma vez que detectamos nela a principal fonte de contestação atual às narrativas totalizadoras da nação e à história linearmente construída (leia-se, não-conflituosa), além de reconhecermos a raça enquanto categoria identitária que se liga diretamente à noção de povo dentro de diversas práticas letradas - desde a literatura e o pensamento social do século XIX até os movimentos sociais atuantes na esfera pública presente - e, portanto, fundamental para compreender como a construção “povo brasileiro” foi evidenciada em diversas teorias de cunho sociológico, histórico e antropológico na definição de uma nacionalidade brasileira. E, ao contrário de outros países em que esses saberes foram apreendidos em sua dimensão analítica, os mesmos, no Brasil, passaram a fazer parte do panorama de representações nacionais divulgadas, dentre outros, pelo cinema. Atentamos, ainda, para as categorias de raça e de classe como as principais bases da hierarquia social no caso brasileiro, visto que o ideal de branqueamento, mesmo diluído teoricamente, foi incorporado a várias práticas cotidianas e a representações estéticas e culturais, sendo ligado à lógica de classes por meio da formação de padrões de consumo (cultural stricto sensu ou não) e do mercado como lugar de disputas materiais e simbólicas. Após ter verificado, no capítulo 1, como a legitimidade do campo cinematográfico se encontra atrelada à possibilidade de representação do Brasil no cinema, além de o habitus do campo ter se estabelecido a partir de uma retórica nacional-popular que condicionou grande parte da produção de uma época - sendo a memória do campo construída em torno desta produção - passemos a observar como as estratégias de naturalização e invisibilidade, o que dificulta – mas não inviabiliza - uma abordagem “racial” da história do cinema brasileiro. 213 Reside no filme um tom de desautorização, uma vez que os “clássicos” da literatura do séc. XIX encontraram na televisão brasileira da década de 70 uma presença bastante privilegiada nas adaptações.

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práticas ligadas às representações de Brasil são explicitadas nos filmes Narradores de Javé, Quanto vale ou é por quilo? e Quase Dois Irmãos. Apontamos algumas hipóteses secundárias relacionadas às hipóteses principais relatadas na introdução: a) as práticas discursivas ligadas à raça presentes nos filmes, contrariando uma tradição apaziguadora das relações raciais, ressaltam a dimensão do conflito (fílmico e extra-fílmico) em que elas são constituídas; b) os diversos usos do passado nas narrativas cinematográficas e suas relações com o presente apontam para a dissemi-nação enquanto estratégia discursiva que contesta o poder de nomear de certos grupos instituídos; c) ao encenar a localidade da cultura (Bhabha, 2004), os filmes o fazem ressaltando o caráter arbitrário das disputas identitárias, para tanto evidenciando nos personagens e na diegese como estes se apropriam das práticas discursivas e nãodiscursivas de forma híbrida. Para auxiliá-las, lançamos outras hipóteses secundárias: a) os filmes mencionados, ao articular classe, raça e gênero, re-visitam certos discursos ligados às categorias raciais presentes no pensamento social brasileiro e brasilianista (leia-se, Skidmore, Ianni, Florestan Fernandes, Ortiz) e desautorizam o lugar de outras tradições (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e teóricos do séc. XIX como Sílvio Romero e Nina Rodrigues) por meio de ironias e alegorias; b) a imagem de Brasil construída nos filmes incorpora o conflito racial (e, em menor medida, de outras categorias como gênero, classe, geração, religião etc), revelando o lugar da própria nação enquanto instância legitimadora de certos tipos de identidade em detrimento de outros; c) mais que ressentimento214, as diegeses são formuladas a partir da presença do trágico nas relações sociais representadas no plano fílmico, sendo esse elemento trágico uma das bases das contra-narrativas às fronteiras da retórica nacional que constrói o Brasil de forma totalizadora e pacífica; d) a tensão entre o pedagógico e o performativo em torno do povo e do popular faz-se presente na mise-en-scène, evidenciando as estratégias narrativas relacionadas ao povo enquanto mises-en-abîme, isto é, micro-narrativas referentes à narrativa fílmica como um todo, que a retomam corroborando-a ou contestando-a; e, finalmente, e) ao agenciar o presente, os filmes se tornam passíveis de figurarem na retórica das contra-narrativas que mobilizam o cenário político e social

214

Categoria analítica de Ismail Xavier, exposta em comunicações proferidas na SOCINE (em 2006, Do sublime ao grotesco: a tragi-comédia do populismo em Redentor) e na entrevista-ensaio O cinema brasileiro dos anos 90 (publicada na Revista Praga e já mencionada neste trabalho; cf: capítulo 2).

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contemporâneo, ressaltando o aspecto de intervenção da produção cultural (no caso, cinematográfica).

I

USOS DO TEMPO NAS NARRATIVAS DA NAÇÃO

Quanto vale ou é por quilo? é iniciado com uma expedição de capitães-do-mato para apreender escravos fugidos, mostrada em uma fotografia muito escura e em planos fechados, sob os protestos de Joana (Zezé Motta) - negra alforriada que possui escravos – alegando que um dos escravos era seu. A câmera com movimentos lentos e a montagem com poucos cortes revelam o protesto dela e de seus vizinhos diante da casa do mandante da expedição (Antônio Abujamra), cuja acusação sumária é “branco ladrão”. Já Quase Dois Irmãos apresenta a sua estrutura tri-temporal logo nos cinco primeiros minutos do filme, representando as décadas de 50, 70 e os dias atuais através dos personagens Miguel (Bruno Abrahão /Caco Ciocler/ Werner Schünemann) e Jorginho (Pablo Belo/ Flávio Bauraqui/ Antônio Pompeu), branco e negro, respectivamente. Por sua vez, Narradores de Javé é apresentado por créditos cujo trabalho gráfico-musical amparado em uma estética pós-moderna que remete o espectador ao tempo presente - colagens musicais; música regional com batida ‘pop’; formas geométricas acopladas aos nomes e às funções da equipe; a caracterização dos jovens na primeira seqüência (um deles, após ter perdido uma balsa, escuta uma música no CD player que ‘contamina’ a cena; Souza, interpretado por Matheus Nachtergaele, usa roupas e tem um cabelo estilo ‘roqueiro’). O filme também possui uma estrutura tritemporal, na qual o tempo presente se alia a dois tipos de representação do passado: agonística, retratado na fala de Zaqueu (Nelson Xavier) e memorial/mítica, construído pela junção das narrativas dos moradores de Javé sobre a suposta ‘origem’ o povoado. Ao explicitar um fato pouco retratado nas narrativas sobre escravidão – o fato de negros libertos também possuírem escravos – e ao evidenciar claramente as categorias de raça, essa seqüência indica o tipo de narrativa que irá ser construída ao longo de Quanto vale...: através de um jogo de ocultação/revelação, os vários tipos de linguagens articuladas no filme (publicidade, história, direito, vídeo, televisão, etc) irão expor fragmentos de ações que ressaltam o aspecto do conflito nas relações de raça e de classe. 85

O aspecto temporal fragmentado também faz parte da narrativa de Quase Dois Irmãos, sendo que este é usado para, dentre outros, revelar a continuidade das relações raciais e de classe. As diferenças na fotografia (que se vale de tons amarelados para representar a década de 50 e o ambiente da favela; de tons cinza para construir a cadeia da Ilha Grande e a vida dos presos políticos durante os anos 70; uma fotografia “limpa” para retratar os ambientes atuais), a montagem com muitos cortes “entre épocas” e o uso de atores diferentes para encenar o mesmo personagens em vários tempos auxiliam nesse aspecto de continuidade. O espectador consegue separar as diversas temporalidades e, simultaneamente, passa a estabelecer relações de causalidade entre as ações das personagens e suas “origens”. Curiosamente, Narradores de Javé é apresentado de um modo que será contradito em seguida, uma vez que a cisão empreendida a partir da fala de Zaqueu (o som do sino seguido pela imagem que o mostra sendo tocado em um pequeno vilarejo) contrapõe a estética inicial e o tempo a ser narrado: a rapidez das colagens visuais e musicais e a encenação no tempo presentes são substituídas por uma montagem com menos cortes e uma fotografia mais ‘limpa’ (ou naturalista, no caso da representação do vilarejo) ou em que determinadas cores são ressaltadas (para marcar o passado memorial ou mítico e quem relembra esse passado – isto é, a posição ocupada por este na narrativa). Isso revela, dentre outros, a disputa pelos lugares de autoridade em narrar as diversas histórias – o povoado já extinto; o povoado em vias de extinção; a fundação do vilarejo – e como essa disputa evidencia os tempos disjuntivos nos quais a nação é constituída. É importante frisarmos que, ao contrário de Quase Dois Irmãos, Quanto vale... não possui um personagem que conduza toda a história, sendo que isso se reflete na forma como o passado é retratado: além de mudanças na fotografia (ora fica amarelada, ora enegrecida), há uma instância fora do texto que se concede a autoridade de narrar a história: uma voice over (interpretada por Milton Gonçalves) cuja fala impostada e sem alteração de tom assume um ar farsesco e cínico. Narradores..., ao invés de um personagem, alterna diversos pontos de vista: Zaqueu; Antônio Biá (José Dumont) e os diversos moradores que relatam as histórias de seus antepassados. Em resumo: Quase Dois Irmãos evidencia uma temporalidade contínua; Quanto vale..., superposta; Narradores, disjuntiva. Colocada a questão da representação temporal, vejamos como o passado se insere na diegese dos filmes. Em Quanto vale..., vários fragmentos deste aparecem 86

imersos em uma narrativa que se liga ao presente e ao cotidiano das grandes cidades e de um novo ator social, as ONGs. Há uma relação de contigüidade entre as duas temporalidades, construída a partir da questão racial. Essa postura é ratificada, por exemplo, no elo entre a diretora de uma ONG e uma senhora que revende escravos (ambas interpretadas pela mesma atriz, Ana Lúcia Torre) e na seqüência em que há a exposição de objetos de tortura para escravos, que se revela, na montagem, o sonho da personagem Arminda (Ana Carbatti), cuja presença em uma festa (realizada em uma favela) nos remete ao tempo presente. O aspecto mercantil presente na escravidão é perpetuado pelo assistencialismo contemporâneo, que vilipendia as economias do Estado em prol dos interesses de uma elite burocrática. Devemos acrescentar que o mercantil não é específico da escravidão brasileira, configurando uma esfera de negociação em várias sociedades e em vários tempos215. O que diferencia a constituição de nossa nacionalidade, no filme, é a lógica mercantil marcada pelo signo da crueldade que, aliada à dimensão trágica, conduziria a práticas raciais e de classe que reproduzem o sistema escravocrata no tempo presente. Recuperemos a discussão empreendida por Homi Bhabha a respeito das narrativas nacionais. Segundo o autor, a nação seria “uma forma obscura e oblíqua de viver a localidade da cultura. Essa localidade está mais em torno da temporalidade do que sobre a historicidade (...)” (2005, p. 199) [grifos do autor]. Além disso, a nação se constitui em uma ambivalência narrativa, entre os discursos da pedagogia e do performativo. O primeiro se pauta pela continuidade e pela construção de uma identidade ao longo da história; o segundo pela constante necessidade de re-significar as narrativas nacionais no cotidiano, explicitando a instabilidade do jogo identitário. Nas palavras de Bhabha, cuja indagação pode nos auxiliar aqui:

As contra-narrativas da nação que continuamente evocam e rasuram suas fronteiras totalizadoras – tanto reais quanto conceituais – perturbam aquelas manobras ideológicas através das quais as “comunidades imaginadas” recebem identidades essencialistas. (...) Enquanto um limite firme é mantido entre os territórios e a ferida narcísica está contida, a agressividade será projetada no Outro ou no Exterior. Mas e se considerarmos, como venho fazendo, o povo como a articulação de uma duplicação da interpelação nacional, um movimento ambivalente entre os discursos da pedagogia e do performativo? (...) A nação não é mais o signo da modernidade sob o qual as diferenças culturais são homogeneizadas na visão “horizontal” da sociedade. 215

A título de exemplo, poderíamos citar desde os casamentos entre nobres, durante a Idade Média, estudados por Georges Duby em L’Europe du Moyen Age, até as tribos analisadas por Marcel Mauss em Essais sur le don. Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques, recordando, ainda, que a escravidão enquanto prática social remonta à Antigüidade.

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A nação revela, em sua representação ambivalente e vacilante, uma etnografia de sua própria afirmação de ser a norma da contemporaneidade social (2005, p. 211-212).

Deslocada da teleologia do progresso, a nação de Quanto vale... é constituída através de um jogo de ironias que destitui o pedagógico de sua autoridade para conferir ao performativo um lugar de destaque na narrativa racial. Através do par “branconegro”, o filme estabelece a construção das identidades e a presença da violência na origem das relações raciais. Voltemos à primeira seqüência do filme: a voice over lê uma sentença que condena a negra alforriada Joana por ofensas morais e raciais a um senhor branco, configurando a primeira ironia do filme e contrariando a expectativa do espectador. A isso, reforça o fato com o peso do documento, trazido à diegese por meio da inserção de uma referência ao Arquivo Nacional. A relação de contigüidade temporal é superposta à contigüidade racial: o negro se constitui pelo olhar do branco e vice-versa; as instâncias de branquidade são explicitadas no filme. Dos senhores, passamos aos diretores de ONGs e à alta elite burocrática. A violência “original” da escravidão é revivida pela “mercantilização” da imagem das minorias: o olhar de Arminda durante a gravação de um comercial sobre meninos negros e pobres, cuja fantasia os vê amarrados em fila – como escravos - ou, em outro momento, em que vê um capitão-do-mato transitando em uma festa no Teatro Municipal de São Paulo pode ser interpretado como a mise-en-scène do conflito racial. Aqui, o performativo fílmico (das personagens) remete diretamente ao extra-fílmico (da sociedade brasileira): a necessidade de explicitar as categorias raciais na narrativa funda-se no desejo de se repensar a raça enquanto discurso identitário e, em contrapartida, “devolve” ao espectador um mal-estar ocasionado pelo desmascarar do mito da democracia racial216. Relacionando isso aos usos do passado, vejamos um exemplo. A voice over faz asserções sobre o uso de instrumentos de tortura na escravidão: “o tronco é indicado contra fuga de escravos reincidentes. Para colocar o escravo no tronco, abrem-se suas duas metades, colocando nos buracos o pescoço e os pulsos. O tronco estimula o espírito de humildade e subserviência, forçando a imobilidade e impedindo o escravo de se defender de moscas ou mesmo fazer suas necessidades fisiológicas”. A narração é 216

Utilizamos a palavra mito em duas acepções: Malinowski e o funcionalismo, para o qual o mito tem uma função (no caso em questão, o mito como reprodutor de uma ideologia nacionalista que apazigua quaisquer conflitos); além do mito como lugar da farsa, algo bastante difundido nos movimentos sociais que contradizem as formas de imaginação da comunidade nacional.

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acompanhada de um movimento giratório do instrumento tronco com a personagem Arminda dentro dele, o que contrapõe a objetividade e o aspecto expositivo daquela à agonia desta. O performativo, nesse momento, explicita-se no choque entre imagem e som, o que concede à voice over um tom farsesco, que se vale do discurso pseudo-moral e didático do século XIX para naturalizar a manutenção de uma ordem “racializada” e as atrocidades cometidas em prol do sistema escravocrata. Ainda podemos mencionar que a evocação da tradição teatral – por meio do realce de cinco atores com instrumentos de tortura em um palco, com um feixe de luz indicando a presença destes – e sua incorporação ao filme são feitas para ressaltar a dimensão de código e de prática da escravidão. Assim, reforçam-se as categorias raciais enquanto um “real” codificado e ideológico, cuja funcionalidade reside em ocultar os desmandos de uma elite racialmente hierarquizada. Aliás, sobre os discursos raciais em voga no século XIX, eis como Ortiz avalia a sua recepção no Brasil: O processo de “importação” pressupõe portanto uma escolha da parte daqueles que consomem. A elite intelectual brasileira, ao se orientar para a escolha de escritores como Gobineau, Agassiz, Broca, Quatrefages, na verdade não está passivamente consumindo teorias estrangeiras. Essas teorias são demandadas a partir de necessidades brasileiras, a escolha se faz “naturalmente”. O dilema dos intelectuais do final do século é o de construir uma identidade nacional (1988, p. 30).

À ironia do filme contra as teorias geográficas e biológicas da raça, adiciona-se esse caráter de seleção das idéias. O autor destaca que a noção de “cópia” é um fator que mobiliza o debate de idéias dentro das instituições, para tanto criticando a dualidade normalmente estabelecida entre autêntico e inautêntico no plano intelectual e nacional. Segundo Ortiz, não existe propriamente uma identidade nacional, mas sim “uma história da “ideologia da cultura brasileira”, que varia ao longo dos anos e segundo os interesses dos grupos que a elaboram” (idem, p. 187). Desse modo, as teorias biológicas vinculadas à noção de raça, as teorias do marketing contemporâneo e as teorias sociais modernas, tal como expostas em Quanto vale..., poderiam ser classificadas dentro da disputa pelo poder de nomear, empreendida nos campos político, acadêmico e audiovisual. Lilia Schwarcz também avalia a recepção das teorias raciais do século XIX no Brasil. Dentre outros, é importante destacar que a autora, ao avaliar a carga moral imposta à análise da presença considerável de índios e negros na população brasileira, 89

destaca o papel de diversas instituições nesse processo (institutos históricos e geográficos; escolas de medicina e de direito) e evidencia a categoria branco não apenas como agente, como também uma categoria racial que se valia de uma dupla obliteração. Essa se fazia expressa na ‘neutralidade’ institucional e no lugar de autoridade conferido por estas instituições, que não apenas situavam o branco no ápice da cadeia evolutiva, como também eram capazes de produzir uma invisibilidade em torno dessa categoria racial e uma naturalização do ‘ideal de branqueamento’. Desse modo, o branco enquanto ‘raça’ era uma prática mobilizada no cotidiano e nas práticas letradas, ao mesmo tempo em que a carga valorativa atribuída a este – beleza, honestidade, ordem etc – ao serem disseminadas, mantinham um vínculo difuso – notadamente lingüístico – com o mesmo217. Logo, a humildade e a subserviência – as quais se refere a voice over e exemplificadas na tortura dos escravos - são tidas como valores construídos na expectativa das relações raciais, justamente pela imposição de uma hierarquia racialmente difusa. Através desses valores, são superpostos o passado escravocrata e as ONGs atuais, inclusive para obstruir uma transformação social baseada na igualdade (também racial), e não somente na ‘democracia’. A contigüidade entre passado e presente é explicitada logo na seqüência seguinte, em que há um comercial protagonizado por crianças pobres (e, em sua maioria, negras) e a análise imediata de um gerente de marketing Marco Aurélio (Herson Capri), em uma reunião cujo propósito é “captação de recursos”. O comercial veicula, ao som de uma música instrumental melancólica, imagens de crianças sujas, dormindo na rua, chorando, para uma campanha de uma empresa chamada “Sorriso de criança”. A isso, Marco Aurélio reage afirmando que a “estratégia” está ultrapassada e que “a imagem do produto deve estar vinculada ao êxito”. Reificando a miséria218, o discurso da personagem ratifica o marketing enquanto o lugar de afirmação das concepções de uma elite burocrática, intelectual e financeira na

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Poderíamos inferir que as teorias da criminologia auxiliaram na construção do estigma das populações não-brancas, ao conceder uma ‘cientificidade’ à construção da figura do criminoso. Um vestígio da recepção dos valores ligados à branquidade e da construção do estigma nas próprias populações marginalizadas é a obra de Cruz e Souza, poeta brasileiro que, enquanto negro cidadão do final do século XIX, elaborou diversos poemas exaltando o branco como ‘alvo’, ‘límpido’, apropriando-se do vocabulário racista da época de modo a produzir uma estética simbolista na poesia brasileira (que se pautava justamente pela transcendência do ‘branco’ e do ‘celestial’), tal como representado no filme Cruz e Souza – o poeta do desterro, de Sylvio Back (1999). 218 Valemo-nos do conceito de “reificação” de Marx, tal qual explicado por Peter Berger e Thomas Lückmann em A Construção social da realidade.

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manutenção de uma ordem social que oblitera seu aspecto racial. Aliás, essa lógica da reificação aparece em vários momentos no filme, configurando uma “ponte” na relação passado-presente: na senhora que revende escravos (Ana Lúcia Torre), no momento da compra, tocando em dois escravos como se avaliasse um objeto; na diretora da ONG (interpretada pela mesma atriz) gravando depoimentos de mendigos que vomitam após ingerir um líquido verde (um suposto “extrato natural”), o que é ratificado na estética do próprio filme, pois a imagem que mostra o desespero de uma mendiga negra aparece em vídeo (ressaltando o aspecto de “registro”, logo, como objeto mercantil). É interessante avaliarmos, nesse ponto, como o filme transpôs um dos contos de Nireu Cavalcanti. Na seqüência do escravo Adão e do senhor Bernardino, o filme relê a história do capoeirista Adão, preso em uma roda após um homicídio e condenado a quinhentas chibatadas e a dois meses de trabalhos forçados em obras públicas - pena relaxada pelo pedido de seu dono ao juiz, visto que teria seu sustento inviabilizado, alegando que seu escravo tinha cometido um leve deslize, mas era via de regra cumpridor de seus deveres. No filme, Adão é alugado e indevidamente acusado de roubo, espancado e trancafiado em uma cadeia pública como indigente. Numa comparação entre ambos, o filme salienta a reificação pela voice over (“Bernardino resolve processar Sebastião Soares, pois este havia deteriorado o seu patrimônio”) e pela imagem, na qual o senhor avalia o escravo como um mero objeto, tocando-o com dedos envoltos em um lenço e insensível aos gritos de dor deste (Adão encontra-se com diversos sangramentos e hematomas pelo corpo em virtude do espancamento). Além disso, retira a falsa caridade do conto original e enfatiza, em vez dela, o aspecto mercantil das relações raciais, sendo o mesmo ressaltado em como se dá o acesso ao Judiciário no conto e no filme. Enquanto no primeiro, a lógica predominante é a da caridade (do juiz para com o senhor e do senhor para com o escravo), no filme a caridade desaparece para sublinhar a disputa entre dois senhores, ou seja, um conflito interno à ordem e com base unicamente na idéia de propriedade. O pedagógico – a ênfase na escravidão – alia-se aqui ao performativo – a ressonância do mercantil nas relações contemporâneas. Passemos a outro conto livremente adaptado em Quanto vale.... . Em Pai contra mãe, Machado de Assis relata a história do amor entre Candinho e Clarinha, o primeiro um mulato sem profissão que vira capitão-do-mato, a segunda branca órfã que vivia com sua tia Mônica. O conto se pauta por uma narrativa cujo clímax é o estado de extrema pobreza do casal - que chega ao ponto de quase serem despejados - contrastado 91

com a ânsia de liberdade da escrava Arminda que, grávida, foge de seu senhor. O encontro malogrado para esta última resulta em seu aborto espontâneo e na salvação do casal, uma vez que Candinho recebe a recompensa monetária pela captura de Arminda, podendo pagar assim suas dívidas. Por meio da metáfora final (“Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”), o autor infere, implicitamente, que a vida de negros possui um valor socialmente menor que a vida de brancos e de mestiços e, ainda, que existe uma hierarquia de facto na apreciação (individual e coletiva) de quais vidas/trajetórias serão valorizadas ou não. No filme, o paralelismo entre passado e presente, partindo do conto, é produzido a partir das representações de capturas de escravos e dos assassinatos ‘encomendados’ atualmente. Câmera mostra muro com diversos cartazes de escravos fugidos e dá um close no cartaz da escrava Arminda (Ana Carbatti, que interpreta no passado e no presente personagens homônimas). Capitão-do-mato anônimo arranca o cartaz. Na cena seguinte, Arminda molha o rosto à beira de um riacho quando é violentamente surpreendida pelo capitão-do-mato. Este a arrasta até seu dono, sendo o aborto de Arminda e sua extenuação contrapostos ao relato da voice over: “com a recompensa, o capitão-do-mato poderá criar seu filho, alimentá-lo, educá-lo”. Candinho (Silvio Guindane), agora um desempregado morador da Grande São Paulo, é mostrado como um matador ‘de aluguel’. Casado com Clarinha (Leona Cavalli) e vivendo com ela e sua tia Mônica (Cláudia Mello) em uma casa no subúrbio (retratada como de classe média baixa, o que é identificável pela mobília e pelo aspecto físico), Candinho é o assassino, no primeiro final, de Arminda, então ex-funcionária da ONG comandada pelo corrupto Ricardo Pedrosa (Caco Ciocler). A repetição da voice over (“com a recompensa, o capitão-do-mato poderá criar seu filho, alimentá-lo, educálo”), amparada pela imagem da foto de Candinho, Mônica, Clarinha e um bebê branco configura a superposição de práticas passadas e presentes no tocante ao ideal de branqueamento: o duplo assassinato de fetos que seriam futuramente negros e o contraste com a vida de bebês brancos revelando o potencial genocida deste ‘ideal’. Lembremos que a metáfora machadiana foi substituída por um discurso pleonástico e metonímico, uma vez que podemos considerar a imagem final do filme (a foto já citada) um reforço da (des)valorização de vidas já expostas diegeticamente e uma mise-en-abîme do argumento desenvolvido no filme. Sendo assim, a operação lingüística assume uma conotação política, no sentido de destacar o conflito como 92

prática mobilizada nas relações raciais e como inerente à produção de uma ordem hierárquica definida, dentre outros, pela raça. Sobre a representação da história na cultura de massa, o historiador Stephen Bann assim se refere: “não satisfeita em invadir e assimilar as mídias tradicionais, a representação da história tornou-se a prática de tipos novos e intensos de espetáculos populares, tais como o diorama e os novos modos de exposições educativas como o museu histórico”219. Ao perceber a história enquanto uma prática discursiva difusa na comunicação de massa desde o século XIX, Bann vê esta última como uma instância fundamental para compreender como a comunidade de receptores se vê imersa em um ‘desejo de história’, isto é, como se dá a produção de uma ‘consciência histórica’ através da qual os receptores passam a delimitar e diferenciar práticas passadas e atuais, além de conferir uma escala valorativa de acordo com as disputas retóricas e políticas em que estes são inseridos. Poderíamos inferir, ainda, que a imagem de Brasil, ao se fazer presente na tela de cinema ou de TV, também possui uma “materialidade”, que interrompe a temporalidade na qual o espectador se encontra imersa e o desloca para outras, construídas no filme. Em Quanto vale..., esta diferenciação se dá a partir do tipo de registro pretendido no filme: a montagem menos evidente das passagens referentes à escravidão e a profundidade de campo das mesmas contrapondo-se às colagens entre seqüências que se situam no presente histórico do espectador: passa-se da teoria do século XIX à favela atual e, posteriormente, à publicidade televisiva e ao discurso de marketing em menos de quatro minutos. Desse modo, o performativo contido nos filmes interpela as imagens já representadas ao espectador, fazendo com que este tenha um esforço de re-significação. Especificamente, Quanto vale..., ao explicitar as instâncias nas quais o imaginário coletivo se constitui (televisão, publicidade, música popular/massiva, história, sistema educacional, etc), revela a dimensão de código e de seleção assumida na encenação do passado nacional e, mais que isso, que tipos de interesse/ideologia pautam as narrativas e contra-narrativas nacionais. Retornemos ao ponto de partida, isto é, à primeira seqüência de Quanto vale... . Velha negra grita “larga ele!”, tentando inutilmente empurrar o capitão-do-mato que 219

“Not content with invading and assimilating traditional media, the representation of history became the practice of new, intense modes of popular spectacle like the diorama and the new types of educational display like the historical museum”. BANN, Stephen. Romanticism and the rise of history. New York, Twaine Publishers, 1995, pág. 4.

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acorrenta um escravo. Joana, atordoada, exclama: “o que está acontecendo?! Esse escravo é meu! Vocês não podem fazer isso! Entrar na minha propriedade e levar o que é meu!”. Voice over de Milton Gonçalves acompanha a fotografia bem escura e os planos marcados por uma movimentação lenta e pela profundidade de campo: “Madrugada de 13 de outubro de 1799. Nos arredores da capital do Vice-Reinado, uma expedição encomendada de capitães-do-mato capturam escravos em residências da área rural. Dentre as presas está Antônio, retirado de uma pequena chácara de propriedade de Joana Maria da Conceição. Ao presenciar o confisco de seu escravo, Joana reúne documentos, forma uma pequena comitiva e parte atrás dos capitães mata adentro. Joana é uma mulher forte. Alforriada e agindo conforme o sistema, acumulou recursos para comprar escravos que a auxiliassem em sua pequena propriedade. Agora Joana fora roubada. E acreditando na justiça e na força coletiva, junta seus vizinhos para cobrar e enfrentar o mandante da expedição”. A imagem sublinha um pequeno grupo de pessoas seguindo Joana (Zezé Motta) pela mata e atravessando uma ponte. Capitão-do-mato abre porta e João (Antônio Abujamra) atende, ao que Joana inquire: “Ah, o senhor é o responsável por essa injustiça! O senhor está me roubando! O senhor é um ladrão! Lugar de ladrão é na cadeia!”, agarrando-o e fazendo com este que quebre uma lamparina. E Joana continua, sendo filmada em close up: “Use de violência! A minha violência está aqui, nos meus papéis! Nos meus direitos!”. Plano geral em que Joana dispara: “branco ladrão!”. Após isso, vemos uma cena em que Joana posa com seus escravos para uma suposta fotografia, sendo a mesma contrastada pela leitura de uma sentença pela voice over condenando Joana por “ofensas morais e raciais ao senhor João Fernandes”. O primeiro aspecto a ser levado em consideração é a atuação dos negros libertos na esfera pública do sistema escravocrata. Em Preto no branco, Skidmore atribui à presença destes a diferença entre a possibilidade de se afirmar um sistema de classificação bi-racial (como no caso dos EUA e da África do Sul), com uma hierarquia social racionalmente separada e justificada e um sistema de classificação ‘difuso’ ou ‘multirracial’, no qual raça é somente um de vários atributos e, por isso, muitas vezes é obliterado, inclusive por políticas oficiais (censo, políticas educacionais etc). Assim, Skidmore opõe a violência do primeiro à ambigüidade política presente no segundo. Já o filme realiza uma operação inversa: centraliza a ação de uma negra liberta para justamente revelar o racismo e o sexismo das instituições oficiais, além da pessoalidade acobertada por estas - isto é, como qualificações subjetivas ligadas à 94

classe, raça, religião, gênero etc incidem em diferentes acessos às instituições, e apreciações por parte destas - no caso o Judiciário. Ao fazer isso, Quanto vale... percebe o sistema ‘multirracial’ enquanto dotado de uma violência material (o roubo do senhor branco e as agressões desesperadas de Joana) e simbólica (a condenação judicial), para tanto desnaturalizando a violência igualmente simbólica contida no peso dos documentos de Joana, sublinhando o conflito como prática e inferindo que o peso atribuído a este é fundamental para compreender a hierarquia social atual (lembrando o aspecto superposto da temporalidade construída no filme). O aspecto expositivo desta primeira seqüência é desautorizado pela leitura falsamente séria da sentença judicial e pela ‘foto’ de Joana com os escravos. Na verdade, a pose para a foto é um procedimento fílmico para enfatizar o corte visual e sonoro – pelo barulho de uma câmera fotográfica (uma vez que a fotografia foi tornada popular em meados do século XIX e o ano retratado é 1799) – e a encenação de um poder reproduzido nas relações cotidianas (a centralidade de Joana e a periferia ocupada por seus escravos é radicalizada no close desta que encerra a seqüência). O filme estabelece, desse modo, uma relação entre passado e presente a partir da blasfêmia, isto é, uma representação que primeiro se situa dentro de parâmetros realistas para ser posteriormente invertida, assumindo pela ironia sua dimensão de farsa. Poderíamos analisar também a operação feita pelo filme em torno da escravidão. Retirando esta do panorama da ‘histoire évenementielle’220 nacional brasileira (isto é, a escravidão como um ‘fato histórico’), o filme, ao inseri-la pela ação de diversos personagens, ressalta sua dimensão de prática mobilizada no plano cotidiano das relações de poder. À história oficial que a relata como um processo congelado e vergonhoso, o filme - valendo-se da pedagogia desta ao mesmo tempo em que a contesta - opõe vários dramas partindo de relações como vizinhança, amizades e desavenças. Essas mises-en-abîmes constroem em seu conjunto um panorama da presença da hierarquia racial no cotidiano e indicam o performativo na contestação desta hierarquia feita por alguns personagens (Arminda, que confronta o discurso ‘assistencialista’ do executivo Ricardo e, no passado, resiste o máximo possível à investida do capitão-do-mato). Já Quase Dois Irmãos, por sua vez, traz ao espectador sua construção dual no título, além da idéia de um “momento original”, personificada na relação entre Jorginho 220

Adjetivo irônico utilizado pelos historiadores da École des Annales ao se referir à prática historiográfica que combatiam.

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e Miguelzinho desde a infância. Afinal, quase dois irmãos são “quase” filhos da mesma mãe – a nação Brasil. Aqui, o pedagógico assume a sua narração masculina; afinal, o filme tem sua história iniciada com a amizade desses dois garotos - que é a continuidade dos laços de amizade de seus pais Miguel, um jovem jornalista de classe média branco (Fernando Eiras) e Jorge, um sambista negro e pobre (Luis Melodia), cuja relação é evidenciada através do samba e dos espaços sociais retratados e mencionados (as rodas de samba na favela e os almoços de domingo no prédio do jornalista). Assim, temos a encenação do “mito” da democracia racial, cuja continuidade é marcada no nome dos próprios filhos. Aliás, confere-se a essa amizade um aspecto inicial de fábula. O primeiro plano do filme mostra uma mão montando um quebra-cabeça, que revela a imagem de Cinderela presente nos livros infantis. As personagens brancas do conto são substituídas pela imaginação do garoto Miguelzinho que, à medida que sua mãe narra a história de uma mulher européia que ascende socialmente e dança em um baile, passa a imaginar um casal de mestre-sala e porta-bandeira negros desfilando. Ao final, interpela a fala etnocêntrica de sua mãe: “Mas mãe, que samba eles estavam dançando?”. Aliás, a ocupação de doméstica de Cinderela como alvo de uma redenção (pois esta vira princesa) funciona como uma prática em torno da hierarquia entre as mulheres, visto que o lugar de classe ocupado pela personagem e sua transformação remetem-se ao plano fílmico (nas personagens D. Rosa e D. Helena) e extra-fílmico (o papel social das domésticas enquanto signo da manutenção de uma ordem racialmente imposta). Esse intercâmbio de práticas entre mãe e filho confere à democracia racial sua primeira descrição fantástica em Quase Dois Irmãos. Curiosamente, a própria teoria social refere-se ao contato racial como “fábula das três raças” (nomenclatura de Roberto DaMatta). Nesta primeira seqüência, encena-se um contato e não um conflito, caracterizando a primeira ambigüidade exposta no tocante à questão racial: expor ora sua viabilidade (que pauta boa parte das práticas discursivas cotidianas e letradas – inclusive o pensamento social, nas figuras de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, sendo que os mesmos são retomados no meio acadêmico, dentre outros, para polarizar o debate sobre raça), ora sua dimensão conflituosa (o que será feito em outros momentos no filme). Caberá às personagens femininas a contestação do lugar dessa fábula/mito. As personagens D. Rosa (Janaina Carvalho/Dja Marthins) e D. Helena (Sílvia Buarque/Marieta Severo), esposas de Jorge e Miguel, entrarão em cena para marcar a 96

narrativa pelos signos da raça e da classe. Por meio da montagem paralela, o espectador assiste simultaneamente ao lamento de ambas, sendo que as cenas possuem o mesmo enquadramento: personagens próximos à câmera, planos fechados e os personagens masculinos mudos, reagindo apenas por gestos. “O síndico já pediu uma reunião de condomínio por causa das suas feijoadas de domingo. Isso aqui não é uma favela, Miguel!” (Helena); “Tu nunca mais vendeu um samba; nunca mais caçou um trabalho; nunca mais botou dinheiro dentro de casa” (Rosa); “Eu não sou racista. Não sou racista. Mas eu não agüento mais!” (Helena); “Eu passo a semana inteira na casa da patroa. Quando chega sábado e domingo, tu tá enfiado na casa do doutor!” (Rosa). O performativo, isto é, o “construir o povo na performance da narrativa, seu “presente” enunciativo marcado na repetição e pulsação do signo nacional”221 é trazido à encenação pelas personagens femininas, que colocarão claramente o ethos das duas categorias raciais presentes: a lógica da sobrevivência (marcada pelo cotidiano da favela, espaço geográfico habitado e representado por negros) e da aparência aliada à contenção (referente ao espaço social da classe média), imprimindo à narrativa nacional sua primeira cisão. Isto é: a lógica da monumentalidade pela qual se pauta a nação é contraposta aos discursos do cotidiano, possuidores de lógicas diversas à afirmação da primeira e que, portanto, explicitam a distribuição de poder. É necessário retomar uma reflexão empreendida por Judith Butler em Problemas de gênero. A autora atribui a si a tarefa de avaliar, em seu livro, duas instituições definidoras da sociedade capitalista atual: o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória. Para tanto, recusa a buscar uma “origem” do gênero, percebendo as articulações em torno deste enquanto “efeitos de instituições, práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos”222. O aspecto falocêntrico em Quase... reside na narrativa que concede aos homens o lugar de autoridade tanto nas práticas quanto nos discursos 223; a heterossexualidade compulsória, além de ser expressa (por uma regra da cadeia que proíbe “pederastia”) é uma das bases pela qual os conflitos serão estabelecidos (recordemos a continuidade na representação do tempo em Quase Dois Irmãos para sublinhar que os dilemas do caso 221

Op. cit., pág. 209. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, pág. 9. 223 O próprio discurso da “narrativa total” do filme, uma vez que a mesma é construída sob o ponto de vista do personagem Miguel, além das micro-narrativas mobilizadas pelo filme também referirem-se ao falocentrismo em sua maioria - no ambiente prisional, na favela dos anos 50 - sendo o lamento das personagens Helena e Rosa o signo da impotência diante da situação enfrentada por ambas. 222

97

amoroso de Juliana (Maria Flôr) e Deley são percebidos como um fio narrativo da questão racial – no filme, desde a década de 50 até hoje). Ademais, o sexo – no caso, a heterossexualidade – representado nas narrativas míticas como a forma de contato entre as três “raças fundadoras” da nacionalidade brasileira – aparece novamente assumindo-se como lugar de intercâmbio - dessa vez entre raças e classes - no Brasil atual. No

filme,

falocentrismo

e

heterossexualidade

compulsória

aparecem

reafirmando um ao outro, conferindo à nação sua voz de autoridade masculina. Na seqüência em que Miguel e Jorginho conversam, na cadeia, sobre o rompimento do namoro de Miguel, ambos são encenados de modo a desautorizar o feminino enquanto autônomo, mais uma vez ressaltando a potencialidade do sexo na tensão entre ordem e subversão. Na prisão, Peninha (Fernando Alves Pinto) faz uma massagem em Miguel enquanto escuta o desenlace de sua relação com Ana (Jerusa Franco): esta o “trocou” por outro militante político (Miguel ironiza seu comportamento: “ela cumpre o seu dever revolucionário e dá uma trepada comigo uma vez por semana! Sem culpa porque me contou!”). Na cena seguinte, eis como Jorginho e Miguel dialogam: Jorginho entra na cela de Miguel com um pandeiro, batuca-o e pergunta: “e aí, vamo tirar um som?”. À negativa de Miguel, Jorginho reage com revolta, afirmando que este deveria mandar matar o novo companheiro de Ana para “aprender a não se meter com mulher de preso”. “Porra, mermão! Tu assalta, seqüestra e ainda não aprendeu a ser macho, não?! E não tem essa de companheira, não! É filha da puta!”. Zomba do comportamento de Miguel e suas cartas de amor e a almofada que bordara para Ana, então sua namorada. Finalmente, incita Miguel a chamá-la de filha da puta e iniciam um batuque. Aqui, o estereótipo da mulher que assume sua sexualidade como “puta” adquire uma funcionalidade: reafirmar a ordem masculina e obliterar momentaneamente a desigualdade (social e racial) nela contida, para isso enfatizando as práticas em torno do masculino (a ironia às cartas de amor; a vontade de mandar matar o amante; assaltos; seqüestros). Além disso, projeta na mulher as tensões da ordem masculina/falocêntrica (representada pela prisão e pela militância política) e afirma a “culpa” enquanto instrumento de opressão (uma vez que, na ausência desta, a mulher ver-se-ia desimpedida em seu campo de ação). Sobre esta seqüência, é preciso afirmar, ainda, que a mesma é um dos poucos momentos no filme em que Jorginho é retratado enquanto sujeito da enunciação, visto que cabe a ele conduzir a conversa e afirmar a sua 98

percepção do papel de Ana como a preponderante (via de regra, Jorginho é um dos objetos construídos pela enunciação do poder de nomear representado por Miguel). Barco em alto mar. Convés com muitas mulheres. Câmera se aproxima de D. Helena, primeiro em plano médio, e depois corta para um close que evidencia sua tristeza. Voice over de Miguel (Caco Ciocler) descreve os pensamentos de sua mãe: “A vida que sonhamos determina a vida que vivemos. Minha mãe assistiu, perdida, a sonhos que não eram seus, mas que passaram a determinar uma vida que passou a ser dela”. Ao colocar D. Helena enquanto objeto discursivo e cinematográfico, deslocando a sua construção como personagem e agente, explicita-se mais uma vez o falocentrismo como instituição que oblitera a ação do feminino. Nesse ponto, ainda há a possibilidade de comparar a geração como categoria identitária, uma vez que se traça a oposição entre a jovem Ana, revolucionária, politizada e que assume a liberdade inclusive via sexualidade e D. Helena, que subsiste a desejos formulados no campo de ação de outras personagens masculinas – seu marido e seu filho, o que situa a família enquanto uma relação que atua no sentido de reproduzir tanto o falocentrismo quanto a heterossexualidade compulsória e, portanto, fundamental para a continuidade das relações de classe e inter-étnicas. O lugar da geração e da família enquanto práticas discursivas é acentuado na seqüência seguinte. O diálogo entre Miguel e sua mãe, durante a visita no presídio, é bastante elucidativo: “Mãe, não dá pra bancar o sofisticado aqui dentro. Tem que dividir o que tem”; “Igualzinho ao seu pai! Se ele estivesse vivo, ele ia adorar ouvi você falando assim!”; “Papai gostava de samba, não de revolução”; “Revolução mesmo vocês fizeram na minha vida”; “Dona Helena, tudo o que tem povo no meio!”; “Povo, bagunça e sofrimento!”. A relação contemplativa da hierarquia social – marcada pelo samba – cede espaço a uma radicalidade condizente com o momento político (endurecimento do regime militar, avanço político das esquerdas no plano internacional, Guerra Fria etc) e articulada via práxis militante pela geração de Miguel e Ana. Em seguida, ressalta-se a pessoalidade articulada, por meio da família, dentro de um regime marcado pelo discurso oficial não-personalista: “Miguel, os amigos do seu pai não têm a menor força com esses militares! E a minha família você sabe como é, né? Fica quieto! Você tá vivo, salvo!”. Retornando à dualidade expressa no título do filme, esta acompanhará toda a sua narrativa e marcará o conflito entre os dois ethos ligados à raça. Entre o primeiro choque já mencionado, o filme o liga ao conflito dentro da cadeia dos anos 70 entre 99

presos políticos e presos comuns (em sua maioria, negros) e ao drama pessoal contemporâneo de Miguel - ao ver sua filha envolvida com um chefe do tráfico em uma favela. Devemos fazer uma breve pausa para relatar como a narrativa articula o pedagógico e o performativo. É necessário fazer menção à análise de Benedito Nunes sobre a obra de Paul Ricoeur: “Como produtos da cultura, atalhando a hybris reflexiva da fenomenologia, os textos não proporcionariam somente a mediação do conhecimento de si mesmo. Proporcionariam, também, em última instância, o conhecimento do mundo por meio do mundo da obra. A coisa do texto é a sua saída para o real pelo próprio plano da configuração, que lhe garantiria o potencial de uma nova referencialidade”224.

Essa atividade de configuração, segundo Nunes, seria responsável por “integrar fatos dispersos na totalidade de uma história, liga num só conjunto fatos heterogêneos e, ainda – terceira função mediadora – sintetiza a dimensão episódica dos fatos com a dimensão da história como um todo” (op. cit., p. 14). Portanto, podemos interpretar o dualismo presente na narrativa de Quase Dois Irmãos enquanto uma atividade configuradora, que apreende as categorias raciais representadas dentro da totalidade de uma história e do pensamento social para explicitar o conflito entre os dois ethos. Por meio da atribuição de características aos personagens Miguel e Jorginho sendo o primeiro o formulador e seguidor das regras coletivas impostas dentro da cadeia (“Aqui não se rouba, não se fuma maconha e não tem pederastia”) e o segundo uma “tragédia anunciada” (tal como caracterizado por Miguel em uma voice over) e marcado pela lógica da sobrevivência – constroem-se as instâncias em que o par “branco-negro” tem sua identidade configurada. A branquidade aparece como o campo em que as regras sociais são formuladas, cabendo ao negro o papel de se adequar a elas. Sendo assim, o passado do filme teria sua “referencialidade” no poder em que a branquidade se apóia para nomear a realidade e formular regras dentro e fora do microcosmo do presídio. Tendo analisado como o filme relaciona as três épocas retratadas, indaguemos sobre como o tempo é construído internamente em cada época. Plano geral mostra roda de samba em fotografia amarelada e indicando “1957 – Favela Santa Marta”. Menino

224

NUNES, Benedito. Narrativa histórica e narrativa ficcional. In: RIEDEL, Dirce Côrtes. Narrativa, ficção e história. Rio de Janeiro, Imago, 1988, pág. 15-16.

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branco sorri para pai, que está circundado por sambistas negros. Todos cantam: “Quem me vê sorrindo, pensa que sou alegre”. Jogo de futebol no presídio da Ilha Grande. Letreiro “1970” é mostrado. Presos vivem a rotina do lugar, marcada por regras. Deputado Miguel visita o traficante Jorginho, cujo letreiro “2004 – Presídio de Segurança Máxima Bangu I” indica a proximidade temporal entre fato e espectador. O que essas passagens possuem em comum? O tempo cíclico, experimentado pelos personagens como se estes reproduzissem um lugar da “origem” – o Éden - e, portanto, ao qual deveriam retornar. O tempo como ciclo é enfatizado em uma superposição temporal feita pelo filme: na cadeia de 2004, Jorginho (Antônio Pompeu) pergunta: “A que devo a honra da visita, Doutor?”, ironizando o termo “Doutor”, ao que Miguel (Werner Schünemann) contesta: “Pára com este Doutor, Jorginho!” e novamente recebe uma observação irônica: “Ou você prefere que eu te chame de companheiro?”. Corte para jogo de futebol na favela Santa Marta. Jorginho (Pablo Belo) “ginga” na frente de Miguel (Bruno Abraão), o dribla é dá um chute para o alto. Câmera mostra bola em plano destaque. Envolta por uma fotografia amarelada, a bola tem sua trajetória acompanhada de um match cut (com a transformação para uma imagem cinzenta). Miguel (Caco Ciocler) joga futebol em uma partida no Presídio da Ilha Grande. Desse modo, enfatiza-se a malandragem como uma forma de sociabilidade entre classes exaltada justamente por apaziguar possíveis conflitos oriundos de diferenças sociais, raciais, de gênero, religião etc, ao mesmo tempo em que se evidencia o seu papel de conservadora de uma ordem social. O tempo como ciclo é evocado por Miguel durante sua prisão na “surda” (hoje, seria a “solitária”). Após ser trancafiado devido a uma confusão durante a visita dos parentes, Miguel relembra sua infância e seu convívio com o espaço da favela cantando um samba: o bater de suas mãos é cortado pela sua imagem como criança em uma roda de samba na favela, acompanhando o casal de mestre-sala e porta-bandeira mostrado no início do filme (“o ódio não apaga o meu universo! É a revolução em sua legítima razão!”; “é o samba prestando sua homenagem aos heróis da liberdade”), sendo a imagem relacionada a povo alternada a palavras como “revolução”, “heróis” etc – o que revela o caráter prospectivo do discurso de Miguel e, simultaneamente, o modo como o povo é percebido no mesmo. Todavia, esse aspecto cíclico do tempo é “quebrado” na narrativa através de um fato que o “interrompe” e instaura nele uma continuidade. Como o filme realiza essa operação? Nas três épocas, lembrando o papel do negro e do branco. Seja em 1957 101

através do lamentar das mulheres (já explicado neste texto), seja na década de 70 pelo acirramento dos conflitos étnicos na cadeia, cujo clímax é a construção de um muro dividindo a galeria em duas partes, seja pelo romance de Deley – traficante negro –com a filha branca de Miguel, a instabilidade produzida no tempo cíclico e evidenciando uma continuidade neste produz a visibilidade do conflito racial no qual os personagens se reconhecem enquanto agentes. Nada como a fala de Jorginho na cadeia para ratificar o exposto aqui: “Rico pra lá, pobre pra cá! Branco pra lá, preto pra cá!”. Lembremos, ainda, que, durante a primeira briga entre presos comuns e políticos (logo em seguida avaliada), a ofensa racial se faz presente: “Aqui, meu irmão, a gente tem que mostrar valentia é com a administração do presídio. Aqui é todo mundo igual!”; “Igual é o caralho! E eu lá tenho cara de índio?” (Pingão, interpretado por Babu Santana). Deter-nos-emos no conflito entre presos políticos e comuns para tentar compreender como a questão racial é aqui desenvolvida. Partindo da noção de senso comum como uma objetivação partilhada da realidade e como a possibilidade de ordenar o caos das múltiplas subjetividades225, poderíamos inferir que as regras de sociabilidade então impostas na cadeia provinham do senso comum presente na práxis política, auto-referenciada como “revolucionária” e construída no embate cotidiano com a administração do presídio da Ilha Grande. A construção de “presos comuns” e “presos políticos” como categorias é mostrada na prisão de Jorginho. Este chega à delegacia algemado por dois policiais. Camburão estaciona em frente ao prédio e dele descem quatro jovens que se despem recusando a usar uniformes. Câmera opõe o close de Jorginho e o ato dos jovens: “Nós somos presos políticos! Reivindicamos o tratamento segundo a convenção de Genebra! Recusamos a usar uniformes!”. Fotógrafo que acompanha a cena é interpelado por militar: “A máquina ou o filme!”. Jorginho ri para um deles, que retribui. A diferenciação presente no senso comum, desse modo, foi apresentada ao espectador. As seqüências da greve de fome, da chegada de Jorginho à Ilha Grande e de seu espancamento pelos guardas constroem a luta num crescendo que ressalta o papel de Miguel enquanto protagonista: obtém sucesso na liderança da greve de fome; consegue inserir Jorginho nela e impedir que este seja assassinado pelos guardas, graças ao protesto (o bater das canecas na porta gerando um barulho insuportável) que lidera no momento que Jorginho é retirado a pancadas de sua cela. Quase Dois Irmãos confere à 225

Cf: BERGER, Peter e LÜCKMANN, Thomas. Os fundamentos do conhecimento na vida cotidiana. In: Op. cit., pág. 68.

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“luta” um papel de categoria analítica dessa objetivação partilhada na cadeia, transformando-a não apenas em instrumento retórico como também atividade configuradora do habitus, já que as referências a ela conferem ao enunciador um lugar de autoridade226. Essa enunciação encontra-se expressa no filme, através da voice over de Miguel no momento da deflagração da greve, alternada com a imagem do guarda (Jandir Ferrari): “não aceitamos mais essa situação, visto que representa a reafirmação do tratamento policial-repressivo, o que é amplamente facilitado pelo isolamento geográfico e social da Ilha Grande. Vendo esgotadas todas as outras formas de conseguirmos as nossas reivindicações, fomos impelidos a entrar em greve de fome, até que nos sejam garantidos os direitos fundamentais e respeitada a nossa dignidade de presos políticos”. A chegada de um contingente maior de presos comuns simultaneamente à conquista da liberdade por parte dos presos políticos - simbolizada no contraste entre a saída de Peninha e a chegada do bando de Pingão, o que é marcado pela semelhança da posição da câmera na porta do presídio nesses dois momentos, cuja profundidade de campo é a mesma - altera não apenas a demografia do presídio como também a disputa pela construção do senso comum partilhado dentro dele. Aliás, a relação assumida pelo bando com o presídio já na chegada – o deboche-blasfêmia – configura uma alteração que será posteriormente acentuada (Jorginho se refere ao presídio como “palácio”, ao que Pingão responde “vim conferir a minha suíte presidencial” e, ao ouvir a ordem do guarda, retruca: “olha o cara querendo gorjeta!” sendo acompanhado pelo riso de todos os presentes). O primeiro contato entre o “comitê de recepção” dos presos e o bando de Pingão antevê a relação conflituosa entre os antigos e os novos presos. Durante um jogo de dados do bando de Pingão, a interrupção dos presos políticos para anunciar as regras da cadeia revela-se um malogro. Miguel anuncia que ele e os outros presos fazem parte da “representação do coletivo” e que veio informá-los das regras para que os novos presos se integrem o mais rápido possível, ao que Pingão constata: “ah, são vocês que mandam 226

Devemos fazer uma breve menção à crítica de Bourdieu aos ‘interacionistas’ (dentre os quais podemos situar Berger e Lückmann), afirmando que estes, ao enfatizar a interação social como a experiência mais importante no contato direto com os “outros”, se esqueciam de que o poder de nomear situa-se no embate entre diversos campos e entre as diversas posições ocupadas pelos agentes no espaço social. Neste trabalho, esta crítica será assimilada no sentido de não apenas interpretarmos as construções dramáticas das personagens como ‘interações’, como também tentar avaliar como as práticas discursivas são disputadas por diferentes agentes e em relação a certos campos (no caso de Quase Dois Irmãos, notadamente o campo político, presente através de seu aparato policial-repressor, de um lado, e da ideologia política de esquerda da década de 60, de outro).

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nessa porra aqui!”. Aloísio (Bruce Golemvsky) o interrompe: “aqui ninguém manda em porra nenhuma! Todas as decisões são votadas pelo coletivo!”. Inicia-se uma discussão na qual Miguel tenta evocar um lugar de autoridade recordando as melhorias no ambiente prisional graças à atuação dos antigos presos e suas ações na guerrilha: “Aqui não tem nenhum bundão não, senhor! Aqui todo mundo já roubou, já matou, já seqüestrou!”, ao que Pingão desautoriza de imediato através do escárnio coletivo: “Roubou o quê? Doce de criança? Matou barata no canto?”. Culmina-se com uma briga generalizada interrompida por Jorginho: “Pingão já entendeu, não é mesmo Pingão?!”. À oposição entre presos políticos e comuns, adiciona-se o dualismo na representação entre brancos e negros. Mesmo que não haja a identificação total entre presos políticos e brancos, de um lado, e presos comuns e negros, de outro, é possível inferir essa divisão a partir de uma composição étnica majoritária dos grupos e do próprio binômio Miguel-Jorginho, cujo referencial encontra-se na questão racial. A ida de Jorginho ao presídio é a primeira mise-en-scène dessa oposição: na cela daqueles que vão para a Ilha Grande, Jorginho protesta inutilmente contra a norma de não fumar maconha (“Peraí?! Não pode dar um dois?! Porra, mermão! Isso não é uma cadeia!”), sendo lembrado do “poder coletivo” dos presos que lá se encontram. Na sua chegada, ao gritar zombando os presos políticos, um guarda assim o interpela: “Vamos embora que isso aí não é contigo não!”. Mesmo após ironizar a greve de fome dos presos (“quer dizer que eu vou ter que beber água que nem um camelo e dormir feito um bode velho?”), adere a ela, o que lhe vale um espancamento, sendo esse episódio também é marcado pelo signo da raça. Guardas invadem sua cela aos gritos: “Seu negro filha da puta! Quer dizer que agora teu negócio é fazer greve de fome?!”. A música instrumental de Nana Vasconcelos - que remete aos espancamentos de negros durante a escravidão - acompanha as batidas do cassetete de um guarda e o sangramento de Jorginho, misturando-se ao som das canecas batidas contra as portas de aço e destacando a fala do guarda: “Negro subversivo! Não existe negro subversivo!”. O filme constrói a adesão de Jorginho às práticas discursivas dos presos políticos enquanto uma conversão, articulada principalmente a partir de Miguel, revelando o branco em seu lugar iluminista. Aos poucos, Jorginho passa a adquirir o vocabulário da política militante (a ponto de, após separação pelo muro, afirmar que o seu lado era o dos “políticos proletários”) e suas práticas (recolhimento de donativos para financiar fugas; recrutamento político dos presos comuns; condenação da pederastia – presente em uma cena em que Jorginho impede Pingão de continuar uma exposição vexatória de 104

presos vestidos de mulher e desfilando), sendo um importante aliado na conquista dos presos comuns e o mais resistente à separação dos presos, reagindo com uma fala virulenta e irônica à proposta “revolucionária” (“Quer dizer que os nossos filhos vão estudar na mesma escola, que a gente vai ser tudo igual? Porra! Se vocês não querem ficar com a gente nem aqui dentro!”). O performativo contido em seu discurso, dessa forma, ora alia-se à instância pedagógica da revolução (e, por que não dizer, da nação), ora expõe suas contradições. Além da militância política, o filme apresenta um tema correlato a este: o fim das utopias como prática discursiva de uma esquerda política. Após pegar alguns recortes de jornal, Miguel constata com espanto: “Mataram o Marighela”. Um súbito desânimo se abate sobre ele e Peninha, provavelmente pela percepção do fracasso da luta armada como estratégia política. Esse fim da utopia é trazido à representação pela construção do muro separando presos políticos dos comuns, signo da inviabilidade do projeto pensado por Miguel (metonímico da prática das esquerdas). Um aspecto da continuidade temporal construída em Quase Dois Irmãos referese à criminalidade. Alternando a formação do Comando Vermelho na cadeia dos anos 70 e seu desenlace nos conflitos das favelas cariocas atuais, é interessante notar a dupla operação historiográfica efetuada pelo filme: ao eleger a criminalidade em torno do tráfico enquanto drama e ao propor a busca de uma “origem” do mesmo, seleciona-se como a violência é apreendida pela história, ou seja, existe uma tentativa de se construir uma história do tempo presente delimitando o narcotráfico como “fato histórico”. Devemos salientar, no entanto, que isso ocorre em nome da contenção do material fílmico (cujo modelo afirmado é o produto audiovisual de duração de aproximadamente 90 minutos) e não pelo filme produzir uma história composta por “fatos”: ao contrário, este sublinha o cotidiano obscurecido nas narrativas históricas oficiais cuja base em “acontecimentos” é pautada pela linearidade e pela ausência de conflitos. Entretanto, para avaliar o papel desta criminalidade, o filme recupera duas categorias analíticas caras ao século XIX – civilização e barbárie – relacionando-as à questão racial. Tendo concedido o poder da enunciação a Miguel e o poder de formular regras aos presos políticos, contrapondo a estes a blasfêmia dos presos comuns e o ethos personificado por Jorginho (“lei de Talião” – “quem não tiver com a gente, a gente passa!”) e por Miguel (“amigo, eu não quero a morte como solução”), a representação, ao mostrar o assassinato em massa empreendido pelo primeiro contra o bando de Pingão, após a separação motivada pelas ameaças deste aos presos políticos, situa o 105

poder branco ao lado da civilização – a partir da constituição de redes de solidariedade e a apropriação do negro deste poder junto a barbárie – a instabilidade nas solidariedades dos presos comuns e do narcotráfico. A própria separação dos prisioneiros foi alvo de polêmicas entre os presos políticos. “A gente tem que pedir a separação da galeria. (...) A médio prazo, estamos correndo risco de vida. Eles estão cagando na nossa cabeça!” (Aloísio); “Isso é um pensamento pequeno-burguês de quem quer refazer a luta de classes aqui dentro. A gente tem que ganhar os caras nem que seja no método deles”; “Método? Que método? Você quer eliminar quem não concorda com a gente? É assim que os caras funcionam! Eles têm uma visão mafiosa do mundo!”; “Vocês estão tendo atitude de separar o povo!”. Aqui, o povo assume sua disjunção narrativa: ‘demonizado’ por uma visão e romantizado por outra (é necessário afirmar que a teratologia e o romantismo configuram duas visões bastante comuns formuladas por intelectuais a respeito do povo). Passemos a Narradores de Javé. Este também traz em seu título a instância pela qual a narrativa cinematográfica será mediada: o vínculo entre a memória e a narrativa oral dos moradores do vilarejo de Javé. A estrutura tri-temporal do filme é permeada pelo ato de narrar: Zaqueu, no presente, narra a história de seu povoado aos freqüentadores do bar, cujo narrador dotado de autoridade, Antônio Biá, recolhe as histórias míticas da “origem” do povoado partindo do relato de vários moradores. A memória ativada pelo ato de re-contar. O primeiro ponto a ser destacado dessas histórias é o embate entre tempo passado/memorial e tempo presente/contínuo, o que configura seu aspecto disjuntivo e, portanto, uma metáfora da narrativa nacional. De que modo esse embate é posto na mise-en-scène? Para isso, é preciso referir-nos à reflexão de Flora Süssekind sobre a busca pelas origens: A obsessão pela origem – entendida como começo histórico – o que pode trazer consigo? Linhas duplas, linhas de sombra, mapas e marcos de terras inundadas e formigueiros, em vez de reafirmação de essências e atemporalidades. Pois demarcar de forma concreta origens é simultaneamente historicizá-las e descartar possíveis solenidades. Ou, como observou Michel Foucault em “Nietzsche, a genealogia e a história”, se “a origem está sempre antes da queda, antes do corpo, antes do mundo e antes do tempo”, “do lado dos deuses”, “e para narrá-la se canta sempre uma teogonia”, o começo histórico seria “baixo”, “irônico”, “próprio a desfazer todas as enfatuações”(1990, p. 15).

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Em Narradores..., logo de início é apresentado o motivo por essa “obsessão pelas origens”: a necessidade de salvar a cidade de uma inundação e, por conseguinte, evitar seu desaparecimento. O leit motiv da narrativa de Zaqueu no presente sofre um corte que remete o espectador ao vilarejo, por meio do som das badaladas de um sino. A ágora reunida dentro da igreja tem sua caracterização calcada no sonoro - o ruído de inúmeras vozes gritando e falando ao mesmo tempo e no imagético – a oposição campo-contracampo entre Vado (Rui Resende) e Zaqueu, de um lado e os moradores, de outro. Essa alternância será acentuada pelo relato de Zaqueu sobre o provável destino de Javé (ser inundada pelas águas) e o imediato protesto barulhento dos moradores. Ante a situação calamitosa, Zaqueu, ao saber que a cidade só não seria inundada se fosse considerada patrimônio e, portanto, tombada, compartilha com os presentes sua idéia: tornar Javé patrimônio por meio da escrita de um livro sobre suas origens, as “histórias grandes que [os moradores] vivem contando e re-contando”. Em primeiro lugar, está traçado o paralelismo entre a origem do vilarejo e da nação pela retórica do patrimônio. Além disso, o próprio ato narrativo como a possibilidade de acesso à memória seria outro ponto em comum, porém com uma diferença: enquanto a memória coletiva227 do vilarejo se pautaria pela necessidade de lembrar para se afirmar como patrimônio, a memória nacional seria posta em evidência pelo esquecimento (das constantes tensões que a afligem, seja por questões de classe, raça, disputa de terras etc). Todavia, o aspecto de cientificidade que muitas vezes reveste a memória nacional, enquanto condicionante da formação de um patrimônio, também será imposto a essa memória local para que a mesma seja tombada. “Os homens disseram que só não inundam a cidade quando ela tem alguma coisa importante, de valor, história grande (...) Aí vira patrimônio e eles não mexem (...) Só que tem uma coisa: tem que ser, assim, científico!” (Zaqueu); “E que coisa é essa científica, Zaqueu?” (morador); “Científico é... É que não pode ser essas pataquaras, essas patranhas mentirosas que vocês gostam de contar!”. Desse modo, o científico aparece como algo externo à realidade do vilarejo e difícil de ser nomeado; a monumentalidade reivindicada pelos moradores se constitui num hiato entre a história oficial e a necessidade de salvar Javé.

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Categoria de Maurice Halbwachs.

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Sendo o povoado habitado por analfabetos em sua grande maioria, há uma dificuldade em se achar quem irá escrever o livro sobre o vale do Javé. Aliás, o livro como formato eleito para a narração das “origens” revela o peso da escrita no ideário nacional e na retórica estatal: somente os vestígios das origens podem ser acessados e estes devem, logo, possuir um assento, um registro. Há, ainda, o livro enquanto circulação de um saber letrado, sendo isso levado em consideração na escolha do “narrador” onisciente: mesmo a contragosto, os moradores elegem Antônio Biá à posição de escriba (lembrando que, ao pronunciar o nome de Biá, Firmino recebe muitas vozes de protesto na reunião dentro da igreja). A presença de Biá (José Dumont) como personagem pode ser avaliada a partir de dois modos: (des)autorização e blasfêmia. O filme, pela fala de Zaqueu, constrói Biá, inicialmente, pela blasfêmia: plano detalhe mostra escritos na parede de sua casa – com destaque para “morto em 1950”; “nascido em 2025”; “intelectuário (sic) e alcoólatra”, já apresentando a personagem por sua ironia. Além disso, este foi escolhido pois, mesmo tendo difamado por cartas parte dos moradores (o filme mostra, em close up, seu prazer em escrever as cartas para salvar o emprego de encarregado de um posto de correios), reconhecia-se o seu “estilo”. É bastante sintomático que se tenha escolhido um narrador de histórias “não-oficiais” para reunir a “história oficial”: o filme, por meio de Biá, retrata que a construção do lugar de autoridade do narrador, ao contrário de ser unânime, encontra-se em disputa com as outras histórias dos moradores, além do fato de que essa disputa pelo poder de nomear e de formular regras deve ser constantemente reencenada, seja pela re-elaboração das histórias, seja pela decisão de qual(is) história(s) deve(m) fazer parte da “odisséia do vale do Javé” e, finalmente, seja pela necessidade de reafirmar o domínio da escrita como legítimo e dotado de especificidade. A associação com a narrativa nacional é imediata, afinal, poderíamos conceder à história de Javé o lugar de metonímia da formação nacional brasileira, tal qual oficialmente concebida (não é gratuito que a primeira história exposta seja a de Indalécio, um colonizador português, sendo seguida pelas narrativas ‘desautorizadoras’ de Maria Dina, uma índia assimilada ao bando de Indalécio e pela de Indaleu, um guerreiro africano fundador de uma tribo). Todavia, ao enfocar uma personagem cuja blasfêmia é uma prática discursiva, o filme retira o oficial de seu lugar de neutralidade, afirmando-o como mais uma das possíveis formas de escrita. Vejamos como Biá processa o discurso presente nos relatos históricos da origem de Javé. Vicentino (Nelson Dantas), descendente “indireto” do patriarca e guerreiro 108

português Indalécio, retira de uma caixa (mostrada em plano destaque) dois objetos: uma imagem de São Jorge, saudada por Vicentino com um sinal da cruz, e um revólver antigo (“garrucha”), ambos signos da colonização portuguesa - as bases religiosa e militar, respectivamente – conferindo à “odisséia” uma autoridade referente à nação. “Essa garrucha que o senhor está vendo já esteve nos punhos de Indalécio” (Vicentino). Som e imagem de jovem guerreiro cortam a narrativa: interferência do tempo narrado no tempo da ação. “Indalécio era um homem seco, duro, sistemático, era um homem que nunca dizia sim quando queria dizer não!”. Imagem de homem a cavalo. “Pra ele, as coisas só tinham uma medida! Aposto que ele nunca descia do cavalo! Vivia em cima da sela, que era pra estar pronto pra guerra a qualquer momento!”. O arquétipo do herói ocidental se faz presente na história de Javé através da narrativa de Vicentino, sendo o mesmo caracterizado a partir de uma similitude entre o comportamento do narrador e do narrado (Vicentino tenta construir um ponto de visto “seco”, “objetivo”; no entanto, seu esforço não é bem-sucedido, uma vez que a catarse também se realiza pela ativação da memória, sendo isso percebido em seus gestos enfáticos). A imagem do jovem guerreiro Indalécio é superposta à voice over de Vicentino para que o espectador visualize o “retorno” às origens de Javé. Montagem alterna planos médios e closes de Indalécio a planos gerais com várias pessoas caminhando por um matagal. “Foi ele quem guiou nossos antepassados, um punhado de gente valente, que era sobra de uma guerra perdida. Tinham sido expulsos de suas terras de origem por ordem do Rei de Portugal, que queria tomar o ouro que era deles! Pois Indalécio, mesmo ferido, foi trazendo seu povo pra longe, em busca de um lugar seguro. Mas Indalécio não atinava com o lugar certo. Ele queria ir mais longe, distante de braço de governo, de Rei! Andaram dias, meses, trazendo nas costas o sino, que era a coisa mais sagrada que eles possuíam! E Indalécio mergulhou naquele mar de bois, escolheu o mais bonito e mais gordo. Matou! E levou pra matar a fome de nossa gente! Não disse uma palavra e... ei! O que você está fazendo que não está anotando? [dirigindo-se a Biá]”. A narrativa situa Indalécio na posição de sujeito histórico, dotado de características ligadas ao arquétipo do herói - bravura, luta contra o poder instituído, manejo habilidoso de armas – cabendo a seu bando o papel de objeto na narrativa das origens (a cisão é trabalhada na imagem, conferindo a Indalécio um destaque por planos mais próximos, enquanto seu bando era indissociado, “genérico”). Notemos que é a 109

mesma operação que a história oficial constrói sobre o povo – heróico, porém somente caracterizável por ações e, portanto, “sem cara”, sendo que o papel de “grandes homens” ou “heróis nacionais” escolhidos, via de regra, por critérios formulados dentro de uma elite intelectual-financeira. Na maioria dos casos, esta destacava um de seus membros – bravos, letrados e, logo, dentro de seus parâmetros – para reafirmar a ordem via história nacional. Essa construção entre herói e povo também é cara ao gênero épico, do qual o filme momentaneamente se vale (principalmente quanto as práticas se ligam à legitimação da “versão oficial” da história de Javé que, inclusive, é vista como a possível salvação). Pode-se ligar o épico ao patrimônio, uma vez que a exaltação das “origens” cara ao primeiro é determinante na nomeação do que pode ou não vir a ser tombado. Devemos, ainda, inferir que Vicentino, mesmo um homem simples, possui um status político relevante por ser descendente do patriarca fundador da cidade: eis a autoridade da qual se vale um homem branco, católico e de idade avançada e que, portanto, se posiciona de modo privilegiado dentro de um espaço social que concede autoridade à branquidade, à heterossexualidade e ao cristianismo. Vicentino reage ao descaso de Biá, que não anota nada do que está narrando. Adotando estratégias de blasfêmia, Biá contesta a história de Vicentino (“essa história de boi não tá muito boa, não! Quem vai dar um boi assim, de graça? Só se for boi de camelô!”) e se apropria desta, modificando-a: “os dias pareciam não ter fim e aquela gente guerreira, de tanta fome, quase não mais respirava. Aí passa por eles aquela boiada imensa, gorda, um dilúvio bovino! Eh, boi! Eh, boi! Aquele mundo, aquele mar de bois, capaz de fazer verter lágrimas (...) Mas tinha muita gente armada guardando aquele bovil. Bovil é um canil de boi. Então Indalécio pensou numa alta estratégia de guerra: (...) ele chamou dois homens de seu bando, os mais valentes. Mas ele não chamou por nomes... Ele usou onomatropias (sic), a língua dos bichos. [Biá reproduz o barulho de um passarinho e de uma onça]. Um se chamava Rolinha e o outro era Zé-daonça. E mandou os homens rastejarem, se lagartearem pelo bovil. Escolheram o boi mais gordo e o calçaram, arrastando-o devagarinho sem que ninguém percebesse, sem dar um tiro! Mas com tamanha bravura e esperteza!”. Confere à narrativa um lugar de saga coletiva e, mesmo não tirando totalmente o protagonismo de Indalécio, insere pessoas do bando que passam a sujeitos da história: eis uma disjunção na representação do povo – opondo a passividade do primeiro registro a uma participação maior no 110

segundo. O épico é parcialmente substituído pelo drama, porém não sem ser “punido” pelo olhar de Vicentino, bastante contrariado com a alteração de sua história. Entretanto, as duas histórias possuem em comum a exaltação do lugar da origem. Ao contrário de um mito distante da realidade dos moradores, o narrar das origens revela que este confere à vida cotidiana significação e, além disso, distribuição de poder e prestígio dentre os mesmos. Não pertencendo ao universo do cotidiano, as personagens presentes nas histórias míticas podem ser consideradas enquanto “arquétipos”, uma vez que são capazes de configurar valores a serem entronizados na vida comum (honra, honestidade etc) e através dos quais os processos de endoculturação serão avaliados (Biá é justamente punido por desobedecer o código de honra, sendo rejeitado e visto como outsider duas vezes). O uso da expressão “dilúvio bovino” por Biá, uma clara referência à bíblia, ao ligar religião, região e nação, remete a uma característica de ambas articulada na urgência da produção do livro-dossiê: o desejo de perpetuidade/eternidade que, num gesto cíclico, impele a procura pela “origem”. Contrapondo-se à história de Vicentino, Deodora (Luci Pereira) relata a atuação de sua ancestral Maria Dina (na sua história, interpretada também por Luci Pereira), justificando a ausência desta na versão “oficial” da fundação de Javé pelo fato de ser mulher. Acrescentaríamos aqui o fator étnico, já que Maria Dina era uma índia assimilada aos costumes portugueses do bando de Indalécio. No entanto, os procedimentos retóricos das versões de Vicentino e de Deodora são os mesmos (inclusive, o procedimento do filme assemelha-se: Maria Dina é destacada do bando por planos conjuntos, médios e closes; todavia, precisamos sublinhar que, enquanto Indalécio é mostrado à frente do bando e construído em sua relação com este por meio de campos e contra-campos, Maria Dina é um elemento destacado desse bando, como se fosse um “adendo” à história oficial). O tom de solenidade para com o patriarca e guerreiro é mantido, evidenciado na tristeza de Maria Dina diante da constatação do óbito de Indalécio (vai até o cavalo conduzido pelo patriarca e pega na sua mão gélida). Vendo o grupo passar fome, Maria Dina “desaparece por um dia e uma noite”. Retornando, o conduz onde foi levada pelos “pássaros da noite” e canta as divisas de Javé. Aqui, natureza e cultura se aliam na estrutura mítica: a primeira torna-se submetida à vontade de perpetuidade da segunda; isto é, a natureza enquanto ente a ser dominado pelos degradados/guerreiros em retirada para a reprodução da hierarquia social (algo semelhante ao que se passa nas imagens da nação brasileira, em que 111

paisagens narradas por viajantes, nos séculos anteriores à Independência, configuraram, ao lado de pinturas, gravuras e cartografias, a principal mediação na formação política nacional, havendo posteriormente a necessidade de se ordenar essas paisagens via narrativas na produção de sentido de uma nação em construção228). Um dado interessante é a interrupção momentânea do relato de Deodora por Vado, indignado com o fato de ela classificar os antepassados como “fugitivos”. Relembrando o aspecto de bravura destes, salienta que eles não saíram fugidos, mas sim “em retirada”, fornecendo uma explicação de ordem lógica: “em retirada porque eles saíram de cara para o inimigo” (o que reforça a monumentalidade da origem). Sobre essa relação entre natureza e cultura, é importante destacarmos as “divisas cantadas”: já mencionadas por Zaqueu e ironizadas por Souza (Matheus Nachtergaele), essa era a forma de domínio da natureza e de aquisição de propriedade. Ao atribuir à sua matriarca o fato de ter demarcado as divisas, Deodora lhe confere o poder de nomear o que era Javé; sendo assim, subverte o falocentrismo na nomeação do nacional e insere a mulher no jogo político, revelando que as mulheres são “menos ouvidas do que os homens [a respeito do projeto nacional]”(Walby, 2000, p. 259). O pedagógico que acrescenta mais um personagem à história oficial conjuga-se com o performativo que privilegia um narrador que explora as fissuras das fronteiras da nação. Entretanto, isso não passaria incólume. Além de não conseguir obter a atenção de Biá (este dorme durante sua narração), sua história seria em seguida ridicularizada por Firmino. Incorporando a blasfêmia à retórica da busca pelas origens, Firmino se valerá do maior limite a ser transgredido por esta: a escatologia. “Indalécio não morreu em cima do cavalo... Morreu foi agachado, por causa de uma disenteria... E sabe quais foram de verdade as últimas palavras de Indalécio? “Viver de tanto em tanto... pra morrer cagando em todo canto!” Cagando em todo canto!”. Gargalhadas dos moradores acompanhadas por uma crise de risos de Biá (mostradas em closes e em planos médios, o que acentua a comicidade da desautorização e o aspecto farsesco da intervenção de Firmino). Aliás, associa-se a narrativa deste a uma interferência visual e sonora: a fotografia amarelada contrastada ao ambiente da casa de Deodora e o barulho de cigarra à voz de Firmino, o que situa sua fala no plano de oposição às narrativas já veiculadas de Indalécio e Maria Dina. O jovem Indalécio, de branco guerreiro montado em um

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Eis a tese defendida por Flora Süssekind em O Brasil não é longe daqui: o narrador e a viagem.

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cavalo, passa a ser um nordestino montado em um jegue (o próprio Firmino), além de o sofrimento do bando - exibido em planos gerais retratando o esforço destes em caminhar e arrastar o sino - dar lugar a uma alegria exposta nos gritos e na cantoria do “patriarca” reproduzidos pelo grupo. Ao saltar do jegue, solta uma flatulência sonora e, desesperado, corre até o matagal para defecar. “Ih, de novo?” (mulher do bando); “Ô, disenteria da molesta!” (Indalécio), segurando a barriga. Câmera evidencia uma profundidade de campo a partir de seu movimento apressado. Depara-se com uma mulher índia e velha deitada em um triângulo desenhado por pedras vermelha, Música regional acentua o suspense da cena. “E o que é isso que ainda fala?” (Firmino); “Não é isso, é essa! Maria Dina! Quem é ocê?” (Maria Dina aparece como uma velha louca que conduz um rito de possessão) “Nós somos gente guerreira, gloriosa, que saímo fugido... quer dizer, fugido não, saímo foi em retirada! Expulsaram a gente das nossas terras porque tinha ouro e pra longe nós caminhamos por mais de...” (Firmino). É fortemente interrompido por um “Psiu!” prolongado de Maria Dina. “É o sinal! Hi hi! É ocê mesmo, home! Que eu tenho de guiá e alumiá!”. Gargalhadas mútuas, interrompida por outro “psiu!” truculento de Maria Dina. “Mas pra me guiá e alumiá já basta esse sol de cada dia, vice?”; “Mas de noite ocê não tem quem te alumia! Aqui! Ocês fica tudo aqui! Porque quando clarear o dia, não vai ter nenhum pássaro piando, mas quando vier a outra noite [corta para Firmino contando na casa de Deodora e sua fala se superpõe à de Maria Dina] os pássaros vão avoar invertido, ao contrário, tomando a noite pelo dia, levando ocês tudo pras terra que serão sua, pra ocês viverem em graça, enterrar seus mortos! E vão levar ocês pro quinto dos inferno! Há há há !”. O deitar de Maria Dina nas pedras é reproduzido por Firmino no presente e interrompido subitamente por Deodora, que fica indignada com a blasfêmia. Mais uma vez, a relação entre natureza e cultura é realçada: porém, dessa vez, ao invés de legitimar uma narrativa oficial, a vôo “ao contrário” dos pássaros, remetendo os ouvintes ao fantástico, acentua a farsa enquanto elemento articulador da história de Firmino, o que a coloca como contra-narrativa à monumentalidade da “odisséia” de Javé. Além disso, o protagonismo concedido a um nordestino e o paralelismo possível entre o bando de Indalécio e a imagem de retirantes consolidada via literatura regional (Graciliano Ramos, por exemplo) deslocam a branquidade enquanto lugar de autoridade historicamente consolidado e situam o grotesco enquanto forma narrativa de ‘inversão’, 113

atribuindo às partes baixas e às necessidades fisiológicas um papel de recordar aos ouvintes o humano presente nas meta-narrativas. A possessão como elemento narrativo remete a uma outra categoria identitária: a religião. Aqui, ela é usada para marcar a blasfêmia na caracterização da matriarca Maria Dina, o que evidencia o desprestígio dos ritos de possessão diante de uma religiosidade pautada pela referência à Igreja Católica. Além disso, vários signos lingüísticos e nãolingüísticos ligados à religião afluem a Narradores de Javé, sendo o sino alçado a objeto mítico – uma vez que está presente antes mesmo da fundação de Javé, acompanhando o sofrimento dos antepassados. Este ainda faz-se presente no drama vivido na Javé em vias de desaparecimento (marcando os momentos dramáticos do mesmo – a reunião na igreja, o louco visionário que o toca com fúria) e, ao final, é levado pelos moradores, configurando um signo de uma possível memória do futuro, ativada na memória oral-lingüística (tal qual exposta na fala de Zaqueu no bar atual e por certas expressões usadas pelos moradores de Javé como “exu de galinheiro”; “tapioca de exu”; “quinto dos infernos”). A escatologia do relato de Firmino também pode ser considerada pela perspectiva religiosa, visto que o “fim do mundo”, representado pelo fim do microcosmo de Javé, faz-se presente nos três tempos representados no filme. Das práticas escatológicas (defecar, flatulência etc), passamos à representação escatológica cuja matriz religiosa entra em conflito com as outras histórias sobre as “origens javélicas”: do Dilúvio já mencionado por Biá, Firmino passa ao fantástico para salientar o destino dos moradores de irem “para o quinto dos infernos”, fundindo passado e presente. Por fim, a escatologia ligada à religião é sublinhada, ainda, na cena final, em que os moradores assistem impotentes ao alagamento da cidade (lembrando que as únicas construções possíveis de serem parcialmente vistas são a igreja e o campanário). A disputa entre Firmino e Deodora sobre qual história deve estar no livro também articula a escatologia, desautorizando o status de herói de Indalécio: “eu também ouvi isso, que Indalécio morreu cagando. Era um homem valente, mas morreu mesmo foi se esmerdeando!” (Dona Maria, moradora de Javé que escuta as histórias); “Eu não to nem aí, minha filha! O cu era dele, cagasse à vontade!” (Deodora). Após a votação proposta por Biá, não se consegue decidir qual história agregar à narrativa das origens e Biá, bastante irritado, interrompe a confusão instaurada ressaltando o seu lugar de autoridade e evocando em seu favor o discurso científico, cuja suposta 114

neutralidade validaria seu comportamento: “porque isso é um assunto de ciência. Carece de mais raciocínio”. Outra história que compete com as ficções de fundação já apresentadas é contada em uma aldeia quilombola próxima ao vilarejo. Pai Cariá, o “preto velho” (arquétipo presente em várias narrativas audiovisuais no tocante aos cultos afros) fala em um dialeto africano e usa objetos ritualísticos, sendo traduzido por Samuel, também morador do antigo quilombo e amigo de Biá, todos presentes em uma roda feita debaixo de uma árvore. A primeira surpresa de Biá é a qualificação por parte do velho de “esta parte da África”, referindo-se ao Brasil. Este pergunta se o velho sabia se seus antepassados faziam também parte do bando de Indalécio, obtendo a resposta “Indaleu”, um chefe guerreiro africano responsável por guiar o povo de volta à outra parte da África, mas que, ironicamente, desconhecia o caminho. Pai Cariá começa a narrar cantando a história do patriarca Indaleu, que se passa dentro de um rito de possessão celebrado por meio de tambores e mostrado em planos médios e conjuntos muito rápidos (a dinâmica da palavra entoada segue o fluxo da memória, esta acompanhada pela narrativa cinematográfica). Biá, um pouco impaciente com os cânticos, pergunta se Maria Dina ou outra mulher fazia parte do bando, ao que obtém como resposta “Oxum”. Câmera se afasta de roda e uma íris interrompe o tempo em que se narra e corta para o tempo narrado (acentuando o distanciamento entre tempo presente e tempo memorial). Voice over de Pai Caria e de Samuel relatam a saga dos guerreiros africanos até o encontro com Oxum, celebrado em uma cachoeira, na qual homens e mulheres negros banham-se alegremente. Imagem congela e retorna Pai Cariá, que passa a ficar mudo. Mobilizando uma mitologia africana, Pai Cariá repõe a Javé sua origem “nobre”, validada pela honra de guerreiros e falocêntrica. No entanto, seu gesto pode ser considerado metafórico em relação à narrativa nacional pois, ao considerar o Brasil como “parte da África” não o faz somente pela via da geografia, do espaço, como também repõe ao africano seu lugar nas origens. A necessidade de se reviver via memória oral a saga dos africanos projeta-se no presente em que a questão racial evidencia o papel dos diversos grupos étnicos na composição nacional e revela as operações disjuntivas quanto às suas supostas diversas “origens”. Desse modo, ao contrapor as diferentes versões cujas bases étnicas remontam ao mito da democracia racial – brancos, negros e índios – Narradores de Javé pode ser considerado enquanto uma contra-narrativa à nação, uma vez que explicita claramente seus limites e ambigüidades. 115

Outro ponto deve ser destacado a respeito do relato de Pai Cariá: este se situa na cisão entre memória e linguagem como central no seu discurso, uma vez que coloca em xeque a possibilidade de a segunda acompanhar o fluxo da primeira. Assim, a saga dos africanos, cuja funcionalidade no presente nos é apresentada via linguagem verbal, necessita do suporte imagético em sua construção e, mais, os constantes cortes e elipses da imagem remetendo-se à incapacidade de a linguagem articular a memória em sua totalidade – apenas seus fragmentos devem ser a duras penas reunidos via linguagem na “apresentação narrativa”. Politicamente, ressaltar o aspecto de seleção operada na relação entre memória e linguagem nos auxilia na compreensão dos lugares de fala. “Quem narra o quê” adquire uma produção de sentido fundamental que coloca a nação como uma arena em que diversas identidades (formuladas por meio de discursos de resistência, de legitimidade ou de projetos) são projetadas e, além disso, a própria retórica nacional disputando com outras os lugares de autoridade. Entretanto, além dos mitos de origem, Biá recolhe outras histórias aparentemente alheias a eles. Na casa de Gêmeo e do Outro (dois irmãos gêmeos que, por razões familiares, assim se chamam um ao outro), Biá ouve do primeiro: “uma terra pode valer pelo que ela produz, mas ela pode valer muito mais pelo que ela esconde”, referindo-se aos restos mortais de Indalécio. Conta, ainda a história dos gêmeos Cosme e Damião e o amor deles por Margarida. O episódio da bebedeira no casamento e a noite de amor da qual todos se esqueceram devido à bebida, causando a expulsão de Damião (uma vez que Cosme, além de ser o dono das terras, havia se casado com Margarida). Por isso, a qualificação do primogênito de “Outro” (o “filho da dúvida”) e do segundo filho de Gêmeo. Recordemos que o corte entre presente e passado se dá por meio de uma fotografia em preto e branco focalizada pela câmera em plano destaque (e o passado é retratado com a mesma tonalidade da fotografia, ao som de uma música regional). A segunda história é a de Daniel, jovem pescador, e seu pai Isaías. Fragmentos esparsos (na verdade, planos desarticulados que mostram o pai ora deitado, ora comendo, ora rechaçando um homem que invadiu a cavalo sua casa) são compostos na revelação de um trauma de Daniel: este viu o pai assassinar um homem. Duas histórias desconexas das narrativas míticas que, no entanto, re-encenam valores positivados nestas: a importância da propriedade; a descendência patrilinear (a prática que liga reprodução, raça e propriedade); a honra como conduta ética; a legítima defesa; a centralidade do homem branco como autoridade; a palavra como origem. Desse modo, 116

o ato de contar dessas duas histórias opera como um rito cosmogônico que revive o tempo original no presente, sendo que ocorre uma confusão entre narrativas cotidianas e nacionais (visto que ambas possuem esse aspecto cosmogônico de relembrar as origens para posicionar seus agentes no respectivo espaço social). Para finalizar esta parte, faz-se preciso uma retomada de algumas reflexões. Em primeiro lugar, devemos reconhecer que Quanto vale ou é por quilo?, ao resgatar casos ocorridos durante a escravidão e esquecidos nos arquivos estatais, Quase Dois Irmãos, ao retratar a história oficial do ponto de vista do vencido (a cena em que Miguel lê um recorte de jornal que afirma “Não existem presos políticos no país” claramente situa o espectador nesse sentido) e Narradores de Javé, ao colocar no centro de sua narrativa os via de regra excluídos da narrativa monumental ligada à nação, operam como contranarrativas que deslocam a nação do lugar tradicionalmente ocupado por esta e do discurso aparentemente neutro do qual é revestida. Esse papel de contra-narrativa é acentuado pela relação entre tradição e modernidade construída diegeticamente. Apresentadas como superpostas em Quanto vale..., no qual ambas são rearranjos de uma elite branca para se manter no poder e cujas hierarquias sociais, pautadas inclusive pela raça, refletem a pessoalidade das redes de solidariedade; em Quase Dois Irmãos, a tradição, mesmo que marcada por diferenças étnicas e de classe, é mostrada como o Éden à qual as personagens devem retornar; Narradores..., por sua vez, revela uma modernidade irresponsável, brutal e aniquiladora dos valores e do ethos tradicional, cabendo o livro ser um registro dessas tradições fadadas à extinção (é interessantes constatarmos que Quase Dois Irmãos e Narradores... retratam as conseqüências do mesmo período histórico, a ditadura militar229, em dois aspectos totalitários: a repressão e a tortura, de um lado, e a lógica do desenvolvimentismo varrendo os modos tradicionais de vida, de outro, dotando a mesma de violência material e simbólica – e realizando uma operação historiográfica semelhante, ao retirar da ditadura militar seu ranço de “fato histórico” e evidenciar nela uma série de práticas discursivas e não-discursivas que a questionavam em sua dimensão teleológica e prospectiva).

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Mesmo que Narradores... não represente diretamente o período da ditadura militar, retrata um de seus aspectos até hoje perpetuados: as relações de poder entre um Estado autoritário e seus cidadãos pautadas por um ‘desenvolvimentismo’ (não queremos, aqui, conceder a esse período o lugar de ‘origem’ desse discurso, já que podemos detecta-lo em outros períodos históricos como o governo Vargas e Juscelino Kubitschek; todavia, este foi um dos principais lemas do mesmo).

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Após essa breve inflexão sobre os usos do tempo em relação à nação, vejamos como os filmes utilizam-na para encenar conflitos no tempo presente e, por conseguinte, politizar os discursos articulados em seu interior.

II ENTRE O COTIDIANO E A POLÍTICA: REPRESENTAÇÕES DA NAÇÃO E DE SUAS FISSURAS NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO No livro O Brasil visto de fora, o brasilianista Thomas Skidmore, por meio de uma revisão do pensamento social brasileiro que arregimentou o debate a respeito da formação de uma identidade nacional nos séculos XIX e XX, confere às categorias raciais um lugar central em sua argumentação. Infere que a raça sempre esteve presente no pensamento teórico sobre a realidade brasileira, para tanto realizando um estudo desde os defensores da tese do branqueamento do século XIX e início do século XX (Romero; Nina Rodrigues; Oliveira Vianna; Paulo Prado) até a revisão do mito das três raças pela Escola Paulista (Florestan, Ianni, Fernando Henrique Cardoso) e posteriormente reforçada por outros intelectuais (Darcy Ribeiro; DaMatta; Ortiz), passando pelos estudiosos construtores deste mito (Freyre; Buarque) e seus difusores (Vianna Moog). Evidentemente, não o faz sem recordar ao leitor os usos políticos dessas teorias raciais. Uma discussão particularmente interessante ao nosso trabalho refere-se à relação entre raça e classe. Retomando uma reflexão iniciada por Florestan Fernandes em A Integração do negro na sociedade de classes - na qual o sociólogo avalia a passagem do negro da sociedade estamental para uma sociedade de classes a partir da análise de tipos como “negros do eito” e “negros da Casa Grande” – Skidmore elenca algumas razões para o obscurecimento do estudo das relações raciais: a) a postura da elite em reafirmar o mito da democracia racial; b) a repressão oficial, encampada desde o governo Vargas até a ditadura militar, o que restringiu a atuação de movimentos ligados a minorias étnicas; c) a centralidade que a esquerda brasileira atribui à classe - tanto no estudo quanto na transformação da sociedade – e, por isso, rechaçando o debate sobre raça. Essa conjuntura foi expressa, por exemplo, na ausência do quesito raça no Censo de 1970, sendo até hoje reproduzida amplamente nos meios de comunicação, no sistema educacional e nas políticas públicas. Eis como Skidmore se refere aos discursos raciais no Brasil: 118

Categorias raciais não se definiam exclusivamente pela ancestralidade, mas por uma combinação de fatores, inclusive aparência física, status aparente na vida e, a um grau limitado, ancestralidade. Isso contrasta com a situação nos países citados [EUA, África do Sul], onde a raça se definia pela ascendência e era certificada em registros legais. (...) Para lidar com essa realidade, a elite brasileira desenvolveu uma ideologia assimilacionista para racionalizar de facto a sociedade multirracial. (...) A ideologia assimilacionista, chamada comumente de branqueamento pela elite após 1890 (Skidmore, 1989), consolidou-se no começo do século XX e continua a ser a ideologia predominante no país hoje. (...) Na prática, o pressuposto assimilacionista levou o governo a tomar uma medida reveladora: omitir a raça do censo. (...) Uma vez que não havia dados, não poderia haver discussão sobre relações raciais (2001, p. 153-157).

Como os filmes aqui analisados se situam diante deste panorama teóricoconceitual sobre raça? E mais: como eles ligam as práticas cotidianas e políticas às categorias raciais? Em Quase Dois Irmãos, a temporalidade tripla, ao privilegiar os dois protagonistas racialmente definidos, transitará entre a afetividade e o conflito. “Temos duas vidas: uma a que sonhamos, outra a que vivemos”: a voice over de Miguel apresenta uma cisão entre utopia e práticas cotidianas que pode ser interpretada, dentre outros, como a oposição entre o sonho da “democracia racial” e as práticas de conflito (insultos, agressões, mortes, arbitrariedades praticadas por órgãos estatais etc) geradas em torno da raça como categoria de construção da hierarquia social. Essa distensão é ampliada pelo grande flashback no qual o filme se pauta: após o carro de Miguel entrar por um túnel, constrói-se uma montagem que articula diferentes épocas de um modo muito rápido (cortes secos, match cuts etc), ligando os diferentes status de Miguel e Jorginho: filhos de classe média e baixa (1957); militante político e preso comum (1970); deputado e chefe do narcotráfico (2004). A ordem patriarcal assume, aqui, sua continuidade sem, no entanto, obliterar sua dimensão racial, apontada no fato de que Miguel representa a ordem estabelecida e Jorginho a ordem “paralela”. O diálogo entre as personagens, durante uma visita na cadeia de Bangu (2004), faz-se presente em todo o filme, pontuando sua narrativa. “Afinal, o que é que você veio fazer aqui, Miguel?”; Miguel (W. Schünemann) retira de uma pasta alguns documentos e diz: “Nós conseguimos financiamento internacional pra construir centros culturais em comunidades carentes. Se você me apoiar, eu posso conseguir uma pro Morro dos Macacos. Pode ser uma alternativa pra esse bando de moleque desempregado”; “Qual é, Doutor? Tu tá querendo construir um projeto social ou salvar sua família?”. O 119

assistencialismo via patrocínio privado é representado como a forma atual de contato inter-classes (e inter-racial) e, na verdade, uma releitura da prática da caridade (que pautou, via religião, as relações raciais e sociais desde a colonização, não esquecendo da violência material e simbólica presente nesta). Desse modo, é apresentado como um atenuante dos possíveis conflitos em torno do estabelecimento da ordem social, para isso aliando cultura e economia (práticas culturais enquanto ‘recurso’ disponível nas trocas entre as ordens). Em Quanto vale..., a democracia racial enquanto formuladora de projetos é questionada em sua diegese por meio da construção de suas personagens, chegando muitas vezes a ser negada. Apresentado em um sonho pela agonia no tronco230 e pela ligação com o tempo presente (Arminda acorda no meio de uma festa em uma favela), o mal-estar de Arminda (Ana Carbatti) é presente em suas ações ao longo do filme, configurando o ‘ressentimento’ como uma possível mediação inter-étnica e interclasses. Arminda almoça em um restaurante de um luxuoso hotel com um político da esquerda, que relata pedagogicamente como a direita se articula para se manter no poder e apontando nas senhoras ricas que almoçam ao lado deles (interpretadas por Joana Fomm e Ariclê Perez) a exploração da miséria via corrupção (ou o ‘desconto no imposto de renda’ como lavagem de dinheiro): sentindo-se muito mal, Arminda quase implora para ir embora. Na seqüência seguinte, Arminda reclama com Lourdes sobre os computadores destinados ao centro comunitário: velhos, não estariam funcionando (além de já ter ciência do superfaturamento) e, assistindo a gravação de um comercial com crianças negras, um plano subjetivo revela ao espectador seu mal-estar in crescendo.

(imagem mental na qual Arminda vê as crianças amarradas a cordas

espessas, como se fossem escravas). Há uma identificação entre o mal-estar de Arminda e o jogo de ocultação/revelação feito pelo filme acerca de suas personagens e suas ações. Por conseguinte, opera-se um processo de identificação entre Arminda e o espectador, sendo o mesmo acentuado no instante em que esta contempla, em uma praça de São Paulo, uma senhora puxando um carrinho de mão com quinquilharias e uma criança sentada: após closes de mendigos (negros) sentados em um banco, acompanhados por um cântico religioso, cuja fonte sonora a câmera mostra sendo essa senhora. Arminda se 230

O registro do sofrimento da personagem beira o documental, já que a seqüência é uma ilustração dos instrumentos de tortura empregados na escravidão.

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projeta arrastando o carrinho com uma máscara-de-flandres e amarrada por uma corda, fundindo os tempos passado e presente (Arminda escrava e Arminda empregada da ONG). Já Narradores de Javé, por sua vez, ao ressaltar o drama de uma população predominantemente mestiça que vê a existência de seu vilarejo ameaçada, situa a questão racial de um modo sutil: a cientificidade, o Estado e o desenvolvimento ligados a uma concepção etnocêntrica provocam nos moradores a necessidade de escrever a história do lugar para tombá-lo, porém a presença dos primeiros se dá, em boa parte do filme, apenas no discurso das personagens (apenas quase no final os engenheiros da represa finalmente chegam à cidade). Retornando à seqüência da ágora na igreja, Zaqueu fala: “É isso mesmo, gente! Vão construir a barragem, Javé tá no caminho das águas! Logo isso aqui tudo vira represa! Nós vamos ter de sair!”; ante os protestos dos moradores, Vado continua a explicação (sendo sua fala intercalada com vários closes dos moradores, ressaltando seu aspecto multi-étnico e mestiço): “Os engenheiros abriram os mapas na nossa frente e explicaram tudinho pra gente nos pormenor! Tudo, com os números, as fotos, um tantão delas! Iam explicando pra gente os ganhos e os progressos que a usina vai trazer! Vão ter que sacrificar uns tantos pra beneficiar a maioria! A maioria eu não sei quem são, mas nós é que somos os tantos do sacrifício!”. À imposição da ratio estatal etnocêntrica, presente nas fotos, nos números e nas “explicações” a respeito de um suposto progresso, o filme contrapõe a resistência coletiva à iniciativa de alagamento, ressaltando, ainda, um distanciamento entre a práxis política e a lógica desenvolvimentista (desse modo, a ‘democracia racial’ explicita os agentes e os objetos do “sacrifício” e se situa de modo estranho ao cotidiano das massas, cuja descrença é expressa por Vado – “a maioria eu não sei”). As relações de poder autoritárias, aqui, devem ser compreendidas em um outro regime discursivo: da sociedade patriarcal, cuja figura central era o chefe político local (que Narradores... até insere em sua diegese, porém sem o caracterizar de modo tão central) e cujas relações de poder eram marcadas por uma rede de solidariedade diretamente articulada (patrimonialismo), passamos a uma ordem estatal supostamente despersonalizada, cujos desejos de progresso devem ser levados a cabo, mesmo implicando a reafirmação da hierarquia social e o “sacrifício” de vários grupos. A desvalorização das narrativas orais (apresentada na fala de Zaqueu: “não adiantou nem eu explicar que aqui tem muitas terras adquiridas nas divisas cantadas”) contrapõe-se ao 121

peso do escrito (“fazer uma juntada nos documentos e dos fatos importantes pra provar pras autoridades porque Javé não pode ser afundada”), configurando mais um traço do etnocentrismo estatal. Em Quase Dois Irmãos, Juliana (Maria Flôr), filha de Miguel, o espera ao lado de uma cabine policial. Logo após, no carro, pai e filha discutem: “Você viu o perigo que acabou de correr? Se aquele guarda resolve não colaborar, você tava na cadeia!”; “Olha só quem tá falando em perigo!”; “Comigo era diferente! A gente tinha objetivo!”; “Ah, pai! To cansada das tuas historinhas”. Alguns minutos adiante, a conversa no carro reaparece: “Eu só queria entender o motivo! Será que é pedir muito? O motivo! Por que cargas d’água você insiste em andar com esse bando de homens machistas que se comem uns aos outros!” “Você não entende, pai, porque a gente é diferente!”; “Diferente?” “É diferente mesmo! Você é racista! Você só gosta de coisa de branco! Você queria que os caras fossem brancos, por isso vocês se foderam!”. Revelando o patrimonialismo presente nas relações entre o Estado (representado pela polícia) e os administrados/cidadãos, o filme explicita de que modos a hierarquia social é legitimada pelo Estado, de um lado, e auxiliada por este em sua manutenção, de outro. O racismo evocado por Juliana na discussão com o pai é, ironicamente, o que a impede de ir para a cadeia, além de a pessoalidade impressa no tratamento do guarda e de seu pai expressar que a ‘cadeia’ enquanto instrumento punitivo se aplica para determinados segmentos da população dos quais ela não faz parte (negros e pobres, o que situa a criminalidade como um discurso racial e socialmente mobilizado). Além disso, a geração é mostrada, ao lado de raça e classe, como uma categoria identitária capaz de nomear o senso comum nas relações cotidianas. Assim, o aspecto tri-temporal é percebido a partir do “choque de concepções” entre diferentes gerações da mesma família na apreensão desse mundo: o romantismo do pai de Miguel contestado pela luta e militância deste que, por sua vez, tem seu lugar de autoridade colocado em xeque por sua filha, ao explicitar a contradição da luta do pai e ao marcar seu lugar através de seus gostos (funk) e a nova sociabilidade entre moradores de favela e classe média (bailes funk). Devemos, ainda, mencionar que apenas a mãe de Juliana (Lúcia Alves) aparece (em relação ao tempo presente), para marcar o lugar de classe média - através da família nuclear enquanto reprodução da sociedade e das concepções ligadas a uma burguesia na enunciação sobre os conflitos nas favelas cariocas (neste espaço, aliás, nenhuma mãe reivindica seu lugar de autoridade): após o diálogo com o pai no carro, Juliana chega a 122

casa e encontra sua mãe preocupada, que a abraça (“Minha filha, isso não pode continuar assim!”) e, em outro momento, ao constatar um machucado de Juliana na testa, reclama (“Minha filha, francamente!”). Em Quanto vale..., há também uma diferença na relação entre classes possível de ser compreendida a partir do choque de concepções entre gerações. Panorâmica de prédios em São Paulo e voz em off de Arminda: “O problema, Ricardo, é com os computadores. O que está lá não é o que foi prometido”. Ricardo aparece na imagem e Arminda continua em off: “Então, esse dinheiro é um dinheiro público. Eu acho que você poderia me ajudar a resolver isso”; “Você tá me cobrando? Eu acho que você deveria estar bastante satisfeita!”; “Satisfeita? Tá bom, Ricardo. Faz um favor pra nós dois: pega o dinheiro extra dos computadores e faz uma nova compra de equipamento!”; “Meu amor, isso aqui é uma empresa! Vocês receberam os computadores e nós aumentamos a lista de projetos realizados! Só isso! Se vocês não sabem mexer com computador, aprendam!”; “Você é um puta dum cara-de-pau! Olha, Ricardo, eu tenho tudo no papel! Eu posso provar que você tá fazendo um belo de um caixa dois nesses projetos!”; Ricardo pega seu terno e anda por sua sala: “Você tá procurando inimigo no lugar errado! Eu posso te dar uma lista de pessoas que só sobrevivem graças ao nosso trabalho! Olha lá, se você resolve dar uma de heroína, você fode com o seu emprego e uma série de projetos pra pessoas que estão precisando de ajuda!”. Ricardo sai intempestivamente da sala deixando Arminda sentada e sozinha. Caminha até o elevador. Dona Judith (Miriam Pires) limpa vidro e pede sua atenção: “Eu preciso falar com o senhor de um problema meu. O meu menino tá preso e foi transferido pra uma cadeia no interior. Eu não queria faltar... Será que o senhor podia me liberar?”; “A senhora não se preocupe com isso. Fale com a Lourdes e diga que eu autorizei a sua folga”; tira dinheiro da carteira e o dá a esta. Dona Judith visita seu filho adotivo (Lázaro Ramos) na cadeia e estes conversam em plano conjunto: “Eu não acho certo a gente viver assim, sofrendo e parado, sem fazer nada. A gente também precisa passar um pouco de opressão”. Em seqüências anteriores, Dona Judith pauta suas relações com seus patrões pela afetividade (é apresentada por meio da subserviência – cena em que agradece Marco Aurélio pelo emprego, “o primeiro depois do derrame”). O afeto enquanto relação possível entre classes, dentro da rede de expectativas de uma geração, é substituída parcialmente pelo conflito como revelador do jogo socialmente estabelecido, sendo isso bastante claro na discussão entre Arminda e Ricardo. O mal-estar da primeira, traduzido em 123

ressentimento, eclode no primeiro confronto direto com a elite tecnocrata (representada por Ricardo) e, sendo assim, raça e classe são superpostas na apresentação da hierarquia social brasileira. Esta é relida ironicamente pelo pastiche do poema “Navio Negreiro”, de Castro Alves, feita pelo filho de Dona Judith. Câmera focaliza presos amontoados e se afasta lentamente, mostrando-o: “Esse é o nosso navio negreiro. Dizem que a viagem era bem assim. Só que ela só durava dois meses. E o principal: o navio ia terminar em algum lugar”. Fusão para close de Lázaro Ramos: “Na escravidão a gente era tudo máquina! Tudo máquina! Aí eles pagavam combustível e manutenção pra que a gente tivesse saúde pra trabalhar de graça pra eles! Agora, não! Agora é diferente! Nós somos escravos sem dono! Cada um aqui custa setecentos paus pro Estado, por mês! Isso é mais que três salários mínimos. Isso diz alguma coisa sobre esse país! O que vale é ter liberdade pra consumir! Essa é a verdadeira funcionalidade da democracia!”. Além da hibridização entre cultura de elite (poesia) e cultura de massa (cinema), a passagem revela, ainda, a possível politização da violência (desenvolvida no seqüestro de Marco Aurélio). É interessante contrapormos as representações em torno do samba e do funk enquanto elementos presentes em uma cultura popular urbana. Já dissemos que a roda de samba enquanto espaço de sociabilidade é representada, em Quase Dois Irmãos, como uma forma ‘ideal’ ligada à democracia racial231, sendo um espaço caracterizado pela ‘mestiçagem’232, no qual a Cinderela européia e seu príncipe são substituídos, na imaginação do garoto Miguel, pela porta-bandeira e pelo mestre-sala. O baile funk, por sua vez, apresenta uma ‘cultura popular’ mais internacionalizada (cuja referência ao funk e hip hop norte-americanos é evidente) e ligada à criminalidade do narcotráfico (no baile, são retratados jovens segurando pistolas, fuzis e metralhadoras cantarolando a 231

O antropólogo Peter Fry, retomando o pensamento de Freyre, afirma a democracia racial como um ideal presente na sociedade brasileira que se contraporia justamente ao racismo. Por isso, faz uma crítica a intelectuais representantes do movimento negro que contestam o lugar do “mito”, respondendo que este é uma prática discursiva que impede a sociedade brasileira de vivenciar a segregação como a experimentada em países como os EUA e a África do Sul ou os conflitos étnicos contemporâneos. Em Quase Dois Irmãos, a democracia racial enquanto ideal faz-se presente através da ambientação da favela dos anos 50, vista como um lugar em que brancos e negros convivem pacificamente. Já na favela atual, o conflito enquanto base das relações étnicas e intra-étnicas passa a ser um elemento diegético que se alinha com a contestação feita em torno do “mito” da democracia racial. 232 Categoria das ciências sociais, apresentada por Gilberto Freyre como um elemento definidor de nossa nacionalidade e fator de composição do povo brasileiro – em uma releitura apresentada na década de 80, Renato Ortiz afirmaria que Freyre, ao apropriar-se da noção de ‘aculturação’ da antropologia norteamericana, priorizou uma visão pacífica das relações raciais, obliterando os conflitos nos quais estas se constituíram

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letra de Mr. Catra e consumindo drogas – Deley e um dos integrantes de seu bando fumam maconha). Nele, o contato inter-classes e inter-racial perde o ‘romantismo’ do samba e assume o conflito como narrativa (no baile do filme, raça e gênero são os primeiros articuladores desse conflito – Juliana beija Deley sob o olhar raivoso de Mina de fé, que a desafia com sua dança sensual). Em Quanto vale..., a roda de samba e o hip hop também estão presentes: o hibridismo entre o discurso pseudo-científico do século XIX e o samba feito no sonho de Arminda e seu despertar na festa (a música “As rosas não falam”, de Cartola, inicia sua melodia na seqüência dos instrumentos de tortura) - na qual a câmera mostra a personagem em close e, no mesmo plano, desloca-se para uma roda de samba - remete o espectador às novas formas de opressão difusamente operadas nas relações cotidianas. Desse modo, a população negra e pobre presente na seqüência colorida transforma-se no comercial em preto-e-branco ao som de uma música clássica e em “objeto” do novo discurso em voga: as teorias do marketing. Ao contrário do samba enquanto mito do eterno retorno em Quase Dois Irmãos, Quanto vale... o representa como uma forma de imaginação nacional apreendida pela retórica de uma elite dominante que, para se manter no poder, reifica as formas de imaginação popular (ora concedendo a estas um lugar de autoridade para narrar as experiências ligadas ao povo – isto é, qualificando-as como ‘pedagógicas’- ora rechaçando-as, inclusive pela via da criminalização – recordemos a repressão a que é submetida alguns bailes, rádios e tevês comunitários). Em Narradores..., há a presença de uma música regional misturada com batidas eletrônicas. Esta se faz presente no início e ao final do filme, ressaltando as idéias de movimento e de êxodo construída via imagem. Ainda, esta é mesclada às narrativas míticas sobre as origens de Javé (relatadas por Vicentino, Deodora e Firmino), o que pode ser interpretado como um signo do presente nestas. Sendo assim, a música popular lembra ao espectador a materialidade e o presente da memória (junto com outras convenções, como as palavras de Firmino e sua repetição na história narrada, a superposição da narração de Deodora na fala de Maria Dina) e, fazendo-o, assume o performativo no pedagógico (isto é, o ato de disputar significados em torno da nação é representado dentro de sua transmissão ‘histórica’ via música regional), o que revela o aspecto político das memórias local e nacional. Já o contato inter-classes é representado pelo choque de Marco Aurélio e Ricardo ao verem o corpo de um jovem negro alvejado, na entrada de uma favela, e o 125

pânico de Ricardo em sair dali (a oscilação entre o plano destaque do corpo e o plano geral mostrando o movimento rápido do carro de Marco Aurélio o comprova). A representação não-realista do pânico de Ricardo e a contraposição entre o assassinato do jovem e a música “Rebatucada” (de Marcelo D2, um hip hop que relê um samba) conferem à seqüência uma ironia que, politicamente, pode ser interpretada como o farsesco do “contato”, uma vez que o mesmo não se traduziria por opções políticas viáveis (e que representassem de fato transformações sociais). Na seqüência anterior, o mesmo Ricardo repete slogans vazios como “entretenimento também é cultura! Eleva o nível do povo brasileiro!”, zombando do próprio trabalho de sua ONG. O povo, então, é narrado como algo que deve ser ora ridicularizado, ora temido (povo como turba). Façamos uma breve pausa para analisar como a publicidade encontra-se inserida em Quanto vale... . Aliando-se à reificação presente na proposta das elites no rearranjo do Estado, a linguagem publicitária se hibridiza com as cenas do filme em vários momentos: na fusão entre as seqüências da festa na favela e da reunião de marketing (marcada pela alteração da cor da imagem e do tipo de música); a campanha publicitária “Vencendo com o social” (uma ironia a uma campanha do extinto Banco Bamerindus “Gente que faz”), na verdade o sonho da personagem Mônica (Cláudia Mello) - mulher de classe média baixa - em ascender socialmente; as cerimônias de premiação; a gravação de um comercial com crianças negras; o diálogo entre Clara e Candinho na qual esta o pede para comprar uma tintura; o comercial estatal sobre a construção de unidades prisionais; as aulas de marketing. É preciso reter alguns desses exemplos. Eis o comercial “Vencendo com o social”: Ônibus pára e Mônica desce e se dirige ao portão de sua casa. Através do ponto de vista de Mônica, percebemos uma aglomeração de mendigos quase em frente a sua casa. Voice over que acompanha o comercial: “Mônica Silveira, 47 anos, paulista. Trabalha em dois empregos e mesmo assim ganha muito pouco. Mas o drama de Mônica não era o bolso vazio, era a dignidade esvaziada. O estado de consciência ocorreu quando a miséria gritante a encarou frente a frente”. Close de Mônica: “Eu resolvi largar tudo pra fazer aquilo que me dava prazer. Eu descobri a minha vocação, que é ajudar as pessoas”. Câmera mostra plano geral em que Mônica coordena associação e voice over relata suas atividades, concluindo, com uma foto de Mônica sorrindo: “para Mônica, viver de solidariedade é o melhor aprendizado que a vida pode dar” e fusão (tela em branco) revela este ser seu sonho. Reunindo uma série de clichês que justificam, no senso comum, a caridade, o filme ironiza o “estado de consciência” 126

da personagem, revelando seu oportunismo. A pose para a foto mais uma vez encena a reprodução do poder nas relações cotidianas e entre classes (lembrando a distinção de classes no papel e classes mobilizadas no cotidiano) definidas inclusive racialmente (uma elite branca que agrega uma classe média baixa a seus projetos e reifica os pobres – em sua maioria, negros, porém não sem antes explicitar quem detém o poder de nomear a ‘realidade’, inclusive através da própria publicidade entronizada no ethos das classes médias e adquirindo importância no processo de endoculturação). A reprodução da ideologia do consumo (que assume uma dimensão racial) passa também pelo campo da estética e dos gostos socialmente produzidos e ratificados. Clarinha folheia uma revista de fofoca e Candinho senta a seu lado. “Preciso pintar meu cabelo”, reclama. Folheia novamente a revista: “acho que a gente tem que fazer um investimento. Olha só! Quanta gente de sucesso! Oh, essa menina aqui é que nem eu, só que ela batalhou pra tá aqui, entendeu? Ela investiu na imagem dela. Bom, ela casou com um cara cheio da grana. Ele deu tudo pra ela! Roupa nova, plástica”; Candinho se encolhe no canto do sofá e Clarinha continua: “a gente tem que se sentir que nem eles pra ser que nem eles, entendeu? Pô, já imaginou, Candinho, você com carro bacana, novo, eu com vídeo-cassete, personal trainer? Ia ser tudo de bom! Eu acho que a gente tem que batalhar pelo que a gente quer! Compra uma tintura nova pra mim? Vai?”. Os meios de comunicação de massa – através da revista de fofoca – aparecem como dotados de um poder simbólico de produzir a realidade, seja pelos padrões de beleza (Clarinha pede a seu marido mulato uma tintura para pintar seu cabelo de loiro; eis o ideal de branqueamento em seu aspecto ordinário) e atitudes como “investir na imagem” passam a ser percebida, no senso comum, como valores fundadores de um imaginário individual e coletivo, sendo o sofisma em torno da aquisição de bens materiais e simbólicos (“sentir para ser”), então, constantemente revivido nas relações raciais e de classe. A construção da hierarquia pelos padrões de consumo (marcas de distinção) é levantada em outra passagem de Quanto vale... . Marco Aurélio explica a empresários a vantagem de investir no marketing dirigido ao ‘consumidor solidário’ e, em meio a gráficos, afirma: “os consumidores da classe AA sempre imprimiram seu padrão de consumo às outras classes. Hoje, a classe média também quer ter o luxo de ter princípios”. Câmera se aproxima lentamente de Marco Aurélio. “Daí esse surto de ações sociais. Só no Brasil, estima-se em 20 milhões o número de voluntários. Para as empresas, esse público de 20 milhões é um potencial gerador de lucros. Por outro lado, 127

o consumidor quer que a empresa tenha responsabilidade social. A empresa socialmente responsável pode vender até mais caro que a concorrente. Afinal, está cobrando mais pelo bem comum. A sua empresa também pode se associar a esse projeto vencedor”. A reprodução da ideologia de classes, vista enquanto uma pirâmide na qual a classe “AA” está no topo, encontra no marketing, nos meios de comunicação (inclusive no cinema) e nos discursos políticos um terreno de disputa privilegiado na “categorização” da realidade e da vida social. Assim sendo, a “responsabilidade social”, de uma esfera coletiva, migra para a ação individualmente controlável, sendo mais um valor a ser levado em consideração pela lógica da caridade. Além disso, a publicidade opera como fator de difusão de concepções estatais pelo senso comum (sublinhando seu papel na disputa pela hegemonia). A propaganda estatal sobre construção de presídios que se hibridiza à narrativa cinematográfica na ida de Dona Judith a uma cadeia no interior de São Paulo para visitar seu filho exemplifica a tentativa de produção de consenso feita por esta: operários trabalham cortando barra de ferro, levantando toras de madeira. Voice over: “A construção civil é uma das armas mais eficazes na guerra contra o desemprego. O governo encontrou na ampliação das vagas prisionais um terreno fértil para geração de renda e de oportunidades de negócios”. Apresentador enquadrado em plano americano: “Nunca, em uma única gestão, foram construídos tantos presídios. Além disso, nos últimos anos, nossos policiais intensificaram a captura de criminosos, duplicando a massa carcerária. E a nossa meta já para o próximo ano é dobrar o número de vagas nas cadeias, construindo presídios em pequenas cidades do interior do estado. E a partir daí aumentar progressivamente esse número, garantindo espaço para todas as detenções que nossa polícia fizer, gerando assim muitos empregos diretos e indiretos”. Corte para chegada de Dona Judith à cadeia: salta do ônibus e se desvencilha dos camelôs que a importunam, ratificando ironicamente o discurso economicista da voice over do comercial: “E não é só na construção civil que a economia cresce com a expansão do sistema carcerário. As famílias que vão visitar seus parentes geram assim renda na cidade, gastando com comida, hospedagem, transporte e outros consumos. O que estamos mostrando é que a expansão do sistema carcerário é agente aquecedor da economia do município, do estado e do país”. De sistema de vigilância e contenção de um povo dividido racialmente e por classes, o sistema penitenciário ironicamente assume a função de melhorar sua qualidade de vida. Além disso, a violência simbólica da presença de um presídio nas 128

pequenas cidades é justificada pela retórica do progresso que, mais uma vez, mostra-se enquanto um instrumento das elites tecnocratas para impor ao restante da população – via instituições – suas concepções sobre a vida social. Retornando às práticas ligadas à classe, raça e gênero, nos filmes, estas aparecem como potenciais deflagradores de discussões, relembrando a cada personagem seu papel social e sua posição na hierarquia (social, racial, geográfica etc). Após o baile, Juliana e Deley se encontram no barraco deste. Deley se arruma diante do espelho e vê Juliana chegar: “É você, minha princesa?”. Os dois se beijam e deitam-se na cama. Deley aparece pelado em cima de Juliana, que geme. Toda a seqüência é filmada em planos médios e closes muito rápidos, o que denota uma proximidade entre sexo e voyeurismo – do espectador – para explicitar o sexo não apenas como forma de contato entre classes e raças, como também a distribuição de poder na sociedade patriarcal. Entretanto, o racismo recalcado de Juliana também seria revelado durante essa seqüência. Deley (Renato de Souza), após a transa, discute com esta, que dispara: “Tu tá pensando que tá lidando com essas neguinhas aqui do morro?”, ao que imediatamente grita: “Tu tá pensando que é quem, sua princesinha de merda? Você é só mais uma!”. O insulto funciona como uma lembrança do lugar ocupado socialmente por ambos, sendo o aparente “prestígio” de Juliana, por ser branca e de classe média, desfeito pelo xingamento de Deley. A concretização de um ‘ideal de democracia racial’ por meio do sexo, apresentada em um primeiro momento (a partir de uma possível ‘mestiçagem’) e feita a partir da exibição do status masculino, o que apontaria para uma visão que autorizaria o pensamento de Freyre, é logo desfeita cenicamente, evidenciando as fissuras nas quais o “povo” se constitui: o pacífico do pedagógico cede lugar à disputa do performativo. Irritada, Juliana sai do barraco e, no meio do caminho, encontra a jovem negra Mina de Fé (Pâmela Bispo, também amante de Deley) que, no meio de outra discussão, dispara: “Deley é maluco de pegar você! Aqui, essa branquicela magrinha! Cadê as carnes, minha filha?”. Já em Quanto vale..., a seqüência sobre a gravação de um comercial em prol de crianças negras é clarividente: a personagem Lourdes (Lena Roque), diretora de projetos da fictícia ONG Stiner, após ouvir a palavra “pedigree” sendo usada por um membro da equipe de produção ao se referir a um garoto negro, interpela de modo virulento o diretor do comercial. Inicia-se uma calorosa discussão sobre raça: Lourdes afirma que o filme colocando “75% de crianças negras; 15% brancas e 10% outros retrata a realidade do páis”, ao que o diretor lança: “E não vem se 129

fazer de vítima pra cima de mim só porque é negra! Eu não persigo negros!”. O bateboca é finalizado com o diretor gritando categoricamente: “Resistindo [a contratar negros]?! Que resistindo?! Você não pagou? Pois então: você venceu! Hoje, aqui neste set, negro é lindo!”; e virando para um membro da equipe: “Ô Bira! Pinta todos esses moleques de preto!”. Nessa discussão, opõem-se radicalmente as concepções sobre raça: o discurso pautado por categorias bi-raciais (de Lourdes, que encena uma falsa indignação a partir da ironia do publicitário que declara não saber o que ela considerava como “negro” e se “servia mulatos” para o comercial) e o que remonta à mestiçagem e às categorias raciais fluidas. Ironizando o lema Black is beautiful, é construída cenicamente a catarsis das personagens enquanto responsável pela visibilidade das categorias raciais. É possível explanar que essa catarsis fílmica remete-se diretamente ao universo extra-fílmico experimentado pelo espectador, uma vez que é também por meio de uma catarsis que estas práticas discursivas são mobilizadas socialmente (fato comprovado nas entrevistas colhidas pelos cientistas sociais Luiz Cláudio Barcelos e Elielma Ayres Machado, em pesquisa sobre jovens universitários - por ocasião da aprovação da lei de cotas raciais segundo as quais são comuns xingamentos de raça em discussões durante eventos desportivos ou casualmente empreendidas na rua e no trânsito)233. Em Narradores..., no entanto, os insultos aparecem em duas dimensões: além de lembrar a todos suas posições no espaço social, estes também são articulados na construção do direito de significar dos moradores. Oscilando entre a autoridade e o desejo de desautorizar o discurso alheio, os usos aparentemente difusos do insulto inscrevem seus agentes numa linha tênue entre o pedagógico e o performativo, para tanto realçando ora uma monumentalidade percebida como salvadora, ora uma blasfêmia contestadora dos lugares de fala estabelecidos. O primeiro exemplo, no filme, é a troca de insultos entre Firmino e Vado na ágora. Após Zaqueu relatar que Javé só não afundaria se tivesse algo de valor a mostrar, Firmino dispara: “Ih, danou-se! Esse lugar velho não vale o que o gado enterra!” e Vado retruca: “O que o gado enterra tem na sua cabeça!”, ao som das gargalhadas dos moradores. Da desvalorização de sua própria comunidade e do reconhecimento da autoridade estatal, passa-se de imediato a uma possível formulação de resistência individual e coletiva; ao mesmo tempo, pune-se

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Pesquisa a que tivemos acesso graças à amiga e pesquisadora Janaína Faustino Ribeiro, a quem deixamos registrado o nosso agradecimento.

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a tentativa de contestação dos lugares de fala de Zaqueu e Vado, tidos como ‘representantes do povoado’ perante as autoridades. Uma personagem que ‘instrumentaliza’ os insultos e os ditos para reforçar sua autoridade narrativa é Antônio Biá. Na seqüência em que entrevista Deodora, essas estratégias ficam evidentes. Plano conjunto mostra Biá, Firmino e Vado em frente à casa de Deodora, que bate a janela com força quando avista o primeiro. “É preciso muita coragem ou muita cara-de-pau! Rua, seu Biá!”; “Na rua eu já to, Deodora, eu to querendo é entrar!”; “Pois nem com pedido de santo nem com ordem do Diabo! Você merecia era surra de pau, sujeito inventador, traste mentiroso!”; “Inventador não! Eu só mostrava o fogo onde todo mundo via fumaça! Gente, escritura é assim! O homem curvo, vira carcunda, o homem do olho torto eu digo que é zarolho! Por exemplo, se o sujeito é manco...”, Biá reproduz o andar de um manco sob o testemunho de vários moradores, “... eu digo que ele não tem perna. É assim! É das regras da escritura!”; “Pois a minha regra é outra seu Biá! O senhor vai ver!”; Deodora entra em sua casa e pega um pau: “O senhor sai da minha porta! Senão eu vou lhe meter o pau na cabeça!”; “Não se agigante não, Deodora! Porque galinha que muito cisca, acha cobra! Se a senhora não quiser, eu não dou grafias na sua odisséia ou escrevo o que me der na caixola sem ponto-e-vírgula!”; dirigindo-se a uma moradora idosa: “E a senhora cale a boca e sente-se porque a senhora não sabe nem o que é caatinga de cheiro!”; dirigindose a outra moradora: “E a senhora monte na sua vassoura e volte pra Salvador!”; “Vá-se embora, seu Biá!” (Deodora); “A senhora preste bem atenção! Eu tava quieto no meu canto, vocês mandaram me chamar! Mas se a senhora não tem nada pra dizer pra colocar nas grandes páginas de Javé, então adeus, Sayonará!” (reproduzindo o gesto do apresentador televisivo Miguel Falabella). Além disso, há outros momentos do filme em que faz um pastiche dos gestos de luta dos filmes de Kung Fu e usa termos como “pokemon de Jesus”; “espermatozóide de ninja”; “piaba de silicone” etc. Hibridizando diversos registros (da religião, da memória oral, do fazer literário, da cultura de massa etc), Biá, ao necessitar de lembrar constantemente que sua autoridade/autoria funda-se em sua capacidade/estilo - sua marca de distinção perante o grupo e meio de uma possível re-socialização com este para obliterar a desconfiança na origem de sua relação com os moradores (e que se revelaria um elemento trágico, na medida em que a suposta salvação revelou-se, ao fim, a perdição – Biá não conclui a tarefa de escrever a “odisséia”, visto que foi marcado, ao longo da narrativa, pelo conflito entre liberdade criadora e necessidade objetiva do 131

livro), o faz ora de modo didático (tentando explicar as “regras da escritura”), ora de modo intempestivo (insultando seus contestadores). Ademais, poderíamos refletir sobre a seqüência de Quanto vale... há pouco descrita. Ao descrever a pretensão de Lourdes em “mostrar a realidade do país” de modo quantitativo, o filme explicita seu próprio status de representação. Além disso, reforça o papel do cinema e dos meios de comunicação (no caso, a publicidade) enquanto lugar de (re)produção de ideologias e, portanto, capaz de encenar o jogo entre o pedagógico e o performativo na narrativa nacional (aliás, as seqüências em que se fala da questão de patrocínio às causas sociais são de imediato relacionadas ao próprio fazer cinematográfico atual, visto que este também sobrevive apenas quando subvencionado pelo Estado e pela iniciativa privada). Para tanto, incorpora a essa narrativa as “rupturas” e descontinuidades ocasionadas pela imersão das diversas categorias identitárias. Narradores... também evidencia seu status de representação, recorrendo, diferentemente de Quanto vale... (que retrata o habitus publicitário), a uma citação do fazer documental e às práticas de registro da escrita (essas últimas já avaliadas em outras passagens). Engenheiro começa a gravar procissão religiosa dos moradores. Imagem da câmera adiciona-se à do filme. O mesmo vai em direção a duas senhoras idosas moradoras e pede para filmá-las e estas o autorizam. A filmagem contemplativa tem sua dinâmica subitamente alterada com a intervenção de Deodora, cujo primeiro gesto é meter-se em frente à câmera de vídeo e olhar para a lente, rompendo a regra clássica segundo a qual o personagem não deve olhar fixamente para a câmera. “Eu posso falar um pouquitinho? Eu queria dizer a vocês e ao chefe de vocês que minha casa não tá à venda! Tá gravando, moço? Já disse o que tinha pra dizer e vão-se embora!”. Inicia-se uma série de encenações de protesto para a câmera, todos filmados em close e todos os filmados passam a olhar para a câmera. A primeira senhora: “Eu tenho meus pais, meu marido, tudo enterrado naquele cemiterinho ali! Nós queremos ficar aqui pra sempre! Os engenheiros não vão tirar a gente daqui, não!”; segunda senhora, que quase chora em seu depoimento: “Cheguei eu e minha mãe. Tive meus filhos tudo aqui. Então, eu me sinto muito bem aqui em Javé. Mas minha mãe já perdi, meus filhos também já perdi. Não posso sair deste lugar”; senhor: “E eu quero avisar aos engenheiros que nós estamos preparando um dossiê que é pra nós defender o que é nosso”; Firmino: “Nós estamos aqui há muito tempo! Onde já se viu?!”; Dona Maria: 132

“Você não tem casa, você não tem terra pra dar tanta gente que mora aqui em Javé! Como é que você pode tirar a gente daqui?!”. Sons de tiros. Explicita-se tanto a representação fílmica quanto a performance em torno da resistência dos moradores em aceitar sair da cidade e vê-la inundada, devendo adicionar a esta as performances nos atos de narrar as diversas histórias. Desse modo, o direito de significar dos moradores encontra finalmente uma oposição concreta: do narrar de Zaqueu e de Vado, os engenheiros não apenas chegam ao lugar como impõem sua presença por meio de suas máquinas e catalogações. Mais que uma violência simbólica, a presença destes é percebida enquanto um sacrilégio e uma violação da ordem mítica da qual os moradores se valem cotidianamente para se afirmarem no plano político. Além da representação visual, em Narradores... há a representação pela escrita. Em diversos momentos, a disputa por esse plano de representação será o foco da narrativa, atrelando a necessidade imposta pelo discurso oficial do ‘tombamento’ ao desejo de perpetuidade dos moradores individual e coletivamente. No primeiro encontro entre Zaqueu e Biá no filme, forma-se um círculo envolvendo o segundo (como se fosse um julgamento). O uso constante do close para marcar as duas personagens, nessa seqüência, atua no sentido de construir a oposição de autoridade narrativa que se dará ao longo do filme (lembremos que Zaqueu narra a história no tempo presente no bar, porém cabe a Biá fazer uma juntada dos relatos). Este se senta em uma das pontas de uma mesa, sendo oposto a Zaqueu, de pé. Este coloca à frente de Biá um paco de cartas e inicia sua exposição: “O povo não esquece, seu Biá! Taí a prova da sua ladinagem! As cartas futriquentas que você espalhou pela região! Nas minhas andanças eu consegui recuperar um bocado delas!”. Com a acusação lançada, passa-se à prova. Morador lê: “Prezado amigo, pois o caso é que aqui também tem um velho que posa de galo majestoso e bate as asas pra cima de tudo que é rabo-de-saia. Só que o coitado já não deve ter mais uso e competência daquela parte que todo homem preza”. A leitura é entrecortada por Firmino apontando Vado e este olhando fixamente para Biá, insultando-o ao final - “sujeitinho despudorado!”- em meio aos risos dos outros moradores. “Mas vocês vão concordar que, se Antônio Biá só escreve mentira, ele escreve muito bem! Então, seu Biá, o povoado lhe oferece a ocasião de você cumprir com o seu ofício de escrivão e ainda praticar o maior feito de sua vida! A gente quer que você escreva a história grande do vale de Javé!” e entrega um livro com capa preta e espesso a Biá, que reage ceticamente: “Como é que é?”; “Tem que fazer um dossiê, uma juntada na escrita das 133

coisas importantes acontecidas por aqui!”; “Mas Zaqueu! Ochente, que diabo de coisa importante aconteceu em Javé?”; “Pois a maneira de saber é ouvindo o nosso povo contando as tais histórias, ouvindo e escrevendo! E assim vai nos ajudando! Só que não pode ser história inventada, chistosa, tem que ser verdadeira, científica!”; “Isso tá parecendo coisa de gente doida!”; “Antônio Biá! Um dia você salvou seu emprego às custas do povoado! Agora você vai ajudar a salvar o povoado às custas do seu trabalho, tá entendendo? Ou vai embora de vez ensinando o caminho pras águas entrar!”. Incrédulo, Biá folheia mais uma vez o livro. O status de representação do filme, por meio da disputa em torno do ‘autor’ e das convenções sob as quais esta será baseada (“científica” versus “invenção”), pode também nos remeter à própria nação e ao povo enquanto representações percebidas em um conflito que engloba desde quem tem o poder de narrá-los (isto é, quem pode dizer algo sobre a nação e sobre o povo) até em que momento este pode fazê-lo; o pedagógico de narrar a “grande história de Javé” e o performativo em torno de como se dará essa representação, portanto, enquanto uma metáfora de narrar a história nacional e a partir de que limitações isso será feito. Aliás, a “cientificidade” tanto do discurso legitimado por Zaqueu quanto do discurso oficial/acadêmico configura uma ponte entre as duas representações, uma vez que esta foi afirmada enquanto valor em meados do século XIX, não coincidentemente quando a retórica nacional ganhava peso. Logo, essa cientificidade foi ‘instrumentalizada’ para afirmar o lugar das classes dominantes e sua instituições, cujos efeitos são até hoje sentidos – e um deles é, certamente, a retórica da perda234 evocada a partir do patrimônio e suas apropriações pelo senso comum. A disjunção das práticas discursivas das elites tecnocratas e dos moradores para salvar Javé pode ser vista na seqüência em que Biá discute com Zaqueu, após ter sido desmascarado e perseguido por não ter escrito a “grande história” do povoado. Novamente, o insulto é utilizado no sentido de inscrever a posição social dos diversos agentes. Planos gerais mostram ao espectador a festa em comemoração ao livro escrito por Biá que iria salvar Javé: pessoas dançam; banda local toca; crianças se divertem; Zaqueu preocupado (“tá demorando”). Firmino chega apressado e corre até Zaqueu; moradores se aglomeram em volta destes enquanto Zaqueu abre envelope destinado a ele por Biá. Pede a um menino para ler o bilhete: “tenho a declarar que eu, Antônio Biá (...) me exonero do cargo de escrivão. Estou ausente para manter a mente e o corpo são.

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Nomenclatura do pesquisador e professor José Reginaldo Gonçalves (IFCS/UFRJ).

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Quanto às histórias, acho melhor que fique na boca do povo, pois no papel não há mão que lhe dê razão”. Plano destaque do livro folheado por Zaqueu: desenhos, rabiscos e som off do protesto dos moradores. “Aquele trolha! O demônio não tá longe! Eu pego Biá! Arrasto o cachorro até aqui! Ou ele explica essa afronta diante de nós tudo ou o couro dele não vai mais ser o mesmo!”. Montagem alternada destaca a condução à força e o xingamento por parte de alguns moradores a Biá, de um lado, e a pequena comitiva formada por Zaqueu, de outro. Encontro de ambas filmado em plongée. “Oi, Zaqueu!”; “Só isso que você tem pra me dizer? Só isso que você tem pra dizer pra todo mundo? Seu cabra safado!”; “Olha, com todo o respeito...”; “E você lá tem respeito? Seu salafrário! Sujeito ordinário, um homem que não merece a companhia do cão! Você vai sendo o que sempre foi, Antônio Biá, um sacanajeiro!”; diante dos protestos, Biá contesta: “Vocês acham que escrever essas histórias vai parar a represa? Não vai não! E sabe por quê? Porque Javé é só um buraco perdido no oco do mundo! E daí que Javé nasceu de uma gente guerreira, se hoje isso aqui é um vale miserável de rua de terra e de gente apocada e ignorante como eu, como vocês tudinho! O que nós somos é um povinho ignorante que quase não escreve o próprio nome mas inventa histórias de grandeza pra esquecer a vidinha rala, sem futuro nenhum! Vocês acham, acham mesmo, que os homens vão parar a represa e o progresso por um bando de semi-analfabeto? Não vão não! Isso é fato! É científico!”. Ao desprezo coletivo dos moradores, expresso pelo gesto de dar as costas, Biá responde com novas ofensas: “Ah, é? Tão me dando as costas? Eu também vou sair de costas pra ver vocês de cima! Oh, a única coisa boa que Javé tem pra mostrar é o caminho de ir embora! Lugar bom pra criar lobisomem! Anfíbios! Povo anfíbio, povo pitu!”. Plano geral mostra Biá caminhando apressadamente por rua escura, em direção contrária a dos moradores. Sendo assim, a visão das elites a respeito da ligação entre povo e progresso é apropriada pelo senso comum de Biá, ratificando a posição desta em extinguir Javé. Essa dinâmica entre discursos e entre visões de mundo formuladas nos âmbitos das diferentes classes necessita de certas características para ser validada no senso comum. Aqui, expressões como “gente apocada e ignorante”; “parar o progresso”; “bando de semi-analfabeto”; “povo pitu” projetam no povo a culpa por sua própria extinção, obliterando o caráter autoritário da intervenção, a pouca serventia que esse “progresso” terá efetivamente a esse povoado (na medida em que este é alijado do mercado consumidor a que se destina a represa), a possibilidade da formulação de resistência 135

(iniciada com a escrita do livro) e da transformação desta em um projeto (a salvação do povoado), além da questão racial (o etnocentrismo de que se vale o Estado impondo o sacrifício de uma população mestiça em nome do conforto de uma minoria composta eminentemente por brancos). Podemos, ainda, mencionar que a reprodução de estigmas ratificados pelo senso comum a respeito do nordestino, ligando a este adjetivos como “ignorante”, “semianalfabeto” opera no sentido de atribuir à pobreza uma naturalidade quando, na verdade, ela é fruto da apropriação das posições de maior prestígio e rendimento (capital econômico e simbólico) por uma elite tecnocrata; a pobreza “vista como decorrência da inferioridade natural dos excluídos” (Guimarães, 2006, p. 172). Em sua diegese, Quanto vale... insere um elemento dramático pouco explorado no cinema brasileiro contemporâneo: a classe média baixa. Descaracterizando-a como sujeito histórico (isto é, como uma classe que detenha o poder de intervir politicamente de modo efetivo a conservar posições ou transformá-las), o filme a constrói variando entre categoria identitária (na medida em que existe uma série de características/signos que a circunscrevem no filme) e associação de interesses (com outras classes e setores da própria classe média). Plano geral mostra Kombi branca estacionada na calçada. Pessoas vestidas com uma camisa branca (com a logo de uma ONG) distribuem comida e outros mantimentos para mendigos. Van preta chega e estaciona em frente à Kombi. Noêmia (Ana Lúcia Torre) dirige-se à motorista: “Ei, ei, ei! Pode ir embora! Eu cheguei primeiro! Esse pedaço aqui é meu!”. Motorista olha atônita e Noêmia continua: “Você quer ir embora, por favor? Embora!”235. A distribuição de comida tem prosseguimento e nova discussão é iniciada, dessa vez entre Mônica e uma empregada que atua na ONG (interpretada por Marcélia Cartaxo). Após a primeira ver seu genro Candinho trabalhando como gari e recolhendo o lixo da rua em que distribuía comida, esta grita: “Candinho! Candinho!”, ao que este retribui com um aceno afetuoso: “Ô, tia Mônica!”. Empregada indaga: “Como ele vai fazer pra pagar a festa do casório? Vai ter festa, Mônica?”; “Ainda bem que Candinho trabalha”; “Trabalha em algo sem futuro, né?”; “Olha quem fala: tá esquecendo que você é doméstica?”; “Esqueci não! Sei muito bem o que sou hoje! Mas 235

Devemos referir-nos ao testemunho de Sérgio Bianchi de uma briga, em frente ao seu apartamento em São Paulo, entre vans que distribuem comidas aos mendigos da região da Praça da República, fato que o ‘inspirou’ a fazer o filme. Sem cair no discurso ‘autoral’, a informação pode ser interpretada como a presença de práticas socialmente empreendidas na re-configuração no plano fílmico: uma discussão aparentemente banal trabalhada, na representação, para evidenciar o jogo de classes e de interesses que as pautam.

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também sei o que eu quero pra minha vida!”; “Pois fique sabendo que Candinho é um cara muito do legal! E vai ter festa sim! E vai ser uma festa muito alegre, muito bonita! E você vai ser convidada! Você, Dona Noêmia, os filhos dela, tudo!”. Mônica, visivelmente irritada e exaltada, encerra a discussão. Corte para a seqüência do comercial “Vencendo com o social” (já analisada). Relembrando o status social da empregada, o faz para espantar o ‘perigo’ que ronda a classe média baixa enquanto categoria identitária: ser confundida com os pobres e, para isso, o faz apelando a um ressentimento de classe (recalcado no cotidiano e explicitado no sonho do comercial, em que a patroa Dona Noêmia aparece como sua empregada) e a marcas mínimas de distinção (tipo de ocupação funcional é uma delas). O gestual um tanto exaltado (movimentação de braços e cabeça) e a linguagem utilizada (as palavras, a entonação) também são utilizadas para relacionar Mônica à classe média baixa e a diferenciar de outras personagens como a socialite Marta e sua patroa (pertencente a uma classe média standard). Passemos ao despertar de Mônica após o ‘sonho-comercial’. Noêmia em off pergunta se ela está bem. Mônica aparece na feira segurando uma sacola de compras: “É que eu tava sonhando com o casamento da Clarinha”; “Ah, eles vão se casar? Que bom! É muito bom quando a gente realiza os nossos sonhos! E a festa vai ser quando?”; “Eu não sei porque o outro patrão tá dificultando um pouco o décimo terceiro”; “Mônica, eu tive uma idéia! Sua sobrinha não pode ficar sem casamento! Você trabalha comigo em tempo integral. Larga o outro emprego e eu pago a festa! Você fica me devendo mas em um ano já dá pra pagar! O que você acha?”; “Ah, Dona Noêmia! Você é tão boa! Um dia desses, você vai jantar lá em casa! Olha, tudo o que vai, volta! A senhora vai receber por toda a sua generosidade!”. Mônica abraça Noêmia com força e demoradamente, incomodando-a. Os papéis invertidos no sonho (Mônica com roupas elegantes e Noêmia vestida com trapos) retomam seus lugares e a relação de condescendência entre as classes assume seu destaque: de um lado, a ‘boa patroa’ que ajuda seus empregados, de outro, a ‘fiel empregada’. A ironia em que se constrói a seqüência, revelada justamente pela superposição entre sonho de Mônica e sua relação com Noêmia no mundo social, concede a esta um tom farsesco - o que nos ajuda a analisar a dimensão de código/aparência que pauta a vida social, ao contrário das representações naturalistas das relações sociais, que tendem a confirmar o senso comum. Além disso, enquanto os sonhos de Quase Dois Irmãos e de Narradores... remetem a processos de transformação social, em Quanto vale... o 137

próprio sonho é representado como o recalcado presente nas relações entre classes (e também entre “raças”), configurando um reforço da manutenção da ordem social vigente. O lugar de classe média baixa é acentuado na festa de casamento de Clarinha. Música “A noite do meu bem” (interpretada por Nana Caymmi) em over e câmera mostra plano geral com ângulo lateral, primeiro mostrando uma bancada de pia cheia de comidas (frango assado; prato de salgados etc) para, com seu movimento, revelar Mônica contemplando o cenário, ao qual se adiciona uma mesa com o bolo de casamento (decorado com ornamentos azuis e rosas) e vários pratos de salgados e doces. Plano conjunto mostra Mônica olhando menina negra agachada que enxuga talheres: “você é muito prendada! Acho que eu vou te pegar pra criar! Você quer ter uma mãe como eu? Comida boa, todo dia? Sabe que você teve sorte de encontrar uma família como a gente, que te trata como filha?”. Candinho chega e pede para que as duas se ajeitem para uma foto. Mônica sorri ao lado de menina negra visivelmente constrangida. Barulho de flash e fusão para chegada de Noêmia na festa. Com muitos presentes, esta os entrega ao noivo e é apresentada à Clarinha, que os abre e espalha o perfume de modo espalhafatoso: “Nossa, Dona Noêmia! Isso é que é saber dar presente!”. Noêmia e Mônica conversam e a última enaltece a festa: “Tem risólis, tem coxinha, tem kibezinho! (...) Tudo no capricho! Tem pernil, frango, macarrão, pavê! Muito agradecida, viu, Noêmia? Você vai receber tudo, tudo, tudo... E mais rápido do que você imagina! Depois você vem visitar a gente!”, sendo a fala de Mônica adicionada pela imagem dos diversos pratos. O pleonasmo e o exagero característicos das práticas da classe média baixa são, desse modo, trazidas à imagem e, além disso, retrata-se a preocupação com a ‘fartura’, ligada à quantidade de comida a ser servida; esta enquanto um valor de classe e fator de diferenciação em relação aos pobres colocada no jogo social, tal como no diálogo entre Mônica e a menina negra. Um paralelo interessante pode ser feito entre essa seqüência e o romance Negrinha, de Monteiro Lobato, cuja narrativa está centrada em três senhoras que, num gesto de falsa bondade, adotam uma menina negra para transformá-la em empregada. No filme, o que chama a atenção de Mônica é a disposição da menina para o trabalho, ligando raça e classe na posição social e na estrutura funcional (a menina negra e pobre como potencial ‘filha adotiva’, na verdade, uma relação de trabalho disfarçada pelo falso afeto). 138

A condição de ‘objeto’ da menina negra é realçada pelo seu destino: de ser adotada por Mônica, passa a ser ‘moeda’ na negociação entre esta e Noêmia, que cobra o ‘favor’ de ter emprestado dinheiro para a festa de casamento. A relação entre classes, transitando entre a afetividade e o mercantil, assume assim sua hierarquia: a classe média explorando uma mão-de-obra a custo baixíssimo via aliança com a classe média baixa, não obliterando a raça na evidência da mesma (afinal, o que está em negociação é a transferência da lealdade de uma empregada negra e menor de idade, que de fato se concretiza – esta aparece trabalhando no sítio de Noêmia), através da fala de Mônica e de sua adição à imagem da menina (câmera faz movimento suave em direção a esta e retorna à Mônica): “se eu te apresentar uma menina prendada, limpinha, faz tudo, não dá trabalho nenhum, de confiança, não come quase nada, você ia ficar satisfeita, né, Noêmia?”. A respeito das personagens negras de Quanto vale..., Lourdes e Arminda, eis como estas são postas na mise-en-scène: a primeira, um signo referente à classe média negra, é cínica e dotada de um discurso panfletário, cabendo a ela colocar em destaque a mercantilização da imagem do negro como minoria étnica; já a segunda, por meio da superposição entre passado e presente, tem seu olhar “misturado” entre os signos da escravidão e da estratificação social atual para evidenciar seu transitar na diegese e sua atuação “contra o sistema”. Estabelece-se uma oposição entre cinismo e ativismo no campo político (que substitui o par retórico “alienação-consciência”, caro à retórica de esquerda). Vejamos como se deu a demissão de Lourdes: prédio lateralmente filmado. Voz de Lourdes alterada: “Mas não ficou acertado na última reunião? Acho que você não entendeu direito! Deixa eu te explicar!”. Plano geral (plongée) da sala de Ricardo. “Eu vou estudar melhor o perfil da Stiner! Eu vou fazer adaptações! Tudo se adequa!”; Ricardo em plano médio e em close: “É claro que eu entendi o seu projeto! Eu não posso fazer mais nada! Tudo já foi acertado na última reunião com o Marco Aurélio, inclusive o seu desligamento”; “Desligamento? Eu posso trabalhar em outros projetos! Aliás, eu tenho dois projetos pra captar! Você vai adorar!”; “Não se preocupe. Você terá todos os seus direitos trabalhistas”. Lourdes arruma sua bolsa e procura papéis e disquetes em sua sala e na de Ricardo. Lourdes, que havia defendido Ricardo das acusações de Arminda, tentando encontrar várias justificativas para o superfaturamento, acentua sua vilania após ser demitida. De subserviente, passa a espiã, revelando seu oportunismo (aliás, existe uma oposição entre Lourdes e Arminda a partir de como suas 139

ações são empreendidas: o arrivismo da primeira contraposto ao mal-estar da segunda), o que, na verdade, escamoteia as possibilidades de projeto e de transformação social da hierarquia étnica. Logo, a dimensão trágica236 das narrativas fílmica e extra-fílmica são entrelaçadas: Lourdes é “punida” com a demissão e Arminda, curiosamente, é retratada em dois finais - no primeiro é assassinada por um matador de aluguel (Sílvio Guindane) em sua casa; no outro revela seu niilismo político ao cooptar o matador de aluguel para um plano de roubo e seqüestro. A centralidade das instituições ligadas à branquidade faz-se presente nos dois filmes aqui analisados. Quanto vale..., por exemplo, encena várias poses para fotografias: a negra alforriada Joana e seus libertos; as crianças de rua (na maioria, negras); a socialite Marta Figueiredo (Ariclê Perez) e as crianças da favela. Sobre esta última, vejamos como o filme a mostra. Plano geral com crianças negras tendo ao fundo uma favela. Escuta-se a voz de uma mulher: “me dê os brinquedos, por favor”. Marta aparece em seguida na imagem, distribuindo, a seu bel-prazer, os mesmos. Novamente vai para o espaço-fora-da-tela. Nele, afirma: “Você, não! Você, vem cá!”. Eis que ela surge trazendo pela mão uma menina negra. Coloca o boné neste e exclama: “Lindo!”. Pega na mão de duas outras crianças e se posiciona no meio delas para uma foto. Voice over feminina irônica narra: “Doar é um instrumento de poder. A superexposição de seres humanos em degradantes condições de vida faz extravasar sentimentos e emoções.”. Barulho da câmera fotográfica. Corte para plano médio centralizado em Marta. Voice over continua: “sente-se nojo, espanto, piedade, carinho, felicidade, e por fim, alívio. E ainda faz uma boa dieta na consciência!”. Novamente barulho de câmera fotográfica. A dinâmica centro-periferia assumida nas relações sociais é incorporada à imagem, sendo isso evidenciado em vários pontos: a) os personagens negros só ocupam a centralidade da imagem enquanto reprodutores das instituições da branquidade (no caso da negra alforriada) ou enquanto objeto das mesmas (crianças de rua, cuja seqüência de fotos é encerrada com barulho de moedas caindo); b) cabe ao poder branco a escolha de quem terá sua imagem veiculada (explicitada na seleção de Marta); c) mesmo quando o negro ascende socialmente (caso de Lourdes), este o faz muitas vezes 236

Aqui, trágico não aparece no sentido comumente usado (sinônimo de catástrofe), e sim a uma narrativa que desemboca em uma situação sem saída (na tragédia grega, cabia a um Deus ex machina dar uma solução ao conflito cênico; nas histórias atuais, entretanto, há pouco espaço para este).

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reafirmando os valores dessas instituições; d) a lógica da caridade é apontada no filme em seu aspecto perverso de manutenção de uma rede de dependência; e) a centralidade do poder branco é evidenciado em vários momentos (desde a foto de Marta até as cerimônias de premiação de talentos, cuja platéia e premiados são em sua grande maioria brancos). É interessante frisar que a perspectiva assumida no filme no tocante às diferenças raciais alinha-se a um pensamento social e político representado, dentre outros, pelo sociólogo Antônio Sérgio Guimarães e pelo cineasta Joel Zito, na medida em que ambos, ratificando uma diretriz política ligada ao movimento negro e retomando o pensamento de autores como Roger Bastide e Florestan Fernandes, partem da premissa de que “raça” é um fator presente na construção da hierarquia social237 e, mais que isso, mobilizado cotidianamente a partir de um velado ‘ideal de branqueamento’ que opera como uma contrainte dos esquemas de percepção socialmente apresentados (recordando que o filme se apropria dessa prática discursiva acadêmica ao representar a reificação das minorias sociais – inclusive os negros – por uma elite tecnocrata; no entanto, este também faz um contraponto a partir da vilania construída em torno da personagem Lourdes, que se vale dessas práticas de um modo cínico e oportunista e evidencia um jogo de classes entre os negros – já que ela também participa e legitima esse ‘uso arbitrário’ de sua própria etnia). A essa centralidade, Quanto vale... responde com a ironia mordaz da voice over de Milton Gonçalves para, através dela, contestar o lugar dessas instituições. Além disso, a representação não-naturalista dos atores relaciona classe e raça, revelando a conexão entre branquidade e poder: na cena seguinte à foto, a socialite Marta Figueiredo chega ao escritório de Marco Aurélio com seu motorista, trazendo donativos. Este afirma: “Você está bastante empenhada nisso”; “Modestamente, uma vez por semana eu acordo às cinco da manhã, pego meu motorista e faço uma peregrinação recolhendo donativos para as crianças pobres. Porque se os que têm fizessem um pouco pelos que não têm, não é verdade?”; “Claro!”. O exagero gestual de Marta, beirando o ridículo, e o constrangimento de Marco Aurélio ao respondê-la explicitam a caridade como marca de distinção e como uma associação de interesses entre a elite no seu papel de sujeito histórico marcado pela opressão das diferenças (principalmente étnicas). 237

Cf: GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. São Paulo, Ed. 34, 2006; GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo e HUNTLEY, Linn (org.). Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo, Paz e Terra, 2000.

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Ainda nesse ponto, assistimos também à encenação do gênero no diálogo entre Marta e a diretora de um projeto, Maria Amélia (Joana Fomm) em um restaurante. Câmera acompanha movimento de família em restaurante de luxo: pai, mãe e três filhos (pela indumentária, pertencentes a uma classe média baixa) muito pouco à vontade. Um dos filhos está em uma cadeira de rodas e tem a cabeça raspada. Voice over de Maria Amélia: “Daqui a pouco, uma das famílias deve estar chegando. (...) Elas ficam hospedadas por uma semana com todos os serviços do hotel incluídos”. Corta para close de Maria Amélia: “Mas não são só as crianças com início de câncer. As terminais também. Você já imaginou o que representa pra elas uma semana com três refeições por dia, banho quente? É maravilhoso!”; câmera gira para Marta e dá um close nesta: “Claro que é! Mas eu não consigo fazer o meu marido participar! Em nada! Eu não sei o que acontece, mas eu não consigo! Não consigo! Eu ainda não consegui mostrar ao João Paulo o quanto é fundamental a gente ser solidário! (...) E depois, eleva o espírito, não é verdade?”. Plano conjunto mostra Maria Amélia e Marta de mãos dadas. Atitude logo desmascarada no filme: “Esse projeto é um absurdo! Essa senhora usa do social pra lavar dinheiro da empresa do marido!”. O falocentrismo da ordem patriarcal, ao contrário de subvertido, aparece aqui para reforçar o jogo de classes; além disso, a solidariedade, de princípio ético mobilizado no plano da religião e da política, passa a ser representada como parte do esfacelamento da esfera pública (via privatização do Estado e a ‘maior participação da sociedade’). Em outras seqüências, a aliança entre essa elite branca e o Estado é trabalhada. Assessor parlamentar (Umberto Magnani) no carro de Marco Aurélio, indo para a inauguração de um centro de informática na periferia: “O governador já confirmou presença. Quer tá lá com vocês na hora de cortar a fita, sabe como é? Tá gostando do trabalho da Stiner e tá rápido na aprovação da licitação! Vocês não precisam ter receio não. O lugar é pobre, mas vocês vão ser muito bem tratados!”; Ricardo fala: “esse centro de informática vai ser muito produtivo! Inclusão digital!”. Logo após, a inauguração: crianças atiram bolinhas de papel durante o discurso do governador; balbúrdia de crianças atrapalha a cerimônia oficial. “Eu gostaria de agradecer a receptividade da comunidade” (uma bolinha de papel é jogada em seu rosto) “que nos acolheu de braços abertos!”. Crianças se empurram cada vez mais. “Por informática na periferia!”. Aplausos e fotos. Marco Aurélio corta a faixa e quase é empurrado pela turba de crianças que invadem o recinto. Este e Ricardo vêem de longe a confusão no recinto (mostrada por um plano ponto-de-vista destas personagens): crianças fazem 142

muito barulho, tentam inutilmente mexer nos computadores e, irritadas, atiram dois monitores no chão, sob os protestos de Arminda, que bate na mesa e grita: “Que é isso?! Tá maluco?!”. Sendo assim, o falso politicamente correto é contraposto à representação teratológica do povo pela elite que se apropria dos recursos estatais. A especialização dessa atividade é trazida à mise-en-scène através de uma aula de aplicação de preceitos de marketing, no intuito de formar recursos humanos para atuar na captação de verbas públicas e privadas. Na parte “o aprendizado do novo mercado”, câmera acompanha movimento de professora que explica a uma classe de cerca de trinta alunos algumas fórmulas vulgarizadas do marketing: “será que beneficiário – o excluído, os pobres – está usufruindo do seu projeto? Isso o beneficente vai querer saber”. O aspecto documental da seqüência - explicitado pelo didatismo, pela preocupação com as informações passadas, pelo uso dos termos e pela ausência de atores profissionais - adiciona-se ao registro da ficção do filme, configurando uma miseen-abîme que corrobora a tese da solidariedade como forma de mascarar o abismo social. O reforço a isso ocorre na seqüência seguinte: jovens cuidam de velhos internados em um asilo público, sendo que a mesma também possui um viés documental (planos longos e com bastante movimento, que acompanham o andar dos jovens; planos médios para mostrar o sofrimento de alguns idosos – uma senhora que chora compulsivamente; outra vira para a câmera e manda alguém “pra puta que pariu”). Aliás, a solidariedade enquanto um slogan publicitário pseudo-político encontrase disseminada na representação das elites. Após o vídeo caseiro que mostra a agonia de uma mendiga negra, sons de aplausos antecedem um plano geral de platéia branca ovacionando - em um auditório - locutor (Petrônio Gontijo), que anuncia a entrega do “2º. Prêmio de Estímulo à Solidariedade”: “E para o prêmio de braço direito de estímulo à solidariedade, convidamos o idealizador do manual de captação de recursos que tanto ajudará as entidades nessa difícil tarefa, que é ter acesso aos fundos governamentais de cunho social”. Walter Harman (Cao Pressburguer), o ganhador do prêmio, discursa para a platéia. Câmera se desloca e mostra a arrumação de um banquete, sendo acompanhada de uma voice over feminina que enumera os “gastos sociais” das ONGs – que variam desde aluguéis até passagens aéreas, passando por ‘jingles’ e assessorias de imprensa. Desse modo, as cerimônias e festas oficiais são retratadas como o lugar de encenação e de transmissão do poder econômico e simbólico (havendo nelas a 143

confirmação do status social de cada um de seus agentes) e, mais que isso, ritos cosmogônicos que relembram a seus agentes a reprodução do poder disperso em micronarrativas (oficiais ou não) que alçam a ordem patriarcal (branca) enquanto ideal. Comparando com o baile funk de Quase Dois Irmãos, devemos sublinhar que em ambos se evidencia a distribuição de status através da posse de bens simbólicos (sejam estes armas, sejam estes prêmios oficiais), havendo poucos espaços para a ‘inversão’ das mesmas pelas táticas do universo popular. Sobre o uso da voice over, Quase Dois Irmãos constrói o ponto-de-vista narrativo através dela, cuja voz de Miguel em diferentes momentos da vida conduz o espectador (o branco dotado de autoridade na diegese). Outro recurso utilizado nesse sentido, em ambos os filmes, é a montagem, responsável pelo jogo de ocultação/revelação presente nos personagens (no primeiro, por exemplo, seja articulando os dois finais de Arminda, seja mostrando as reações cínicas de Lourdes, Ricardo e Marco Aurélio no decorrer das situações; no segundo, seja pela construção do clímax dramático dentro do presídio na construção de um muro separando brancos e negros, seja pelo desenlace do romance entre Deley e Juliana). Passemos a outro tema que se liga à problemática racial e de classes: a representação da violência e da criminalidade. É preciso fazer uma breve pausa e inferir que os dois filmes relatam uma relação bastante peculiar entre corpo nacional e corpo das individualidades presentes nesta. Recuperemos uma concepção bakhtiniana a respeito do corpo no campo do grotesco: segundo ela, a estética do grotesco percebe o corpo em seus orifícios e naquilo que ele tem menos poder de controlar; enfim, naquilo que o relaciona ao mundo. Nas palavras do autor:

Na realidade, a função do grotesco é liberar o homem das formas de necessidade inumana em que se baseiam as idéias dominantes sobre o mundo. O grotesco derruba essa necessidade e descobre seu caráter relativo e limitado. A necessidade apresenta-se num determinado momento como algo sério, incondicional e peremptório. Mas historicamente as idéias de necessidade são sempre relativas e versáteis (1993, p. 43).

Em Quase Dois Irmãos, encena-se o conflito entre a ordem do ‘alto’ e do ‘baixo’ a partir das personagens principais, sendo que suas concepções de mundo, reveladas por meio de sua conversa, são ratificadas pelas seqüências que retratam suas vidas (atuais ou passadas). Jorginho fala ao celular: “Mata! Vai lá e executa! Paz, Justiça e Liberdade!”. Repetido como um slogan vazio (que remete ao período em que Jorginho 144

esteve preso nos anos 70, no qual foi iniciado na práxis militante), “Paz, Justiça e Liberdade” parece ainda estar presente nas ações da personagem: “Miguel, eu to com uma guerra lá no morro. Que que tu quer?”; “Ligar pra quê, Jorginho? Pra mandar matar? Porra, mermão! Não acredito que você concorde com isso!”; “Sabe por que você não acredita? Porque você não entende nada de trabalhador!”. Desautorizando a militância política de Miguel e reafirmando seu lugar na ordem patriarcal estabelecida na favela, Jorginho se situa na posição de criar e aplicar “leis” transmitidas oralmente e, se descumpridas, puníveis com a morte, inclusive. As instâncias nas quais a ordem via de regra se afirma são apropriadas e invertidas pelos pretensamente subordinados a ela para, dentre outros, contestar a ordem enquanto transcendente e suas necessidades ‘imutáveis’ de conservação e preservação de valores como vida, projeto, planejamento, convivência pacífica etc, explicitando a historicidade em que ela se mantém. “Quer saber? Acho que nós dois perdemos”; “Mas tu perdeu bonito, Miguel! Terno, gravata e carro oficial!”; “Sabe por que minha filha tá correndo esse risco? Porque eu ensinei a ela que todos nós nascemos iguais”; “Não, Miguel, tua filha tá correndo esse risco porque o mundo é assim e tu não consegue entender, mermão!”. Representa-se a luta pela autoridade em nomear o mundo através dos valores das personagens: o humanismo e a oficialidade de Miguel contrapostos à ironia e à lógica da sobrevivência de Jorginho. Aliás, este já tinha mencionado a autoridade de Miguel pela circularidade: “o mundo dá muita volta e pára no mesmo lugar. Mas aí já está tudo diferente”, sendo que os reencontros deles podem ser compreendidos como um ato de re-encenar os lugares de fala ligados principalmente à classe e à raça. “Sabe o que acontece agora lá no morro? Sabe quem manda lá agora? Não é polícia, não é delegado, não é político, não é porra nenhuma! É nós! E nós faz direito! Quem vacila, morre! Quem trabalha, tá direito!”; “Tá direito? Tá direito enquanto obedecer! E se não obedecer, morre! E se tiver um filho de dez anos de idade, pode apostar que o moleque vai preferir ser aviãozinho do tráfico e pagar uma de gostoso até os quinze, porque aos quinze ele também morre!”. Mais à frente, retoma a fala: “Do jeito que tá não tem saída! Pensa bem. Quem sobrou do seu pessoal, Jorginho? Ninguém! Tá todo mundo morto!”. Ambas as narrativas ligam o grotesco ao universo popular (e à criminalidade em particular), relacionando a concepção de prestígio presente no narcotráfico (que se pauta pelo acesso a bens escassos no domínio do popular) e o hedonismo contraposto à morte prematura. Desse modo, as noções de vida e de projeto – tais como formuladas por um 145

ethos de classe média – são invertidas na lógica popular, segundo a qual o momento vivido se sobrepõe a uma vida possivelmente projetada (entretanto, o niilismo e a ‘barbárie’ que horroriza aquela são imediatamente lembradas pela autoridade de Miguel). A raça enquanto fator de construção da hierarquia social é trazida à conversa por Jorginho: “A minha mãe morreu. A tua não. Meus filhos estão todos largados por esse mundo afora. Essa é a diferença! Por que você acha que hoje ia ser diferente? Por que você acha que hoje ia ter uma saída, Miguel? É... Eu ouvi falar dessa história da tua filha: a branquinha que se encanta com o do morro! Deley é dos meus! Menino bom! Às vezes eu fico pensando que ele teria uma chance.... É isso que você veio oferecer pra ele, Miguel? Uma chance?”. Fatores pretensamente ligados ao biológico – natalidade, expectativa de vida – ao marcar a diferenciação entre as personagens, revelam a raça como um conjunto de práticas discursivas (noção de projeto e sua contestação) e não-discursivas238, questionando, pela ironia usada com o termo “chance”, a meritocracia construída por uma elite visando sua manutenção no poder. O choque de gangues rivais é privilegiado em Quase Dois Irmãos, mostrado de forma teleológica em relação ao passado: o homicídio generalizado fundador do Comando Vermelho reproduzido ad nauseam nas favelas cariocas (isto é, o mito fundador da criminalidade atual sob o signo do assassinato239). Aliás, a tensão entre a ‘ordem’ do crime e subversão – já presente na ‘origem’ do Comando Vermelho, representada pelo choque entre Jorginho e Pingão – reproduz-se em várias passagens do filme: em paralelo ao baile funk freqüentado por Juliana e suas amigas, encena-se uma execução sumária que marca o surgimento de uma nova facção rival dissidente do bando chefiado por Deley (e por Jorginho, que se encontra preso). Câmera na mão acompanha o arrastar de um jovem por alguns integrantes do bando, que o agridem com tapas e socos. “Cadê o meu dinheiro, porra?”; “Eu não tenho, minha mãe tá doente”; “Tá doente o caralho!”. Em plano geral, outros integrantes chegam para dissuadir Duda de executar o jovem: “Ó, mermão! Tá ligado que tu não 238

A expectativa de vida - evidentemente não no seu aspecto biológico e sim enquanto socialmente estabelecida - em virtude do tipo de vida/ocupação/acesso a sistema de saúde etc que as personagens das mães de Miguel e Jorginho tiveram. 239 Interessante notar que o mito fundador de facções criminosas pode ser de ordens diversas, ao contrário do senso comum que o liga inerentemente ao homicídio: estas podem surgir de alianças marcadas por pactos entre clãs, casamentos inter-étnicos, setores de uma elite descontente com o Estado, ondas massivas de imigração, ‘informalização’ de alguns setores econômicos etc.

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pode fazer essas paradas aqui em cima não! Tu não vai passar o cara não!”; “Esse filha da puta tá me devendo, rapá!”; “Vou falar com o patrão! Se o patrão falou que é pra passar, tudo bem, mas se não for pra passar, não vai passar não! O cara é da comunidade, não é alemão não!”. Deley pega o celular; Duda aponta para o jovem e atira; bandos se dividem com armas em punho. Plongée mostra Deley zombando de Duda e sua nova facção. A divisão entre facções é incorporada ao cotidiano da comunidade. Bando de Duda desce escadaria e vai à lanchonete de ‘Paraíba’, compra um sorvete para um menino do bando e cerveja para os comparsas. À recusa de Duda em pagar, ‘Paraíba’ avisa que irá falar com Deley - seu então rival - sendo executado sumariamente pelo bandido (planos médios e closes mostram o corpo de ‘Paraíba’ no chão da lanchonete). Em uma cena posterior, o bando de Deley invade a casa da empregada de Juliana, ameaçando-a e arremessando seus pertences (televisão, lustre, mala etc) pela janela (o som off dessa cena, o de um locutor de rádio falando “Vamo zoá! Vamo se divertir! Vamo curtir baile!” adiciona um efeito patético à cena, visto que a noção de projeto – tal como concebida pelos setores médios – é questionada no plano da imagem e do som). Essas seqüências são opostas ao diálogo entre Miguel e Jorginho, no qual o primeiro argumenta que o ‘patriarca’ da ordem ‘paralela’ perdeu o controle da situação no morro. Acrescentaríamos que o populismo presente nas relações entre os moradores da favela e os traficantes (os novos ‘patriarcas’) é obrigado constantemente a ser renovado, tendo em vista a fluidez dessa ‘ordem’. Uma vez que o preço a ser pago pela violação dos códigos de ética - cada vez menos ‘conhecidos’ previamente – é a própria vida, a necessidade de formar novas redes de solidariedade submete os moradores a um poder arbitrário que mina as possibilidades de resistência e de projeto a uma ordem estatal opressora (no caso das favelas, a relação de opressão destas com o Estado se efetua pela ação da polícia, que aparece em Quase Dois Irmãos enquanto aliada do narcotráfico, na seqüência em que policiais vendem armas para Deley). Logo, o grotesco é representado em duas acepções: enquanto definição de um popular no qual o ‘baixo’, o ‘corpóreo’, as ‘excreções’ das relações cotidianas (evidenciado pelo sangue, suor etc) e as ‘inversões’ da ordem (homens que se vestem de mulheres; integrantes do bando que se revoltam, presos comuns que adotam o vocabulário militante etc) apontam para uma possível resistência (que, todavia, ainda não encontrou projetos mediante os quais se viabilizasse politicamente); ou como uma 147

representação teratológica do ‘povo’, afirmando a desordem e o caos como suas características e, por isso, necessitando de agentes externos (escolhidos em outras classes sociais, notadamente a classe média) para nomeá-lo e organizá-lo. A tensão em torno da representação do povo revela o confronto a respeito de uma visão ‘pedagógica’ – na qual a união popular ‘funda’ a nação – e o performativo das narrativas cotidianas que alçam o conflito às relações entre os ‘nacionais’ (sejam moradores de favela, sejam membros da elite ou dos setores médios). Quase Dois Irmãos transita por essa tensão colocando-se prioritariamente ao lado da ordem (a autoridade narrativa do Miguel jovem – expressa na voice over de Caco Ciocler que acompanha todo o filme – configuradora de uma ‘memória de futuro’, isto é, uma visão projetiva do militante político contraposta ao fim da utopia, à desilusão da personagem e à ascensão da criminalidade contemporânea), porém não sem antes incorporar à sua diegese as ambigüidades referentes aos discursos totalizadores da nação (seja a da direita vitoriosa com a ascensão do regime militar, seja a da esquerda que impõe regras dentro do microcosmo do presídio). Já em Quanto vale..., a violência aparece simultaneamente como um recurso monitorado pela elite e uma apropriação do discurso do marketing e sua ‘remodelação’ pelo seqüestro e pela denúncia, sublinhando o niilismo político da atuação das minorias na esfera pública. Desempregado, Candinho, após ouvir o esporro da sogra e o lamento da esposa, passa à função de matador de aluguel. Câmera mostra este correndo atrás de dois homens com uma arma na mão e os encurrala em um beco. Hesita antes de atirar e os dois jovens alvo da perseguição têm reações diferentes: o primeiro (negro) inicia uma agressão verbal (“Abaixa essa arma, caralho!”), enquanto o segundo (branco) tem uma reação patética – um ataque epiléptico – e implora por sua vida. Apresentado como um ‘serviço incômodo’ inicialmente, o hesitar de Candinho pode ser remetido a um espectro de valores atinentes à classe média baixa, profundamente arraigado pelo ethos religioso (um deles é, certamente, o respeito à vida, o primeiro item da Lei Mosaica). Esse mal-estar será acentuado na última seqüência, através dos dois finais: no primeiro, mata Arminda, grávida, em sua própria casa (a câmera assume seu ponto de vista para transmitir a agonia final da personagem, manifestada em seu prolongado suspiro); no segundo, Arminda se vale de sua hesitação para cooptá-lo: “Atira! Atira! O que que você quer? É grana? Porque se for grana eu sei como conseguir. Eu sei como conseguir!”. Arminda levanta-se e vai em direção a ele. Close mostra as duas personagens e Candinho sem reação diante do discurso de 148

Arminda: “Ou é só violência? Porque se for só violência tudo bem também! Você mata, arrebenta a cara daquele filho-da-puta! Arranca uma orelha, arranca um dedo... A gente pega o dinheiro do Ricardo e pra começar, a gente monta uma central de seqüestro, assim, tipo filme americano! Não é só pelo dinheiro não! A gente acaba com tudo que é filho-da-puta que rouba dinheiro do Estado!”. Evidencia-se uma predisposição para resistir, porém desarticulada de um projeto político capaz de imprimir mudanças sociais (inclusive na nomeação da legitimidade da violência). No filme, há ainda o paralelo entre a atividade de Candinho, o discurso ligado à classe média baixa e o Estado. Este lava o rosto e as mãos após a execução dos dois jovens e escuta as reclamações de Mônica: “Tem que ter emprego fixo, patrão, horário de entrada, saída. Não adianta: quem trabalha sem apoio, sem estrutura, se dá mal”. Carro de polícia entra em praça acompanhado da voice over de Mônica: “não adianta. Tem que ter emprego fixo. Esses bicos aí que você tá fazendo, já existe uma classe profissionalizada, muito mais preparada. Gente com muito mais experiência”. Câmera parada mostra carro da polícia estacionando, policial abre o porta-malas e recolhe crianças de rua que estavam dormindo, colocando-as à força dentro dele. Crianças gritam inutilmente. Estabelece-se o vínculo entre a atividade “amadora” de Candinho de matador de aluguel e a “profissional” da polícia em executar o mesmo serviço, o que a situa enquanto aparato meramente repressor e aparentemente desconexo com o discurso democrático propagado pela elite intelectual e financeira. Isso seria retomado através da ordem de Ricardo para matar Arminda, revelando a democracia como um jogo a ser seguido até o momento em que o papel das elites é posto em xeque. Entretanto, a violência também pode se situar fora do comando dessa elite e, mesmo assim, assegurar a manutenção de uma ordem. Seqüestradores assistem à mesma seqüência que é apresentada aos espectadores (Marco Aurélio e sua aula sobre “padrões de consumo”). Desliga-se a TV e seqüestrador (Lázaro Ramos) conduz a reunião: “Esse é o nosso homem!”, mostrando fotos de pessoas relacionadas ao alvo (Ricardo Pedrosa e Lílian, sua esposa) e explorando as falhas que podem levá-los ao êxito. Em uma passagem posterior, o seqüestro é consumado: ao chegar a casa (mostrada em uma grande panorâmica), depois de jantarem no luxuoso restaurante “Tournage”, Lílian encontra sua empregada morta e Marco Aurélio é surpreendido, sendo enfiado em um saco preto e levado à força (ao som de uma batida estridente, usada para aumentar o terror da cena). 149

Marco Aurélio aparece amarrado e amordaçado e seqüestrador faz um monólogo: “o Doutor é um grande solidário. Então nós também queremos ajudar. Se a polícia não estivesse esperta, eu te levava pra dar uma volta na comunidade pra você ver os seus investimentos. Agora, me diz uma coisa: o que a periferia, o que a comunidade leva com os seus projetos? O que a gente ganha com os seus empreendimentos comunitários? Qual a nossa parte no teu lucro?”. Tira com força a mordaça de Marco Aurélio, machucando-o, e este tenta responder, mas é impedido. “A gente tem pressa. A partir de amanhã, tua família vai receber uma parte do teu corpo: uma orelha, um dedo. Não é nada pessoal, por mim você ficava inteiro. Mas a sua mulher precisa se apressar. O desespero faz as coisas andarem mais rápido, sabia?”. Na seqüência seguinte, no Theatro Municipal de São Paulo, Marco Aurélio, com a mão e a cabeça enfaixadas, amparado por sua esposa e uma muleta, entra para participar de uma cerimônia, ao som da voice over do seqüestrador: “duzentos e cinqüenta mil dólares. Seqüestro é um negócio moderno. Precisa de violência porque ela funciona como propaganda pra estimular a negociação. É isso que importa hoje em dia? Business? Marketing? Livre iniciativa?”. Corte para foto de criança pobre: “seqüestro não é só captação de recursos. É também distribuição de renda”. Câmera se afasta e revela a foto como telão da cerimônia. O lugar de poder expresso pela posse, por parte da elite, de um aparato teórico que re-configurou o mundo social (e o sistema capitalista), é evidenciado na passagem, porém se realçam também as apropriações discursivas (termos) e não-discursivas (práticas/o “fazer” do marketing) pela criminalidade. Ao contrário da barbárie desenhada em torno dela em Quase Dois Irmãos, aqui, mesmo se sublinhando o grotesco de suas ações – mutilação, terror psicológico – expõe-se sua lógica, concedendo a ela uma representação que transita entre o realismo (descrição das ações dos seqüestradores) e o farsesco (voice over do seqüestrador argumentando sobre a lógica de seus atos, a mesma superposta à ação de Marco Aurélio) sem, no entanto, ironizar sobre sua impossibilidade de empreender transformações sociais de facto, escamoteando tanto seu discurso quanto o discurso oficial de combate à pobreza – “[seqüestro] é também distribuição de renda”. O investimento em projetos sociais é apontado como fator fundamental de contenção da violência, na fala do executivo Ricardo Pedrosa, para que “eventos como o que ocorreu com Marco Aurélio não aconteçam nunca mais”. Eis a dimensão paliativa trazida à tona, junto com a lógica da contenção e da administração dos conflitos e, junto 150

com ela, o caráter circular entre violência e ordem social (afinal, o “ciclo” não é quebrado ou sequer contestado). Outro tipo de violência é também trabalhado na seqüência: a violência de cunho racial. Arminda, após fazer um protesto, é convidada por Ricardo para a festa. A violência simbólica logo se faz presente no visível constrangimento dos que estavam no protesto ao se sentirem confrontados com a opulência da arquitetura do Theatro Municipal e com a pompa da festa. Ponto de vista visual e sonoro é construído em torno de Arminda, que escuta fragmentos das conversas dos convidados grã-finos na festa: “Estou muito otimista. Ano que vem vai dobrar a parceria público-privado/ Até pode ser, mas quem não entrar num pool de associações vai ter de ser contentar com as gorjetinhas do governo”; “esse ano eles não querem renovar o patrocínio!/ Fala com o Cássio, da Secretaria de Cultura! Ele te libera o dinheiro. E agora ele tá cobrando 15 por cento! Antes ele cobrava 20... É a crise”; “não é privatização, é concessão para administrar!”; Arminda vê capitão-do-mato passeando pelos convidados e olha para Ricardo Pedrosa, que discursa para convidados: “contratar presidiário pode ser uma diminuição de gasto. Você deixa de pagar quatrocentos reais pra um empregado e passa a pagar cem, menos ainda, né?”; Ricardo levanta taça cumprimentando Arminda e continua: “esses presos em regime semi-aberto são pacatos, não vão causar nenhum tipo de problema. Isso é re-inclusão social!”; Arminda sente ecoar em seu pensamento a voz de Ricardo repetindo “são pacatos!”. Explicitando a visão de uma classe média baixa sobre a ‘partilha’ do estado pela elite branca, o filme o faz através do ressentimento e do mal-estar da personagem (em seguida projetados na denúncia contra Ricardo perante uma rede de televisão). A ‘visão’ do capitão-do-mato remete à ligação entre os tipos de controle social empreendidos: da caça aos escravos, passam-se aos banquetes milionários e cheios de negociatas. Um dado interessante é a visão dessa elite sobre o povo. O adjetivo “pacatos” evidencia a concepção de que o povo pode e deve ser dominado via pequenas concessões, cabendo a esta elite o nomear do ‘destino’ do país (e, por conseguinte, dos recursos), já que o povo, na perspectiva desta, seria incapaz de formular por si só projetos nacionais. Vejamos a tensão existente na historiografia no tocante à representação do negro, relatada por Lilia Schwarcz:

(...) permanece polêmica na historiografia a questão da atitude do cativo frente à sua condição escrava. Nesse sentido, as opiniões divergem radicalmente, existindo basicamente duas tendências opostas na produção

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historiográfica brasileira: a primeira, que acentua o caráter passivo e dócil do negro, e a segunda, que, ao tentar refutar a primeira, termina por cair no outro extremo, fazendo do escravo negro um verdadeiro herói (1987, p. 18).

Logo, essa tensão entre passividade e protagonismo das minorias sociais, presente no saber letrado, será incorporada pelo filme no sentido de explicitar as ambigüidades do discurso das personagens e de suas ações. À construção da visão “pacata” do povo pela elite, o filme opõe momentos em que o primeiro é alvo de ironias e teratologias. Além disso, podemos nos apropriar do pensamento da autora e inferir que o filme transita entre vários modos de conceber a reação dos negros/pobres ante a hierarquia social que os exclui. Seja através da denúncia televisiva, da contestação do discurso caridoso das ONGs e da representação da violência, Quanto vale..., ao evidenciar o conflito como base das relações de classe e de raça, ora revelará um ativismo político capaz que questionar o poder de nomear das elites, ora sublinhará o niilismo político de algumas reações, ora enfatizará a reprodução da ideologia (branqueamento, caridade, reificação etc) por parte dos segmentos estigmatizados. Já Narradores..., além de privilegiar a violência simbólica, quando opta por encenar um conflito entre personagens, o faz enfatizando o retórico e o corporal sem, no entanto, remeter à morte física. Em poucos momentos, o conflito chegou ao quase insustentável. A possibilidade de este acontecer é anunciada na narração de Daniel sobre a história de vida de seu pai, que termina: “Não tenho de nada não, seu Biá! Dessa casa, eu só saio morto!”. A presença do coronel Gaudério, a “autoridade” do local, ativa o confronto. Este é apresentado na seqüência em que os engenheiros ocupam a cidade. Moradores protestam diante de placa que anuncia a construção da barragem. Firmino reclama com Biá: “Foi Gaudério quem trouxe os homens!”; “O matador?”; “Isso mesmo! Aquele coisa ruim filho de uma peste!”. No bar, Biá bebe um copo de pinga ao som do protesto de Vado: “Queria era correr com eles daqui!”, ao que Firmino responde: “e quem corre com Gaudério, aquele coisa ruim, que parece que tem uma nuvem negra na cabeça?”. Antero, o dono do bar, faz gesto de silêncio e Gaudério chega subitamente, fazendo o pedido de um copo de pinga com um gesto. “Mas num tá fácil! Essa represa vem que vem bulindo com a cabeça de muita gente! Vai ser um aguaceiro danado de não sobrar nada! (...) E quem é o tal de Biá que esse povo tanto fala?”; Biá, à sua frente, o responde: “Sou eu mesmo, em carne e osso!”; “E você é o quê? Faz o quê?”; “Eu sou escrivão de prosas, seu Gaudério! To na labuta de escrever os nobres e grandes feitos do vale do Javé! História 152

como o senhor sabe até hoje muito contada e ouvida, mas nunca escrita e lida!”; “Prezo essa labuta! Respeito! Ainda mais se é pra contar a história de um lugar que não vai existir mais!”. Gaudério começa a rir, sendo subitamente interrompido por Vado: “o senhor me desculpe de eu falar, mas Javé não vai afundar! A gente parece meio pelas covas mas só parece! Nós também viemos de gente de coragem! O livro vai provar nos termos científicos!”. Na seqüência seguinte, a reunião dos engenheiros e dos moradores na praça é interrompida por vários tiros (o filme hibridiza os registros do cinema e do vídeo caseiro para, em um primeiro momento, revelar os protestos dos moradores e, em seguida, transmitir ao espectador o corte abrupto dos tiros). Gaudério, de arma em punho, espreita à procura do atirador enquanto os presentes na praça saem correndo. Daniel sai da sombra e o desafia: “Se tiver coragem, atire!”; “Vou fazer sua vontade”. Gaudério é impedido por dois engenheiros e Daniel aponta a arma para eles: “Deviam de botar pra correr essa gente a mando da represa e quem mais vier”, no que é contido pelos moradores. Vê-se, além do poder político local a serviço dos interesses estatais, a possibilidade de um confronto armado (e, por conseguinte, a extensão deste a uma resistência armada, no que é abortado pelo pacifismo dos moradores). Em Quanto vale..., o personagem Marco Aurélio, alvo de um seqüestro, é mutilado, tendo dedos e orelha amputados. Arminda é assassinada no primeiro final. O sofrimento dos escravos negros é exposto junto aos instrumentos de tortura. Já em Quase Dois Irmãos, Juliana é agredida e empurrada por Mina de Fé, sendo machucada na cabeça; na penúltima seqüência, é estuprada pelo bando rival de Deley; várias execuções sumárias são mostradas no filme; o bando de Deley invade casa de senhora moradora da favela e a espanca, destruindo seus móveis; Jorginho é espancado na cadeia por um guarda negro que grita: “Que história é essa de negro subversivo?! Não existe negro subversivo!”. Desse modo, os conflitos de raça e de classe são “corporificados” nas relações entre os personagens e marcados pelos signos da violência e do grotesco. A tensão entre o pedagógico e o performativo, aqui, inscreve a narrativa da nação como corpo na reiteração do lugar dos discursos raciais e na ênfase de seu viés histórico/temporal. Para encerrarmos, nada melhor que a letra Vida de bandido, de Mr. Catra, no baile funk de Quase Dois Irmãos: “Liberta, coração! Liberta, coração! A vida na cadeia, amigo, não é mole não! A vida na cadeia não dá nem pra imaginar! Acredite meu amigo, só vendo para falar!”. 153

Capítulo 3 POR UMA PASÁRGADA MODERNA OU PÓS-MODERNA? ALGUMAS NOTAS SOBRE IMAGENS DE BRASIL

Sendo a nação um sistema de classificação social conjugado com vários outros (classe, “raça”, gênero etc) – mais que uma mera “comunidade imaginada” – esta se faz presente em diversas práticas no tocante à produção de sentido, para recordar ao universo das subjetividades a “existência” de uma ordem objetiva partilhada coletivamente (muitas vezes chamada de “esfera pública”). Diversas imagens de Brasil são passíveis de serem rearticuladas a partir da memória do campo cinematográfico inscrita no habitus partilhado e disputado por seus diversos agentes. No presente capítulo, tentaremos analisar de que modo as imagens tradicionalmente ligadas ao Brasil e suas dicotomias – cidade/campo; favela e sertão – são atualizadas em Quanto vale ou é por quilo?, Quase Dois Irmãos e Narradores de Javé, além da realização de uma abordagem levemente comparativa com outros filmes brasileiros do período compreendido entre 1990 e 2007. Torna-se extremamente difícil, de um lado, deixar de reconhecer, no cinema brasileiro atual, um desejo de efeito de verdade na produção de imagens relacionadas à brasilidade e, de outro, os condicionamentos de que essas imagens se pautam para articular/legitimar/contestar/reinscrever certas categorias identitárias. Para limitar nosso esforço, restringir-nos-emos aos espaços construídos nos três filmes, sendo que a análise comparada será inscrita nessas representações. Aqui, assim 154

como o fizemos no capítulo anterior, devemos evocar as questões atinentes à imagem formuladas no capítulo um para lançar nossa hipótese principal: o cinema brasileiro contemporâneo continua a privilegiar os lugares da imaginação nacional formulados durante a formação discursiva do nacional-popular (leia-se, favela, sertão e subúrbios), porém não sem alterar as formas de apresentação dos mesmos, através do diálogo com outros campos da comunicação audiovisual (principalmente a televisão). Para auxiliá-la, eis algumas hipóteses secundárias: a) a tensão dos entre-lugares240, nos espaços de sociabilidade ligados à formação de um sentimento de “brasilidade”, mesmo imprimindo algumas alterações, potencializou a disputa por significado atinente a essas imagens; b) assim como as representações ligadas aos personagens e à narrativa, os lugares/imagens também passaram a ser re-apresentados de acordo com vários sistemas de classificação que disputam, nas fissuras do discurso nacional, seu direito a significar, o que evidencia a formação de um novo regime discursivo, construído por meio das contradições do anterior (sem, no entanto, aboli-lo por completo).

I

O URBANO: DO COSMO AO CAOS...

A cidade encontra-se em dois dos três filmes analisados. Apresentado de modos diferentes, o ambiente urbano aglutinará uma série de espaços já representados pelo cinema brasileiro ao longo de sua história: favela, subúrbio, as metrópoles, os presídios etc. Em Quase Dois Irmãos, uma imagem da formação nacional é privilegiada: a favela. Cindida em duas temporalidades, esta transitará entre duas representações comuns ao popular - o idílio e o teratológico - e reviverá diversas narrativas veiculadas pelo cinema brasileiro, tais como Favela dos meus amores, Rio 40 Graus, Rio Zona Norte, Cinco Vezes Favela etc, trazidas pela memória do campo ao tempo presente. A favela dos anos 50 (“1957 – Favela Santa Marta”) configura uma junção de planos subjetivos da personagem Miguel, na medida em que ela existe diegeticamente a partir de sua memória afetiva (imagens mentais – todas as inserções dela se fazem por meio de lembranças, sonhos, delírios etc de Miguel), o que nos remete a um imaginário

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Recordando que os “entre-lugares” são uma categoria discursiva que, mesmo necessitando de uma base material, configuram processos mentais individuais e coletivos, assim como ‘identidade’ e ‘comunidade’.

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articulado em alguns setores das classes médias sobre o lugar-favela enquanto imagem de povo e de Brasil. É apresentada como um espaço onde se articula inicialmente uma fábula, através da imaginação do menino Miguel – plano da porta-bandeira bailando ao som da voice over de Helena (“Todo mundo olhava espantado, sem saber quem poderia ser aquela moça tão bonita e bem vestida que dançava e dançava e dançava com o filho do rei”), sendo que a câmera amplia para a dança desta com o mestre-sala (o “filho do rei”). A produção de sentido no tocante à representação de um mito de origem é ampliada nas inserções seguintes em que a favela aparece: seu Jorge aparece tirando a letra de um samba acompanhado do pai de Miguelzinho e câmera focaliza em plano conjunto o encontro dos dois, uma metonímia do encontro racial e de classes. O universo popular adquire autonomia narrativa e passa a simbolizar uma nação ideal. O Brasil “cordial”, fruto do encontro racial não-violento e resistente às desigualdades sociais contemporâneas, é eleito enquanto um mito de nacionalidade a ser narrado a gerações futuras, dialogando com o ideal da democracia racial tal como formulado por Gilberto Freyre, por meio do contato (via sexo) das diferentes “raças”. A favela, portanto, configura aqui uma “imagem mestiça” e pacífica do Brasil, destacando a postura de uma classe média intelectualizada (lembremos que Miguel é militante político e seu pai é jornalista) que revigora um ideal de kultur romântico e dota o popular de “raízes imaginárias” de uma nacionalidade em formação e de uma “essência” a ser louvada, respeitada e transmitida via narrativas (inclusive audiovisuais)241. Aqui, aparece como um “microcosmo”, onde a existência de outros ambientes é apenas mencionada (na fala, por exemplo, de Dona Rosa, quando fala do seu cotidiano na “casa da patroa”). A identificação entre a memória afetiva de Miguel e a representação da favela, aliada ao fato de a primeira ser formulada em sua infância, conota ao popular uma outra 241

É preciso, nesse ponto, fazer alusão à diferença entre Kultur e Zivilisation feita por Norbert Elias em O Processo Civilizador. Tendo a cultura alemã como seu referencial teórico, Elias afirma que o primeiro termo (Kultur) era politicamente usado por uma classe média universitária que, no século XIX, tentava afirmar a valorização de um domínio popular para fazer frente à burguesia alemã afrancesada que se valia de inúmeras marcas de distinção para consolidar seu poder político e econômico e desprezava as tradições alemães (Zivilisation, em referência ao conceito francês de Civilisation, cuja base era a escala de valores que iam do primitivismo à civilização plena, sendo esta alcançada via progresso científico e extirpação dos valores e hábitos tradicionais). Esses conceitos alternam-se no tratamento concedido às diversas culturas populares, cujo tom varia entre o culto das “raízes” (domínio do “essencial”) e as narrativas que as ‘demonizam’ e que pregam a necessidade do progresso para alterá-las (é interessante frisar que os usos políticos do conceito ‘popular’ podem variar desde a afirmação deste como o domínio do nacional até a presença deste no âmbito da cultura de massa, hibridizando-se com esta).

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característica: a pureza. Retornando à roda de samba, a câmera mostra os instrumentistas em close acompanhando a melodia de Jorge e o cantar empolgado do pai de Miguel e este, envolto em uma fotografia preta que destaca seu rosto e, em seguida, um pandeiro tocado. Evocando a figura do “malandro”, caracterizada justamente pelo contato entre os diversos segmentos sociais, o filme elege como seu mito do eterno retorno um momento de pacifismo que, acentuado pela fotografia amarelada (signo de um passado), terá seu lugar de autoridade legitimado ou contestado em outros momentos242. Essa imagem de favela enquanto signo da nacionalidade brasileira remete-se diretamente à formação discursiva nacional-popular, uma vez que filmes como Rio 40 Graus, Orfeu Negro e Rio Zona Norte já haviam apresentado ao cinema brasileiro esse espectro de representações. Em Rio 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos, 1954), destaca-se a rede de solidariedade existente no morro em contraponto ao asfalto no qual as pessoas se batem a torto e a direito, por meio da personagem do menino vendedor de amendoins (o contraste entre a solidariedade dos moradores à sua mãe doente e a indiferença de sua morte em frente ao Maracanã no momento de um gol). Em Quase Dois Irmãos, a união popular se faz presente na roda, onde os moradores confraternizam ao som dos sambas243, percebido como um atenuante das adversas condições de vida (o delírio de Miguel, na surda – cadeia dos anos 70 – é entrecortado com planos conjuntos que mostram moradores sambando, planos em close de Jorginho e Miguelzinho dançando e planos médios da porta-bandeira bailando – uma repetição do início do filme, sendo que a música do samba ‘contamina’ toda a seqüência). Sendo assim, o popular aparece dotado de uma força coletiva tanto na representação de Rio 40 Graus quanto aqui. Já em Rio Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957), retrata-se o fracasso de um sambista em gravar suas músicas – referência clara em Quase..., uma vez que Miguel, ao receber na cadeia a notícia da morte de Jorge Silva, constata o mesmo: “morreu sem ter conseguido gravar um samba”. A criatividade popular, em ambos, é mostrada como tolhida pela indústria cultural e pela comunicação de massa dominada 242

Precisamos notar que o cotidiano da favela dos anos 40-50 é, até hoje, trazido à memória coletiva por meio da indústria fonográfica e dos sambas de Cartola, Pixinguinha, Noel Rosa, dentre outros e suas “releituras pós-modernas” por outros ritmos (funk, hip hop, dance etc), recordando o ideal romântico que paira sobre esta e dialogando com as representações audiovisuais (cinematográficas, televisivas etc). 243 Essa representação das rodas também se encontra no esquete de Carlos Diegues em Cinco Vezes Favela (Escola de samba, alegria de viver), justamente para enfatizar a união popular e associá-la ao prazer corporal.

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por uma elite tecnocrata, que se apropria de suas criações e oblitera o acesso das massas populares à criação socialmente reconhecida (isto é, na qual circulam capitais econômicos e simbólicos), reservando a estas massas somente o papel de consumidor (se bem que, em Quase..., a personagem do jornalista é representada de forma bem mais leve que o empresário vivido por Jece Valadão no primeiro, porém não esquecendo o viés romântico de sua relação com o morro). Orfeu Negro (Marcel Camus, 1959), por sua vez, encena o mito grego de Orfeu e Eurídice em uma favela carioca “imaginária” (isto é, desvinculada da geografia urbana do Rio de Janeiro tal qual comumente aludida). Para tanto, une os desfiles de escolas de samba à representação do mito atemporal e incorpora o cotidiano árduo da favela a este. Quase... também se preocupa em encenar um mito – desta vez, o mito fundador de uma nacionalidade – adotando estratégias discursivas às vezes semelhantes a Orfeu Negro (o filme apresenta em seu início, dentre outros, um desfile de escolas de samba no Sambódromo carioca; a narrativa mítica do encontro e relacionada a um passado imemorial). Já a favela atual é representada de modo a salientar mais que uma “cidade partida”, uma cidade inconciliável e que encontra no ciclo trágico - envolvendo narcotráfico, presença de armas cada vez mais potentes e conflito de facções criminosas - seu desenlace “inviável”. Este espaço de sociabilidade híbrido entre o urbano e rural na medida em que não é totalmente incorporado à cidade, porém mantém redes de sociabilidade que, mesmo desestabilizadas pela migração, possuem algumas semelhanças com as sociabilidades do campo - é alçado à diegese por meio de um baile funk e sua contraposição a uma execução sumária de um morador da “comunidade”, em virtude de uma dívida não quitada com o tráfico. Câmera mostra Juliana e suas amigas cumprimentando menino negro e acompanha seu movimento na entrada do baile, cujo ápice é seu beijo em Deley, sob o olhar raivoso de Mina-de-fé (não sem esquecer o bando de criminosos empunhando armas e consumindo drogas, os signos da favela atual tais como veiculados pelos meios de comunicação – principalmente o telejornalismo). Do romantismo, passamos, portanto, às narrativas do teratológico, como se fosse reproduzido o rapto mitológico de Perséfone por Hades e este a conduzisse novamente ao Inferno comandado por ele. O “rapto”, aqui, é substituído pela atração e pelo fascínio de Juliana perante este microcosmo - partilhado parcialmente por suas amigas - visto que alia à favela valores como liberdade e contato democrático entre classes e raças (e revivendo, em parte, as 158

narrativas românticas em torno da favela, tal como concebida por seu pai). Por isso, critica o olhar supostamente etnocêntrico de seu pai, qualificando-o de racista. Ironicamente, o desenlace desse “rapto” pela atração é o estupro, uma espécie de “punição” que ressalta a violência do contato entre desiguais na sociedade contemporânea (a cena em que Juliana é estuprada contrapõe o ato do bando de Duda a imagens da cidade iluminadas à noite, evidenciando o caráter cíclico da violência e o signo da cidade enquanto uma recordação do papel das classes). É preciso, aqui, comparar a relação de Juliana com a de suas amigas: enquanto a primeira tende a cada vez mais ampliar seu raio de ação (mesmo que isso implique riscos), suas amigas se situam mais temerosas ante esse universo (incorporando simultaneamente os discursos do exótico e do teratológico), haja em vista a cena em que elas, esperando por Juliana e sentadas na escadaria de acesso ao morro, ao avistarem homens armados transitando, são tomadas por um conflito entre ir embora ou esperar a amiga. Esse mesmo conflito é acentuado pelo encontro entre Juliana e Mina-de-fé, no qual a primeira é agredida (a agressão como mais uma possível punição à transgressão no contato inter-classes, adicionada à humilhação imposta a Juliana na discussão com Deley). A favela representa, logo, um espaço de expiação contemporânea (ao contrário da resistência e da possibilidade de um projeto de transformação social, imagem referente a uma jovem esquerda política dos anos 60, a favela passa a ser o domínio do caos, ‘contaminando’, inclusive, os que a freqüentam). A união popular que se acopla à representação da favela dos anos 50 é devastada pelo cotidiano da favela atual, mergulhado na briga entre facções criminosas rivais. A rede de solidariedade cede lugar ao terror vigente através das “leis do crime”: o assassinato de “Paraíba”, a invasão da casa da empregada de Juliana pelo bando de Deley (que a acusa sumariamente de delação), além da atuação corrupta da polícia e da presença de armas pesadas; tudo isso configura a ascensão de uma imagem da favela enquanto lugar que aniquila a possibilidade de resistência e de projetos formulados no âmbito popular. Isso acentua as disputas do lugar antropológico e do entre-lugar imposto pelas “leis do crime”244, cujos territórios são marcados pelo critério econômico e que apreendem os conflitos de ordem simbólica entre comunidades historicamente rivais. 244

Isto é, a tentativa de os criminosos implementarem “leis” enquanto a homogeneização similar aos comandos em aeroportos, rodovias e outros deslocamentos (até porque a favela é percebida pelos bandos criminosos enquanto lugar de passagem nos conflitos entre si e com a polícia), na medida em que esta facilita a “leitura” do território pelas facções.

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Ao contrário do microcosmo da favela dos anos 50, no qual a cidade só é mostrada em cenas externas a ele, a favela atual projeta seu olhar sobre a cidade. Em vários momentos do filme, a fragmentação, a decadência e a deterioração das relações humanas – temáticas caras ao ambiente urbano e representadas no cinema brasileiro atual – são “testemunhadas” pela câmera colocada na favela que dirige seu olhar a esse lugar inóspito, porém adotando estratégias de cumplicidade em vez de contestação (como em Rio 40 Graus). Devemos aqui fazer uma pausa para averiguar como essa cisão entre cidade e favela/subúrbio aparece em outros filmes. Fala Tu (Guilherme Coelho, 2003), por exemplo, evidencia um Rio de Janeiro pouco representado: as centrais de telemarketing, a Zona Norte (fora das favelas), Barra de Guaratiba - espaços pouco divulgados pelo cinema brasileiro. Parte-se do cotidiano dos personagens (sendo preciso lembrar que apenas um deles sobrevive exclusivamente da música; os outros possuem ocupação diversa), mostram-se situações em que há uma identidade “espacializada”, sendo a fala de DJ A bastante clara: “Atenção, Senhores assaltantes! Quando vocês forem assaltar, prestem atenção! Não venham para a Zona Norte para levar o material de quem não tem. Levem de quem tem, vá para a Zona Sul, a burguesia está jogando dinheiro à vontade para o alto. Agora um simples trabalhador, cidadão comum, que fala pelo povo pobre, vocês me dão um prejuízo desses?”. Ou, ainda, o depoimento de Macarrão, comparando a vida na favela e em apartamentos: “Quer melhor coisa do que viver em uma comunidade? Todo mundo te respeita, ninguém te olha de olho torto, todo mundo te conhece pelo teu nome. Você mora num prédio de apartamento, ninguém te conhece (...) tipo uma prisão”. Já em O Rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas (Paulo Caldas e Marcelo Luna, 2000), a oposição entre o centro e a periferia de Recife encontra-se presente, sobretudo, nas imagens do documentário: construída por meio de conflitos de movimentos (retilíneos e calmos dos transeuntes da avenida; desesperados, hesitantes e temerosos de um morador da periferia – movimento realçado pelo tremer de uma câmera - que corre não se sabe o porquê) e de espaços (aspecto monumental e harmônico do Centro evidenciado na forma reta da avenida e no Palácio da Justiça versus aspecto simples e “manchado” da arquitetura das casas). A incomunicabilidade entre esses dois espaços será explicitada na seqüência seguinte, onde se vê o jovem Helinho relatando seus laços de parentesco, encarcerado numa solitária. As falas de Garnizé e de Helinho destacam o cotidiano pobre e difícil de Camaragibe, sendo ambas 160

endossadas pelas letras dos rapes de Faces do Subúrbio e de Racionais MCs. O confronto, entre essas duas ordens, é localizável no presídio e no poder de polícia. Por sua vez, em Sou feia mas tô na moda (Denise Garcia, 2005), documentário sobre mulheres cantoras de funk, o lugar priorizado é a Cidade de Deus, graças a panorâmicas, plongées, havendo menção a outros lugares do Rio de Janeiro somente no depoimento dos entrevistados, via de regra de forma negativa (a fala da rapper Juliana sobre um show em uma boate em Copacabana marca o conflito de classes, na medida em que esta narra que senhoras moradoras do bairro jogaram baldes com água em seu grupo, aos gritos de “isso é música de favelado!”). Portanto, concluímos que o discurso político ligado ao rap e ao funk, embora se encontre bem difundido (haja em vista a referência à mídia de massa tanto n’O Rap... quanto no Sou feia...), é ligado a um espaço-tempo específico: as áreas pobres das grandes cidades brasileiras após a década de 80245. Faz-se necessário, ainda, relatar que o principal espaço ligado à construção de uma resistência popular é a periferia, que tem na favela sua principal imagem. Entretanto, Fala Tu inova ao mostrar a periferia fora da favela e, além disso, como essas periferias (dentro e fora da favela) se cruzam na afirmação de um lugar de fala (o filme mostra uma Zona Norte do Rio de Janeiro pouquíssimo representada no cinema brasileiro – Penha, Oswaldo Cruz - mas fazendo a alusão clássica à linha do trem246). Retornando a Quase Dois Irmãos, no último plano geral que encerra o filme, a música Quase Irmãos superpõe-se à imagem dos prédios e mostra em continuidade as casas no morro contrastando com o “cartão postal” do Cristo Redentor, uma ironia na contraposição visual entre o ideal de cidade representado pelo Cristo – revivido em

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Sobre a favela Cidade de Deus, o depoimento de um rapper relata um fato constrangedor sobre a imagem do local: certa vez em que pegou um táxi de Copacabana com sua família, o taxista recusou-se a entrar na favela alegando que era muito perigoso. Reagindo de forma incisiva e afirmando que não pagaria a corrida, foi surpreendido pela atitude do taxista, que o liberou do pagamento, desde que não fosse obrigado a deixá-lo na porta de sua casa. Deve-se conjeturar se essa reação do taxista não se deu, em parte, graças à divulgação de uma imagem negativa da favela após a exibição do filme Cidade de Deus (sobre este assunto, foi-me relatado pela antropóloga Ana Lúcia Enne, com atividades de pesquisa em várias favelas do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense, que após este filme muitos moradores foram constrangidos a não revelar que ali residiam, sob pena de não conseguirem empregos). Desta forma, especula-se se Sou feia... funcionaria como um contraponto à imagem difundida internacionalmente por Cidade de Deus (lembrando que, tendo em vista a repercussão do filme de Meirelles e Lund, a representação deste assume um peso dificilmente contrabalançado por qualquer outro filme com divulgação local ou apenas em festivais). 246 Chamamos essa referência de “clássica” em relação à história do cinema brasileiro (lembrando filmes como Rio, Zona Norte e Boca de Ouro, ambos de Nelson Pereira dos Santos).

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diversas narrativas cinematográficas247 e televisivas – e a desigualdade social em que este se sustenta. A cisão do título do filme é aqui potencializada pela noção de destino, através da continuidade nas ações das personagens Miguel e Jorginho. Vejamos como a imagem do Cristo Redentor faz-se presente em outros filmes: em Cronicamente Inviável (Sérgio Bianchi, 2000), plano geral do Cristo sobre uma música de bossa nova e da narração: “Não é estranho que ele sempre fique de braços abertos? Pode dar a impressão que ele diz: “Venham de todos os cantos do mundo, homens de todas as raças, culturas e credos. E explorem sem piedade, toquem fogo em tudo. Não tenham respeito à terra nem aos que viviam nela. Nem aos velhos, nem às crianças”. O sociólogo Alfredo Bur (Umberto Magnani) olha para Cristo; plano destaque do rosto da estátua; voice over: “Venham e fodam tudo!”. Inserindo a imagem do Cristo numa visão “totalizadora” da realidade social brasileira, o filme se vale de um tom de desautorização (pelo sarcasmo presente na voice over e na contraposição desta às ações das personagens) que se adiciona à alegoria nacional – o Cristo – e evidencia o espúrio empreendido por uma elite financeira. Já em Redentor (Cláudio Torres, 2003), o Cristo é um elemento dramático que atua ora como “personagem-testemunha”, ora como um aliado e uma instância moral relativa à ação do protagonista Célio Rocha (Pedro Cardoso), um jornalista de classe média baixa. Em uma inversão de expectativas, o Cristo é utilizado para legitimar uma moral ligada a essa classe, que vê em valores como honestidade e amizade uma compensação a seu ressentimento e, por conseguinte, explicitar a imagem de um Brasil que necessita ser ‘salvo’ da corrupção e da lascívia das elites, de um lado, e da fúria e da destruição presentes nos movimentos de massas, de outro. Em Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2001), existe uma menção genérica ao Cristo na voice over da personagem Busca-pé (Alexandre Rodrigues) que apresenta o lugar ocupado pela Cidade de Deus na geografia urbana do Rio de Janeiro: “a rapaziada do governo não brincava: não tem onde morar, manda pra Cidade de Deus! Lá não tinha luz, não tinha ônibus, não tinha asfalto. Mas pro governo dos ricos, o nosso problema não importava. Como eu disse, a Cidade de Deus fica bem

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Em comunicação proferida no encontro da SOCINE de 2006, o pesquisador Ismail Xavier destacou a presença de imagens do Cristo Redentor na diegese de vários filmes brasileiros atuais e sugeriu a realização de uma pesquisa sobre como essas imagens produzem diferentes significações. Aproveitando limitadamente a idéia para o objetivo deste capítulo, é interessante contrapor a imagem do Cristo em Quase Dois Irmãos às de outros filmes, o que será brevemente feito aqui.

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longe do cartão postal do Rio de Janeiro”; ressalta-se, aqui, a segregação espacial sob a qual Quase Dois Irmãos também constrói sua dualidade. É interessante salientar que Cidade de Deus realiza uma operação dupla com o imaginário coletivo em torno da favela a partir dos anos 80: ao ser alimentado pela imagem construída pelos meios de comunicação sobre o cotidiano da favela248, marcado pela pobreza dos trabalhadores braçais em contraste com a prosperidade econômica dos agentes do tráfico e com a presença de jovens de classe média, pela violência imposta nos confrontos entre policiais e traficantes e pelo barbarismo da guerra do narcotráfico e seus códigos, Cidade de Deus não apenas reforça esse imaginário, como também reforça uma imagem de Brasil tendo a violência como paradigma. Em Quanto vale..., a favela também aparece apresentada no contato entre classes. Ao contrário do lugar de um mito do eterno retorno, como em Quase Dois Irmãos, a favela passa a representar as conseqüências das fissuras das narrativas nacionais e da construção de uma hierarquia social baseada na reificação. O samba e a roda, de ideais de nacionalidade, passam a ser elementos de uma retórica que limita o popular. Lugar do marginal (no sentido do que vive à margem, não do bandido stricto sensu), onde a cidadania é desconexa do cotidiano árduo, a favela de Quanto vale... representa um Brasil trágico, onde o conflito entre liberdade e necessidade conduz a uma violência caótica e a uma fluidez na transição do poder patriarcal exercido pelo chefe do narcotráfico sobre a comunidade. Importante recordar a ligação feita, por meio dessa imagem de Brasil, entre comunicação de massa e representação ora teratológica, ora caridosa. A caridade veiculada pela publicidade destinada a um público de classe média (mostrando uma favela em preto-e-branco) é substituída, em uma seqüência posterior, pela favela como lugar do crime – seja pela exposição do corpo de um jovem negro morto, seja pela referência no diálogo entre o seqüestrador e Marco Aurélio à comunidade – imagem construída via telejornalismo. Outras imagens associadas a um Brasil urbano são mostradas em Quanto vale... e em Quase Dois Irmãos. No primeiro, o subúrbio, imagem típica de um urbano já há muito exibido no cinema e na televisão brasileiros, é retomado no jogo de classes em que se baseia o filme. Em Quanto vale..., a representação visual do subúrbio se faz ora 248

Não somente pelos meios televisivos, como também pelo próprio cinema brasileiro dos anos 90 e seus vários exemplos: Notícias de uma guerra particular (1996), de João Moreira Salles (que contou, inclusive, com a participação de Kátia Lund, co-diretora do filme e também de Cidade de Deus, e que serviu como base para o trabalho de seleção de jovens atores negros oriundos de comunidades carentes cariocas), Orfeu (1999), de Carlos Diegues, Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho, etc.

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por meio de panorâmicas que o mostram cada vez mais envolto pelas favelas, ora pela casa de Mônica, cuja decadência de ordem material configura um signo do empobrecimento desta classe, além de sugerir uma decadência moral encenada pelas personagens. O “perigo” mobilizado discursivamente por Mônica de a classe média baixa ser confundida com os pobres é, portanto, representada visualmente pelos ambientes nos quais as personagens caracterizados como pertencentes a essa classe circulam. Retornando ao exemplo do comercial “Vencendo com o social”, a decadência é ressaltada na adição entre imagem e som: o ponto de vista de Mônica que mostra o grupo de mendigos na porta de sua casa e a voice over destacando palavras como “dignidade esvaziada”; “bolso vazio”; em seguida, a linguagem publicitária destaca a melhoria na imagem de Mônica e na associação criada e comandada por esta; equipe de TV filma entrevista de Mônica, que resume categoricamente: “eu não vou descansar enquanto houver gente passando fome”. O tom falsamente “cordial” e “caridoso” ante a miséria, passível de ser melhorada pelo trabalho assistencial, enquanto uma mise-enabîme da visão “total” do Brasil marcado por uma perversa lógica de classes de Quanto vale..., é representado e encenado no subúrbio. O cenário que abrigava a malandragem, os dramas familiares de Nelson Rodrigues (inclusive em representações veiculadas pelo cinema brasileiro249) é re-interpretado em sua dimensão trágica: o sonho de ascensão social de Mônica (presente na estética publicitária) contrastado com a decadência material e moral que lhe é imposta (fica desempregada; passa a fazer “bicos” – doces pra vender; revela seu alcoolismo). Inclusive, a própria “salvação” encenada no final (a comemoração de Mônica atirando ao alto as cédulas de cem reais ganhas por Candinho) é desautorizada pela voice over que recorda ao espectador a “origem” do dinheiro e, mais, sua dimensão racial. Outros subúrbios e locais de moradia “popular” representados em filmes como Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2001) e Durval Discos (Anna Muylaert, 2003) merecem ser aqui retomados. No primeiro, um hotel abandonado em Recife é habitado por diversos “tipos” como o homossexual Dunga (Matheus Nachtergaele); Dona Aurora, retratada como uma senhora doente que, em uma cena, enfia um inalador na vagina; o necrófilo Isaac (Jonas Bloch); no segundo, Durval (Ari França) divide com sua mãe (Etty Frasier) uma casa no subúrbio de São Paulo e tem um comércio de discos 249

Diversos filmes ambientados no subúrbio remetem a essa rede de expectativas: A Falecida (Leon Hirszman, 1965); Boca de Ouro (Nelson Pereira dos Santos, 1963; e Walter Avancini, 1990).

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de vinil pouco rentável. À aparente monotonia do cotidiano, o filme passa a opor um suspense que envolve seqüestro e morte, culminando com a demolição da casa. Em ambos, degradação e classe média baixa são ligados, assim como em Quanto vale... Passemos a outra imagem que se associa ao urbano: a família nuclear. Esta aparece nos dois filmes; no entanto, a diferença no tratamento concedido a ela será fundamental para compreender o estatuto das representações de Brasil articuladas. Em Quanto vale..., duas famílias pobres (de Arminda e de Lourdes), uma de classe média baixa (de Mônica) e uma de classe alta (de Marco Aurélio) configuram pequenas micronarrativas que contestam a tradicional representação de família veiculada, dentre outros, pela publicidade e pelas telenovelas. A família asséptica, pacífica, amorosa e na qual as hierarquias sociais são naturalizadas é substituída por famílias que explicitam a decadência moral e a reificação nas relações humanas (sendo que essa reificação vai da cobrança por dinheiro até o seqüestro, passando pela exploração pelo trabalho – nas cenas em que Dona Judith lava pratos em uma festa e em que uma menina negra enxuga talheres na casa de Mônica); a afetividade é ora bastante circunscrita (na relação de Judith com seus filhos adotivos), ora desmascarada (a cordialidade inicial de Mônica para com Candinho transforma-se em hostilidade e desmoralização). Deixando de ser uma instância moral, as famílias do filme passam a evidenciar o jogo de classes na degradação das relações entre seus membros. Assim, a imagem pacífica de Brasil à qual a família se associava (inclusive, por meio da teoria social que a agregava à mestiçagem em suas casas-grandes e senzalas, sobrados e mocambos etc) cede espaço às imagens que mostram a nação enquanto lugar da fragmentação (narrativa, de ação das personagens) e, portanto, do conflito. Em Quase Dois Irmãos, dá-se o oposto: a família é representada como instância moral para tentar limitar as ações das personagens que contestam os lugares definidos nas relações raciais e de classe. Além disso, a própria continuidade temporal encenada no filme baseia-se, dentre outros, nessa tensão entre ordem e contestação trazida à miseen-scène: do primeiro conflito entre Rosa e Jorge e entre Miguel (pai) e Helena, passamos ao choque de concepções de mundo entre Miguel (filho) e Helena e, posteriormente, entre Miguel e sua filha Juliana. A família, portanto, continua a reproduzir aqui os valores tradicionalmente articulados na manutenção das posições nos diversos campos e no espaço social, sendo que a imagem de Brasil é marcada por uma memória de futuro na qual se retornará ao mito pacífico da “origem” da nacionalidade brasileira, mesmo que os conflitos tenham sido evidenciados no tempo presente. 165

É preciso observar que, em algumas seqüências desses filmes, as personagens ligadas à família conferem à rua uma disputa por significado. O primeiro encontro entre Mônica e Candinho é apresentado na rua (Candinho trabalhando como lixeiro e Mônica grita seu nome enquanto distribui comida para mendigos); o “despertar” de Mônica para a pobreza, no comercial-sonho, opera-se a partir de um choque com a miséria exposta na rua onde mora; Candinho executa em um beco dois jovens, depois de correr por um matagal; o diálogo entre Dona Judith e Marco Aurélio no corredor da empresa; Miguel percorre um túnel em seu carro assumindo a autoridade narrativa da diegese (por meio da voice over); discute com Juliana em seu carro percorrendo ruas e túneis. Uma instituição estatal que, ao menos em sua concepção, é caracterizada como um não-lugar - o presídio - será privilegiada na diegese, acompanhando um jogo de representações ligadas à violência e à criminalidade que re-configuraram as imagens de Brasil (tal como o atesta a repercussão nacional e internacional dos filmes Cidade de Deus e Carandiru, as notícias veiculadas pelo telejornalismo sobre rebeliões em presídios e o cotidiano destes etc). Em Quanto vale..., a ligação entre presídio e narrativa nacional é explícita na seqüência do comercial estatal sobre construções de presídios, na medida em que estas são fundamentais para “a economia do município, do estado e do país”. Essa ligação é alvo do pastiche do poema Navio Negreiro, de Castro Alves que, comparando o escravo e o presidiário250, atribui às elites tecnocratas que possuem o controle do Estado-nação o dilaceramento deste pela “lógica do consumo”. O presídio de Quase Dois Irmãos, por sua vez, também se sobrepõe ao não-lugar nas diferentes épocas: no presídio dos anos 70, destacando o conflito de ethos entre presos políticos e comuns; no atual, pela caracterização de Jorginho e por suas ações (fala ao celular; usa cordões de ouro). Adicionando a isso a cisão das práticas empreendidas a partir das categorias raciais (já analisadas no capítulo anterior), podemos inferir que a imagem de Brasil representada pelo presídio transita entre o revelar da dimensão racial e de classe e a ênfase nas práticas da violência. Atribui a esta, ainda, um grotesco, no sentido de lembrar as origens corpóreas dos conflitos e das possíveis inversões ou, ainda, de torná-la teratológica.

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O trabalho do geógrafo Andrelino Campos estabelece uma comparação entre os espaços do quilombo e da favela para averiguar como a “criminalidade” é socialmente produzida a partir dos diversos discursos (policial-repressor, jornalístico, artístico, dos movimentos sociais etc) que disputam um lugar de autoridade no senso comum. Cf: Do quilombo à favela: a produção do “Espaço Criminalizado” no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2004.

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O discurso da violência assume uma dimensão metalingüística semelhante a Quase...251 em Ônibus 174 (José Padilha, 2002). Narra a trajetória de um ex-menino de rua sobrevivente do massacre da Candelária que seqüestra um ônibus no bairro do Jardim Botânico, cuja notoriedade instantânea é alcançada graças à repercussão concedida pela TV, que transmitiu ao vivo o desenlace do seqüestro, com a morte de uma das reféns. Para tanto, o documentário se pauta pelas imagens televisivas e pelo depoimento de especialistas numa análise dedutiva do processo da violência a partir do caso Sandro do Nascimento. Além de este ser um jovem negro, a questão da raça é trazida pela contraposição entre a voice over do sociólogo e as imagens mostrando crianças negras abandonadas pelas ruas cariocas, além da fala da assistente social que revela o levantamento feito sobre os sobreviventes do massacre - a maioria foi assassinada (sendo que as fotos a mostram com crianças negras) - e o resultado de uma enquete feita sobre o mesmo na época – “a maioria das pessoas aprovou. Tinha mesmo que matar essa cambada pra deixar a cidade limpa”. A respeito de um Brasil hierarquizado racialmente, outros filmes irão entrar nesse jogo de representações. Yndio do Brasil (Sylvio Back, 1995) realiza várias colagens de materiais diversos (documentários oficiais da expedição Rondon, dos militares da década de 70, publicidades da ditadura, marchinhas de Carnaval, ficções nacionais e estrangeiras etc) para avaliar de que modos a imagem do índio tem sido reificada e estereotipada pelas narrativas oficiais. Ao adicionar a isso procedimentos que ‘desnaturalizam’ as representações veiculadas (a desconexão entre o discurso imagético e o sonoro; o uso de voice overs com alteração de entonação de voz), infere que um Brasil ‘pacífico’ foi construído sob um genocídio silencioso. A negação do Brasil (Joel Zito Araújo, 2000) adota procedimentos de colagens semelhantes ao filme de Back para defender a tese que houve uma exclusão dos negros da teledramaturgia brasileira. Aliando hierarquia de raça e de classe, o documentário salienta, em pequenas mises-en-abîmes, que um ‘ideal de branqueamento’ é difundido pela televisão. A título de exemplo, destacamos a inserção de um trecho da novela Como salvar meu casamento (Edy Lima e Carlos Lombardi, transmitida pela TV Tupi em 1979): a imagem mostra Dora (Nicete Bruno) assistindo, em sua sala, sua empregada Zita (Lizete Negreiros) no programa de calouros Raul Gil. Além de, no

251

Recordemos a referência à formação do Comando Vermelho.

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discurso, esta agradecer à patroa o fato de estar ali, os jurados ressaltam a condição de empregada e passam a elogiar Dora (algo ressaltado na voice over). Finalmente, vejamos outra imagem ligada ao urbano na representação do nacional: os espaços pelos quais as elites circulam. Bastante privilegiados em Quanto vale..., as festas, palestras, reuniões relembram a oficialidade do poder e a afirmação de uma ordem. Redentor, já citado aqui, também mostra os lugares em que esse poder é transmitido: a mansão da família Saboya (a partir do ponto de vista do menino Célio, de classe média baixa); o prédio da construtora da família (também mostrado a partir do ponto de vista de Célio, dessa vez adulto); as reuniões em Brasília; etc. Ironicamente, essa elite, mesmo degradada, é “salva” pelo final cômico (o amigo rico de Célio, Otávio – interpretado por Miguel Falabella – funda uma seita na prisão). Retornando a Quanto vale..., em vários momentos como, por exemplo, na reunião de marketing de Marco Aurélio e Dom Elísio, na festa de premiação no Theatro Municipal de São Paulo, o uso das imagens de povo - seja no comercial em preto-ebranco que mostra favelas e mendigos, seja no data show exibido na premiação evidencia os tipos de controle ao qual estas são submetidas. No documentário À margem da Imagem (Evaldo Mocarzel, 2003), a discussão sobre a reificação das minorias sociais perpassa diretamente a questão da imagem: o capital simbólico e econômico de um autor (cineasta, fotógrafo) versus a manutenção dos estigmas e a reafirmação da hierarquia, sendo uma questão ética alçada à representação do filme. Este se inicia com os depoimentos de Dona Ivete e de Anderson (morador de rua), mostrados com a câmera bem próxima - o que denota uma ‘cumplicidade’ entre espectador e narração fílmica - relatando a expulsão do fotógrafo Sebastião Salgado do recinto em que se distribuía sopa para os mendigos. O poder de controlar a produção imagética é aqui explicitado: “nós távamos na sopa, debaixo do viaduto, e chegou um dos maiores fotógrafos, o Sebastião Salgado. ‘Ah, porque eu quero tirar foto!’ ” (Anderson); “(...) E quando ele viu aquela cena, ele, antes de entrar, já colocou a lente” (Ivete); “Daqui a pouco, aquelas fotos dele, ele vai ganhar muito dinheiro! E a gente? Vai sempre ficar ali embaixo, vai sempre ficar ali necessitando, quer dizer, a Ivete barrou ele!” (Anderson); “E aí ele falou: ‘Você não sabe quem eu sou?’. E eu falei: ‘Sei, a Folha já disse que você é o maior fotógrafo do mundo’. E ele foi tirando o crachá da Folha, dizendo que ele tinha autorização. Aí eu disse: ‘não, aqui você não tem autorização’ (...)” (Ivete); “Aí ela falou: ‘se você quiser tirar fotos deles, você tem que vir na sopa! Você tem de conviver com eles na sopa!’ ” (Anderson); “E aí 168

ele falou: ‘só essa negra!’. E eu disse: ‘não. Nada!’. Nós temos sido explorados demais na imagem” (Ivete). A apreensão imagética encenada na ficção de Quanto vale... pode ser comparada à percepção do controle, por parte dos entrevistados do documentário, dos ganhos que essa imagem é capaz de proporcionar a uma elite tecnocrata, além de ser uma crítica à estetização da pobreza vista em muitos produtos (audio)visuais. A imagem de Brasil que é agregada à elite de Quanto vale... re-visita um imaginário popular ligado à corrupção destas e uma ironia às reformas estatais no sentido de privatizar suas atividades para justamente favorecer alguns grupos de poder em detrimento de grupos tradicionalmente alvos de estigmas. Ligam-se nessa imagem de Brasil poder e branquidade, sendo que um sutil ideal de branqueamento (algo já difundido no final do século XIX a partir das instituições oficiais 252) que migrou para o senso comum é trazido à diegese para ser logo em seguida desmascarado e ironizado. Ademais, a presença da escravidão e da miséria como contraponto a esse poder “branco”, no filme, sublinha a reprodução das desigualdades racialmente definidas e o oportunismo de alguns agentes que se apropriam delas visando somente explorá-las sem imprimir um processo de transformação social que, de fato, altere essa imagem de Brasil (aliás, aliam-se o discurso da elite tecnocrata assistencialista e o tom farsesco dos diálogos e da voice over para expor a categoria “branco”, retirando sua neutralidade e sua naturalidade historicamente construídas em torno das representações nacionais).

II O INTERIOR DESSACRALIZADO

ENCENADO:

NOTAS

SOBRE

UM

TERRITÓRIO

Presentes há muito no ideário nacional, as paisagens do interior podem ser situadas em um conjunto de representações veiculadas pelas diversas artes (literatura, música, pintura, teatro, cinema) e em diferentes épocas. Considerando o espaço enquanto uma construção apreensível pelas imagens e pelo discurso em suas dimensões poética, prosaica, política e memorial, a ligação entre este e a paisagem é definidora de várias representações de Brasil: o sertão, a floresta, o campo, dentre outras. Em Narradores de Javé, várias paisagens são articuladas na diegese a partir da memória oral e da trajetória das personagens, nas quais idéias como “essência”, “pureza” e “tradição” são incorporadas aos diálogos para construir a autoridade na preservação do vilarejo. 252

Conforme o trabalho de Lilia Schwarcz já analisado no capítulo anterior.

169

É bastante comum a ligação entre gênero épico e o “interior”, uma vez que o primeiro se pauta pela exaltação da figura do herói e da tradição, convenções assimiladas pelas histórias que retratam essa paisagem. No entanto, devemos observar que esse interior difere de muitas representações veiculadas pelo cinema brasileiro ao longo de sua história assim como de outras audiovisualmente difundidas hoje. Eis a seqüência final de Narradores... : esta se inicia com moradores assistindo em plano conjunto o alagamento da cidade lacônicos e termina com a partida coletiva destes em um carro. Mostra-se em plano geral o lago que se forma sobre o vilarejo, no qual se destacam o teto da igreja e parte do campanário. Um filme notório na historiografia do cinema brasileiro, Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), também possui uma última seqüência em que o sertão é “alagado” e na qual a profecia libertária de Antônio Conselheiro - “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão” - se concretiza. A montagem - ao articular planos rápidos do litoral a uma voice over que entoa a profecia e ao adicionar esta seqüência à anterior, a morte de Corisco (interpretado por Othon Bastos) - evidencia um ideal revolucionário, concebido em relação a um povo que deve ser conscientizado para concretizá-lo. Já Narradores..., por sua vez, substitui o aspecto libertário representado pelo alagamento do interior em algo trágico e que revela a subjugação de um povo mestiço e impotente ante seu destino. Aliás, essa noção de destino é articulada nos dois filmes, sendo que, enquanto no primeiro, este é interpretado a partir de uma teleologia e de uma causalidade rumo à libertação, no segundo, o destino trágico se faz presente desde a notícia do alagamento da cidade até escolha de Biá como “o” narrador (a causalidade substituída por uma temporalidade disjuntiva e que se mostra impossível de ser apreendida na escrita por este). O embate entre os moradores de Javé e seu destino – a inundação do vilarejo – é visto como um conjunto de significações a serem atribuídas a um lugar para que este não sucumba. Percebendo o espaço como a delimitação material da encenação e da reprodução do poder, os moradores que articulam seus direitos de significar o fazem por meio de imagens construídas pela retórica. É preciso enfatizar que a própria retórica, enquanto o uso eficaz da linguagem (citações, figuras de linguagem, exemplos etc), ao ter como objetivo a desautorização de uma fala alheia para legitimar a sua, possui um papel fundamental na interpretação dessas imagens. Diversas imagens de Brasil são trazidas ao plano da representação nessas disputas: o ‘globalizado’, através das personagens jovens que atuam no interior pela 170

lógica da contaminação (Souza com seu visual roqueiro; jovem forasteiro com seu CD player e música eletrônica; os jovens que tocam bateria na festa em Javé), visto que são representados como uma interferência à temporalidade lenta deste; o ‘colonial’, pela presença do patriarca Indalécio, sua vestimenta e seu porte na construção de um heroísmo mitológico (o cavalo, o sino, a armadura e o bando enquanto signos da colonização portuguesa); o marcado pelo conflito de terras e de bens, evidenciado na luta dos moradores para se manterem em seu vilarejo (e, mais, na disputa dos irmãos pela propriedade agrária herdada e no assassinato de um ladrão em busca de ouro – fruto do trabalho em garimpo da esposa de um personagem, o pai de Daniel); aquele que é exposto em contra-narrativas (a índia Maria Dina e o negro guerreiro Indaleu) que repõem a Javé sua origem nobre. Quanto à paisagem, é interessante reparar que o tempo memorial é representado junto a uma vegetação intacta, recordando a “pureza” do interior. Nas histórias de Indalécio, Maria Dina e Indaleu, a natureza aparece como um Éden a ser ocupado por seus “eleitos”. “Indalécio não atinava com o lugar certo. Ele queria ir mais longe, distante de braço de governo, de rei”, eis o interior que deve ser conquistado e domesticado (discurso bastante similar ao dos engenheiros que querem trazem o progresso às custas da cidade). Já o alagamento do povoado é precedido de imagens que ressaltam o desgaste da paisagem – as ruas de terra seca, a erosão (mostrada diversas vezes em panorâmicas), as casas com paredes e fachadas deterioradas; desse modo, a decadência de Javé é ligada à sua paisagem. Essa atribuição de uma “pureza” à paisagem interiorana também está presente em Lavoura Arcaica (Luiz Fernando Carvalho, 2002). Os rituais familiares (simbolizados pelas refeições e pelas leituras dos sermões feitas pelo pai – interpretado por Raul Cortes), as festas campesinas de comemoração da colheita, a construção de uma temporalidade imemorial – pela fotografia e pela montagem cujos cortes são mínimos - tudo isso é interrompido pelo drama de André (Selton Mello) e a paixão secreta por sua irmã Ana (Simone Spoladore), semente do ciclo trágico que traz a destruição a esse interior “puro”. Como contraponto a essa concepção romântica de interior, Quanto vale... nos apresenta um interior impuro, “contaminado”: a referência ao interior está presente em um comercial sobre construção de presídios, sendo que o mesmo aparece como algo supostamente atrasado a ser beneficiado pelo “progresso” econômico a ser trazido pela expansão do sistema penitenciário; a imagem de interior no filme é uma chácara 171

utilizada na afirmação do Estado privatizado e na subjugação das minorias sociais, cujo ritual de purificação é explorado de modo patético (o vômito dos mendigos, ao ser gravado em um vídeo caseiro para conseguir um financiamento internacional, configura um signo do grotesco que participa nessa representação do interior - como um lugar que meramente reproduz as relações citadinas). Retornando a Narradores..., outro ponto fundamental para compreender que imagens estão sendo reformuladas: a idéia do Nordeste enquanto região. Aqui, precisamos retomar o trabalho de Durval Albuquerque sobre as práticas que a “criam”:

A procura por uma identidade regional nasce da reação a dois processos de universalização que se cruzam: a globalização do mundo pelas relações sociais e econômicas capitalistas, pelos fluxos culturais globais, provenientes da modernidade, e a nacionalização das relações de poder, sua centralização nas mãos de um Estado cada vez mais burocratizado. A identidade regional permite costurar uma memória, inventar tradições, encontrar uma origem que religa os homens do presente a um passado, que atribuem um sentido a existências cada vez mais sem significados. O “Nordeste tradicional” é um produto da modernidade que só é possível pensar neste momento (2006, p. 77).

Sendo assim, em qualquer momento no qual a existência de uma população esteja em ameaça (guerra, conflitos internos ou, como no filme, o desaparecimento de um lugar), um conjunto de práticas discursivas – narrar as histórias, escrever um livro – e não-discursivas – a possibilidade de um confronto armado, a disputa de terras – pode ser mobilizado em torno da idéia de região, para tanto recorrendo à memória coletiva e produzindo uma série de imagens que reforcem uma possível origem comum. Em Narradores..., várias imagens evocam o Nordeste como este é tradicionalmente apreendido pela visão e pelos valores das elites: o atraso econômico; a religiosidade; a valorização da cultura oral e das tradições; a figura do “coronel”; além do sotaque das personagens e do uso de certas expressões regionais. Entretanto, uma imagem em particular destaca-se das demais: a figura do nordestino como retirante, isto é, o “nordestino” como uma categoria identitária diaspórica, e cujas lembranças são articuladas a partir de uma memória oral que transita num conjunto de valores e práticas bastante difusas, tendo em vista a dificuldade de ordem material em preservar histórias e lugares que não mais existem (textual e iconograficamente). O próprio título do filme já indica a oralidade como o terreno privilegiado na transmissão dessa memória, uma vez que a falta de saber letrado por parte dessas populações, a desvalorização de suas práticas por uma burocracia estatal que oblitera cada vez mais quaisquer fatos que 172

recordem à “nação” seu lugar instável e a dispersão física dos membros dessas comunidades (pelas migrações voluntárias e forçadas) imprimem a ela a necessidade de um suporte difícil de ser alvo de sanções diretas, por um lado, e cuja codificação seja de fácil acesso, de outro: a linguagem das expressões regionais e as práticas nãodiscursivas como hábitos de cozinhar, morar, de se lidar com a vizinhança etc. Outro elemento dramático que assim encena o nordestino é a presença constante do deslocamento: as personagens quase sempre estão em trânsito; o andar se faz quase acoplado a outras ações como conversar, brincar, insultar. O filme é apresentado pelo correr de um jovem; Biá tem seu percurso monitorado pelos moradores; as migrações dos antepassados são revividas pelo êxodo atual da população de Javé. Assim, o nordestino nos é apresentado como agente diaspórico, sendo isso realçado logo no início do filme. A partir da figura de Zaqueu, que casualmente narra a história de seu vilarejo aos freqüentadores de um bar. Com o passar do filme, o espectador se depara com um narrador cujo lugar de autoridade é raramente contestado (apenas pelo zombar de Souza, no tempo presente, a respeito da transmissão oral da propriedade). À escolha do filme de Zaqueu, um homem idoso, como o narrador no tempo presente, ligam-se a tradição e o passado imemorial aos quais os moradores recorrem. O filme poderia ter escolhido outra personagem como Biá, Deodora, Vado, Firmino, dentre outros, para esta posição; porém, se o fizesse, alteraria o estatuto da representação veiculada pela diegese e, por conseguinte, o trágico poderia ter dado lugar ao farsesco ou à contestação direta da autoridade narrativa, o que não ocorre graças à solenidade da fala de Zaqueu. As representações de Nordeste também se encontram em diversos filmes da produção audiovisual brasileira atual. Em O Auto da Compadecida (Guel Arraes, 2001), além da religiosidade e da cultura oral nordestina, outros elementos são agregados a esse espaço: a instituição religiosa (ao contrário de Narradores... em que inexiste a figura do clérigo, n’O Auto... ele é agente fundamental na opressão do sertanejo), a sociedade patriarcal em transição para uma sociedade de classes (vista na fluidez da encenação da lealdade de João Grilo – Matheus Natchergaele – para com o padeiro e o coronel) e o cangaço (a resistência armada do nordestino, se bem que bastante ‘folclorizada’ neste filme). Enquanto em Narradores... os signos religiosos operam enquanto memória do futuro, n’O Auto... os clérigos (Rogério Cardoso e Lima Duarte) encenam no sertão o seu ritual litúrgico (ironizado no filme através do enterro da cachorra) e o seu papel na manutenção da ordem (como exemplo, o filme nos mostra os 173

privilégios concedidos ao Major Antônio Morais - Paulo Goulart - e, mais, como a Igreja se relaciona com as posições ocupadas socialmente por seus fiéis). Tudo isso sob o testemunho de João Grilo, que satiriza a linguagem eclesiástica por meio de gestos exagerados, de citações em latim a partir da fala do padre, da revelação dos vínculos dessa Igreja com o poder. Um filme cuja tônica em relação à modernização é bastante semelhante à de Narradores... é Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1996). Ligando esta à decadência da tradição do Nordeste, Baile... constrói um Lampião vaidoso e deslumbrado com os signos do moderno (câmera, perfume etc) e um Benjamin Abraão que visa inserir o cangaceiro no circuito imagético da cultura de massa, algo que se revela fatal: seu rosto passa a ser conhecido e, portanto, possível de ser alvo do controle estatal. A estética fragmentada do filme (relacionada ao videoclipe, segundo seus realizadores) é mais um ponto de contato com Narradores, uma vez que o tratamento sonoro (sonoplastia de músicas regionais em batida “pop”) e a superposição de temporalidades são características comuns. Outra relação que pode ser feita a partir das imagens de interior: a ligação destas com o feminino. Ao contrário de um “patriarcado universal” pregado por algumas teorias feministas, o poder encarnado pelo Pai/Lei é representado em Narradores... a partir de suas práticas discursivas. Reforçando seus laços com o vilarejo (a história ‘monumental’ de Indalécio) e com os outsiders (no caso, os engenheiros, aliados ao coronel Gaudério), a ordem patriarcal, ao assumir uma dimensão concreta, também passa a ser contestada no plano das práticas e do discurso. É interessante notar que um conjunto de filmes brasileiros atuais inserem o feminino enquanto prática discursiva ligada à subversão da ordem patriarcal: em Corisco e Dadá, a cangaceira Dadá (Dirá Paes) manifesta seu descontentamento com o lugar social reservado ao cangaço e às conseqüências geradas por este (seu próprio estupro por Corisco, que depois casa-se com ela; morte de seus filhos; assalto dos cangaceiros aos povoados etc); em Abril Despedaçado, Clara (Flávia Marco Antônio), a artista circense, se insere nas narrativas de honra de duas famílias ao se relacionar amorosamente com Tonho (Rodrigo Santoro) e, com isso, dissuadi-lo da vingança paterna; em Narradores de Javé, os mitos de fundação do vilarejo têm suas narrativas disputadas por vários moradores, dentre eles Teodora (Luci Pereira), que destaca o papel da matriarca Maria Dina (em contraposição à história do patriarca Indalécio – Nelson Dantas) para se inserir na história “oficial” masculina. 174

Poderíamos, ainda, acrescentar que a busca empreendida pelos moradores dos “feitos memoriais” de seus antepassados e o ideal de progresso manifestado na construção da represa configuram as duas visões em torno do popular que se chocam: o popular como um domínio que deve ser preservado (via patrimonialização) ou que deve ser superado pelo saber científico e pela modernização, sendo que estes entram em conflito no senso comum do povoado – a oralidade das histórias dos moradores versus a codificação pela escrita e pelas convenções científicas. Ironicamente, essa “cientificidade” é apropriada pelo senso comum dos moradores, principalmente pelo narrador autorizado, que os lembra constantemente da necessidade de “provas” e “documentos”. Sendo assim, Narradores de Javé constrói uma imagem de Brasil pós-moderna na hibridização dos registros - música regional “pop”, articulação de diversas temporalidades por meio das nuances da montagem, além do “mosaico” de histórias no qual o filme se baseia - porém moderna em sua busca por um passado memorial e metafórico da formação nacional e, ao mesmo tempo, na exaltação pelo discurso estatal do ideal de progresso.

175

CONCLUSÃO

Através dos três filmes analisados na pesquisa, foi possível verificar a relação entre as representações de Brasil veiculadas e as práticas que conformam o habitus do campo cinematográfico brasileiro, de um lado, e as práticas de representação desenvolvidas em outros filmes e outras formas de comunicação audiovisual (notadamente a televisão), de outro. Ainda, foi de extrema relevância a construção de um lugar de fala transitório na relação dos filmes com as práticas socialmente mobilizadas e conduzidas na esfera pública. Em primeiro lugar, localizou-se a pertinência de algumas teorias da cultura e da comunicação e de alguns de seus conceitos como “identidade”, “pós-moderno”, “hibridismo”, “estereótipo”, dentre outros, para tentar averiguar como as práticas discursivas ligadas à raça, à classe, à religião, à geração etc estiveram presentes nos filmes. Estes, ao contrariarem uma tradição apaziguadora das representações do nacional, ressaltam a dimensão do conflito em que elas são constituídas e suas temporalidades disjuntivas para evidenciar os jogos identitários e as relações de poder impressas no cotidiano e na política obliterados pela narrativa monumental da nação. Entretanto, estes jogos e relações não se reduzem aos textos fílmicos, configurando também a disputa pelo poder de nomear inerente à produção, difusão e interpretação imagética. Foram avaliados, assim, os valores e as condições em que se 176

opera a produção cinematográfica brasileira atual e as rupturas e continuidades nas quais a mesma foi constituída, além de sua relação com diversos agentes como o Estado, a mídia impressa e audiovisual. O mesmo se deu no tocante à trajetória dos diretores Sérgio Bianchi, Lúcia Murat e Eliane Caffé. Desnaturalizando a noção de autor enquanto categoria analítica de uma obra fílmica, demonstrou-se como a mesma resulta de um acúmulo de capital simbólico dentro do campo do cinema brasileiro e as variantes que inferem nesse processo (tempo de atuação no campo; número de longas-metragens; número de prêmios em festivais nacionais e internacionais; capacidade de intervir nas discussões políticas atinentes ao campo etc), principalmente na construção de um lugar de autoridade para difundir imagens de Brasil. A ligação entre representação do passado e nação construída pela cinematografia brasileira atual e sua projeção no tempo atual nos propiciaram a percepção de que os usos do passado nas narrativas cinematográficas e suas relações com o presente sinalizam a presença dos jogos identitários enquanto estratégias discursivas que afirmam ou contestam o poder de nomear de certos grupos instituídos. Além disso, ao encenar a localidade da cultura por narrativas que particularizam ou totalizam o Brasil, os filmes o fazem ressaltando o caráter arbitrário dessas disputas pelo direito de significar. Mesmo não possuindo o estatuto de representação “científica”, as obras analisadas se apropriam de certos discursos ligados às categorias discursivas presentes no pensamento social brasileiro, filiando-se a tradições intelectuais que estudam as disjunções narrativas em torno da nação partindo de noções como “raça” e classe, principalmente, desautorizando por procedimentos fílmicos relacionados aos gêneros narrativos (drama, épico, farsa) e outros formais (enquadramentos, cortes, campocontracampo etc), além de figuras de linguagem neles articuladas (ironias, metáforas, metonímias, alegorias) o lugar de outras tradições letradas que retratam a viabilidade do Brasil por narrativas pacíficas que priorizam o contato (seja inter-pessoal, seja social) como forma de sociabilidade dominante na retórica nacional. A dimensão política da produção e da circulação dos filmes encontra-se na tensão entre o pedagógico e o performativo em torno das imagens do povo e do popular, evidenciando as estratégias narrativas relacionadas a este enquanto micro-narrativas construídas paulatinamente nas práticas sociais representadas; ademais, os filmes agenciam o presente a partir das temáticas desenvolvidas e no diálogo explícito com 177

outros meios de comunicação, o que faz com que estes possam estar presentes na retórica das contra-narrativas que mobilizam o cenário político e social contemporâneo. Finalmente, algumas imagens de Brasil consolidadas no imaginário coletivo e na memória do campo cinematográfico, sobretudo aquelas formuladas durante o regime discursivo do nacional-popular (leia-se, favela, sertão e subúrbios), continuam sendo resgatadas pelas narrativas cinematográficas contemporâneas, incorporando a elas as estratégias discursivas de outros campos (político, televisivo), sendo que o breve estudo de caráter comparativo empreendido no último capítulo possuiu grande valia em situar os filmes dentro da categoria “cinema brasileiro contemporâneo”.

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Anexo Depoimento Joatan Berbel (em e-mail enviado pelo prof. João Luiz Vieira) Prezados Listeiros, Participei do Seminario: Audiovisual e Governo Lula- avaliações e desafios, que contou com a participação na mesa de debates dos seguintes: Glauber Piva - Secretário Nacional de Cultura do PT; Gustavo Dahl - Presidente da Ancine; Paulo Thiago _ Presidente do Sindicado Nacional da Indústria Cinematográfica; Nilson Rodrigues - Diretor da Ancine; Marcelo Laffitte ex-Presidente da ABD; Deputado FEderal pelo PT - LUiz Sérgio; Luís Carlos Barreto; Orlando Senna - Secretário da SAV/Minc; Manoel Rangel - Diretor da Ancine; Leopoldo Nunes- Secom-PR e Hamilton Pereira-Presidente da Fundação Perseu Abramo. Se a matéria do Jornal O Globo, de hoje, no Segundo Caderno, fala em bate-boca e foca os temas tratados apenas na questão da bilheteria, posso lhes assegurar que quem não foi ao Seminário perdeu muito mais. Aliás fiquei surpreso com a pequena frequencia de cineastas, pois, os pouco mais de 80 participantes representavam mais os cineclubistas e os núcleos de produção audiovisual dos movimentos sociais. De resto, além dos palestrantes eu, o Roberto Farias, Alice Andrade e André Klotzel de SP. O Seminário foi rico porque reuniu os representantes do Governo - SAV e Ancine - que fizeram um amplo relato das realizações da Gestão atual com a participação de Paulo Thiago e Luis Carlos Barreto completando e reconhecendo, pelo menos, que a atuação de Gilberto Gil foi fundamental para que a cultura atingisse o grau de reconhecimento que hoje desfruta. Paulo Thiago, quando falou da necessidade de se fazer reuniões a portas fechadas, estava se referindo ao constante clima de desavença que é retratado pela mídia. Para mim, com muita satisfação, foi ver que a ANCINE conta hoje com uma Diretoria - Gustavo, Nilson, Manoel e futuramente Leopoldo - altamente qualificada e comprometida com o desenvolvimento do audiovisual

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brasileiro. Infelizmente o jornalista Bruno Porto, repórter de O Globo, não levou em conta a exposição que o Manoel Rangel fez como visão estratégica para o audiovisual brasileiro. Assim como critiquei duramente sua atuação no episódio da Ancinav, faço questão de reconhecer o notável amadurecimento e a clareza de idéias apresentada pelo Manoel. Não posso deixar de destacar a trajetória do Leopoldo Nunes que sacrifica sua carreira cinematográfica para se dedicar ao importante papel de articulador no atual governo. Sua nomeação para a Diretoria da Ancine, que depende de uma votação no plenário do Senado, é mais do que justa e necessária. Completando o time o Nilson Rodrigues que tem uma boa percepção da complexidade do mercado do audiovisual. O Gustavo Dahl que cumpre o seu mandato ainda este ano, deixa um feito memorável que o inscreve no panteão dos grandes nomes do cinema como Paulo Emilio Salles Gomes, Almeida Prado, Cosme Alves Neto, Glauber e os demais. Não será exagero defender sua continuidade na liderança desse time. Penso que, independente do governo que virá, temos hoje um conjunto de gestores que são ao mesmo tempo apaixonados pela causa do audiovisual brasileiro, competentes e maduros para entender a complexa e difícil tarefa que os desafia e por outro dispõem de vontade e dedicação. Foi muito bom ver o Luis Carlos Barreto, que se identifica como membro do PCB-Partido do Cinema Brasileiro do qual também faço parte, defender o projeto ticket cultural como forma de permitir o acesso da população de baixa renda aos bens culturais produzidos no BRasil. Sua afirmação "nunca se produziu tanto filme, mas nunca de viu tão pouco" soa como um sinal dos tempos, pura clarividência. A justa bronca dos Cineclubistas quando reclamam a sua inclusão como agentes da difusão cultural que podem ampliar em muito o contato do povo brasileiro com os filmes e videos é também um ponto forte e mostra como a democracia é produtiva. A atuação dos grupos de produção Nós do Morro, Cufa e outros deve ser entendida como um avanço no desenvolvimento do audiovisual brasileiro, são novos atores que já estão aí e que podem trazer novos pontos de vista, inovações e um novo olhar. Foi consenso, entre os palestrantes, de que há muito o que fazer no tocante à distribuição no Brasil e este é o gargalo de todo o sistema. Fiquei otimista quando vi que em cada discurso há uma visão dialética que admite a importância de cada setor, de cada segmento como parte da solução do problema. A criação de uma Distribuidora e Programadora Cultural resultante da soma de esforços do CTAV e Cinemateca Bras., anunciada pelo Leopoldo Nunes é muito interessante e pode ser a ponte com as TVspúblicas. A crítica aos editais, apresentada pelo Paulo Thiago e pelo Barreto, é justa mas peca por analisar os resultados como problema e não a formula edital como "o problema". Para mim, enquanto a política de fomento ao Audiovisual estiver orientada para o atendimento da demanda - daí a razão do editais como mecanismo de controle da demanda -, sem uma clara orientação para objetivos estratégicos tais como: expansão do mercado nas salas de cinema em tantos por cento, em tanto tempo; suprir as TVs públicas e comunitárias de programação cultural e educativa; suprir as Universidades e Escolas públicas de conteúdo para apoio educacional; vamos apenas gerar mais demanda e aí o resultado é o que o Barreto bem percebeu "muita produção e pouco consumo". Enfrentar um mercado competitivo - tanto na produção, como na distribuição e exibição - com mecanismos de incentivo que são orientados para a individualidade de projetos de produção, que inibem a formação de conglomerados economicos do setor, que inviabilizem a capitalização de empresas, só pode gerar essa pulverização de recursos...com muitos filmes, atendendo muita gente,mas sem capacidade competitiva!!!!! Isto é o que eu chamo de política de atendimento de demanda.....o resultado é mais demanda!!! Fiquei espantado com a defesa que o Luis Carlos Barreto fez da tese do Secretário Geral d Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães no livro "DEsafio Brasileiro na era dos gigantes", pois penso que ele não se aprofundou no

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real significado deste tipo de pensamento. Li um extrato do livro e fiquei perplexo de ver como alguém ainda tem a coragem de defender teses que foram muito difundidas nos anos 20 e 30 e que levaram ao fascismo e nazismo, e que na década de 60 e 70 sob a capa esquerdista produziram o sanguinário regime de Pol Pot no Cambodja e a paranóica republica de Enwer Roxcha na Albania e Romênia. O nacionalismo xenófogo é uma arma perigosa e a história já provou o quanto de mal ela produz. Barreto também produziu uma curiosa definição de "auto-sustentabilidade": "Com o ticket cultural o povo vai ver mais filmes brasileiros e assim o mercado vai crescer e nós produtores seremos auto-sustentáveis" - a pergunta é: autosustentáveis em relação a quem camarada? Ao incentivo fiscal? Ora os tickets não serão objeto de incentivo fiscal? Não entendi também a enfase em "Projeto Nacional", ou "pautar o rumo que este país quer para si", nos discursos dos representantes da Direção Nacional do PT - Glauber Piva e Hamilton Pereira. Pois esse discurso, como alegoria, de uma proposição política, quer indicar que o Brasil não tem um projeto nacional? Isto somado à citação que Gustavo Dahl fez "Falta àElite uma Estratégia de Desenvolvimento", quanto cita artigo de LucianoCoutinho, ressoa à proposição revolucionária do anos 60 com um certo recheio de retórica de Geisel/Golbery.....Glauber, o Rocha....deve estar rondando a cabeça dos petistas. Sendo um Governo, inclusive o de Lula, a somatória de todos os segmentos do país, incluindo aí a elite. Será que não faltou também ao PT uma estratégia de desenvolvimento? Sendo o slogan do govêrno Lula, "Brasil um país de todos", qualquer projeto passa pelo entendimento de todos, não é. O Projeto Nacional do PT deve levar em conta a dialética do LULA e sua composição política para conseguir governabilidade. Mas pode ser também uma retórica que venha a substituir o desgatado slogan "ética na política" . Quem sabe? Coube ao Secretário do Audiovisual - Orlando Senna, que ao invés de discorrer sobre o tema da mesa "Construindo políticas para o segmento audiovisual", preferiu fazer uma longo relato sobre os feitos de sua gestão, onde destacou a hiperbólica afirmação de que "foi a primeira vez que se fez uma política de audiovisual, porque as anteriores tinha sido só de cinema", imitando as idiossincrasias do "mestre guia". Mas é perdoável, para quem, de fato, deu uma grande contribuição para ampliação das ações da SAV. Além de rever amigos, sai do seminário com uma visão mais otimista, e feliz por voltar a conviver com uma das minhas grandes paixões. A exemplo da Secretaria Nacional de Cultura do PT, os demais partidos deveriam promover encontros como este, além é claro de que o Sindicado e as Associações também.....não precisa ser de portas fechadas. Ouvir o Manoel Rangel falar, durante 30 minutos, uma brilhante exposição sobre o futuro do desenvolvimento do audiovisual brasileiro, sem mencionar um única vez a expressão "auto-sustentabilidade sistêmica do audiovisual brasileiro", foi muito bom!!!! que avanço!!!!!! abrcs JOatan

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