Breve apontamento estético-negativo sobre As Cabeças Trocadas, de Th. Mann

June 26, 2017 | Autor: Alexandre Pandolfo | Categoria: Narrative Theory, Filosofía Política, Estética, Literatura Comparada, Teoría Crítica
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Breve apontamento estéticonegativo sobre As Cabeças Trocadas, de Thomas Mann Alexandre Pandolfo* O corte pontual acerca do qual as palavras e as linhas que seguem brevemente pretendem abordar atinge as veias da cultura ocidental e a evidência do que deixou de ser evidente, expressamente no que tange à sua retroorganização anônima não meramente representada na obra literária As cabeças trocadas (Die vertauschten Köpfe) de Thomas Mann, mas de certa forma expressada pelas relações que nessa novela íntima e publicamente se apresentam as fantasias onipotentes da subjetividade em sua operação lógica e mítica e encantadora. Seu tipo de incisão pretende ser apenas rápido, mas não cirúrgico. Então, esses apontamentos apenas podem fundir e difundir; numa espécie de átimo ou de sopro a cicatriz do corte sobre o qual se debruçam. E nesse sentido, eventualmente eles podem, enquanto tais, pesar sobre a sociedade contemporânea. As cisões entre teoria e prática ou entre sujeito e objeto, por exemplo, ligam essa narrativa fantástica ao ímpeto subjetivista do pensamento hegemônico, na única imagem aqui trazida à tona – e por meio dela, um amálgama, ela pode ver o que segue, ver a si mesma espelhada na representação de outrem. Ela vê o impossível. O logro mimético, porém, narrado num átimo, não é exatamente de um êxito próprio, mas sim geral, universal, cuja contradição cabal e culminante, peculiar à nossa civilização ocidental é o mítico converter-se do sujeito a si mesmo em coisa, objetificado num *

Mestre em Criminologia e Controle Social (PUCRS). Doutorando em Teorias Críticas da Literatura (PUCRS), bolsista CNPq. [email protected]

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movimento segundo o qual é também a própria sociedade que se dilacera, fundamentalmente através da lei geral da troca. – O narrador da novela As cabeças trocadas, para narrar, rompeu com a pretensão de bastar-se a si. Onisciente somente até os limites da sua própria consciência individual, e diante da desintegração da identidade da experiência encontra-se constrangido de antemão à ficção do relato, entrelaçado, tal como seus personagens, num labirinto junto à composição profunda do problema do ser humano, com as arcaicas confusões acerca do interior e do exterior, com a confusa racionalização objetivamente ludibriadora do ter e do ser – ele narra uma história que “exige muito da força espiritual do auditório”1, como diz; diante dos destroços do ente, pelo curso inquieto e pelos meandros ilimitados da sua linguagem, o narrador não garante desde cedo as suas palavras num encadeamento lógico, en-cadeamento segundo o qual elas só serão audíveis em compasso com a disposição daqueles a quem foi dado escutá-las, ou lê-las, mas certamente aquém da resolução dos antagonismos acerca dos quais, entretanto, elas já não podem escapar. E é através dessa afirmação do narrador, que ele “destrói no leitor a tranquilidade contemplativa diante da coisa lida”2. Thomas Mann parodia com a troca das cabeças não apenas o positivismo lógico, o encadeamento causal dos adventos como se fossem ocorrências neutras e conectadas sem assombro, mas o próprio princípio geral da dominação, “o encanto da natureza dominada”,3 sob o qual se prolonga historicamente a opressão contra o não-idêntico. O esquema sob o qual as personagens Shridaman e Nanda se instituem 1

MANN, Thomas. As cabeças trocadas. Uma lenda indiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 07. 2

ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In Notas de literatura I. São Paulo: Duas cidades/Ed. 34, 2003, p. 61. 3

ADORNO, Theodor. Dialética Negativa, p. 225. [“Das Bewusstsein der Kausalität ist (...) objektiv und subjektiv, der Bann der beherrschten Natur“.]

Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.)

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de certa forma desde o nascimento, que os abriga e que os difere, e que não estanca com a morte, respeita em seus interstícios narrativos a compreensão e a pressuposição de que a força compulsiva da identidade se apresenta por meio da abstrata comensurabilidade e apropriação do nãoidêntico. Ali a lei geral da troca é modus. Assim se apresentam na obra as consequências históricas do mito do esclarecimento. O movimento processual que culmina tragicamente no rearranjo e na reunião das cabeças com os troncos, precedido pelos cortes, guarda um momento suspenso. Uma passagem pelo silêncio. Uma ausência presente na novela. Nesse ínterim, logo opera uma dialética. Ela deixa antever algo que inevitavelmente se perde quando o narrador não obstante continua a narrar. Mas antes ele conta que: “Após Schridaman ter proferido essas palavras obscuras, ergueu a espada do chão e decepou a própria cabeça do tronco./ Isso foi dito rapidamente, e não menos rapidamente foi feito”.4 E só por um instante; ainda não estava convencido pela palavra acolhida e fatidicamente transformada em uma só coisa com o que enuncia. O narrador, ali, cala. Foi algo assombroso. Um ato quase irrealizável. Incomum. “Num abrir e fechar de olhos ele efetuou a cruel imolação”. Abandonado à Deusa por um instante ficou Schridaman, deixado pelo narrador. – Recapitulado, o binarismo da oposição ocidental entre mente e corpo, por exemplo, ao mesmo tempo em que serve de pretexto para o vínculo espiritual entre o ocidente e o outro, (já que trata essa novela de “uma lenda indiana”) se vê “representado” com a “representação” do outro e, mesmo fantasticamente, em trajes e com sotaque diferente, o narrador estende-se sobre os corpos das personagens e guarda-os. E o curso das aventuras que correm até a desventura que constrange o narrador, pode ser percebido através da disposição dos corpos sobre a ambiguidade, sob 4

MANN, Th. As cabeças trocadas, p. 45.

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as ilusões da existência. Mas, entre o desprendimento de si, que é a consequência fatídica dos desejos de troca cultivados pelos amigos, e a reunião heterofágica segundo a qual a individuação reforma um todo, “sob gemidos e suspiros e à custa de inomináveis sacrifícios”5 – em decorrência não de uma solidariedade, mas de interesses antagônicos que aspiram realizar o absoluto na identidade, tal como se configura progressivamente, graças à alienação e sob camadas profundas, a integração da sociedade ocidental e as evidências da sua desintegração – oculta-se a obsessão lógica que norteia o pensamento ocidental ainda imensamente impressionado com as possibilidades de triunfo. “A história de Sita”6, que em verdade é a história de Shridaman e Nanda, principalmente, da sua cumplicidade e da sua irmandade até os limites em que os seus corpos podem aceitar, traz à tona o ponto cristal da sua articulação, uma camada sutil através da qual a anêmica boa consciência encontra-se presa, atada com ambas as mãos na engrenagem da coisificação social à qual a novela se refere também parodicamente. O deslumbramento com os poderes do logos até o momento em que “isto é aquilo”7 carrega o peso oco que resta da decomposição fática do sujeito, depois que o instante da morte passou. É o cisco no olho que incomoda sempre a filosofia que nega estar imiscuída internamente à vida danificada, assombrada pela onipotência do pensamento, esse momento em que o outro é já o mesmo – logicamente deduzido, torna idêntica a forma à sentença para vivê-lo realmente, para correspondê-lo, “cortando a priori a possibilidade da diferença, que se degrada em mera nuance

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ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 128. 6

MANN, Th. As cabeças trocadas, p. 07.

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Idem, ibidem, p. 08

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no interior da homogeneidade”8 – num movimento de mera repetição, tal como aquele em que estavam apresados os amigos inseparáveis. Devido a sua transformação em membro inominado de uma sociedade num todo atada conforme o modelo do ato de troca, o ocaso do indivíduo apresenta-se sob o primado da identidade e sob o projeto hegemonicamente endossado de aniquilação da alteridade. O mito se reconhece frente ao escândalo do indiferenciado. Seria pertinente nesse momento parafrasear, caso a predominância da angústia frente a situação anímica que se escancara não tivesse jurado fidelidade ao esquema que mantém apaziguada e quieta a sociedade atual, se diante de um acontecimento infinitamente maior do que a capacidade de um homem representá-lo e mesmo de suportá-lo, em toda sua abstração, como no caso do encontro com o terrível, por exemplo – se conviria a esse respeito falar de “quietude acolhedora”9. Essa é uma pergunta com a qual teve que se deparar o narrador. Assim vislumbrar-se-ia a ironia em Thomas Mann. No caso dos fluxos sanguíneos que transcorreram entre as veias dos amigos Shridaman e Nanda após o corajoso instante de silêncio do narrador, o estreito limite entre padecer à desarticulação e o trabalho para restituir-se, rearticular-se, respeita o vínculo com a situação estética na qual está construída a narrativa. Os esforços para prender, para recolher, no berço aconchegante e neutralizador da diferença – berço neutralizador do escândalo ao qual se submetem um diante do outro, e por isso cooptando o outro injustificadamente por meio desse movimento, os esforços apaziguadores que culminaram historicamente na perda da aura que imantava a obra de arte antes da era da sua reprodutibilidade técnica, nos termos em que fala Walter Benjamin – expõem na novela sobre a 8

ADORNO, Theodor. Crítica cultural e sociedade. In: Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ed. Ática, 1998, p. 09. 9

MANN, op. cit. p. 15.

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fungibilidade das cabeças as suas consciências históricas, segundo o tom fantástico e um silêncio, a cuja tensão a narrativa é elevada. Mas os esforços para aconchegar os fluxos que transcorrem entre os diferentes, permeados e contaminados, um com o sangue do outro, lograram digerilos – apesar da diferença e das forças que restavam em oposição a tal identificação subsidiada pela compreensão conciliadora da realidade. A vitalidade moribunda da cultura ocidental e o caráter mortal do pensamento que ecoa na novela Cabeças trocadas estendem-se até a teoria do conhecimento regida pela separação entre sujeito e objeto. E o homem, enclausurado como uma pedra à fungibilidade universal, só abstratamente, em seus espaços de manobra, pode esquivar-se, preservando-se, do escândalo em que participa como personagem principal, oferecido em espetáculo para si mesmo. Inapreensível à teorização, contudo, o próprio do escândalo é não deixar incólume, não poder preservar a si perante ele; e, pois, não obstante as defesas e os mecanismos que venham a ser erigidos para renovar a ferida, ainda que estes corpos sejam restaurados, rearticulados, algo permanece: a experiência do sofrimento permanece. A débil consciência de si no limiar do corpo que se restabelece não forma unidade com o refluxo de sangue ao longo das veias. Recoberto de cinzas, o narrador assim não deu por encerrada a sua tarefa de narrar. Aqui, isso provoca exceções ao estado de exceção. O mundo em que vivemos, mundo que é como é. Resignado. Administrado. Encantado. A paródia da troca, que antecede e sucede o corte, o abismo narrativo, intervala a abstração de si e a suspensão da vida a que estamos submetidos no seio da cultura ocidental.

Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.)

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Referências bibliográficas ADORNO, Theodor. Crítica cultural e sociedade. In: Prismas: crítica cultural e sociedade. Trad. Augustin Wernet e Jorge Almeida. São Paulo: Ed. Ática, 1998. ________. Dialética Negativa. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. ________. Introdução à sociologia. Trad. Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Editora UNESP, 2008. ________. Posição do narrador no romance contemporâneo. In Notas de literatura I. Trad. Jorge Ameida. São Paulo: Duas cidades/Ed. 34, 2003. MANN, Thomas. As cabeças trocadas. Uma lenda indiana. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

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